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Linhas Críticas

Print version ISSN 1516-4896On-line version ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.27  Brasília  2021  Epub Sep 14, 2021

https://doi.org/10.26512/lc27202138943 

Artigos

Posicionamentos discursivos sobre a educação domiciliar no Brasil em postagens do Twitter

Posicionamientos discursivos sobre la educación domiciliaria en Brasil en publicaciones del Twitter

Discursive positions about homeschooling in Brazil in Twitter posts

Francisco Vieira da Silva1 
http://orcid.org/0000-0003-4922-8826

1Doutor em Linguística pela Universidade Federal da Paraíba (2016). Professor da Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA). Membro do grupo de pesquisa Discurso com Foucault (Dis.com.fou).


Resumo

O estudo analisa posicionamentos discursivos acerca da educação domiciliar no Brasil em postagens do Twitter, no intuito de investigar quais relações de saber-poder são mobilizadas na constituição desses discursos. Para tanto, toma como aporte teórico as investigações de Foucault (2010) acerca do discurso, enunciado e formação discursiva. Sobre a metodologia, trata-se de um estudo descritivo-interpretativo de natureza qualitativa. As relações de saber-poder estão em conformidade com os modos como se enuncia sobre a educação domiciliar, a saber: revolta em relação ao homeschooling, constatação dos impactos na profissão docente e defesa dessa modalidade educacional.

Palavras-chave Educação domiciliar; Discurso; Twitter; Políticas educacionais

Resumen

El estudio analiza posicionamientos discursivos acerca de la educación domiciliaria en Brasil en publicaciones de Twitter, con el fin de investigar qué relaciones de saber-poder son movilizadas en la constitución de esos discursos. Para ello, toma como aporte teórico las investigaciones de Foucault (2010) acerca del discurso, enunciado y formación discursiva. Sobre la metodología, se trata de un estudio descriptivo-interpretativo de naturaleza cualitativa. Las relaciones de saber-poder están en conformidad con los modos por medio de los cuales se enuncia respecto a la educación domiciliaria, más concretamente: revuelta en relación a la educación en casa, constatación de los impactos en la profesión docente y defensa de esa modalidad educativa.

Palabras clave Educación domiciliaria; Discurso; Twitter; Políticas educativas

Abstract

The study examines discursive positions about homeschooling in Brazil in Twitter posts, in order to investigate which relations of knowledge-power are mobilized in the constitution of these discourses. To this end, it takes as theoretical support the investigations of Foucault (2010) about discourse, statement and discursive formation. About the methodology, this is a descriptive-interpretative study of qualitative nature. The knowledge-power relations are in agreement to the ways in which homeschooling is enunciated, namely: revolt against homeschooling, acknowledgement of the impacts on the teaching profession, and in favor of this educational modality.

Keywords Homeschooling; Discourse; Twitter; Educational policies

Introdução

Conforme matéria que circulou no site do jornal O Globo, assinada por Sanches (2021), o governo Bolsonaro elegeu como prioridade no campo da educação, em carta enviada ao Congresso Nacional, em março de 2021, a normatização da chamada educação domiciliar (homeschooling, em inglês), passando na frente de questões consideradas estruturais e prementes na área, como a regulamentação do Fundeb (Fundo de Desenvolvimento de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica), a implementação de condições adequadas para um possível retorno presencial das aulas, a criação de mecanismos que pudessem dirimir os impactos causados pela pandemia da Covid-19 na aprendizagem dos alunos, bem como o incremento de programas de conectividade da internet para que os discentes das escolas públicas possam acompanhar as atividades desenvolvidas no âmbito do ensino remoto.

Apesar de a educação domiciliar atender uma parcela ínfima do total de estudantes brasileiros, cerca de 0,04%, segundo estimativa da Associação Nacional de Ensino Domiciliar (Aned), recuperada por Sanches (2021), trata-se de uma proposta do programa eleitoral de Bolsonaro, em sintonia com interesses de agentes diversos que o elegeram, desde forças ultraliberais a grupos conservadores, os quais, de modo geral, veem a escola como um lugar perigoso, o qual seria assinalado por uma incessante “doutrinação” de professores alinhados ao espectro político da esquerda, de modo a contrair valores e princípios resguardados pela instância familiar (Penna, 2019).

Para reiterar a posição favorável do governo no tocante a essa questão, o Ministério da Educação (MEC), sob o comando de Milton Ribeiro, pastor presbiteriano, advogado e professor, lançou, em maio de 2021, uma Cartilha Informativa denominada Educação domiciliar: um direito humano tanto dos pais quanto dos filhos (Brasil, 2021). Em cerca de vinte páginas, o documento busca esclarecer as razões que subjazem à regulamentação da referida modalidade, a partir de dados de outros países, do relato de jovens provenientes da educação domiciliar que ingressaram na universidade e da enumeração de sujeitos famosos que foram educados pelo homeschooling. No final do texto, a cartilha arremata: “O Brasil não pode mais esperar” (Brasil, 2021, s.p.). Esse efeito de sentido de urgência na aprovação de propostas acerca da educação domiciliar encontra efeito no número de projetos em tramitação na Câmara e no Senado acerca da temática. De acordo com um levantamento realizado pela Cartilha Informativa do MEC, pelo menos dez projetos estão em análise. O projeto mais antigo em tramitação é o Projeto de Lei (PL) 3.179/2012 (Brasil, 2012), o qual busca regulamentar o homeschooling, a partir de alteração da Lei nº 9.394/96 de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) (Brasil, 1996), bem como do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei nº 8.609/90 (Brasil, 1990) e, de acordo com Vasconcelos e Boto (2020), acabou se tornando um projeto “guarda-chuva” a incorporar os processos subsequentes sobre a matéria. A partir de 2019, após a ascensão de Bolsonaro, cinco projetos em torno do homescooling foram criados, de modo a mostrar o avanço da pauta no Congresso.

Além da cartilha informativa, o MEC tem publicado, nas redes sociais, uma série de vídeos curtos (até o término da escrita deste texto, foram sete), com a participação do ministro Milton Ribeiro, com o intento de propugnar a educação domiciliar como um direito. Seguindo essa toada, em assembleias estaduais, começam a ganhar fôlego a discussão sobre o homescooling. Em junho de 2021, no estado do Rio Grande do Sul, o PL 170/2019 (Rio Grande do Sul, 2019), relativo à autorização da educação domiciliar, de autoria do deputado Fábio Osterman (Novo), foi aprovado por 28 votos a 21. Ainda que tenha sido vetado integralmente pelo governador Eduardo Leite (PSDB), fica em evidência o fortalecimento de uma agenda para a educação que se atrela à racionalidade neoliberal, tendo em vista que se reduz a responsabilidade do poder público e se fortalecem certos nichos do mercado que faturam em torno da educação domiciliar, por meio da comercialização de materiais didáticos, cronogramas de aula e planos de estudos para pais e responsáveis (Picoli, 2020).

Em contraponto a essas posições pró-ensino domiciliar, cerca de quatrocentas entidades repudiam o avanço dessa pauta no congresso (Corrá, 2021). Para a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), que vem realizando uma campanha com a hashtag #NãoàEducaçãoDomiciliar, as consequências de uma possível aprovação do ensino domiciliar são graves, pois pode levar ao acirramento das desigualdades sociais, a evasão escolar, o aumento da violência e a desproteção de crianças e adolescentes, porquanto o Estado é destituído do seu papel protagonista na garantia do direito à educação (CNTE, 2021).

Conforme Vasconcelos e Morgado (2014), é preocupante a desincubência do Estado para com a educação das populações, porque outros espaços de profusão ideológica ocupariam este lugar e os mecanismos de avaliação e/ou vigilância da atuação desses espaços seriam demasiadamente complexos. Ademais, segundo as autoras, os interesses que perfazem a educação domiciliar podem se distanciar da construção do bem comum e da cidadania, porque esta se efetiva na convivência com a pluralidade de sujeitos, ideias e visões de mundo, o que não ocorre no esteio familiar, pois está é marcada por certa homogeneidade.

Vemos, pois, que os debates em torno da educação familiar geram muitas controvérsias e a eleição dessa pauta como uma preferência do governo é algo que chama a atenção. Isso leva a uma proliferação de discursos em variados campos, especialmente nas redes sociais digitais. Pensando nisso, o objetivo deste estudo consiste em analisar posicionamentos discursos acerca da educação domiciliar em postagens do Twitter. Visamos, com essa análise, investigar que relações de saber-poder são mobilizadas, quando se enunciam a respeito da educação domiciliar. O recorte temporal do corpus compreende as postagens publicadas nos meses de junho de julho de 2021, em razão dos seguintes fatos: a) em 8 de junho, a Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul aprovou a regulamentação da educação domiciliar no estado, ainda que essa pauta seja competência da União; b) na noite do dia 6 de julho, o programa jornalístico Profissão Repórter, da Rede Globo, exibiu uma reportagem sobre as articulações políticas da Câmara dos Deputados com vistas a aprovar o PL do homeschooling. Por meio das opções de busca doTwitter, fizemos uma pesquisa através do descritor “educação domiciliar” e constatamos um aumento significativo no número de postagens sobre a temática a partir dessas datas especificamente, mostrando como o engajamento nessa rede social encontra-se imbricado a circunstâncias mais imediatas dos acontecimentos. Para Recuero (2015), o Twitter constitui uma esfera pública cuja dinâmica de funcionamento prioriza a produção e a circulação de determinados tipos de discursos em detrimento de outros, refletindo, sobremaneira, os acontecimentos suscitados noutros espaços.

Sobre a arquegenealogia foucaultiana

As teorizações de Michel Foucault (1926-1984) desafiaram as fronteiras dos campos disciplinares, lançaram novas luzes sobre objetos distintos, como a loucura, a delinquência e a sexualidade, e engendraram metodologias de análise que até hoje podem ser utilizadas com vistas a problematizar determinados fenômenos que não foram recobertos pela ótica do pensador francês. No intento de buscar certas regularidades temáticas no esteio de uma obra tão multifacetada, comumente se desdobram os ditos e escritos do autor em três momentos que, a despeito de não serem estaques, exibem a predominância de dados temas e abordagens mais específicas na natureza cambiante de sua produção investigativa.

De acordo com Gregolin (2016), esses três momentos podem ser assim arrolados: a) arqueologia do saber – o autor pesquisou os diversos modos de investigação por meio dos quais se buscou aceder ao estatuto de ciência no processo de objetivação dos sujeitos, especialmente em obras que buscaram mostrar a emergência da loucura (História da Loucura), a irrupção do saber médico (Nascimento da Clínica), a história de campos do saber relacionados à vida, ao trabalho e à linguagem (As palavras e as Coisas), por meio do método arqueológico (Arqueologia do Saber); b) genealogia do poder – o autor se voltou para o exame de práticas variadas que inserem o sujeito no interior de relações de poder que o disciplinam e vigiam (Vigiar e Punir), bem como regulam a sua sexualidade (História da sexualidade v. I), através de práticas divisoras, as quais escandem, classificam e categorizam os sujeitos; c) ética e estética de si – nesse momento, as elucubrações foucaultianas recobrem a experiência do sujeito por meio de uma relação de si para consigo, especialmente pela via da sexualidade (História da sexualidade, v. II, v. III e v. IV), através da articulação com as tecnologias de si e com as práticas da governamentalidade.

Considerando o enfoque deste texto, situaremos o olhar no cruzamento entre o fazer arqueológico e a perspectiva genealógica, de modo a esboçar um viés arquegenealógico de análise. Nesse sentido, é cabível pontuar como na produção discursiva acerca da educação domiciliar, interpenetram-se a formação de certos saberes e a mobilização de determinadas estratégias de poder. Seja para defender essa modalidade, seja para refutá-la, compreendemos, como ponto de partida, que se torna imperioso examinar a configuração desse jogo enunciativo no debate de um tema constitutivamente controverso. Para isso, alguns conceitos são seminais, conforme delineamos a seguir.

Com base em Foucault (2010), o discurso pode ser compreendido como uma prática que constrói os objetos de que fala. Pondera o pensador francês que os discursos são feitos de signos, porém fazem mais que utilizar signos para designar coisas, e é justamente esse “a mais” de que é necessário se ocupar para descrever. Em suma, interessa-nos pensar além daquilo que é dito, ou seja, o conteúdo por si só não nos é suficiente, porquanto a dimensão discursiva extrapola o componente linguístico-semântico, ao se articular com a história, a cultura e a sociedade e constituir um acontecimento. Na formulação do conceito de discurso, Foucault (2010) também esclarece: trata-se de um conjunto de enunciados derivados de uma mesma formação discursiva. Segundo o autor, o enunciado representa uma espécie de átomo do discurso, isto é, a unidade mínima de análise, a qual constitui uma função a cruzar diferentes domínios, como a frase, a proposição e o ato de fala e emoldura a formação de determinadas regras que dão condições de existência para que tais domínios possam ser reconhecidos como tais.

Quando elucida o enunciado como uma função, Foucault (2010) apresenta as propriedades concernentes a esse conceito, quais sejam: a) referencial – refere-se às leis de possibilidade por meio das quais os enunciados são produzidos; b) posição de sujeito – diz respeito a uma posição que se assume no enunciado, distinta da instância autoral, do sujeito gramatical ou do sujeito empírico; d) domínio associado – concerne ao fato de o enunciado se relacionar com outros no âmbito de um campo, supondo, portanto, o funcionamento de uma memória; e) materialidade repetível – a irrupção do enunciado pressupõe a existência de um suporte, uma substância, uma data, um lugar e/ou uma ancoragem institucional. No caso das postagens do Twitter, há uma limitação no número de caracteres (atualmente, são 280; antes, eram 140), o que possibilita certa rarefação do que deve ser enunciado na materialidade.

Por meio da descrição das propriedades do enunciado, é possível pensar que a justaposição, a sucessão e a interrelação entre os enunciados geram a aparição de temas, conceitos, estratégias e modalidades cujas regularidades formam aquilo que Foucault (2010) denomina como uma formação discursiva. Na visão desse autor, os enunciados a priori são dispersos, mas o olhar arqueológico pode mostrar certas singularidades que revelam a existência de uma formação discursiva. Dessa maneira, Foucault (2010) defende a seguinte tese: sempre que se puder evidenciar a emergência de regularidades semelhantes num regime de dispersão, regularidades essas que se expressam por meio de escolhas temáticas, tipos de enunciação, de estratégias e de objetos particulares, pode-se localizar nesse movimento uma formação discursiva.

Essa formação discursiva, por meio da qual os discursos vêm à tona, não funciona fora de um dado regime de saber, entendido menos como uma forma de conhecimento e mais como uma posição a definir o que pode ou não ser dito no interior de uma prática discursiva. Nas palavras do pensador francês: “O saber não está contido somente em demonstrações; pode estar também em ficções, reflexões, narrativas, regulamentos institucionais decisões políticas” (Foucault, 2010, p. 221). A distinção entre saber e conhecimento torna-se relevante, porque, de acordo com Foucault (2005), os saberes não apresentam a mesma qualificação, a depender das configurações institucionais, dos processos de lutas e enfrentamentos na produção da verdade de cada momento histórico. Dito isso, o autor nos fala da existência de saberes sujeitados, os quais podem ser entendidos como “[…] uma série de saberes que estavam desqualificados como saberes não conceituais, como saberes insuficientemente elaborados: saberes ingênuos, saberes hierarquicamente inferiores” (Foucault, 2005, p. 12). Para o pensador francês, esses saberes insurgem contra os efeitos centralizadores do discurso científico que possui um efeito central numa sociedade como a nossa e a aparição desses saberes é possível de ser cartografada porque há uma inegável articulação entre o saber e o poder.

Consoante a perspectiva foucaultiana, todo saber encontra-se ancorado numa estratégia de poder e o inverso também é verdadeiro. Por isso, comumente empregamos a construção saber-poder, com o intento de mostrar a indissociabilidade existente entre esses dois conceitos. Convém, para tanto, definir melhor o que se compreende por poder no horizonte teórico aqui esboçado. Para Foucault (2006), o poder não é a fonte nem a origem do discurso, mas algo que atravessa o discurso, pois este constitui um elemento no interior de um dispositivo estratégico. De maneira oposta a concepções que enxergam o poder sob uma ótica repressiva, Foucault (2009) reposiciona o debate, ao defender que o poder não constitui um bem de que se poderia dispor e/ou um direito a ser conferido a determinados sujeitos, mas como um conjunto de relações a serem exercidas por meio de ações a produzirem reações e respostas. De modo mais específico, o pensador francês pondera que o poder não se encontra restrito a uma instituição, embora o autor não negue a importância desta, senão conceptualiza o poder por meio de uma microfísica, de uma analítica a que pressupõe uma pulverização das relações de poder por todo o corpo social.

Na ótica de Calomeni (2018), as reflexões de Foucault em torno da questão do poder promovem deslocamentos indisfarçáveis, especialmente porque se afastam das análises tradicionais acerca do poder nutridas pela ciência e filosofias políticas, as quais concebem o poder “[…] como direito, mercadoria, privilégio de classes, propriedade do Estado ou do soberano, expressão da lei, sinônimo da violência e, mais do que isso, algo essencialmente negativo, sempre e necessariamente amarrado às ideias de repressão, ideologia e alienação” (Calomeni, 2018, p. 223). Em contraponto a essas noções, Foucault (2009) defende que o poder é produtivo, pelo fato de incitar comportamentos, regular práticas e disciplinar o corpo. Isso não quer dizer, por outro lado, que o poder também não impede, reprime ou dificulte, mas entrevê-lo apenas sob esse viés não é suficiente. Além disso, de acordo com Foucault (2009), o poder só se exerce sobre homens “livres”, razão pela qual as estratégias de escape, fuga e reação estão sempre em funcionamento. Eis a diferença mais visível entre poder e violência: enquanto esta anula as alternativas de reação, aquele coordena todo um campo de ação possível para a existência de espaços de resistência e, por que não, de liberdade. De maneira mais específica, o autor postula que as relações de poder são coextensivas de estratégias de resistências, de lutas, de possibilidades de insurreições e sublevações. Ou seja, quanto mais firmes e assentadas forem as relações de poder, mais incisivas e precisas serão as resistências a esse exercício do poder.

Para encapsular as discussões desenvolvidas neste tópico, dialogamos com Navarro (2020), para quem é possível operacionalizar a arquegenealogia em três gestos metodológicos que não são estanques, a saber: a) isolar a instância do acontecimento do discurso, com vistas a integrá-lo não a uma tradição, autor ou espírito de uma época, mas ao conjunto de outros enunciados; b) recortar uma série de enunciados para, com isso, analisar o funcionamento das relações de saber e de poder que aí se fazem presentes; c) descrever os posicionamentos discursivos constituídos no interior da série enunciativa, levando em conta as singularidades e as repetições existentes. Esse percurso, para Navarro (2020), leva-nos a buscar responder, sob a escuta de Foucault, a seguinte indagação: por que apareceu determinado discurso e não outro em seu lugar?

Sobre os procedimentos metodológicos

Neste estudo descritivo-interpretativo de natureza qualitativa, o corpus é formado por dezessete postagens publicadas no Twitter nos meses de junho e julho de 2021. Conforme adiantamos anteriormente, na seção introdutória, realizamos uma busca com o descritor “educação domiciliar” na rede social antes evocada. Nas opções de filtragem dessa rede social, clicamos na opção “from anyone”, que rastreia postagens de usuários, de modo amplo, que não necessariamente são seguidos pelo nosso perfil no Twitter. Isso porque a natureza desse site não é ser uma rede de amigos, senão uma mídia por meio da qual o usuário tem acesso a uma arena pública de discussão de temas que lhe interessam (Moura et al., 2020). Buscamos escolher materialidades discursivas que se mostrassem favoráveis ou contrárias à problemática do homeschooling, com o intuito de demonstrar que vozes dissonantes enunciam acerca dessa questão e de investigar que relações de saber-poder diferentes podem ser mobilizadas na consecução desses discursos.

Com vistas a não expor os sujeitos empíricos autores das postagens, seguimos as recomendações de ética constantes no trabalho de Recuero (2017) acerca da coleta de dados em pesquisas feitas em redes sociais on-line e nomearemos as postagens de Postagem 1, Postagem 2 e, assim, sucessivamente, conforme a ordem em que apareceram na busca realizada. Segundo a autora, “[…] é sempre importante anonimizar os dados coletados, mesmo que estejam em bancos de dados públicos, dificultando o reconhecimento dos atores individuais de modo que possam ser prejudicados pela pesquisa” (Recuero, 2017, p. 61).

De posse dos dados, organizamos as postagens em três séries enunciativas, quais sejam: a) a primeira série mostra um tom de revolta por parte dos sujeitos enunciadores acerca do protagonismo do homeschooling como uma pauta do governo; a) a segunda compõe-se de enunciados que explicitam os impactos da educação domiciliar na profissionalização docente; c) a terceira série enunciativa reúne postagens que visam à defesa da educação domiciliar e revela certo repúdio quando a classe política dirigente não atende a esse anseio.

“Não deveria nem ser discutido”: posicionamentos discursivos de revolta a respeito da visibilidade da educação domiciliar

Nessa primeira série enunciativa, analisamos algumas postagens coletadas que apresentam como regularidade o fato de que a visibilidade conferida à educação domiciliar no contexto brasileiro ser um completo disparate. Conforme esses posicionamentos discursivos, há questões e problemáticas educacionais mais prementes que são preteridas pelo governo em favor de uma discussão que não impactará numa mudança significativa no ensino e na aprendizagem da grande maioria dos estudantes. Vejamos:

Educação Domiciliar não deveria nem ser discutido. Querem tirar até as coisas únicas que as crianças tem na escola e que nunca vão ter só em casa. Afinal Escola não é só transmissão de conhecimento é socialização, é troca de experiências, é o primeiro mundo que temos contato. (Postagem 11)

O projeto de educação domiciliar deste governo é mais uma artimanha para que a população permaneça na ignorância é pautada em dogmas Eu não tenho palavras para descrever o quão asqueroso é o plano do governo em destruir o Brasil. (Postagem 2)

Olha tá foda de assistir #profissaoreporter só a elite falando que "há muitas famílias" com essa estrutura (pra Educação Domiciliar).. aaaaaaa né poupem!!!!!!!!!! Tô quase tacando algo na televisão! Educação pública de qualidade pra todos, isso sim é uma pauta importante! (Postagem 4)

Imagine pais como esses sendo responsáveis pela educação domiciliar, o nível de controle, censura, desconexão com o mundo real e até lavagem cerebral q crianças nessas condições passam… Não há válvula de escape. Eu fico HORRORIZADA com a possibilidade de q isso seja aprovado. (Postagem 7)

aí gente imagina viver numa bolha pra ser a favor de educação domiciliar no brasil aí olha q vida maravilhosa. (Postagem 8)

educação domiciliar não é uma pauta enquanto existe evasão escolar, crianças fora da escola e falta de investimento na educação. (Postagem 10)

Em uníssono, os posicionamentos discursivos que estão presentes nas postagens antes expressas denotam um efeito de repúdio à relevância dada à regulamentação da educação domiciliar como uma pauta do governo. Assim, esses discursos descrevem tanto as consequências danosas de tal regulamentação (postagens 11, 4 e 7), como evidenciam o sentimento de repulsa que a menção a essa questão gera (postagens 2, 4 e 7), explicitam a inação dessa discussão no contexto da educação brasileira (postagem 10) e delimitam os que defendem o homeschooling como sujeitos deslocados da realidade (postagem 8).

Os saberes que são mobilizados para construir esses posicionamentos podem ser assim identificados: a) a educação domiciliar representa um atraso no desenvolvimento das crianças, porque estas são privadas do contato com o outro, com o diferente que preexistem as interações escolares (postagem 11); b) uma vez que as crianças são privadas da educação no ambiente escolar, haverá um limite na compreensão dos fenômenos sociais somente pautados por dogmas e valores da família (postagem 7); c) os que eventualmente serão afetados por uma possível regulamentação da educação domiciliar pertencem às classes sociais economicamente favorecidas e, de acordo com as postagens, a tomada dessa pauta pelo governo constitui um engodo que apadrinha interesses de grupos específicos. Esses posicionamentos estão alinhados a relações de poder, porquanto incidem sobre as ações a serem efetuadas sobre a educação. Segundo as postagens, é importante priorizar o ensino público, a contenção de problemas estruturantes como a evasão, o abandono escolar e a falta de investimentos na área, bem como defender a escola como um lugar principal no processo de socialização. De acordo com Casagrande e Hermann (2020), a educação domiciliar pode levar a um fechamento do sujeito sobre si mesmo, de modo a acarretar implicações éticas cruciais, como a desconsideração da diversidade e da pluralidade social e a consequente negação do outro.

Os sujeitos que enunciam nas postagens utilizam-se de certas estratégias discursivas para emoldurar seus posicionamentos no âmbito das materialidades repetíveis prioritariamente contrárias à educação domiciliar. Nas postagem 4, por exemplo, ao comentar acerca do programa Profissão Repórter, o sujeito enunciador traz, em discurso citado, um trecho no qual os entrevistados do programa explicam que há muitas famílias com a estrutura necessária para acolher o homeschooling, ao que o sujeito enunciador reage em tom de deboche, empregando de modo repetitivo algumas letras (“aaa”) e o ponto de exclamação, de forma a expressar na materialidade significante o efeito de irritação e impetuosidade, o qual é reforçado pelo sujeito enunciador quando confessa: “Tô quase tacando algo na televisão”. Na postagem 7, a posição de sujeito emprego o termo “horrorizada” em caixa alta, de modo a destacar como se sente diante da possibilidade da regulamentação da educação domiciliar. Já na postagem 2, ao se posicionar acerca dos planos do governo para a “destruição” do Brasil, o sujeito enunciador admite não encontrar uma forma de materializar em palavras o nível de tal perversidade.

O efeito passional que deriva das materialidades analisadas no interior dessa série enunciativa encontra eco no esteio de uma conjuntura política profundamente assinalada pelo insulto que, certamente não é de hoje, mas que se agravou após a vitória presidencial de um candidato marcado por veleidades autoritárias e pelo uso frequente da violência verbal. Porém, é necessário pontuar que o cenário da pandemia da Covid-19 inflamou ainda mais essa polarização. A ingerência do governo federal frente ao controle da pandemia, particularmente no que toca à ausência de medidas efetivas no campo educacional (Barros & Matias, 2021) constitui uma prática por meio da qual diferentes enunciados são produzidos. Quando pensamos acerca dos discursos sobre a educação domiciliar, aqui situados como o que seria relevante para a atual gestão, referimo-nos a condições de possibilidade específicas e que se reportam a um cenário de contínuo ataque à educação pública, gratuita e laica, oriundo de visões obscurantistas, antidemocráticas e neoliberais.

Para Cury (2019, p.6), “[…] a escolaridade obrigatória para todos constitui uma resposta que o Estado Democrático tem para que, pela posse de conhecimentos ‘comuns’ a todos, possibilite o desenvolvimento da cidadania, de tal sorte que ‘todos’ se tornem membros da sociedade”. A educação domiciliar, a nosso ver, rompe com esse pacto. Ademais, quando se reduz a educação à mera transmissão acrítica de conteúdo, que poder ser suprida com a mediação dos pais e familiares, a contratação de tutores ou de um pacote de planos de aulas pré-formatados por empresas, tem-se uma perda considerável do caráter emancipador da educação.

“Por favor, né! Indignada”: posicionamentos discursivos reveladores dos impactos da educação domiciliar para a profissão docente

De acordo com Rosa e Camargo (2020), o processo que busca regulamentar a educação domiciliar encontra-se associado a uma contínua desvalorização da profissão docente e da educação escolar. Na defesa do homeschooling, repousa uma crença que culpa o docente como responsável pelos problemas que são estruturantes no campo educacional. Nas palavras de Rosa e Camargo (2020, p. 15), a adoção da educação domiciliar “[…] acaba por contribuir para a desconstrução da profissão docente, profissão que historicamente transitou de uma ocupação […] mas que, aos poucos, foi se constituindo, a partir de ações direcionadas para a valorização do profissional docente”. As tentativas de implementar a educação em casa vão na contramão de todas as lutas travadas no decorrer dos tempos, bem como a promoção de políticas públicas de reconhecimento profissional e social do magistério.

Aprovar a educação domiciliar é o mesmo que desrespeitar nós Pedagogas e Pedagogos. Estudamos, nos especializados e aí simplesmente uma deputada escreve um projeto de lei dizendo que basta um dos pais terem ensino superior completo. Por favor, né?! Indignada! (Postagem 15)

Educação domiciliar é basicamente algo que vai contra tudo que eu escrevo no TCC. (Postagem 5)

Educação domiciliar é o caralho! Eu sou pedagoga e meus filhos vão para a escola SIM! (Postagem 10)

Ainda que esses posicionamentos partilhem de uma concepção semelhante daquela manifestada na série enunciativa analisada no tópico precedente, a regularidade discursiva que encadeia os enunciados desta série repousa numa posição assumida a respeito de como a educação domiciliar afeta a docência. Na postagem 5, o sujeito enunciador explicita que a educação domiciliar contraria tudo que ele defende no seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC). A despeito de não haver a explicitação de que se trata de um curso de formação de professores, podemos entrever a remissão ao campo educacional e um dizer a denotar uma preocupação acerca dos rumos do homescooling e uma postura comprometida com a educação escolar, tendo em vista a emergência de um saber acadêmico sobre essa problemática.

As postagens 15 e 10 são bem mais específicas sobre o lugar a partir do qual o sujeito constrói o seu discurso. No enunciado da postagem 10, nota-se a explicitação de que se trata de um pedagogo e, por essa razão, há uma legitimidade a enunciar em torno da defesa da educação escolar, através de um saber oriundo da formação. Na postagem 15, fica em relevo o agravamento do desrespeito à profissão docente, pois, no processo de reelaboração do texto do PL 3.179/2012 (Brasil, 2012), cuja relatora atualmente é a deputada Luísa Canziani (PTB-PR), conforme Borges (2021), há a exigência de que um dos responsáveis pela criança tenha curso superior. Segundo o enunciado da postagem 15, no qual consta a alusão a um coletivo (“nós Pedagogos e Pedagogas”), a regulamentação da educação domiciliar constitui uma afronta ao profissional docente, porquanto este, ao estudar e se especializar na sua área de atuação, vê sua função a ser preenchida por quem não detém tal estatuto, tendo em vista que a referência a um “curso superior” mostra-se vaga e não dá conta de desempenhar uma atividade para qual saberes e práticas específicos são demandados. Nessa lógica, partindo do posicionamento da postagem 15, legalizar a educação domiciliar implica desconsiderar todo o processo de profissionalização docente que, inclusive, não se encerra num curso inicial de formação, mas que é contínua e acompanha as transformações sociais. Ademais, partindo do posicionamento dessa postagem, é preciso refletir acerca da operacionalidade dessa modalidade de ensino. Assim, interrogamos: como a educação domiciliar pode dar conta da pluralidade de disciplinas, de objetos e de campos de saber que a escola encerra? Vasconcelos e Boto (2020, p. 15) também vão questionar: “Como contratar um professor particular para cada disciplina? Como os pais dariam conta de trabalhar todas as disciplinas que, na escola, são abordados por especialistas, que foram formados para isso?”.

Nesse sentido, o homescooling esvazia o sentido da atuação do professor, ao credenciar que qualquer sujeito com um curso superior possa ter a expertise para escolarizar uma criança. Num domínio associado, podemos aqui evocar o propalado “notório saber” presente na Lei do Novo Ensino Médio (Lei nº 13.415/2017) (Brasil, 2017), o qual prevê que profissionais sem a formação em cursos de licenciatura possam exercer a docência no itinerário de formação profissional e técnica. A nosso ver, a proposta da educação domiciliar soma-se a essa progressiva deterioração da carreira docente, particularmente porque deslegitima a relevância da profissão e relativiza a função social da instituição escolar. As relações de poder que atravessam essas práticas ameaçam sobremaneira a valorização do magistério e, uma vez que as políticas governamentais tendem a acolher as demandas da educação domiciliar e do neoliberalismo, há uma desertificação (Carvalho, 2020) do caráter republicano e democrático da escola e da profissão docente.

Pensando a partir de Foucault (2009), situamos esses posicionamentos na ordem da resistência às articulações políticas que buscam legalizar a educação domiciliar. Dado que se trata de uma constante agonística, as forças de sublevação não cessam de irromper, notadamente para fazer frente à atuação de relações de poder atreladas aos interesses dos grupos defensores do homeschooling. Ao particularizar os efeitos danosos dessa modalidade na configuração da docência, as materialidades discursivas desta série enunciativa partilham de relações de saber-poder ancoradas na premência em reconhecer a legitimidade da profissão docente e o papel crucial da instituição escolar na educação brasileira.

“Isso se chama liberdade de escolha”: posicionamentos discursivos em defesa da educação domiciliar

Nos dois tópicos anteriores, apesar de os posicionamentos discursivos serem assinalados por estratégias diferentes, podem ser enxertados no interior de uma mesma formação discursiva, a qual se contrapõe à regulamentação do homeschooling. De modo mais direto, pudemos observar que há um incômodo em relação à temática e até mesmo uma indisposição para dialogar sobre ela. Neste tópico, ao contrário, veremos que as postagens demonstram posições predispostas a pontuar as vantagens de tal regulamentação e, inclusive, requerer o apoio a essa pauta por parte dos políticos dirigentes e criticá-los, quando não atendem a tal demanda.

Apesar de ser uma pauta da base do governo, a educação domiciliar nao é sobre evazao escolar, é mais sobre dar a opção a pais q tenham condição de dar esse tipo de educação ao filho. Sera q alguem já ouviu uma criança q sofre bullying? #profissaoreporter. (Postagem 17)

Eu quero que as escolas reabram e quero a educação domiciliar. Isso se chama liberdade de escolha: cada família escolhe o que for melhor. Se vc não quiser educação domiciliar para o seu filho, basta não fazer. É opcional. (Postagem 3)

e sim, a educação domiciliar é melhor q a estatal, muitos estudos mostram isso, e com uma simples pesquisa rápida no google vc ve q a socialização chega até a ser melhor, fora q a criança n vai sofrer com bullying e repressão dentro das escolas. (Postagem 16)

Educação domiciliar trata-se de liberdade e responsabilidade. É dizer que a criança não pertence ao estado (logo, aos políticos) e sim a sua família. É não criminalizar aqueles que procuram opções melhores que a escola tradicional brasileira (que é um lixo). (Postagem 6).

Enquanto tão babando ovo do Eduardo Leite pela opção sexual dele,uma coisa que tanto faz,ele veta o projeto de homeschooling no RS,algo vital para tirar as garras do estado das crianças. (Postagem 12)

Engraçado que ficar em casa deve, mas aprovar leis que regulamentem o Homeschooling, o que permite que pais possam ter seus filhos mais perto não pode. Não é de hoje que a pandemia vem expondo contradições bizarras. (Postagem 9)

claro né, ele é de esquerda, cujo objetivo é ideologizar as crianças, daí não conseguem esse objetivo. com o Homeschooling fica difícil doutrinar os jovens. Imagina se esse cidadão vai aprovar. Ele não defende a fé. Esses políticos é uma vergonha!! (Postagem 14)

Desde que os movimentos pró-educação domiciliar surgiram, no âmbito dos Estados Unidos, em meados da década de 1980, uma das principais bandeiras levantadas diz respeito a um apelo à liberdade. Nessa ótica, os pais e responsáveis utilizam-se de saberes oriundos de brechas e interpretações do campo jurídico, para se contraporem à escolarização compulsória do Estado. Conforme a análise de Cury (2017), é possível rastrear, nos discursos dos movimentos em favor do homeschooling, a coexistência de duas tendências do jusnaturalismo, quer dizer, de um direito que decorreria da natureza como um fundamento. Assim, por um lado, há a aquela tendência que toma a família como precedente ao Estado (postagem 6, especialmente) e, portanto, prevalece sobre o direito positivo advindo da instituição estatal; de outro, propaga-se a liberdade de ensino como uma possibilidade a ser estendida também para as famílias, bem como para os sujeitos (as próprias crianças, em potencial) que teriam o direito de escolher aquilo que acha mais produtivo em termos de formação educacional e, neste caso, seria não frequentar escolas. Nessa última tendência, observa-se uma aproximação com a racionalidade neoliberal, porquanto esta privilegia a individualidade, o investimento no capital humano e o enfraquecimento das ações coletivas, com vistas a atender às exigências do capitalismo financeiro. Nas postagens antes dispostas, vejamos que essa defesa aparece nos termos “dar a opção a pais” (postagem 17), “liberdade de escolha”, “é opcional” (postagem 3), “liberdade e responsabilidade” (postagem 6).

Ainda como parte integrante da visão neoliberal, pode-se entrever a crítica à educação, especialmente no âmbito do Estado, categorizada como “lixo” (postagem 6), como sendo inferior à educação domiciliar (postagem 16), como um lugar de doutrinação alinhada à esquerda (postagem 14), como um espaço frutífero para a prática do bullying e da repressão (postagens 17 e 16). Ao se posicionar dessa forma, o sujeito enunciador nas postagens ancora-se em um saber segundo o qual a educação domiciliar não é só legítima, porque ancorada no direito natural, embora não haja uma regulamentação no ordenamento jurídico brasileiro (Vasconcelos & Morgado, 2014), como também necessária, haja vista a premência em reduzir o alcance do Estado na consecução da liberdade individual. Na postagem 12, lemos que o homescooling tiraria as “garras do Estado das crianças”, de modo a levar à interpretação de que a administração educacional da instituição estatal é danosa e precisa ser combatida.

Nos posicionamentos expressos nas postagens desta série enunciativa, os enunciados, através do domínio associado, consoante propugnado por Foucault (2010), relacionam-se com outros enunciados já ditos acerca da educação domiciliar, especialmente os argumentos contrários às propostas, conforme discutimos nos tópicos anteriores. Dessa maneira, na postagem 17, tem-se a definição de que a educação educacional não se relaciona com evasão escolar, porque se trata da liberdade de escolhas das famílias; na postagem 16, a posição de sujeito enfatiza que a questão da socialização, crítica constante nos discursos desfavoráveis à educação domiciliar, não constituiria uma perda e, para isso, o sujeito enunciador parte de um saber que estaria alojado numa busca noGoogle. Ademais, para fortalecer esse posicionamento, convém salientar a alegação segundo a qual fora da escola a criança estaria incólume ao bullying (referido também na postagem 17) e, por isso, em melhores condições para aprender.

Nas três últimas postagens da série, os posicionamentos discursivos se reportam ao veto do governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), em relação ao PL 170/2019 (Rio Grande do Sul, 2019) que legalizava o homescooling no território gaúcho. Na constituição desses dizeres, ressoam efeitos de revolta frente à decisão do governo, através das seguintes estratégias: na postagem 12, a posição de sujeito desaprova o frisson causado pela declaração da homossexualidade do governador Eduardo Leite, feita numa entrevista dada ao programa Conversa com Bial (Rede Globo), no dia 1 de julho de 2021 (G1 RS, 2021), de modo a contrapor que o governador não segue à risca a agenda neoliberal; na postagem 9, a posição que enuncia faz uma analogia, com vistas a apontar uma possível contradição entre as medidas de contenção à pandemia de Covid-19 e o veto à educação familiar; a postagem 14 justifica o veto pelo fato de o governo ser vinculado à esquerda e, por essa razão, compactuar com uma agenda que visa a doutrinar os alunos (“ele não defende a fé”) por meio de um aparelhamento estatal, o qual não seria possível no homescooling. Nessas três postagens, pontuamos a existência de relações de saber-poder responsáveis por inserir o governo num lugar de cerceamento da liberdade das famílias e acusá-lo de utilizar o aparato institucional do Estado para impor uma ideologia supostamente doutrinadora. Acreditamos que, no interior das condições de possibilidade dos acontecimentos mais imediatos, a “saída do armário” do governador gaúcho serviu como uma estratégia para que a crítica feita a ele seja constituída desse modo e não de outro.

Conclusão

Neste artigo, debruçamo-nos sobre a análise de postagens do Twitter, com o intuito de estudar que relações de saber-poder são mobilizadas para a constituição de posicionamentos discursivos em torno da educação domiciliar. De acordo com o que vimos no decorrer deste texto, a emergência de discursos acerca dessa questão no esteio das mídias sociais digitais está conectada com o interesse do atual governo brasileiro em regulamentar o homeschooling, algo que chama a atenção, haja a vista a existência de problemas extremamente estruturantes da educação num contexto de pandemia, para os quais não se tem dado a devida atenção (Barros & Matias, 2021).

Partindo desse cenário, concebemos o Twitter como uma espécie de ágora contemporânea de discussão de variadas problemáticas e, sob esse ângulo, selecionamos postagens que enunciassem acerca da educação domiciliar, as quais foram organizadas em três séries enunciativas, levando em conta os posicionamentos discursivos nelas corporificados. Na primeira série, vimos que os posicionamentos apresentam um tom de revolta frente à possibilidade de regulamentação da educação domiciliar e denunciam a relevância dada pela atual gestão a tal pauta. Na segunda, os posicionamentos discursivos, ao marcarem o lugar de onde enunciam, quer dizer, do lugar de docentes, pontuam as consequências prejudiciais de uma iminente aprovação do homeschooling no processo de deterioração da profissão docente, especialmente porque os defensores da educação domiciliar acusam os professores de inaptos e, portanto, responsáveis pelo fracasso escolar; além do mais, segundo as postagens, a escolarização em domicílio não pode substituir o saber-fazer do profissional da docência. Na terceira, os posicionamentos discursivos mostram-se propícios à legalização da educação domiciliar e, para tanto, buscam subsídio em saberes do campo jurídico, com vistas a sobrepor o direito natural da família sobre a criança à obrigatoriedade da educação escolar pelo governo.

Os diversos posicionamentos que circulam no Twitter nos mostram que a educação domiciliar constitui uma questão controversa no cenário brasileiro. Entendemos que essa discussão é acentuada por meio da conjunção de forças neoconservadores e neoliberais no comando do governo e isso abala sensivelmente os pilares de sustentação da escola como uma instituição a primar pela natureza democrática, republicana e laica. A possível regulamentação da educação domiciliar é parte integrante de um projeto bem mais amplo de precarização da coisa pública. No entendimento de Carvalho (2020), a partir do rompimento com o pacto democrático, através da destituição da presidenta Dilma Rousseff (PT), em 2016, intensificaram-se ações de ataque que tornam a escola uma instituição quase ilegal, porque a liberdade de pensamento foi sobejamente afrontada, a partir de uma articulação de fatores, como o fortalecimento do movimento Escola sem partido, do terraplanismo, da negação e desejo de retorno ao regime ditatorial, da contínua militarização da gestão escolar, da intensificação da “ideologia de gênero”, além do progressivo corte em investimentos para custeio das atividades essenciais da escola e também das universidades. A educação domiciliar, nesta sucessão de investidas, parece ser a mais incisiva, porquanto põe em xeque a própria existência da escola.

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Recebido: 17 de Julho de 2021; Aceito: 13 de Setembro de 2021

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