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Linhas Críticas

Print version ISSN 1516-4896On-line version ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.27  Brasília  2021  Epub Feb 17, 2021

https://doi.org/10.26512/lc.v27.2021.34590 

Ensaios

Minudências na pesquisa de mestrado: elementos subjetivos

Minucias em la investigacion de la maestria: elementos subjetivos

Minuteness in Masters research: subjective elements

Daniela Vale de Oliveira1 
http://orcid.org/0000-0001-8545-3559

1Mestre em educação pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) (2020). Psicóloga efetiva na Prefeitura Municipal de Ouro Preto- MG.


Resumo

Este ensaio objetiva refletir acerca dos elementos subjetivos que perpassaram toda a pesquisa de mestrado da autora, apontando os elementos invisíveis que estão presentes na produção científica e quase sempre ficam à margem dos resultados apresentados, assim como da percepção dos leitores. Apresenta a forte conexão entre o percurso socializatório da pesquisadora, sua formação profissional, a escolha pelo objeto de estudo no mestrado em educação e a predileção pelo aporte teórico Lahireano na dissertação. Por fim, reflete sobre o contexto da pesquisa de campo na atuação profissional.

Palavras-chave Elementos subjetivos; Mestrado; Socialização; Lahire

Resumen

Este ensayo tiene como objetivo reflexionar sobre los elementos subjetivos que han pasado toda la investigación de maestría de la autora, señalando los elementos invisibles que están presentes en la producción científica y que con frecuencia quedan al margen de los resultados presentados, así como de la percepción de los lectores. Señala la fuerte conexión entre el camino socializador del autor, su formación profesional, la elección del objeto de estudio en la maestría en educación y la predilección por la contribución teórica de Lahireano en la disertación. Finalmente, reflexiona sobre los reflejos de la investigación de campo en el desempeño profesional.

Palabras clave Elementos subjetivos; Maestría; Socialización; Lahire

Abstract

This essay aims to reflect on the subjective elements that have crossed through all the author's master's research, pointing out the invisible elements that are present in scientific production and almost always remain on the sidelines of the results presented, as well as the readers' perception. It points out the strong connection between the researcher's socialization path, her professional education, her choice of the study's object in the master's degree in education and her predilection for the Lahireano theoretical contribution in the dissertation. Finally, it reflects on the reflexes of field research in professional performance.

Keywords Subjective elements; Master's; Socialization; Lahire

Introdução

A produção deste ensaio resulta dos processos invisíveis que acompanham a pesquisa de mestrado. Para além das etapas aparentes, objetivas e, digamos, concretas, que são exigidas na produção científica, há outras tantas que cintilam o interior do pesquisador e para muitos passam a ser o elemento indeclinável de seu trabalho. Parto exatamente desse lugar: de alguém que anseia partilhar aprendizados e reflexões que estiveram à margem do texto da dissertação, mas são partes indissociáveis dele.

O ingresso no mestrado em educação em uma Universidade Federal ocorreu em 2018 e sua conclusão em 2020. No intento de tornar esse processo um pouco mais compreensível a este texto e dar sentido ao que aqui se cogita, vale reportar-me a ele, ainda que de forma sucinta. A referida pesquisa investigou os processos de educação em famílias conduzidas por mulheres, em situação de vulnerabilidade social e moradoras de um bairro periférico de uma pequena cidade mineira, conhecida no país por ser tombada como patrimônio cultural da humanidade. O objetivo principal foi compreender os modos de socialização desenvolvidos nas famílias monoparentais femininas. O Perfil de Configuração de Bernard Lahire serviu de inspiração para que fosse traçado um perfil sociológico de cada uma das quatro famílias entrevistadas. Os principais resultados encontrados convergiram para os seguintes elementos: a socialização ocorrida no grupo estudado é garantida aos filhos sob muita vigilância e participação das mães; a escola é percebida nessas famílias como a instância socializadora de maior prestígio e com grande potencial transformador da situação em que se encontram; suas vidas são fortemente perpassadas por desigualdades de gênero; o território onde estão localizadas as residências familiares guarda marcas históricas de exclusão social, o que também afeta a condição de vulnerabilidade vivenciada; a rede de apoio, principalmente, a familiar feminina, foi imprescindível para que os sujeitos pesquisados encontrassem meios de superação das fragilidades atreladas à sua realidade e garantissem uma educação promissora aos filhos.

Logo de início, ao cursar uma das disciplinas eletivas disponíveis para completar os créditos exigidos para a conclusão do Programa de Pós-graduação – “Sujeito: Constituição e Identidades Culturais”, deparei-me com a tarefa de produzir um texto, cuja finalidade era tentar buscar os elementos subjacentes à escolha do meu objeto de pesquisa. Sugestão altamente desafiadora, responsável pelo desespero de muitos colegas de classe, haja vista querer fazer descortinar resistências que lutam por se manter no campo latente. Em função disso, muitas concessões foram dadas pela professora para a sua versão final, em respeito ao limite de cada aluno.

Não posso deixar de registrar que abracei o trabalho com afinco e carinho. Certamente meu objeto se elevou a patamar superior de relevância diante de meus olhos após tal exercício. "Memórias Sentidas” na Relação com o Saber – eis o nome dado à versão finalizada do “paper”.

Nesse momento passa a ser imprescindível ao que se deseja apresentar nessa discussão apontar os aspectos resgatados de minha trajetória de vida que permitiram descomplicar a confecção do texto solicitado e promoveram ainda mais proximidade com o objeto pesquisado.

O objeto de pesquisa enredado pela biografia da pesquisadora

Nasci próximo a São João Del Rei, em uma cidade pequena, situada no Campo das Vertentes. Sou de família numerosa, oito irmãos. Durante os nove anos estudados nessa localidade, minha mãe foi a diretora da escola municipal local. Antes dela, o “posto” tinha sido ocupado por minha avó materna, por anos. Compreensível a intimidade que mantive com a primeira instituição escolar, marcada por uma participação muito ativa e alegre e também, certamente, meu exitoso percurso de escolarização, tendo em vista o duplo protagonismo materno (mãe e avó) em meus percursos escolares.

Ocorre, no entanto, que toda a admiração, orgulho e proximidade vivenciadas nesse período, por conta do espaço social [1] ocupado por minha família naquele território e, em especial, naquele ambiente educacional, foram também acompanhados por uma ausência física da figura materna em casa. O trabalho na escola consumia as horas diárias de minha mãe [2] e ficávamos os filhos mais novos aos cuidados dos mais velhos.

Recordo minha participação entusiasmada e vaidosa diante dos eventos locais: participei de praticamente todas as festas juninas escolares e comunitárias nessa fase; exibi malabarismos pelas ruas da cidade nos desfiles de “sete de setembro”; coroei a imagem da padroeira da cidade por incontáveis vezes, em um ritual que me parecia mágico dentro da igreja; apresentei peças teatrais e coordenei colegas em outras tantas apresentações improvisadas no quintal de nossas casas, onde o valor cobrado na “bilheteria” nos rendia muitos chicletes, balas e doces findo o espetáculo. Enfim, muita criatividade e participação social parecem me definir até completar o ensino fundamental, a oitava série da época.

Eis que a continuidade dos estudos me lançou a outra dimensão espacial e afetiva. Com o propósito de facilitar meu ingresso e permanência no ensino médio (antigo segundo grau), minha família decidiu manter-me hospedada na cidade vizinha, São João del - Rei. Todos os colegas que, assim como eu, guardavam o desejo e receberam o incentivo familiar para a progressão escolar, tiveram que proceder a essa mudança, porém, os demais iam e voltavam diariamente para a cidade de origem.

Posteriormente, com toda a família residindo em “São João”, cursei psicologia em sua Universidade Federal. Após dez anos de atuação na área da saúde fui aprovada em um concurso público prestado para o cargo de psicóloga na cidade de Ouro Preto. Em 2010 assumi a função e sou alocada até hoje na Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social, Habitação e Cidadania (SMDSHC). Por dois anos trabalhei em um Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) localizado no distrito de Antônio Pereira. Se não fosse minha identificação com o campo social, provavelmente eu teria desistido do trabalho, pois além de representar uma política construída após minha formação, ou seja, desconhecida de meus estudos, eu inaugurava a presença da psicologia naquele CRAS e no território. Os oito anos subsequentes foram de muito aprendizado e maior aprofundamento a respeito do trabalho executado, exercido posteriormente no primeiro CRAS construído na cidade, situado em um dos bairros mais vulneráveis da sede, o Alto da Cruz, de onde saíram os dados coletados para minha pesquisa.

Hoje permaneço na “assistência social”, mas meu desejo de ser transferida para outro setor foi atendido pela gestão em 2019. Assim, faço parte, atualmente, da equipe técnica do recém-lançado (setembro de 2019) Serviço de Acolhimento em Família Acolhedora de Ouro Preto.

O contato com as questões sociais [3] , nesses dez anos, em sua versão nua e crua, apesar do discurso ideológico maquiador, transportou-me para uma nova dimensão profissional: mais crítica e, em grande medida, desconfortável. Serviu de propulsão para a carreira acadêmica – o mestrado em sociologia da educação.

Estudar foi o caminho encontrado para conseguir enxergar o fenômeno social fora do ângulo visado pelo trabalho e livrar-me da prática engessada pela estrutura do serviço público. Desse modo, abaixo esclareço a escolha pela teoria que embasou a escrita da minha dissertação.

Escolha do aporte teórico

A pergunta “por que realizar sua pesquisa no campo da sociologia da educação e não na psicologia?”, foi-me incontáveis vezes direcionada. Buscarei ser muito honesta nessa resposta, mas reconheço que possa haver elementos que escapam à minha análise consciente. Creio ter ocorrido por dois motivos, o primeiro é de ordem prática: não havendo curso de psicologia em Ouro Preto ficaria muito mais difícil dedicar-me ao mestrado em outras cidades que o tivessem, inclusive onde me formei, em São João del – Rei, uma vez que meu trabalho não permitia licença para estudo. O outro motivo guarda intimidade com meu percurso anterior. Concluí um segundo curso superior em 2015 e a defesa de meu trabalho de conclusão de curso (TCC) em Direito mostrou-me minha grande dificuldade em distanciar do olhar de psicóloga para mirar o fenômeno jurídico. Isso por si só não é um problema, afinal não é possível desvencilhar-me do conhecimento adquirido, como se faz com uma muda de roupas. Ocorre, todavia, que a minha inserção no campo social teve efeito tão profundo em mim e eu estava tão desejosa de compreendê-lo sem o atravessamento de um olhar viciado que decidi mergulhar em outro campo de saber, com todos os desafios que isso implicaria como, por exemplo, a maior carga de leitura que exigiria de mim. E a psicologia se manteve ali presente, no olhar, na escuta e no posicionamento.

Não me arrependo desse caminho, pois fez muito sentido para mim. O próximo passo foi optar por um referencial teórico condizente com a formação e campo científico da orientadora e em concorde com minha atuação profissional. Sendo assim, após o contato com muitos textos e autores, meus olhos brilharam frente à proposta ofertada pelo sociólogo francês Bernard Lahire. Em uma sociologia que espreita o sujeito, Lahire busca compreender os mecanismos individuais de introjeção da vivência social, capaz de nos diferenciar quanto aos modos de pensar, agir e crer, ainda que fôssemos socializados em contextos socioeconômicos semelhantes. Exatamente o que me movia na profissão: acreditar que há uma forte determinação social em nossas escolhas vida afora, mas que há também elementos pessoais impressos nesse complexo processo.

A seguir apresento melhor sua teoria, nos limites propostos nessa reflexão.

Socialização em Bourdieu e Lahire

Antes de abordar Lahire diretamente, farei uma incursão na obra de Bourdieu, outro importante sociólogo francês cuja fonte serviu de inspiração ao primeiro. Esse caminho, penso, tornará a leitura mais compreensível e interessante. Procedi da mesma forma no texto da dissertação.

Pois bem, importa mencionar que Pierre Bourdieu surge em meados de 1960 com uma proposta inovadora no campo da sociologia da educação. Os achados de suas pesquisas realizadas na França rompem com a então propagada ideia de escola promotora de igualdade, veículo possível de ascensão de todos, desde que houvesse capacidade própria, a conhecida meritocracia. Este estudioso defendeu de maneira original e corajosa o exato oposto do que sempre tinha sido difundido a respeito de uma das mais importantes instituições socializadoras, a escola. Sua posição foi firme e direcionada a desconstruir essa falácia, demonstrando o quanto de desigualdade se opera dentro do referido estabelecimento educacional.

Aqui serão tratados apenas os conceitos de Bourdieu que permitem uma ponte coerente com o aporte Lahireano que se tenciona apresentar. Sua obra tem uma dimensão enorme, em importância e extensão. Vale uma leitura mais aprofundada.

Assim, parto do seu conceito de “habitus”, compreendido por ele como um sistema de disposições que integram as experiências passadas, tornando-se como uma matriz cultural que orienta os pensamentos, as crenças e as ações futuras dos indivíduos (Bourdieu, 2007). Esse conceito carrega em si a ideia de unidade e transferência. Portanto, em sua concepção, o sistema de disposições é moldado na primeira infância, a partir das primeiras experiências socializadoras, criando um “habitus de classe” responsável por certa homogeneidade no comportamento dos agentes oriundos de um mesmo grupo social: “Sistema de disposições socialmente constituídas que, ’’[...] constituem o princípio gerador e unificador do conjunto das práticas e das ideologias características de um grupo de agentes” (Bourdieu, 2007, p. 191).

Nessa perspectiva - retomando seu propósito de desmascarar a neutralidade ora vislumbrada pela educação escolar e apreender empiricamente as relações de afinidade entre o comportamento dos agentes e as estruturas e condicionamentos sociais - o conceito de habitus tenta fazer entrever a semelhança no comportamento dentro dos grupos, em função da posição social na qual foram socializados, perpetuando as disposições incorporadas em seu meio. O reflexo dessa trama se fará sentir, positiva ou negativamente, dentro do ambiente escolar.

Segundo o sociólogo, todos nós herdamos uma bagagem decorrente da estrutura social na qual constituímos nosso sistema de disposições. Há nessa bagagem elementos objetivos, externos ao sujeito (nota-se que não há em sua obra o aprofundamento sobre as variáveis internas nesse processo de incorporação do social, apenas o reconhecimento de que existem) que podem ou não ser valorizados pela escola, ou melhor, usados a serviço do sucesso escolar. Essa herança é composta pelos capitais: econômico, social e cultural. O capital econômico, como o próprio nome sugere, está ligado à posse de bens e acesso a serviços; o capital social se refere à rede de relacionamentos sociais influentes da família e o capital cultural institucionalizado que mantém relação com os títulos escolares adquiridos. No entanto, o patrimônio transmitido pelas famílias aos seus descendentes inclui elementos que passam a se tornar “corpo”, ou seja, se integram à subjetividade do sujeito e constituem o capital cultural na sua forma incorporada. Como componentes importantes desse capital cultural, podemos citar a “cultura geral”, o domínio da língua culta, o “gosto” e o “bom gosto” e as informações sobre o mundo escolar (Bourdieu, 2007). Nesse arsenal possível de capitais, o capital cultural é o de maior peso dentro da cultura legitimada pela escola. Isso implica dizer que quanto mais capital cultural uma família dispõe para socializar seu membro, tanto mais disposições aceitas pela escola esse sujeito poderá incorporar. Desse modo, uma educação promovida em íntima relação com as artes, com o esporte e a língua culta, por exemplo, permitirá uma melhor adaptação ao ambiente escolar (Bourdieu, 2007).

Assim, em Bourdieu (1998), estamos tratando de um herdeiro, mais ou menos ativo no seu papel de incorporação da bagagem familiar, e que passa a integrá-la (nem sempre de modo consciente) a sua própria subjetividade. O sucesso escolar estaria, nessa lógica, ligado à herança familiar herdada (capital cultural) e a uma consonância entre esta herança e a cultura valorizada e legitimada pela escola. Antagonicamente, esta instituição exige e valoriza disposições que não são produzidas em seu interior, mas chegam com o aluno, consequência de processos socializatórios anteriores ao seu. Nesse sentido, crianças provenientes de meios culturais desfavorecidos se encontram em posições prejudiciais nessa disputa.

Muito embora a análise macrossociológica bourdiesiana apresente uma nova interpretação da escola e da educação, maculando seus papéis idealizados de democratização e transformação social e, ao contrário, denunciando a legitimação dos privilégios sociais a que se atrelam, há um hiato entre esse posicionamento e a explicação dos casos de sucesso escolar nos meios populares, nas classes com menor acúmulo de capital cultural. Como explicar, por conseguinte, essas variações no campo individual?

A resposta à pergunta anterior reforça os motivos que me levaram a eleger o conceito de “socialização” de Bernard Lahire em minha pesquisa. Ao promover uma análise contemporânea da obra de seu grande percursor e incentivador, o amigo Bourdieu, Lahire, insere seus conceitos em um tempo diferenciado, em que inúmeras instituições concorrem com grande potencial na formação dos sujeitos e, consequentemente, criam um conjunto de disposições fortes a influenciar a aquisição do patrimônio de disposições:

De alguma maneira, cada indivíduo é o “depositário” de disposições de pensamento, sentimento e ação, que são produtos de suas experiências socializadoras múltiplas, mais ou menos duradouras e intensas, em diversos grupos [...] e em diferentes formas de relações sociais. [...] o indivíduo não é redutível a seu protestantismo, ao seu pertencimento de classe, a seu nível cultural ou a seu sexo. É definido pelo conjunto de suas relações, compromissos, pertencimentos e propriedades, passados e presentes. Nele sintetizam-se ou se combatem, combinam-se ou se contradizem, articulam-se harmonicamente ou coexistem de forma mais ou menos pacífica, elementos e dimensões de sua cultura (no sentido amplo do termo) que, em geral, são estudados separadamente pelos pesquisadores nas áreas das ciências sociais. (Lahire, 2004)

Enquanto Bourdieu (2007) privilegiou certa homogeneidade entre os agentes produzida pelos habitus comuns de classe, ou seja, valorou a importância das primeiras experiências como sendo moldadas substancialmente pela sua experiência no interior de contextos específicos, Lahire deteve-se, por sua vez, aos processos de incorporação do social e a tensão entre as diversas disposições interiorizadas pelo indivíduo. Bernard Lahire propõe, então, uma “Sociologia à Escala Individual”, voltada ao estudo da realidade social na sua forma interiorizada, que apreenda o social refratado num corpo individual, que atravessa instituições, grupos e campos de luta diferentes (Oliveira, 2020).

Apesar de reconhecer a existência de distâncias entre as classes sociais, Lahire (2002) sugere um mecanismo complexo de suspensão/ação ou de inibição/ativação de disposições, devido à pluralidade de disposições do qual o indivíduo é portador e da pluralidade de contextos sociais que atravessa.

Lahire (2004) comunga da noção de experiência socializadora heterogênea. De acordo com seus preceitos, as experiências não são sistematicamente coerentes, homogêneas e compatíveis. Nossa experiência com nossa família, na escola, com amigos ou no trabalho, não é sinteticamente somada de maneira simples, vive-se simultânea e sucessivamente em contextos sociais diferenciados e não equivalentes.

Lahire afirma que entre a família, a escola, os amigos e/ou as múltiplas instituições culturais com quem ou em que a criança e o jovem são levados a conviver, apresentam-se situações heterogêneas, concorrentes e às vezes contraditórias, quanto aos princípios da socialização (Oliveira, 2020, p. 23).

Sugere, por conseguinte, o estudo dos processos de socialização em bases empíricas, para a compreensão de como se dão os complexos processos de incorporação do passado pelos atores e de como esse passado incorporado é reativado em novos contextos de ação, principalmente, em se tratando de escala individual de análise:

[...] é preciso então precisar – descrever e analisar – os quadros (universo, instâncias, instituições), as modalidades (maneiras, formas, técnicas etc.), os tempos (momento em um percurso individual, duração das ações socializadoras, grau de intensidade e ritmo dessas ações) e os efeitos (disposições a acreditar, a sentir, a julgar, a se representar, a agir, mais ou menos duradouras) de socialização. (Lahire, 2015, p. 3)

Não nega a ocorrência da socialização familiar “precoce, intensa, duradoura e, durante um tempo mais ou menos longo, sem concorrência na vida dos indivíduos, tampouco o peso da origem social em muitos comportamentos, mas pretende conhecer melhor a operação individual sobre estas influências, visto ser possível que fatores externos provoquem alterações na matriz primária: “A família nunca fica inerte com relação aos outros quadros socializadores potenciais” (Lahire, 2015, p. 6).

Enfim, Lahire (2015) busca entender as irregularidades que acompanham e compõem o patrimônio individual de disposições, exatamente por acreditar na possibilidade de atuação do sujeito sobre a matriz primária.

Assim como o sociólogo em tela, pude observar durante minha vivência pessoal e profissional, distintas incorporações de patrimônios de disposições nos sujeitos oriundos de um mesmo contexto socioeconômico. Acredito na ação individual sobre os produtos das múltiplas experiências vivenciadas em diferentes contextos de ação. O social se faz presente não apenas no coletivo, mas também nas dobras singulares de cada indivíduo (Lahire, 2002).

Nossa história é composta por uma infinita variação de espaços, ambientes, grupos e universos sociais. Somente a análise empreendida em microcontexto é capaz de fazer descortinar as diferenças dentro da diversidade.

Passo agora a apresentar minhas reflexões sobre a conectividade existente entre o campo teórico privilegiado e aspectos de minha socialização.

Considerações finais

Sendo minha proposta neste ensaio apresentar os componentes latentes, inexplícitos de minha pesquisa, passo a sinalar tais elementos tanto a partir de uma ótica pessoal quanto profissional. Desta feita, relaciono os elementos de minha trajetória de vida à teoria elegida.

A primeira evidência se liga à forte identificação com a figura materna e, consequentemente, à incorporação de disposições possíveis a partir desse contato, na socialização primária. Vivi uma íntima relação com a escola durante o ensino fundamental, pois este ambiente tornou-se uma extensão do ambiente familiar. Muito provavelmente estar na escola era a possibilidade de permanecer mais tempo junto daquela figura idealizada, muito culta, leitora voraz, ocupante de um lugar e um sobrenome de destaque na comunidade, predicados diferentes daquele examinados no contexto doméstico. Neste imperava certa distância, introspecção e uma dita repressão.

Como assinalado por Bourdieu e Lahire, somos atores sociais e vamos adquirindo um patrimônio de disposições ao longo das nossas interações mundo afora, estas servirão de orientação para todas as demais ações, em contextos subsequentes. Com isso, pretendo realçar a presença do capital cultural familiar herdado, principalmente da linhagem materna, mãe e avó professoras, a propiciar uma fácil adaptação nos anos escolares iniciais e, por consequência, uma longevidade nos estudos. Minha progressão como estudante e como profissional guardam total relação com as características impressas pela primeira socialização a que fui exposta - a familiar. Estas características foram, certamente, potencializadas por um “efeito mãe professora” (Nogueira, 2013), produtor de trunfos escolares simbólicos e materiais, derivados do fato de ser filha e neta de mulheres professoras.

Nesses termos, encontro respaldo nas palavras seguintes: “Os bens culturais enquanto bens simbólicos só podem ser apreendidos e possuídos como tais (ao lado das satisfações simbólicas que acompanham tal posse) por aqueles que detêm o código que permite decifrá-los” (Bourdieu, 2007, p. 297).

Todavia, evidenciando as distinções entre os sujeitos, capaz de pincelar de modo bem particular o curso da aquisição de suas disposições e, também, a interferência de formas diferenciadas e até antagônicas de socializações secundárias, sinalizo uma evidência crucial para essa discussão: cada um dos meus irmãos possui um patrimônio de disposições bem individualizado. Todos estudaram, guiados por esta disposição materna predominante, mas nem todos gostavam/gostam do ambiente escolar e, também, nem todos concluíram o ensino superior. Aqui se apresenta, ainda, a oportunidade de reforçar o que Bourdieu chamou de trabalho do herdeiro sobre si mesmo, pois cabe a ele aceitar ou não a herança, o que gera essa discrepância no “produto da socialização” no campo das individualidades.

Assim como em minha família e nas famílias pesquisadas na oportunidade do mestrado, a figura paterna parecia mera figuração no cenário educacional dos filhos. Interpreto isso como uma posição sexista, cujos papéis são altamente diferenciados para as mulheres e para os homens em uma sociedade estruturalmente machista. O cuidado e a educação, com raras exceções, sempre ficaram a cargo das progenitoras. E nós perpetuamos essa posição social, muitas vezes de forma acrítica.

Pressuponho ser importante destacar, também, os efeitos de minha mudança de cidade e instituição educacional quando fui cursar o ensino médio, uma vez que esse resultado faz evidenciar ainda mais o peso do lugar que ocupamos no campo social sobre nossas disposições, nosso comportamento. Inserida em uma escola “para adultos”, dentro de outro território, sem referência familiar a pautar minha posição, tornei-me mais uma aluna entre tantas outras. Introspecção, ausência de criatividade e muita saudade de casa, dos familiares e amigos marcaram esse período. Ainda recordo a angústia experienciada nessa fase e uma significativa queda no rendimento escolar.

Por algum tempo, assumi disposições menos combativas, menos assertivas e mais embotadas, até que outras experiências e outras relações ocorreram em minha vida e eu pude resgatar minhas disposições matriciais. Hoje me vejo mais disciplinada, reflexiva e ativa do que nesse período anterior, mas muitas mudanças operaram em mim ao longo de minha vida, reforçando a ideia sugerida por Lahire (2002) de que existe um mecanismo complexo de suspensão/ação ou de inibição/ativação de disposições, devido à pluralidade de disposições da qual o indivíduo é portador e da multiplicidade de contextos sociais que atravessa.

Ao tratar desse assunto, recordei uma passagem muito significativa, vivida recentemente em contexto de luto. Minha mãe faleceu em setembro de 2019 e em ocasião de seu velório, ocorrido na nossa cidadezinha natal, fui gentilmente surpreendida com as palavras de minha primeira professora, da educação infantil, ao dizer que minha mãe e minha avó contribuíram de forma muito positiva para a história daquele lugar. Além disso, perguntou se eu me recordava de tê-la acompanhado muitas vezes, quando fui sua aluna, para fazer busca ativa de alunos evadidos da escola, em bairros mais empobrecidos.

A princípio parece uma simples experiência de menina, guardada em local de difícil acesso à consciência, mas bastou esse encontro e sua menção para que o resgate de minhas origens no campo social viesse à tona e produzisse sentido às identificações profissionais ocorridas muitos anos depois. Eis por que Lahire (2015) insiste na importância de se contextualizar as trajetórias individuais, levando-se em consideração socializações primárias e, também, secundárias, para se compreender o modo de se posicionar no mundo de cada sujeito.

Como dito anteriormente, além das ponderações no campo pessoal, quero partilhar as reflexões ocorridas no universo do trabalho. Essas foram mais profundamente sentidas, provavelmente por me reportarem a uma situação mais próxima no tempo, já que ainda estou inserida no trabalho executado dentro da política pública da “assistência social”.

Antes mesmo de iniciar minha pesquisa de mestrado muitas situações ocorridas no cotidiano do trabalho acossavam-me e, como já aludido anteriormente, foram o estopim para minha saída da tarefa mecânica na qual me sentia engolida para o movimento reflexionado - sair da queixa para a ação.

Ocorre que podemos até cogitar alguns resultados, mas jamais teremos, previamente, a dimensão do quanto um trabalho de campo pode revolver nossos pensamentos. Assim, apesar de representar um tempo mínimo da vivência das mães pesquisadas, o pouco contato com suas histórias, seus anseios, suas dificuldades, suas famílias e suas moradias, foi suficiente para eu me dar conta do quão raso é o atendimento no CRAS, do ponto de vista do sujeito. Toda a ordenação do trabalho executado ali apresentava a marca do tarefismo, sem tempo para contemplação, programação e meditação sobre o labor. A impressão tida ao final de cada dia trabalhado era a de estar “chovendo no molhado”. Era impossível, diante da demanda diversificada de funções a cumprir, dedicar a uma escuta qualificada, muito menos enxergar o resultado do trabalho, assim como analisar com criticidade o papel ao qual eu me prestava.

Embora eu já sentisse uma força interna tentando me mover desse lugar, somente o deslocamento permitido pela pesquisa de campo foi capaz de me transportar para uma nova vivência e um novo olhar. Ao ouvir aquelas mães narrando seus percalços, demonstrando tanto zelo na educação dos filhos, driblando os efeitos nocivos de relações amorosas abusivas, pensei: toda essa riqueza de detalhes fica à margem da abordagem realizada no CRAS. Por mais cuidadosa e atenciosa que eu me julgasse nos atendimentos realizados naquele serviço, as minúcias perdiam para a necessidade de brevidade e objetividade.

Para além desse aspecto, ao desenvolver um novo olhar, agora científico, sobre as mulheres pesquisadas, houve uma (re)constatação da não materialização de direitos no campo factual. Acessar de forma concreta os benefícios eventuais a que têm direitos exige um caminho sinuoso e até, porque não dizer, vexatório. Além do necessário deslocamento para o equipamento da “assistência social” em momentos de fragilidade pessoal e social, era preciso enfrentar cadastramentos, “interrogatórios”, comprovações de renda e, o que dificultava ainda mais, o encaixe nos escores baixíssimos de renda exigidos pela Lei Municipal que rege os ditos benefícios.

No quesito - mediação entre usuários e direito - a verdade estava escancarada: a mediação se dava, na verdade, entre promessas e “pedintes” [4] . Estamos longe de ocupar esse lugar fantasioso de atendimento aos direitos constitucionalmente garantidos. É preciso enxergar esse fosso, para, a partir daí, lançar mão de estratégias menos danosas e menos falaciosas aos usuários do serviço.

Não me iludo quanto ao alcance do que aqui exponho, ou das linhas tecidas na dissertação, todavia, sei que algo em mim já se modificou e, na melhor das hipóteses, poderá alcançar algum outro sujeito, colega ou interessado no tema e, assim, conseguiremos ser resistência e luta em um mundo tão massacrado pela ditadura dos poucos que detêm o “poder” nesse país.

Assim, resgato a proposta do que foi exposto e finalizo em defesa da ideia de que não há a suposta neutralidade do pesquisador. Quem deveria estar em campo, a psicóloga, a mulher, a mãe, ou a pesquisadora? Nesse sentido, toda a minha “afetação” na experiência de campo é bem representada pelas palavras da antropóloga Favret-Saada, que discorre em defesa do trabalho realizado sobre o afeto não representado:

No começo, não parei de oscilar entre esses dois obstáculos: se eu “participasse”, o trabalho de campo se tornaria uma aventura pessoal, isto é, o contrário de um trabalho; mas se tentasse “observar”, quer dizer, manter-me à distância, não acharia nada para ‘observar’. No primeiro caso, meu projeto de conhecimento estava ameaçado, no segundo, arruinado. (Favret-Saada, 2005, p. 157)

Assim, para tentar superar a sensação de cindir das versões de mim, foi necessário um trabalho reflexivo de “trazer à consciência”, que possibilitou, primeiramente, a ciência da impossível neutralidade ou cisão diante da pesquisa para, em seguida, proceder a uma vigilância epistemológica e metodológica necessária à investigação científica e, mais tarde, realizar as reflexões contidas nesse ensaio.

Referências

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[1]De acordo com a teoria topológica de Bourdieu (2004), o espaço social seria a combinação das posições sociais, o lugar onde ocorrem as distinções e as relações de força e de poder. Assim, no nosso sistema capitalista, os indivíduos são definidos por sua posição relativa no espaço social, que é hierarquizado conforme o acesso ou não a bens e condições legitimadas como de prestígio.

[2]A direção escolar realmente exigia muita dedicação ao longo dos turnos da instituição, mas creio que o lugar serviu também de refúgio, de saída possível para um ambiente familiar opressor, machista e com sobrecargas de tarefas domésticas e maternais.

[3][...] a Questão Social é apreendida como um conjunto das expressões das desigualdades da sociedade capitalista madura, que tem uma raiz comum: a produção social é cada vez mais coletiva, o trabalho torna-se mais amplamente social, enquanto a apropriação dos seus frutos mantém-se privada, monopolizada por uma parte da sociedade (Iamamoto, 1998, p.27).

[4]Terminologia forte, que pode parecer, à primeira vista, carregada de pré-conceito, mas escolhi usá-la para ressaltar esse aspecto de mendicância do usuário da “assistência social”, em que o direito é revestido de esmola, a depender da boa vontade de quem “dá”. No mais, há um círculo vicioso entre o pedido e sua concessão.

Recebido: 05 de Outubro de 2020; Aceito: 27 de Janeiro de 2021

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