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Linhas Críticas

Print version ISSN 1516-4896On-line version ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.27  Brasília  2021  Epub Oct 01, 2021

https://doi.org/10.26512/lc27202139036 

Artigos

Precariedades e incertezas: trabalho docente do professor iniciante em tempos de covid-19

Precariedad e incertidumbre: labor docente del maestro principiante en tiempos del Covid-19

Precariousness and uncertainties: teaching work of the beginning teacher in times of Covid-19

Flavia Wegrzyn Magrinelli Martinez1 
http://orcid.org/0000-0003-3540-4032

Analígia Miranda da Silva2 
http://orcid.org/0000-0002-3232-323X

Ana Caroline Oliveira Costa3 
http://orcid.org/0000-0002-8695-4774

1Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (2019). Professora na Universidade Estadual do Norte do Paraná, Campus de Jacarezinho, Paraná. Líder do Grupo de Pesquisa em Educação (GEPE). Membra do Grupo de Pesquisa sobre Trabalho Docente (GEPTRADO)

2Doutora em Educação pela Universidade Estadual Paulista (2016). Professora Adjunta na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Membra do Grupo de Pesquisa em Educação (GEPE).

3Especialista em Educação Infantil pela Faculdade Unina (2021). Membra do Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação (GEPE/UENP).


Resumo

Este artigo apresenta os resultados de uma pesquisa realizada com 84 professores iniciantes, atuantes na Educação Básica e no Ensino Superior de 15 estados brasileiros. O estudo teve por objetivo discutir sobre as experiências dos professores/as em início de carreira no atual contexto do Ensino Remoto Emergencial, devido à covid-19. Para a obtenção dos dados, utilizou-se um questionário disponibilizado via Google Forms em rede social. Para a análise de dados, utilizou-se a Análise de Conteúdo (Bardin, 2016). A pesquisa revela que as extensas horas de trabalho em condições precarizadas têm gerado intenso desgaste emocional, acarretando um processo de exaustão e adoecimento emocional.

Palavras-chave Professor iniciante; Ensino remoto; Experiência

Resumen

Este artículo presenta los resultados de una investigación realizada con 84 docentes principiantes que trabajan en la educación básica y la educación superior, de 15 estados brasileños. El estudio tuvo como objetivo dar a conocer las experiencias de los docentes al inicio de sus carreras en el contexto actual de la Educación Remota de Emergencia, (ERE), debido a Covid-19. Para la obtención de los datos se utilizó un cuestionario disponible a través de Google Forms en la red social. Para el análisis de datos se utilizó el Análisis de Contenido (Bardin, 2016). La investigación revela que las largas jornadas de trabajo en condiciones precarias han generado un intenso agotamiento emocional, conduciendo a un proceso de agotamiento y enfermedad emocional.

Palabras clave Maestro principiante; Enseñanza remota; Experiencia

Abstract

This article presents the results of a survey carried out with 84 beginning teachers working in Basic Education and Higher Education, from 15 Brazilian states. The study aimed to unveil the experiences of teachers at the beginning of their careers in the current context of Emergency Remote Education (ERE), due to Covid-19. To obtain the data, a questionnaire made available via Google Forms on social network was used. For data analysis, Content Analysis was used (Bardin, 2016). The research reveals that the long hours of work in precarious conditions have generated intense emotional exhaustion, leading to a process of exhaustion and emotional illness.

Keywords Beginning teacher; Remote teaching; Experience

Introdução

A base da atividade educativa ocorre a partir do processo de interação humana e é essencial para a existência do ser humano, pois é mediante a educação que o homem é humanizado, o que, como uma atividade não material, se constitui necessariamente por meio de uma relação interpessoal, implicando na presença simultânea dos dois agentes da atividade educativa, no caso da docência, o professor e os seus alunos (Saviani, 2013). Entretanto, por se tratar de uma profissão complexa, os professores/professoras vivenciam, no decorrer da carreira docente, diferentes fases, sendo que a entrada na carreira docente se desvela em uma fase que apresenta especificidades, pois o início da docência é um período especialmente delicado, marcado pela “transição de estudante para professores” (García, 1999, p. 113). Pelo início da docência apresentar especificidades próprias e demandar certo cuidado, atrai a nossa atenção as experiências dos professores/as iniciantes neste momento de crise sanitária que assola o país e que “expressou e aprofundou os elementos de precarização do tecido social, as condições materiais e objetivas em que a população brasileira está submetida” (Alessi et al., 2021, p. 9). Os professores/as, desafiados por um vírus que alterou aspectos substantivos da vida social, foram forçados a manter-se em isolamento, distanciando-se do espaço físico de trabalho, dos seus pares (Gatti, 2020), e passaram a trabalhar a partir do Ensino Remoto Emergencial (ERE).

São tempos de “omissões de políticas sociais” (Barros & Matias, 2021, p. 5) de nova configuração do trabalho que ganhou contornos ainda mais evidentes, pois utiliza a tecnologia como forma de controle, “em uma realidade em que 38% das casas não possuem acesso à internet e 58% não têm computador” (Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior [ANDES-SN], 2020, p. 14).

No contexto da pandemia, o termo “ensino remoto” se popularizou. O isolamento social, necessário para impedir a expansão da infecção por Covid-19, fez com que as atividades presenciais nas instituições educacionais deixassem de ser o “normal”. Por isso, as instituições educacionais passaram a utilizar de forma generalizada estratégias de EaD. O problema é que, para manter as atividades regulares funcionando na “nova normalidade” criada pela pandemia de Covid-19, muitas instituições, especialmente do setor privado, começaram a utilizar estratégias que violavam a legislação vigente utilizando um eufemismo: o ensino remoto. Outros nomes mais pomposos também foram utilizados para ocultar o processo de imposição de arremedos de EaD: Ensino por meio de Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação (TDIC), Calendário Complementar, Estudo Remoto Emergencial etc. (ANDES-SN, 2020, pp. 12-13)

A instabilidade e os desafios da atualidade, neste momento de crise “em que o trabalhador já não possui mais os meios de regular a natureza, à medida que lhe avizinha um vírus, sem precedentes históricos, sem, ainda, possibilidade de imunização por meio de uma vacina eficiente e segura” (Pontes & Rostas, 2020, p. 280), levaram os trabalhadores da educação a um lugar marcado pela precariedade, vulnerabilidade e incerteza.

Nesse esteio, este capítulo apresenta um recorte da pesquisa intitulada “Concepção dos professores iniciantes no período de isolamento social[1]”, desenvolvida pelo grupo de pesquisa em Educação (GEPE/UENP), tendo como objetivo discutir sobre as experiências dos professores/as em início de carreira no atual contexto do ERE, devido à covid-19. Para alcançarmos o objetivo proposto, realizamos uma pesquisa com 84 (oitenta e quatro) professores iniciantes (Pis) que atuam na Educação Básica e Ensino Superior dos estados do Paraná, Distrito Federal, São Paulo, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Santa Catarina, Bahia, Minas Gerais, Amazonas, Sergipe, Pernambuco, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte e Rondônia.

Este artigo está organizado em cinco partes. Iniciamos discutindo sobre o conceito de docência como profissão humana, com características específicas e suas bases a partir do processo de interação humana. Na sequência, discorremos sobre as particularidades enfrentadas pelo professor no início da carreira, bem como os desafios que permeiam esta fase. E, no decorrer, trazemos a discussão proposta por Esteve (1999) sobre o mal-estar docente, aliado à desvalorização da docência, conhecida há tempos, mas que, no cenário atual, é ainda mais preocupante. Na sequência, discorremos sobre o percurso metodológico trilhado e a análise.

A docência como processo de interação humana

Ao contrário do trabalho industrial, que possui como objeto algo controlável, estático e homogêneo, a docência é uma prática complexa, principalmente humana, e específica, que envolve o humano e a humanidade que o constitui. “A educação é um fenômeno próprio dos seres humanos” (Saviani, 2013, p. 11), e a docência é o processo de trabalho no qual ocorre a transformação da natureza. “Com efeito, como uma atividade da ordem da produção não material – na modalidade em que o produto é inseparável do ato de produção” (Saviani & Galvão, 2021, p. 39).

Com base nessa premissa, lecionar não se restringe ao simples repasse de conteúdos curriculares, mas “o trabalho educativo é o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens” (Saviani, 2013, p. 13). E, por se tratar de uma prática humana, estabelecer relações é fundante, visto que “a escolarização repousa basicamente sobre interações cotidianas entre os professores e os alunos” (Tardif & Lessard, 2012, p. 23), logo, por se dispor de tais singularidades, a docência caracteriza-se por ser, sobretudo, imprevisível.

O processo de aprender e ensinar é particularmente complexo e contextual, considerando as relações entre os sujeitos envolvidos no processo: os alunos, os pais, a equipe e a comunidade escolar, portanto, o exercício da docência não se se dá mediante um contexto solitário em que o professor é somente um mero transmissor de conteúdo (Dubet, 2020). O conhecimento se constrói coletivamente no exercício de fazer a aula, que se efetiva por meio da interação entre os sujeitos envolvidos no processo educativo. Esta interação, além de promover o autoconhecimento, também é fundamental para que o docente possa conhecer os seus alunos, mobilizá-los e envolvê-los na e para a construção da aula. Marcados pela interação, “componentes como o calor, a empatia, a compreensão, a abertura de espírito, etc., constituem, então, os trunfos inegáveis” (Tardif & Lessard, 2012, p. 33) da docência. Então, a escola na escola é melhor do que a escola digital (Dubet, 2020).

Por tratar-se de uma profissão de intelectuais, o exercício da docência “não consiste apenas em cumprir ou executar, mas é também a atividade de pessoas que não podem trabalhar sem dar um sentido ao que fazem” (Tardif & Lessard, 2012, p. 38), assim, não podemos resumi-la na reprodução de técnicas e metodologias. Ensinar exige questionamento, reflexão na/e sobre a ação, “ensinar não é, tanto, fazer alguma coisa, mas fazer com alguém alguma coisa significativa” (Tardif & Lessard, 2012, p. 249). Por isso, ressaltamos que o ensino não é neutro (Giroux, 1997; 2020), a docência é uma via de possibilidade de transformação social e a autonomia do professor, deve perpassar o exercício do seu trabalho.

Conforme Giroux (1997, p. 187), a prática de professores como intelectuais necessita:

Fornecer aos estudantes os instrumentos críticos para compreender e desmantelar a racionalização crônica de práticas sociais prejudiciais e, ao mesmo tempo, apropriar-se do conhecimento e habilidades que precisam para repensar o projeto de emancipação humana. Engajar-se ativamente em projetos que os estimulem a abordar seu próprio papel crítico na produção e legitimação das relações sociais.

Devido ao papel social e político que a docência contempla, emergimos a necessidade de as instituições tornarem o “pedagógico mais político e o político mais pedagógico” (Giroux, 1997, p. 163). Abraçar esta concepção é reconhecer que a sociedade é desigual e que as desigualdades se aprofundaram neste momento de crise financeira, sanitária e humanitária.

[…] a crise financeira permanente é utilizada para explicar os cortes nas políticas sociais (saúde, educação, previdência social) ou a degradação dos salários. […] a pandemia vem apenas agravar uma situação de crise a que a população mundial tem vindo a ser sujeita. Daí a sua específica periculosidade (Santos, 2020, pp. 5-6)

Por isso, é basilar promover uma educação crítica que possibilite a emancipação humana e que permita aos jovens problematizarem e transformarem a sociedade em que vivem, especialmente neste momento de crise profundamente enraizada em anos de abandono de governos neoliberais, que negaram a importância do bem comum (Giroux, 2020), pois as conquistas dos direitos sociais se dão a partir das lutas.

O professor iniciante: os desafios que perpassam o início da carreira

Quando o docente ingressa à sala de aula, o “entusiasmo dos começos, […] o orgulho em ter a sua classe, os alunos, de fazer parte de um corpo profissional” (García, 1999, p. 64) costumam ser intensos, para tanto, por ser algo novo, ele se esforça na tentativa de “alcançar um certo nível de segurança no modo como lida com os problemas e questões do dia a dia” (García, 1999, p. 114). Este período da descoberta é uma experiência única, marcada pelos impasses e pela complexidade que o trabalho docente envolve, e pode tornar-se traumática se o profissional não tiver as devidas condições de trabalho e o apoio de seus pares e da equipe pedagógica. É um período em que se vivencia concomitantemente a descoberta e a sobrevivência (Huberman, 2000). Esta, como o próprio nome expressa, traduz-se pelo choque com a realidade. É quando o professor é exposto às variáveis que compõem o início da docência, como as condições de trabalho. Fatores que, para alguns, podem divergir da escola que foi idealizada, tornando-se frustrantes e posteriormente contribuindo para o abandono da carreira. No entanto, para García (1999), a passagem pelas fases que compõem a carreira docente e como se chegará ao fim delas não são um “processo unívoco, mas que deve ser entendida em função de duas grandes dimensões: pessoal e organizacional” (García, 1999, p. 66).

Em suma, o ambiente pessoal é composto por tudo que constitui as etapas de vida desse profissional, as relações, aptidões, maneira em que compreende o ensino, a forma de como será exposto à docência, entre outros. Já o ambiente organizacional é aquele que influencia a “carreira profissional através das regulações da profissão, os estilos de gestão, as expectativas sociais, e etc.” (García, 1999, p. 66) e traduz-se pelas relações em que o docente irá constituir no cotidiano — como será seu acolhimento, o grupo em que ele irá se adentrar, a organização dessa escola —, aspectos basilares na influência das práticas sociais que irá desempenhar ao longo do processo.

Da desvalorização ao mal-estar docente

O trabalho é em si e por si uma atividade vital (Antunes, 2018) que propicia aos indivíduos serem identificados perante as atividades que realizam. A desvalorização dos profissionais da educação não é algo recente no Brasil tanto pela “padronização do conhecimento escolar com o interesse de administrá-lo e controlá-lo” (Giroux, 1997, p. 159), quanto pelo desprestígio social da docência como um trabalho crítico e intelectual. As lutas travadas pelos docentes para exigir do Estado a garantia dos direitos e a profissionalização do magistério também não são. Vimos, especialmente a partir da década de 1990, o prevalecimento do princípio da redução máxima do papel do Estado, bem como o aprimoramento do processo de acumulação de riquezas e o aprofundamento das políticas neoliberais e do capitalismo (Antunes, 2018).

Assistimos, nos últimos anos, a uma “sequência de transformações na legislação trabalhista previdenciária, bem como para desencadear um novo processo de reestruturação produtiva em compasso com a dinâmica global e com tendências recentes do mundo do trabalho, como a “uberização” (Diniz, 2020, p. 140). Não obstante, em 2020, vivenciamos um momento de crise sanitária e humanitária, conforme citado anteriormente, sob a presidência de um governo ultraliberal e autoritário que tem proferido ataques às instituições públicas, científicas e aos professores, então, constatamos um acirramento da desvalorização dos trabalhadores da educação. “Esse cenário exacerbou ainda mais as desigualdades sociais impostas pelo capitalismo global, cuja expansão do lucro […] ocorre ao custo da multiplicação do trabalho precário e da exploração do trabalhador” (Souza et al., 2021, p. 2). Com a categoria professor não foi diferente, em decorrência da suspensão das atividades presenciais e da exigência de estados e municípios para que profissionais da educação realizassem o Ensino Remoto, os professores tiveram a sua carga de trabalho ampliada, não tiveram formação para atuar nas plataformas digitais, se viram sozinhos e responsabilizados a fazer com que esta proposta de trabalho e ensino fosse bem-sucedida. A “educação, já fragilizada pela ausência de políticas públicas, apresenta duras perdas nesse processo de remotização do ensino” (Pontes & Rostas, 2020, p. 282). Logo, o sucateamento da educação e a precarização do trabalho docente foram intensificados durante a pandemia da covid-19, o que pode contribuir para um mal-estar coletivo, pois, como afirmam Pontes e Rostas (2020, p. 283):

O excesso de trabalho leva o trabalhador a diminuir suas horas de descanso, sono e atividades de lazer para concluir as demandas profissionais que se ampliam gradativamente e diariamente. O docente, confinado em sua casa e obrigado a manter padrões de produtividade, pode vir a desenvolver quadro de adoecimento.

O que coaduna com o que Esteve (1999) denomina de mal-estar docente, definindo-se como um conjunto de reações dos professores em que o docente se sente desajustado diante das recentes mudanças sociais relacionadas à valorização da educação, do ensino, da escola e dos profissionais atuantes. E compreende uma doença social produzida pela falta de apoio da sociedade aos professores tanto no campo dos objetivos do ensino como nas recompensas materiais e reconhecimento do seu status social. Caracterizada também pela sensação de frustração que os professores sentem em relação ao seu trabalho, pelas más condições de trabalho, pelas exigências impostas ao professor, impondo uma sobrecarga de trabalho, pela falta de reconhecimento da sociedade e pela dificuldade em estabelecer relação entre o trabalho e os objetivos almejados, fatores estes que foram intensificados durante a pandemia.

Percurso metodológico trilhado e o perfil dos professores iniciantes

A pesquisa educacional tem por objetivo desvelar o que não é aparente, ou mesmo o que o senso comum compreende como verdade posta e acabada. O conhecimento da realidade concreta é visto como “um todo que não é apenas um conjunto de relações, fatos e processos, mas também a sua criação, estrutura e gênese” (Kosik, 2011, p. 41). E, para conhecê-la, é necessário deslindar os processos constitutivos dos movimentos que a compõem, uma vez que “a pesquisa educacional não se reduz a uma série de instrumentos, técnicas e procedimentos” (Gamboa, 2018, p. 177). E é por isso que os pesquisadores em educação fazem escolhas e, para este estudo, elegemos como abordagem a quali-quantitativa, na defesa de que a “qualidade está sempre ligada à quantidade” (Gramsci, 1995, p. 51), já que “a quantidade e a qualidade estão unidas e são interdependentes” (Triviños, 2008, p. 67).

A partir desta escolha de abordagem, a pesquisa foi realizada entre 6 (seis) de junho a 2 (dois) de julho de 2020 com 84 (oitenta e quatro) professores iniciantes atuantes na Educação Básica e no Ensino Superior de 15 (quinze) estados brasileiros.

Para eleger os participantes desta pesquisa, foi disponibilizado um questionário misto, definido a fim de além de possibilitar caracterizar os sujeitos de acordo com seu perfil, também permite “ao informante responder livremente, usando linguagem própria, e emitir opiniões” (Lakatos & Marconi, 2017, p. 204), ou seja, concede ao participante total liberdade para argumentar aquilo que deseja, via plataforma Google Forms e em grupos de Facebook.

No primeiro momento de divulgação, selecionamos os grupos específicos que incluíram professores da Educação Básica e do Ensino Superior, sendo eles:

Fonte: as autoras.

Quadro 1 Relação dos grupos para primeira etapa de coleta de dados 

Na segunda etapa da pesquisa, selecionamos os grupos de professores dos 26 (vinte e seis) estados do país mais o Distrito Federal, ou seja, as categorias anteriormente elencadas foram acrescidas pelos estados brasileiros, visando, assim, buscar a completude do estudo em todo o território nacional.

Após estas duas etapas, obtivemos os 84 participantes da pesquisa, sendo eles dos estados: Paraná (35), São Paulo (13), Santa Catarina (7), Mato Grosso do Sul (6), Mato Grosso (5), Distrito Federal (5), Minas Gerais (4), Bahia (2), Amazonas (1), Sergipe (1), Pernambuco (1), Rio Grande do Sul (1), Rio Grande do Norte (1), Rondônia (1) e Rio de Janeiro (1).

Os participantes da pesquisa, em sua maioria, são do gênero feminino (71,4%), o que coaduna com a vasta literatura na área que aponta que a profissão docente é um espaço de trabalho predominantemente feminino, relacionado ao estatuto de semiprofissão, ao dom e à maternidade. A maioria (65,4%) é professor jovem, com até trinta anos de idade; de trinta e um a trinta e cinco anos (15,4%); de trinta e seis a quarenta anos (14,2%); de quarenta e um a quarenta e cinco anos (2,3%); de quarenta e seis a cinquenta anos (8,3%) e mais de cinquenta anos (1,1%). A partir dos dados, é possível inferir que há uma inserção tardia na profissão, devido à realização de uma segunda graduação ou pela possibilidade de estudar após a formação dos filhos.

Sobre a formação acadêmica dos participantes, até mesmo por serem professores em início de carreira e predominantemente jovens, 44% possuem apenas o nível de graduação; 34,5% possuem especialização; 15,4% possuem mestrado, e 5,9% possuem doutorado, o que revela que, mesmo em início de carreira, os professores investem na formação continuada e possuem formação especializada e qualificada.

Sobre o trabalho exercido pelos Pis nas Instituições de Ensino (IE), 92,8% atuam na Educação Básica e 7,1% no Ensino Superior. Destas instituições, 70,2% são públicas, o que mostra que, no início da docência, os professores adquirem as primeiras experiências com o magistério na Educação Básica e em instituições de ensino públicas.

Ainda sobre o trabalho dos Pis, 71,4% atuam em apenas uma IE; 21,4% atuam em duas IE, e 7,1% atuam em três IE, o que indica que, no início da carreira, grande parte dos professores ainda não possui vínculo efetivo com a escola e precisa duplicar ou triplicar a jornada de trabalho, o que implica em sentir dificuldade em estabelecer relação com a cultura escolar e ter diversas orientações para o planejamento das aulas, contribuindo com a dificuldade em estabelecer vínculo institucional, acarretando o sentimento de não fazer parte de um grupo profissional. Curiosamente é o período em que o professor necessita de mais atenção, pois está em fase de transição de aluno para professor e da aprendizagem da docência, sendo assim, é o momento em que mais encontra-se desamparado.

Para a orientação do processo de análise de dados, utilizamos como referência Bardin (2016) e o método Análise de Conteúdo. Nossa escolha deve-se ao fato de entendermos que o referido método possui rigor metodológico consistente, sendo capaz de proporcionar o entendimento profundo dos fenômenos sociais e situações complexas, de maneira a trazer à luz caminhos diversos a serem desvelados. Bardin (2016) conceitua a Análise de Conteúdo como um conjunto de instrumentos metodológicos que se aprimora constantemente e se adapta a discursos diversificados, com objetivos determinados e que servem para desvelar o que está implícito no texto, de maneira a permitir a decodificação das mensagens. Segundo Bardin (2016), a Análise de Conteúdo não é apenas um instrumento, mas um leque de apetrechos, apresentando-se como uma técnica que pode ser utilizada num campo vasto das comunicações, com o propósito de analisar e refletir sobre os significados mediante uma descrição objetiva e sistemática do conteúdo.

Nesse contexto, contemplamos as vozes dos sujeitos envolvidos na pesquisa, admitindo não haver separação entre sujeito e objeto. Logo, a partir desta explicitação, foram extraídas e analisadas as interlocuções pelas quais os sujeitos intervêm no mundo, de modo a surgirem as categorias de análise.

Análise dos Dados

Os dados obtidos por meio da pesquisa permitiram constatar que 89% das instituições de ensino que os Pis lecionam optaram pelo ERE. Se antes da pandemia os professores em início de carreira vivenciavam as dificuldades próprias deste período de maneira solitária, com o ERE, as dificuldades foram intensificadas. Como vimos, o início da docência é um período caracterizado por ser, sobretudo, delicado. Após promovermos um questionário a fim de desvelar as experiências dos Pis neste contexto de aulas remotas devido à covid-19, compreendemos que, em um primeiro momento, emergiram as falas dos mesmos três elementos. O primeiro remete à dificuldade em estabelecer a interação com os alunos e fazer com que, de fato, estes participem do processo da construção da aula; o segundo refere-se à falta de participação no processo da escolha da metodologia utilizada para o trabalho docente, e o terceiro diz respeito à falta de reconhecimento e valorização profissional. Dessa feita, a partir da categorização de Bardin (2016), chegamos a três categorias de análise, sendo: a docência como profissão de interações humanas; o pedagógico mais político, e o Ser docente: entre a desvalorização e a solidão.

A docência como profissão de interações humanas

Ensinar é uma prática complexa, especificamente humana (Saviani, 2013), que não se restringe ao simples repasse de conteúdos curriculares, e ocorre mediante um trabalho interativo, ou seja, “a educação se constitui necessariamente como uma relação interpessoal, implicando, portanto, a presença simultânea dos dois agentes da atividade educativa: o professor com seus alunos” (Saviani & Galvão, 2021, p. 39). Entretanto, durante as aulas remotas, os professores/professoras relatam dificuldades em estabelecer relações e interações com os seus alunos, como podemos observar: “Identifico dificuldade em trazer os alunos para a aula. A participação fica comprometida” (Pi.5). “Diante desse cenário, é muito difícil realmente identificar se o aluno está de fato aprendendo” (Pi.22). “Que mesmo com toda a tecnologia, ainda se é necessário a proximidade, o olho a olho, o presencial” (Pi.13).

É evidenciado nas falas dos professores/as as dificuldades sentidas para mobilizar os alunos durante as aulas remotas. O que nos permite compreender que o ERE dificultou para os Pis estabelecerem os elementos fundantes da docência, como “ler e interpretar a classe, os movimentos dos alunos, suas reações, seus progressos, suas motivações etc.” (Tardif & Lessard, 2012, p. 250), que são aspectos basilares para a construção do indivíduo enquanto cidadão, pois, para aprendermos, precisamos do outro, aprendemos uns com os outros, e a escola, lócus da aprendizagem, se organiza a partir da coletividade, da troca e construção entre e pelos pares (Dubet, 2020).

Fica evidente também que o ERE, no formato imposto aos professores/as, aponta para uma concepção estreita de educação, o que reforça a tese de que “deve-se ter presente que, pela sua própria natureza, a educação não pode não ser presencial” (Saviani & Galvão, 2021, p. 39), também evidenciada pelo relato do Pi.11: “Esse processo me ensinou a valorizar mais ainda a profissão, pois nada é capaz de substituir o processo de ensino presencial e o professor, principalmente na Educação Básica”. Fica evidente na fala a compreensão de que a relação educativa é muito mais do que mera transmissão de conhecimentos, conforme apontado por Dubet (2020), e que os professores querem captar o interesse dos alunos. Mesmo quando não funcione bem, a educação continua a ser uma relação. “Resumindo, uma escola virtual não seria uma escola” (Dubet, 2020, p. 111, tradução nossa).

Sobre a questão tecnológica que ganhou centralidade nos processos de ensino e aprendizagem durante o ERE e permeiam os relatos docentes, Nóvoa e Alvim (2021, p. 9) apontam que:

Aos que acreditam numa educação inteiramente digital, dizemos que tal não é possível, nem desejável, pois nada substitui a relação humana. Os meios digitais são essenciais, mas não esgotam as possibilidades educativas. Grande parte das nossas vidas e culturas, da nossa criatividade, das histórias, das produções efémeras e espontâneas, dos laços e relações entre nós, dos nossos sonhos, não estão na Internet. Há um património humano, impossível de digitalizar. Sem ele, a educação ficaria reduzida a uma caricatura digital.

É sabido que a aula é um espaço de construção coletiva, entretanto, em decorrência do ensino remoto e das novas exigências atribuídas aos docentes, a docência foi perdendo seu caráter intelectual e passou a adquirir uma perspectiva técnica, cujo papel dos professores tornou-se implementar programas e propostas curriculares prontas. Concordamos com Diniz (2020, p. 142) quando afirma que buscar:

Soluções para os graves problemas oriundos da pandemia de Covid-19 não podem perder de vista as especificidades de nossa formação histórico-social. Qualquer iniciativa que não leve em consideração essas especificidades estão fadadas ao fracasso ou, na melhor das hipóteses, à pura formalidade.

As falas adiante revelam esta perspectiva ao relatarem que: “[…] nosso papel no ensino remoto tem sido de enviar atividades para manter o/a estudante ocupado, e não de mediar o processo de ensino-aprendizagem” (Pi.7), “[…] que o ensinar não é apenas transmitir conteúdos preestabelecidos” (Pi.1), e “[…] não é possível ter a real situação do estudante se ele entende bem as propostas de atividades” (Pi.24).

Exercer a docência “repousa sobre emoções, afetos, sobre a capacidade não só de pensar nos alunos, mas também de perceber e sentir suas emoções, seus temores, suas alegrias, seus próprios traumas” (Tardif & Lessard, 2012, p. 258), logo, é uma profissão que exige empenho, dedicação e principalmente relações que possibilitem o diálogo entre os sujeitos envolvidos e participantes do processo, pois trata-se de um processo humano. Charczuk (2020, p. 18) explicita que “[…]as reflexões tecidas em torno da docência em tempos de distanciamento social são necessárias e contribuem para reconhecer a função do professor e reafirmar a inscrição da educação como laço imprescindível entre sujeitos”. Portanto, o ensino presencial é imperioso para a aprendizagem e, por esta razão, não é viável substituí-lo.

O pedagógico mais político

Além de ponderarem as relações interativas como fundamentais durante o processo de ensino, outro fator que emergiu das falas dos Pis foi a respeito do que Giroux (1997, p. 163) expõe sobre tornar o pedagógico mais político, no sentido de promover um ensino pautado numa formação discente em que “a reflexão e ação críticas tornam-se parte […] fundamental de ajudar os estudantes a desenvolverem uma fé profunda e duradoura na luta para superar injustiças econômicas, políticas e sociais” (Giroux, 1997, p. 163). E, neste momento atual, trazer discussões sobre a acessibilidade às tecnologias em um período que o ensino depende exclusivamente delas é fundamental, pois:

Entre os quase 56 milhões de alunos matriculados na educação básica e superior no Brasil, 35% (19,5 milhões) tiveram as aulas suspensas devido à pandemia de Covid-19, enquanto que 58% (32,4 milhões) passaram a ter aulas remotas. Na rede pública, 26% dos alunos que estão tendo aulas online não possuem acesso à internet. (Chagas, 2020, s.p.)

Os Pis demonstram grande preocupação com a exclusão propiciada pelo ERE ao declararem que: “[…] a educação deve ter um papel político além do pedagógico, pois não conseguimos cumprir com isso antes, e agora temos estudantes sem condições de participar do processo de aprendizagem” (Pi.3).

[…] e ainda há vários fatores sociais, como família sem acesso à internet, pais que trabalham e não têm tempo de dar a atenção/ajuda aos filhos com as atividades enviadas, e pais que não são alfabetizados. Professores que têm que buscar várias estratégias e metodologias que possam atender a todos. (Pi.22)

[…] a discrepância no acesso à educação é mais problemática do que se supunha. Isso, além de motivar a tentar ser a melhor profissional possível para os meus alunos, mostra a importância de nos mobilizarmos como classe para defender os interesses da educação pública. (Pi.2)

Como apontado pelos professores/as, o contexto pandêmico despertou neles preocupações em relação as condições socioeconômicas dos alunos, como a falta de acesso à internet, a escolaridade dos responsáveis e as condições que os pais possuem para ajudarem os filhos com as atividades escolares, visto que, com o ERE, a participação dos pais passou a exercer grande influência no processo de ensino, especialmente das crianças menores. Importante lembrar que, de acordo com a ANDES-SN (2020), mais de 4,5 milhões de brasileiros não possuem acesso à internet banda larga e mais de 50% dos domicílios da área rural não possuem acesso à internet. A desigualdade social que assola o Brasil há anos, no contexto da pandemia de covid-19, escancarou e aprofundou os problemas estruturais e, neste momento, é imprescindível trazer em pauta as questões sociais, econômicas e políticas no âmbito educacional, dado que esta crise sanitária não pode ser separada da crise de enormes desigualdades sociais e dos valores democráticos (Giroux, 2020).

Nesse sentido, os Pis apontam a necessidade de trazer à tona estas questões, bem como o papel social e político que a educação exerce, como podemos visualizar nas seguintes falas: “Somos essenciais para a construção de uma sociedade mais crítica e reflexiva” (Pi.4). “A importância de formarmos pessoas críticas, com capacidade de reflexão sobre os assuntos cotidianos” (Pi.5).

[…] que o ensinar não é apenas transmitir conteúdos preestabelecidos, mas, sim, se reinventar, criar e usar uma diversidade de métodos, é olhar para a criança e ver nela um ser social, o qual temos a responsabilidade de formá-los para fazer a diferença tanto no agora como no futuro, não apenas formá-los para o trabalho, mas para que aprendam a viver além disso, formar neles a humanidade, a empatia, a responsabilidade social que todos devemos ter e, principalmente, ensiná-los a serem seres amáveis, para que os erros de agora não sejam repetidos futuramente. (Pi.1)

Percebemos que os professores/as compreendem a docência na perspectiva de Giroux (1997, p. 263), quando postula que estes devem “trabalhar para criar condições que deem aos estudantes a oportunidade de tornarem-se cidadãos que tenham o conhecimento e coragem para lutar a fim de que o desespero não seja convincente e a esperança seja viável”. Por isso, faz-se necessário tornar o pedagógico mais político para que seja possível criar condições formativas, isto é, formar um sujeito crítico e reflexivo, “apesar de parecer uma tarefa difícil para os educadores, esta é uma luta que vale a pena travar” (Giroux, 1997, p. 163), “Tornar o pedagógico mais político é incluir o âmbito escolar nas esferas políticas, fomentando aos jovens através de práticas reflexivas o poder e a importância que possuem na luta contra opressões e injustiças” (Martinez et al., 2020, p. 54). Não é possível fechar os olhos para este momento em que o ensino é precarizado, os sistemas públicos desmantelados e para o aprofundamento das desigualdades sociais. Vivenciamos um momento de perda de direitos históricos conquistados à base de muita luta, o que nos desafia a construirmos novas ações coletivas de resistências, especialmente pela vida da educação e do ensino escolar, pois, conforme relata Dubet (2020), o ensino em casa é mais desigual do que a escola na escola.

O ser docente: entre a desvalorização e a solidão

A pandemia demandou que medidas sanitárias rápidas fossem tomadas, entre elas, o isolamento social como forma de combater a contaminação pela covid-19. Entretanto, trouxe impactos profundos no trabalho dos professores e professoras, que foram responsabilizados “pela transformação do espaço domiciliar em posto de trabalho permanente para desenvolvimento do ensino remoto” (Souza et al., 2021, p. 3). Bem como tornaram-se “responsáveis pelos custos relacionados às condições materiais do trabalho e infraestrutura física, como computador, câmera, microfone, impressora, internet, luz elétrica, mobiliário, entre outros” (Souza et al., 2021, p. 3). Como sabemos, é de interesse do capitalismo transferir para o trabalhador as despesas que antes eram de responsabilidade das empresas (Antunes, 2018).

Por exemplo, o princípio pedagógico central do neoliberalismo tem sustentado que a responsabilidade individual é a única forma de abordar os problemas sociais e, consequentemente, não há necessidade de lidar com outras questões sistêmicas mais amplas, exercer o poder com responsabilidade ou abordar questões de responsabilidade (Giroux, 2020).

O novo modelo de ensino, a perda da privacidade, da autonomia e da centralidade do trabalho docente têm gerado sofrimentos aos professores. Somado a isso, os/as professores/as relatam que estão muito sobrecarregadas/os, pois passaram a trabalhar em tempo integral em seus lares, expostos às condições de trabalho improvisadas e às jornadas extenuantes. “Não há mais um horário de trabalho, com as demandas chegando também no período da noite, finais de semana e feriado” (Pi.7). “Angustiante, pois os alunos não aprendem, e nós trabalhamos três vezes mais” (Pi.19). “[…] O professor, além de todas as atribuições pedagógicas, tornou-se assistente social, psicólogo e etc.” (Pi.16). “[…] Não tive formação para atuar com aulas remotas. […]. É cansativo, pois, além de estudar e preparar as aulas, tenho que pesquisar como gravar, editar, como usar essas ferramentas. Isso tem desencadeado em mim crises de ansiedade” (Pi.4).

Os relatos nos mostram que a intensificação e precarização do trabalho trouxeram prejuízos para a saúde mental dos Pis, e o que vemos “é a apropriação privada dos meios de produção e dos produtos do trabalho […] a submissão da força de trabalho a um tempo sem limite, conduzindo o ser humano à exaustão” (Saviani & Galvão, 2021, p. 39). Os professores estão exaustos em razão da nova realidade de trabalho. E este novo formato “oferece riscos para a saúde de professoras e professores, uma vez que a excepcionalidade de trabalho não veio acompanhada de medidas especiais de regulamentação e de proteção ao trabalhador” (Souza et al., 2021, p. 4). A exaustão relatada pelos Pis é recorrente da desvalorização oculta no discurso romantizado de que devem superar e se sujeitar a tudo que lhes é imposto em nome do amor à profissão, visão enraizada na sociedade para mascarar a desvalorização para com a profissão docente. Pinho et al. (2021) apontam que a precarização do trabalho docente não é recente, mas parece se intensificar em situações inéditas e desafiadoras, como a vivenciada pela covid-19, o que incide na saúde do professor. Para as autoras, “a vivência da situação de pandemia, na qual emergem novas demandas e exigências, soma-se a esse contexto prévio de vulnerabilidades na condição de saúde docente” (Pinho et al., 2021, p. 3).

Somado a isso, os docentes não participaram dos processos de planejamento ou mesmo de tomada de decisão sobre os encaminhamentos metodológicos sobre o seu trabalho docente, o que se traduz na “ausência de democracia nos processos decisórios para adoção desse modelo, a precarização e intensificação do trabalho para docentes e demais servidores das instituições” (Saviani & Galvão, 2021, p. 38). Diante deste contexto controverso, os professores em início de carreira sentem-se desvalorizados enquanto categoria profissional, como podemos perceber nas falas a seguir: “Sinceramente, eu deveria ter escolhido uma profissão que fosse respeitada, e não que tivesse uma bandeira falsa de aceitação social. Me sinto frustrado e não acredito tanto no meu papel de mudança social” (Pi.8). “[…] Essa profissão carrega muita responsabilidade e prontidão. E, infelizmente, não é valorizada como deveria” (Pi.9). “Reforçou a noção de desvalorização da profissão e nosso papel enquanto cuidador e da escola, como depósito de estudantes” (Pi.7). “Uma experiência bem difícil, diria, no mínimo, traumatizante para mim e para os alunos” (Pi.11). “Aumentou o cansaço psicológico também” (Pi.25). “Não é possível acompanhá-los e, de forma mais efetiva, o seu aprendizado, se é que isso ocorre. Com isso, gera uma frustração de ambas as partes” (Pi.24). “[…] Fui demitida por conta da pandemia. Deixando meus alunos sem professor” (Pi.26). O trabalho docente realizado durante a pandemia da covid-19, como bem colocado por Pontes e Rostas (2020), contribuiu para o adoecimento psicológico, exclusão social e a supremacia da sociedade capitalista. “O medo pela perda do emprego, a necessidade de ressignificar os próprios conhecimentos, a intensificação de tarefas, são apenas alguns exemplos deste novo cenário mundial” (Pontes & Rostas, 2020, p. 284). Estes aspectos podem influenciar a imagem que o professor tem de si próprio e do seu trabalho e contribuir para gerar uma crise de identidade, autodepreciação pessoal e profissional, denominada por Esteve (1999) como mal-estar docente.

Considerações finais

A pandemia de covid-19 demanda profundas reflexões sobre a Educação e os direitos sociais da população, pois, neste período de crise sanitária, os problemas estruturais se aprofundaram e a população em situação de vulnerabilidade social ficou ainda mais exposta. Visualizamos que o acesso às tecnologias no Brasil ainda é destinado a uma minoria da população e, por trazer as tecnologias digitais como centrais para os processos de ensino, o ERE contemplou uma pequena parcela dos estudantes que já possuíam condições materiais privilegiadas. São problemas estruturais e complexos que não podem ser solucionados de maneira simplista e, neste momento de crise sanitária e educacional, negar o direito das políticas sociais à população trará impactos que serão difíceis de superar a médio e longo prazos.

Esta pesquisa permitiu dar vozes aos professores/as em início de carreira, e estas vozes relatam que o início da carreira docente foi marcado por muitas experiências, pois encontraram muitas dificuldades durante o ERE. Entre elas, o estabelecimento de interação com os alunos, o que é um elemento fundante da docência, e que a proposta de ensino do ERE enfatiza a reprodução de técnicas e metodologias que, além de demonstrar uma espécie de ignorância pedagógica e a adoção de um conceito de educação muito próximo ao do senso comum, desvaloriza o trabalho intelectual do professor e sua autonomia pedagógica e metodológica.

Os Pis relatam que as dificuldades de aprendizagens apresentadas pelos alunos no formato do ERE têm gerado um descrédito na realização do seu trabalho. Apresentam ainda grande preocupação com a parcela significativa dos alunos que não tem acesso às aulas remotas e auxílio dos pais para a realização das atividades. Fatores estes que se somam a extensas horas de trabalho em condições precarizadas, desvalorização profissional e insegurança trabalhista, o que tem provocado intenso desgaste emocional, acarretando um processo de exaustão e adoecimento emocional.

Mas estas mesmas vozes compreendem que educar envolve uma relação política entre sujeitos empenhados na construção de uma sociedade igualitária e que é preciso possibilitar uma formação política aos estudantes. Assim, reafirmamos a importância da profissão docente para o futuro da sociedade e, com isso, enfatizamos a necessidade de investimentos para a promoção de uma Educação de qualidade e condições dignas para o exercício do trabalho docente. Este momento de perda de direitos históricos, conquistados à base de muita luta, nos desafia a construirmos novas ações coletivas de resistências, especialmente pela vida da educação.

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[1]Pesquisa aprovada pelo Comitê de Ética da Universidade Estadual do Norte do Paraná (CEP/UENP).

Recebido: 06 de Julho de 2021; Aceito: 24 de Setembro de 2021

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