SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.27Life stories and Afro-Pindoramic ancestry in focusThe impossibility of wandering to potencial of loafing: ethnography and Cultural Curriculum author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Share


Linhas Críticas

Print version ISSN 1516-4896On-line version ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.27  Brasília  2021  Epub Sep 08, 2021

https://doi.org/10.26512/lc27202137823 

Ensaios

Estágio Supervisionado Investigativo: superando a desarticulação entre teoria e prática?

Pasantía Supervisada Investigativa: ¿superando la desarticulación entre teoría y práctica?

1Licenciada em Física pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (2019). Mestranda em Educação no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Paraná, na linha de pesquisa Cultura, Escola e Processos Formativos em Educação. Membra do Grupo de Pesquisa Processos Formativos e Linguagens na Educação em Ciências da Natureza.

2Doutora em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (2005). Professora Associada do Departamento de Teoria e Prática de Ensino e do Programa de Pós-Graduação em Educação do Setor de Educação da Universidade Federal do Paraná. Membra do Grupo de Pesquisa Processos Formativos e Linguagens na Educação em Ciências da Natureza.


Resumo

O objetivo deste ensaio é refletir sobre a relação teoria e prática e entre sujeitos e instituições no estágio de docência e, de forma consequente, propor diretrizes para a organização de um Estágio Supervisionado Investigativo (ESI). Argumentamos por um ESI em que relações entre instituições e sujeitos sejam mais horizontais, fomentando a articulação entre teoria e prática mediante a práxis num processo formativo transformador. Em consonância com os princípios freireanos sistematizados nos Três Momentos Pedagógicos (Estudo da Realidade, Organização do Conhecimento e Aplicação do Conhecimento), propomos diretrizes para um ESI na formação inicial de professores.

Palavras-chave Estágio Supervisionado Investigativo; Formação inicial; Relação Teoria-Prática

Resumen

El objetivo de este ensayo es reflexionar sobre la relación teoría-práctica y entre sujetos e instituciones en la pasantía en la formación de profesores y proponer pautas para la organización de una Pasantía Supervisada Investigativa (PSI). Abogamos por una PSI en la que las relaciones entre instituciones y sujetos sean más horizontales, fomentando la articulación entre teoría y práctica a través de la praxis. Proponemos pautas para una PSI en la formación del profesorado en línea con los principios de Freire sistematizados en los Tres Momentos Pedagógicos (Estudio de la Realidad, Organización del Conocimiento y Aplicación del Conocimiento).

Palabras clave Pasantía Supervisada Investigativa; Formación inicial; Relación teoría-práctica

Abstract

The objective of this essay is to reflect on the relationship between theory and practice and between subjects and institutions in the internship in teachers’ education and, consequently, propose guidelines for the organization of an Investigative Supervised Internship (ISI). We argue for an ISI in which relations between institutions and subjects are more horizontal, fostering the articulation between theory and practice through praxis. Finally, in line with Freire’s principles, systematized in the Three Pedagogical Moments (Reality Study, Knowledge Organization, and Knowledge Application), we propose guidelines for an ISI in teachers’ education.

Keywords Investigative Supervised Internship; Initial education; Theory-Practice relationship

Introdução

Pensar o Estágio Supervisionado no contexto das licenciaturas, de modo a superar os modelos de formação docente alinhados à racionalidade técnica (Diniz-Pereira, 2011), é um desafio que perpassa os campos acadêmico, escolar, social e político. Trabalhos como o de Pimenta e Lima (2006) envidam esforços para refletir e propor caminhos para o desenvolvimento de um estágio alinhado com a perspectiva crítica de formação docente e apontam para a necessidade da superação da desarticulação entre teoria e prática que permanece em algumas concepções de estágio desenvolvidas, ou reproduzidas, à sombra da reflexão. Para tanto, tais autoras sinalizam o estágio como atividade teórica instrumentalizadora da práxis docente.

O conceito de práxis é compreendido a partir da conceituação marxista que a concebe como atitude teórico-prática dos indivíduos na transformação da natureza e da sociedade, ou seja, uma atitude em que se transcende o conhecimento e a interpretação do mundo e atua-se na sua transformação (Pimenta, 2012). Desse modo, a práxis no cunho marxista diz respeito a associação da objetividade e subjetividade da atividade humana, ao pensamento e a ação transformadora sobre a realidade, indissociadamente. Dentro desta perspectiva, Pimenta e Lima (2006) concebem a educação como práxis social, na qual atividade teórica e prática são indissociáveis. As autoras colocam que “o estágio atividade curricular é atividade teórica de conhecimento, fundamentação, diálogo e intervenção na realidade, este sim objeto da práxis” (Pimenta & Lima, 2006, p. 14). Elas ainda apontam que o estágio pode ser desenvolvido como uma atitude investigativa envolvendo reflexão e ação na vida escolar dos professores, alunos e sociedade, ou seja, apontam o estágio como pesquisa, e a pesquisa no estágio como caminho para que prática e teoria estejam articuladas na formação de professores e no estágio.

O estágio investigativo, ou como pesquisa, assume diferentes perspectivas de contribuição na formação inicial de professores, tal como a explorada por Rabelo e Abib (2018), na qual, a partir da pesquisa desenvolvida no processo de estágio supervisionado, ocorre a possibilidade de superação, por parte dos estagiários, das suas concepções prévias sobre ensino e aprendizagem. Nesse trabalho, os autores identificam a mudança da visão do estagiário, inicialmente vinculada ao ensino como transmissão de conteúdos, para uma concepção da atividade docente permeada pela produção de conhecimentos e constante reflexão sobre o ensino e aprendizagem dos alunos. Trabalhos em tal perspectiva, que contribuem com a análise de possibilidades e dimensões distintas de um estágio investigativo, são de inestimável relevância para a compreensão e desenvolvimento do estágio como um campo de conhecimento (Pimenta & Lima, 2006).

Neste ensaio[1], nos deteremos no seguinte viés analítico: a superação da desarticulação entre teoria e prática mediante a práxis, a partir de uma proposta organizativa para o Estágio Supervisionado no viés investigativo.

Diante do exposto, algumas questões e reflexões se fazem necessárias: ao propor um Estágio Supervisionado Investigativo (ESI), de que concepção de pesquisa está se falando? Existe diferença entre propor uma atividade de pesquisa durante o estágio e um estágio intrinsecamente organizado como pesquisa? Como as relações entre teoria e prática aparecem e como possíveis desarticulações poderiam ser superadas nesse tipo de proposta? Qual o papel da escola básica nesse processo?

Estas questões serão estruturantes neste ensaio. A partir delas, argumentaremos sobre a necessidade de uma concepção de pesquisa que perpasse a dimensão colaborativa e de parceria entre instituições e sujeitos para que, efetivamente, teoria e prática sejam indissociáveis no decorrer do processo formativo proporcionado pelo estágio supervisionado, mais especificamente um ESI. Ainda, a partir dos elementos estruturantes deste ensaio, ousamos propor diretrizes para um ESI consonante com uma perspectiva crítica de formação de professores. Para tanto, tomamos por base os princípios da dialogicidade e da problematização conforme discutidos em Freire (1987) e sistematizados numa dinâmica bastante difundida na área de Educação em Ciências, que são os Três Momentos Pedagógicos (Delizoicov et al., 2009; Muenchen & Delizoicov, 2012), mais especificamente na configuração que assume essa dinâmica quando utilizada como estruturante curricular: Estudo da Realidade, Organização do Conhecimento e Aplicação do Conhecimento.

Nesta proposta, organizamos, para cada um dos momentos pedagógicos, diretrizes gerais para as atividades do estágio de docência assumido como intrinsecamente investigativo numa perspectiva que se aproxima da concepção de pesquisa participativa inspirada nas ideias de Freire (1987). No Estudo da Realidade, propomos uma ação conjunta com a comunidade escolar para reconhecimento e produção de dados a respeito da realidade onde ocorrerá o ESI. Na Organização do Conhecimento, são definidos os problemas de pesquisa sobre os quais os estagiários irão aprofundar sua investigação, em consonância com o levantamento coletivo e colaborativo empreendido na primeira etapa e as finalidades formativas e necessidades específicas das instituições escolar e universitária. Na Aplicação do Conhecimento, as atividades de pesquisa e atuação com a comunidade escolar, planejadas coletivamente nas etapas anteriores, são desenvolvidas mediante um processo intrínseco de produção de dados empíricos, análise, reflexão e ação permeadas pela teoria.

Desenvolvido nesta perspectiva, o ESI representa uma possibilidade formativa crítica que fomenta a práxis tanto na atividade dos indivíduos ao atuarem na realidade, como na promoção da horizontalidade entre as instituições escolar e universitária, hegemonicamente polarizadas quanto à produção de conhecimentos.

Estágio Supervisionado Investigativo: de que noção de pesquisa está se falando?

Tomemos por definição um Estágio Supervisionado Investigativo (ESI), ou Estágio como Pesquisa, como aquele que é pensado, organizado e desenvolvido intrinsecamente numa concepção de investigação alinhada às necessidades formativas dos estagiários. Dessa forma, nessa concepção de estágio, o movimento investigativo é estruturante da aprendizagem da docência no contexto escolar pelos futuros professores. Neste ensaio, tomamos como diferente desta concepção, a proposta de um estágio com pesquisa. Neste último, implicitamente, as atividades de ensino e a pesquisa em si podem ser tomadas como dimensões distintas no decorrer do processo formativo. Nesse caso, a ação investigativa pode assumir um caráter de atividade isolada na programação do Estágio Supervisionado.

Entre a proposta de um ESI e um Estágio com Pesquisa, a defesa que se faz é pelo primeiro, por entendermos que, nele, as possibilidades de articulação entre prática e teoria tornam-se mais pertinentes quando se pensa nos modelos críticos de formação.

A ideia da pesquisa na docência não é nova “e se enraíza na própria constituição da profissão docente” (Garcia, 2012, p. 239), porém de que noção de pesquisa está se falando? A concepção de pesquisa não é homogênea, mas se adequa a modelos conforme os vieses interpretativos, que, por sua vez, são permeados por elementos oriundos do contexto histórico, social e político (Garcia, 2012). A relação entre pesquisa e ensino também se vincula à ideia que se tem da própria natureza do ensino e da prática de pesquisa, sendo, no fundo, iluminada por compreensões ou incompreensões epistemológicas das mais diversas raízes. Sem pretender esgotar as inúmeras possibilidades e perspectivas de pesquisa que têm permeado as investigações no campo educacional, cabe refletir a que tipo de racionalidade, modelo formativo e concepção de educação é congruente a pesquisa realizada num estágio do tipo investigativo. Neste ensaio, o fazemos contrapondo as noções imbricadas nas concepções da racionalidade técnica às noções que caracterizam a racionalidade crítica na formação de professores (Diniz-Pereira, 2011).

De acordo com Diniz-Pereira (2011), o início do movimento dos professores-pesquisadores se deu a partir da aplicação de pesquisas desenhadas por sujeitos externos ao contexto de atuação dos professores, mais especificamente, da aplicação de pesquisas realizadas pelas universidades. Embora esse início não esteja necessariamente vinculado ao estágio supervisionado, cabe à reflexão a concepção por trás desse movimento que dialoga com a ideia de um professor reprodutor de conhecimentos, mesmo estando em “contato” com a pesquisa, em uma perspectiva alinhada à racionalidade técnica de formação.

A pesquisa nos modelos técnicos de formação docente - relacionados aos modelos da racionalidade técnica - é imbricada de uma noção positivista de ciência e, no que diz respeito à educação e ao ensino, visa à instrumentalização dos docentes para aplicação de técnicas criadas à luz da teoria em “realidades prontas”, nas quais se encontram esses profissionais. Isso implica na concepção da educação como ciência aplicada e na neutralidade do pesquisador que atua livre de valores sobre o objeto investigado (Diniz-Pereira, 2011). Nessa perspectiva, a escola, na melhor das hipóteses, é objeto estático, alvo de uma investigação e, outras vezes, configura-se como laboratório para aplicação de técnicas prontas em busca de resultados previsíveis. A teoria determina os instrumentos e ações que devem ser executadas na prática. Diante de tal concepção de pesquisa cabe a pergunta: é nessa direção que se quer caminhar a partir da formação docente estruturada em processos investigativos?

Em oposição aos modelos da racionalidade técnica, encontram-se os modelos críticos de formação docente - associados à racionalidade crítica - que concebem a educação como uma atividade sócio-política e historicamente localizada. Nessa perspectiva, a pesquisa é realizada na e para a educação e não mais sobre ela, o professor é concebido como agente crítico e problematizador das situações que envolvem a prática educacional, o entendimento sobre a educação e as estruturas sócio-políticas que estruturam a ação pedagógica, produzindo conhecimento e transformando a realidade. De acordo com Diniz-Pereira (2011), não obstante as contribuições de John Dewey e Piaget para o levantamento de problemas, é a partir das contribuições de Paulo Freire que a concepção adquire um viés politizado. É em sintonia com tal perspectiva que direcionamos nossa reflexão.

Como forma de superação da concepção técnica de formação de professores e, portanto, positivista de pesquisa, Rabelo e Abib (2018) salientam a necessidade da reflexão crítica no processo formativo, mediante o qual os estagiários possam refletir a respeito de suas concepções prévias sobre o ensino e aprendizagem. Concordando com a imprescindibilidade da análise crítica, acrescentamos que a criticidade analítica não deve se limitar às concepções iniciais dos sujeitos, mas abarcar também o contexto da prática, o contexto escolar e as dimensões culturais e sócio-políticas envolvidas. Dessa forma, avançamos de uma concepção de professor reflexivo para a de um professor crítico-reflexivo (Pimenta & Lima, 2006), em consonância com os modelos críticos de formação docente.

Algumas possibilidades parecem promissoras para sustentar tal perspectiva no decorrer do ESI, dentre as quais destacamos a pesquisa participativa, que, de acordo com Diniz-Pereira (2011), consiste em um modelo de pesquisa-ação desenvolvido na América Latina e inspirado nas ideias de Paulo Freire. Pesquisas dessa natureza articulam o contexto macro e micro nas problemáticas enfrentadas, entendendo as questões sociais articuladas à prática educativa - que é historicamente localizada - e assumindo uma perspectiva que não toma os sujeitos da pesquisa como objetos, uma vez que a relação se faz pelo diálogo e com o objetivo de produzir um conhecimento crítico para transformar a realidade com o outro (Diniz-Pereira, 2011).

A pesquisa participativa é uma concepção de pesquisa que nos parece promissora para um ESI. Uma vez alinhada à racionalidade crítica, seu objeto de estudo transcende a dimensão da prática docente articulando-se aos contextos social e da comunidade escolar. Além disso, trata-se de uma concepção de pesquisa que busca romper com a dicotomia na relação entre sujeito investigador e objeto de pesquisa, relação esta que, conforme argumentaremos, pode estar relacionada à compreensão de teoria e prática como dimensões distintas e desarticuladas no processo investigativo do ESI.

Como as relações entre teoria e prática se desenham no ESI? Teoria, prática e desarticulação implícita nas relações

Assentindo que o ESI pode ser um caminho para a superação da desarticulação entre teoria e prática na formação de professores, argumentamos no sentido de se compreender que essa superação está subordinada ao entendimento que se tem da pesquisa e da própria concepção de formação que se defende, uma vez que na perspectiva positivista, alinhada à racionalidade técnica de formação, por exemplo, teoria e prática estão dissociadas, corroborando a ideia de dissociabilidade na formação e na ação docente.

Nos deteremos agora em um aspecto específico sobre como a desarticulação teoria e prática pode permanecer e se fortalecer mesmo no processo de um ESI a partir da verticalização das relações entre escola e universidade.

Historicamente, o estágio esteve relacionado ao momento prático dos cursos de formação, não sendo diferente nas licenciaturas (Pimenta & Lima, 2006; López & Nardi, 2017). Assim, a prática estaria em oposição à teoria - não se discute ou se faz teoria, ocorre apenas a aplicação da mesma no contexto da prática. A hegemonia histórica de tal compressão está alinhada a uma concepção do estágio como imitação de modelos ou de instrumentalização técnica (Pimenta & Lima, 2006). A ideia do ensino como transmissão de conhecimentos e do professor como reprodutor do conhecimento científico impera nessas perspectivas tanto quanto os contramovimentos que acabam recaindo em excessiva valorização da prática. Ainda aqui, as universidades são tomadas como as verdadeiras e únicas produtoras de conhecimento, são a gênese das teorias, e as escolas básicas e seus sujeitos são reprodutores desse conhecimento ou objetos de pesquisa (Garcia, 2012). A desarticulação entre teoria e prática se estende e se concretiza no entendimento de uma universidade que produz conhecimento e de uma escola onde se faz a prática.

Voltemos a atenção para o risco da naturalização desse controverso entendimento que se dá na relação entre essas duas instituições e seus sujeitos. Tal naturalização é perigosa justamente pela hegemonia histórica e que, portanto, se enraíza nos indivíduos de maneira mais ou menos (in)consciente. O que queremos dizer é que se essa relação não for estudada e desenvolvida com criticismo e reflexão constante, corre-se o risco de uma superação superficial da visão que insiste na tese de que teoria e prática não se misturam. Mesmo em um ESI que vise a superação da formação técnica e para isso compreenda a pesquisa a partir de uma perspectiva oposta àquela positivista, a desarticulação enraizada nas relações pode atuar como pano de fundo.

Dentro desta perspectiva, um cuidado necessário é perguntar-se constantemente: “como a escola está sendo considerada no ESI?”. Se a escola não participa ativa e colaborativamente do processo, não é uma possibilidade mais do que concreta para que a mesma seja apenas um objeto sobre o qual a universidade atua? Não seria um estágio onde o professor em formação aprende a pesquisar, porém numa concepção de pesquisa que objetifica (torna objeto) o sujeito conforme interesses e visões verticalizadas? Um ESI que não assume uma perspectiva de parceria e colaboratividade com a escola, estaria formando alguém que - conforme coloca a professora Tânia Maria Figueiredo Garcia em sua apresentação na Mesa Redonda intitulada “A pesquisa com/sobre/na escola e o professor pesquisador: mediações desde o estágio”, promovida pelo Centro de Articulação das Licenciaturas da Universidade Federal do Paraná (Ceali UFPR, 2020) - pesquisa “a escola, na escola, com a escola ou para a escola”? A não horizontalização da relação entre universidade e instituição escolar é uma forma de subsidiar a separação da teoria e da prática na formação dos futuros professores, por isso nossa defesa por modelos de pesquisa que fomentem a participação e a colaboração entre sujeitos e instituições na ação investigativa.

Qual o papel da escola básica nesse processo? As instituições, seus sujeitos e o conhecimento

As relações de parceria entre escola e universidade são um tema emergente no campo da pesquisa em educação e transitam entre diferentes interpretações e propostas, contemplando interesses diversos. Foerste e Lüdke (2003), por exemplo, indicam três diferentes formas de parceria: dirigida[2], na qual as escolas e seus profissionais aparecem como recurso a ser utilizado na formação inicial de professores, em projetos que são pensados e conduzidos unicamente pela universidade em sintonia com uma perspectiva de formação técnica; a parceria oficial, na qual as tarefas são previamente definidas pelo governo e distribuídas entre as instituições participantes, ou seja, ocorre por meio de decretos; e, por fim, a parceria colaborativa, que cria condições para a negociação de objetivos comuns e interesses específicos tanto da escola como da universidade.

O sentido de parceria que se adota nesse ensaio é o que mais se aproxima daquele que Foerste e Lüdke (2003) apresentam como parceria colaborativa. Nesse sentido, parceria e colaboração integram as ideias aqui defendidas, pois se desdobram numa relação mais horizontal nos processos formativos que envolvem a escola e a universidade. Assim como Cyrino e Souza Neto (2017), compreende-se que parceria significa trabalho em equipe, valores comuns, tomada de decisões conjunta, além da definição clara de papéis e responsabilidades.

Dentro desta perspectiva, há que se reconhecer o papel formador, embora não institucionalizado, do professor supervisor[3] da escola básica neste processo de estágio. Assim como Pagliarin e Silva (2019), entendemos que o professor supervisor da escola básica também atua como formador no processo de estágio, contudo transcendendo as dimensões do conteúdo, incentivo e interação, elencadas por essas autoras com base em Illeris (2013).

Para Galindo (2014), um dos aspectos necessários para que a racionalidade técnica de formação seja superada é reconhecer a escola como um espaço formativo. Se a escola é um espaço formativo, ela deve ter um papel claro na formação inicial de professores. Do mesmo modo, reconhecer que na escola também se produz conhecimento, caminha na direção da superação de tal perspectiva e fornece elementos importantes para que se possa produzir conhecimentos com a escola, na escola e para escola, e não sobre a escola.

Assim como Cyrino e Souza Neto (2017), defendemos que, para que o processo de estágio seja significativo e no sentido de um ESI que corrobore com a superação da visão de teoria e prática dissociadas, é imprescindível uma relação horizontal entre universidade e escola, sem, contudo, confundir ou unificar o papel de ambas.

A escola básica e a universidade possuem funções e responsabilidades distintas que devem ser contempladas no processo de estágio. Enquanto a universidade se preocupa com a formação dos futuros professores e produz um conhecimento em longo prazo, a escola enfrenta questões relacionadas ao ensino e a aprendizagem que demandam conhecimentos, soluções ou ações, em alguns casos, imediatas, uma vez que emergem das necessidades no exercício da profissão docente (Galindo, 2014).

De modo a considerar cada instituição e seus sujeitos, com especificidades e demandas próprias, parceria e colaboração ocorrem num ambiente de diálogo, de horizontalização nas relações de poder com relação ao conhecimento, compreendendo que universidade e escola podem produzir, significar e ressignificar a teoria na prática que se faz com a realidade, enquanto esta também passa por um processo de ressignificação.

De acordo com Garcia (2012), a pesquisa numa perspectiva colaborativa ou cooperativa possibilita conceber a universidade como produtora de conhecimento e também inclui os sujeitos da escola básica que, noutra visão, são tidos como não qualificados para a atividade de pesquisa e produção de conhecimento. Não se trata de descaracterizar o papel formador ou de produção de conhecimentos da universidade no campo da educação, pelo contrário, trata-se de fortalecer esse papel na relação que esta estabelece com a escola básica.

Como possíveis dicotomias podem ser superadas nesse tipo de proposta? Dialogando e problematizando o mundo na construção colaborativa do conhecimento

Sustentamos até aqui a defesa de uma relação orgânica entre teoria e prática, essencialmente na formação inicial de professores no contexto de um ESI. O estágio investigativo não oferece necessariamente garantia de articulação entre teoria e prática, e um aspecto que pode contribuir para a manutenção da ideia de separação e até fortalecê-la, é a verticalização na relação entre instituições e sujeitos envolvidos. Então, de que modo poder-se-ia organizar um ESI de forma a promover a horizontalidade nas relações, estando ainda, em sintonia com a perspectiva crítica de formação docente?

Paulo Freire, pensador consagrado por suas contribuições no campo educacional, defende uma educação na perspectiva crítico-libertadora, onde homens e mulheres são estimulados a reconhecer-se na vocação ontológica e histórica de “ser mais” (Freire, 1987, p. 27). Para ele, a participação dos sujeitos envolvidos nos processos educativos é fundamental (Oliveira, 2017). Uma participação não passiva, não coadjuvante de um ato imposto, ou seja, o sujeito com o qual se desenvolverá o ato educativo - de ensino e aprendizagem - não deve ser meramente depositário de informações, o que configuraria a prática da “educação bancária” (Freire, 1987, p. 37). A participação ativa dos sujeitos no ensinar e no aprender, num movimento que se opõe a educação bancária e caminha para a educação libertadora - como caracterizada por Freire (1987) - implica, junto a outros princípios defendidos por ele, em uma relação horizontalizada entre quem ensina e quem aprende. A horizontalidade se fortalece e é sustentada na postura dialógica que implica na intercomunicação, no pensar autêntico do educador e do educando, mediatizados pelo mundo. Por isso, Freire (1987, pp. 41-42) destaca que:

[…] o pensar daquele não pode ser um pensar para estes nem a estes imposto. Daí que não deva ser um pensar no isolamento, na torre de marfim, mas na e pela comunicação, em torno, repitamos de uma realidade. E, se o pensar só assim tem sentido, se tem sua fonte geradora na ação sobre o mundo, o qual mediatiza as consciências em comunicação, não será possível a superposição dos homens aos homens.

Desse modo, desverticalizar a relação entre educador e educando é caminhar na direção da superação de uma educação enraizada na perspectiva técnica. A problematização e a dialogicidade são alguns dos princípios defendidos por Paulo Freire (Lambach et al., 2018), princípios esses que corroboram a ideia de horizontalidade nas relações nos processos educativos, pois “na teoria dialógica freireana, os sujeitos se encontram para conhecer e transformar o mundo em colaboração” (Oliveira, 2017, p. 232). Se concordamos que a pesquisa é um ato de conhecer e de aprender a conhecer e, por isso, é formadora, é necessário que pensemos nas relações entre os sujeitos e instituições enquanto conhecem, aprendem e transformam.

Mesmo que, inicialmente, as obras de Paulo Freire não tratassem explicitamente da formação de professores, elas carregam em si uma concepção de educação coerente com aquela defendida neste ensaio, nos oferecendo elementos para pensar o ESI - um ato educativo quando se pensa na formação de professores - de uma maneira também coerente com estes mesmos princípios. A problematização e a dialogicidade na perspectiva freireana podem fornecer balizas interessantes se pretendemos uma formação crítica e uma relação mais horizontal entre escola, universidade e seus indivíduos no decorrer de um ESI.

Sales (2014), tratando da formação de professores na perspectiva freireana, chama a atenção para o risco de que esses conceitos e princípios tornem-se discurso sem concretizações ou mudanças no contexto da ação de alunos e professores. Para tanto, argumenta que é importante que os futuros docentes vivenciem tais princípios durante a formação, para que esta possa, de fato, ser mais profícua na perspectiva de educação que se vem defendendo neste ensaio. Segundo a autora, desenvolver experiências nessa perspectiva durante a formação inicial também se caracteriza como um desafio para os formadores. Portanto, é muito mais com o intuito de fomentar reflexões do que de encontrar uma solução que buscaremos sistematizar diretrizes para a organização de um ESI que busque consonância com esses princípios no contexto da formação inicial de professores.

Como já argumentado, uma formação crítica e que vise a superação da ideia de dissociação entre teoria e prática deve ser coerente com uma noção de pesquisa que transcenda os métodos empiristas e ao mesmo tempo que promova uma relação mais horizontal entre escola e universidade - duas instituições essenciais no processo - e, até mesmo, entre professor orientador, professor supervisor, estagiários, alunos e, por que não, comunidade escolar.

Apresentaremos uma proposta de organização de um ESI, tomando por base os princípios freireanos sistematizados pela dinâmica dos Três Momentos Pedagógicos (3MP) como estruturante de currículos, configuração que incorpora os fundamentos do processo investigativo proposto por Freire (1987) para o trabalho com os temas geradores (Delizoicov et al., 2009; Muenchen & Delizoicov, 2012).

Princípios freireanos e os 3MP: articulando possibilidades para um ESI transformador

A dinâmica didático-pedagógica dos 3MP surge no contexto da transposição dos princípios freireanos para a educação formal, sendo inicialmente proposta por Demétrio Delizoicov em sua dissertação de mestrado (Muenchen, 2010). Fundamentada na perspectiva da abordagem temática (Delizoicov et al., 2009), tal dinâmica é bastante difundida na área de Educação em Ciências como organizadora das atividades na sala de aula e consiste em três momentos distintos: a Problematização Inicial, em que são apresentadas e problematizadas junto aos estudantes situações reais que eles conhecem e presenciam; a Organização do Conhecimento, que contempla a abordagem sistemática dos conhecimentos necessários à compreensão dos temas e situações iniciais; e, por fim, a Aplicação do Conhecimento, momento em que o conhecimento que vem sendo construído é sistematicamente abordado para a compreensão das situações iniciais e de outras que possam ser compreendidas com aqueles mesmos conhecimentos.

Sem aprofundar as especificidades e possíveis contribuições dos 3MP na organização das atividades didático-pedagógicas, é importante esclarecer que essa dinâmica transcende as questões metodológicas e pode ser utilizada em diversos contextos, destacando-se como organizadora de programas de ensino e estruturante curricular. A exemplo, a dinâmica dos 3MP foi utilizada como estruturante de programas e currículos em projetos nos quais seus propositores estavam envolvidos, como nos projetos “Ensino de Ciências a Partir de Problemas da Comunidade” - que ocorreu a partir de 1984, no Rio Grande do Norte - e “Interdisciplinaridade via Tema Gerador” - desenvolvido na cidade de São Paulo, entre os anos de 1989 e 1992, quando Paulo Freire foi secretário da educação desta capital (Muenchen, 2010). É partindo dos 3MP como estruturante curricular que pretendemos explorar uma proposição para o campo do ESI.

Pela própria origem na transposição da concepção de Paulo Freire para a educação formal e pelo contexto de sua proposição, os 3MP incorporam os princípios da dialogicidade e da problematização daquele autor, principalmente se desenvolvidos em bases dialógicas e a partir da realidade dos indivíduos (Muenchen, 2010; Giacomini, 2014). Quando utilizados como estruturante de currículo, os 3MP assumem a seguinte configuração:

Estudo da Realidade (ER): A comunidade escolar em conjunto com uma equipe de apoio investiga as situações culturais, políticas e sociais mais significativas na realidade local da escola, organizando um conjunto de informações preliminares. Essas informações são categorizadas - ou codificadas - num processo coletivo e interdisciplinar, buscando uma visão abrangente da realidade. A partir de um consenso sobre as situações significativas, define-se um tema gerador que norteará a construção do currículo.

Organização do Conhecimento (OC): A partir dos dados construídos no ER e de um trabalho coletivo, os professores de cada disciplina definem as questões geradoras, que, por sua vez, devem nortear os conteúdos específicos a serem ensinados por área disciplinar.

Aplicação do Conhecimento (AC): Terceiro e último momento pedagógico na construção do currículo, trata-se tanto da implementação das atividades programadas em sala de aula, quanto da própria avaliação do programa, onde os professores planejam, também, atividades avaliativas coerentes com a construção do conhecimento durante o desenvolvimento das atividades na sala de aula (Muenchen, 2010; Muenchen & Delizoicov, 2012).

A particularidade desses momentos para a proposição que buscamos construir para o ESI é a inclusão de uma investigação essencialmente colaborativa e coerente com uma formação crítica de professores, além de propiciar que a colaboração entre instituições e sujeitos ocorra mediatizada pela realidade concreta que os cerca. A partir da reflexão crítica sobre essa realidade é que teoria e prática se articulam, se refazem e transformam na ação dos sujeitos e na relação desverticalizada entre as instituições.

Essa ideia converge para a concepção da práxis no contexto formativo (Pimenta & Lima, 2006) em concordância com a proposição de Freire (1987), que coloca a práxis como a essência para superar a contradição opressor-oprimido, já que, também segundo o autor, a práxis “[…] é reflexão e ação dos homens sobre o mundo para transformá-lo” (Freire, 1987, p. 25). Se até aqui houve coerência, corroborando a ideia de que os argumentos de que lançamos mão e os princípios que procuramos defender podem oferecer contribuições para o estágio de docência, sugerimos para cada momento pedagógico uma proposta sobre a qual temos refletido no contexto do ESI.

1- Estudo da realidade (ER) - em parceria com os professores supervisores e orientadores, os estagiários iniciam o processo investigativo junto ao corpo escolar e a comunidade na qual a escola está inserida. Nessa etapa, levantam-se possíveis problemáticas do contexto escolar e/ou da própria comunidade. Informações obtidas por meio de entrevistas, conversas informais, questionário, análise de infraestrutura, entre outros instrumentos adequados à realidade local, são organizados pelo grupo de investigação. Os resultados dessa etapa oferecem subsídio para as discussões realizadas na universidade e na escola básica. A partir das discussões realizadas em cada instituição - onde o estagiário no seu processo formativo poderá transitar num movimento dialógico e crítico - definem-se os princípios norteadores iniciais, que dialogam com as necessidades e potencialidades das mesmas (interesses formativos e sociais, disponibilidade de tempo e espaço, recursos e aspirações). Com os princípios norteadores específicos de cada instituição definidos a partir da problematização da realidade investigada - que já contempla um processo dialógico e, portanto, desverticalizado -, escola e universidade, representadas pelos sujeitos envolvidos, reúnem-se para organizar uma gama de princípios gerais que atendam as especificidades das instituições para a realização do ESI. Considerando os princípios gerais e os elementos apreendidos na investigação inicial, define-se a situação significativa - a exemplo do tema gerador freireano (Freire, 1987) - a partir da qual se desdobrará o segundo e próximo momento pedagógico. Destaca-se que, com as especificidades da instituição, encontram-se as especificidades de seus sujeitos, que fazem a “voz do diálogo” a partir da análise e problematização dos resultados da investigação inicial. A relação investigativa aqui já não é apenas sujeito-objeto, mas sim, sujeitos cognoscentes investigando uma realidade que passa a lhes ser comum, e que pela ação crítica nessa realidade constroem o objeto cognoscível sobre o qual atuam.

2– Organização do conhecimento (OC) - Este é o momento em que estagiários, professores supervisores e orientadores (estes dois últimos na condição de especialistas) planejam a continuidade da investigação e definem os problemas de pesquisa que nortearão as práticas educativo-investigativas de cada estagiário. As problemáticas investigadas são desdobramentos da situação significativa definida na primeira etapa, de forma que o planejamento da investigação já não ocorre alheio às problemáticas locais, que podem ser objeto direto da atividade de pesquisa, ou servir como balizas para as ações que se pretenda durante o processo. A presença participante do estagiário nas decisões desta etapa oferece maiores possibilidades de engajamento do mesmo nas atividades propostas. Entretanto, aqui devem estar explícitos na programação os interesses formativos, no que diz respeito às instituições representadas pelos formadores (aqui incluídos os professores supervisores), os interesses da escola básica na formação dos seus próprios alunos e do corpo escolar como um todo. As atividades educativo-investigativas podem contemplar ações formativas com a comunidade desde a preparação e desenvolvimento de aulas disciplinares ou interdisciplinares, ações em contra turno, turmas especiais, ações com a comunidade local, entre outras. A investigação nessa proposta de ESI não se restringe às situações da prática de sala de aula. Compreende-se a atuação docente como atividade social historicamente localizada, concepção que se reflete nas problemáticas que balizam a investigação. É possível que várias atividades se articulem em um mesmo processo. A forma de orientação quanto à continuidade do processo investigativo, conduzida e compartilhada entre professores orientadores e supervisores, também é definida nessa etapa.

3– Aplicação do conhecimento (AC) - Aqui, o planejamento definido nos momentos anteriores é desenvolvido na/com a escola e de maneira mais ou menos explícita - conforme definiu-se no segundo momento - na/com a comunidade. Os 3MP, como dinâmica didático-pedagógica organizadora das atividades de ensino-aprendizagem, podem ser utilizados pelos estagiários de forma a potencializar maiores possibilidades de que os princípios coletivos estabelecidos no primeiro momento permaneçam no desenvolvimento das atividades educativo-investigativas, além, é claro, daqueles princípios fundamentais que sustentam a construção desta proposta. Nesta última etapa, complementa-se a produção de dados empíricos para o processo investigativo que teve início com o Estudo da Realidade. Esse terceiro momento é também o último na organização do ESI e demanda uma devolutiva mais sistematizada do processo realizado, tanto à comunidade, à escola, quanto à universidade. Ao final desta etapa, os diversos problemas de pesquisa investigados pelos estagiários são rearticulados num processo coletivo de reflexão que reúne inicialmente os professores orientadores da universidade, os professores supervisores da escola básica e os estagiários. A partir dos resultados encontrados em cada investigação chega-se a um resultado geral para a situação significativa definida na primeira etapa. Este resultado poderá ser mais sistematicamente trabalhado com a comunidade escolar. Essa devolutiva deve ser mais sistematizada do que aquelas que podem e devem ocorrer durante o ESI e pode ser elaborada das mais diferentes maneiras, de acordo com o desenvolvimento do próprio processo formativo. Além da tradicional produção de artigos e relatórios, há outras formas de sistematizar e comunicar um processo formativo investigativo, como, por exemplo, em formato de vídeo, criação de materiais digitais ou físicos, apresentações, ações inclusivas, dentre outras. Após todo o trabalho com/na escola, incluindo a reflexão/ação a partir da síntese dos resultados das investigações, a etapa de aplicação do conhecimento encerra com o estagiário concluindo seu processo educativo-investigativo no estágio supervisionado.

Na perspectiva da proposta esboçada, universidade e escola encontram-se numa relação horizontalizada, onde as particularidades, necessidades, conhecimentos e potencialidades de ambas as instituições e seus sujeitos são permeadas pela problematização dialógica na constituição do ESI. A estruturação das atividades educativo-investigativas a serem realizadas surge no contexto colaborativo das instituições e sujeitos envolvidos, sempre mediatizados pela realidade da comunidade escolar, culminando na produção de conhecimento a partir da relação orgânica entre prática e teoria, mediante uma problematização crítica da realidade experimentada à luz da teoria. Nessa relação, não apenas a universidade produz conhecimento, mas também a escola básica com seus sujeitos, sendo que na própria relação dialógica entre as instituições, pode-se construir um conhecimento genuíno e que se aproxime com maior atilamento das situações investigadas.

No bojo de tal proposta, ocorre uma investigação, reflexão e ação que se faz sobre a própria prática, uma vez que a prática agora é elemento indissociado da teoria e da problematização da realidade na qual a escola, que abriu as portas para contribuir com a formação do estagiário, estava inserida. A reflexão se faz crítica, contemplando um contexto mais amplo, que foi conhecido mediante a práxis e permeando conjunturas macro e micro. Com base nos momentos pedagógicos, sistematizamos um processo formativo desafiador e, por isso, transformador.

Considerações finais

O estágio como pesquisa pode ser uma estratégia e uma concepção valiosa para a formação dos futuros professores, pois possibilita de maneira mais profícua que a produção de conhecimento seja considerada um aspecto constitutivo do ensinar e, portanto, dos processos formativos na docência (Garcia, 2012). Carrega o potencial de culminar na superação gradual da desarticulação entre teoria e prática na formação inicial de professores, uma vez que se estrutura em um processo investigativo. Contudo, não é certa a articulação entre tais dimensões e muito menos está garantida a superação da dissociabilidade entre elas no decorrer de um processo de ESI. Para argumentar nesse sentido, lançamos mão de elementos que, esperamos, tenham, em alguma medida, contribuído para problematizar que a própria concepção de pesquisa não é consenso e que o entendimento e a posição de defesa desta ou daquela concepção podem implicar em maior ou menor possibilidade de articulação entre teoria e prática.

Buscando coerência com as noções que permeiam a pesquisa participativa, compreendida como um modelo de pesquisa ação baseado nas ideias de Paulo Freire (Diniz-Pereira, 2011), esboçamos uma proposta de organização para um ESI com base na dinâmica dos 3MP que sistematiza no processo de investigação temática da estruturação curricular, os princípios defendidos por Freire (1987) (Muenchen, 2010; Muenchen & Delizoicov, 2012). Tais princípios imbricados, portanto, na atividade educativa-investigativa durante o ESI, mostram-se coerentes com a concepção de educação que defendemos e com a perspectiva crítica de formação docente, que emerge quase como uma necessidade, um caminho e uma esperança em contrapartida à ainda hegemônica concepção técnica de formação e ensino-aprendizagem.

A escola, em suas relações, se apresenta como um campo rico para a pesquisa, por ser um vasto campo de investigação, mas também pelo potencial de produzir conhecimentos a partir dessas relações e seus sujeitos. Conforme argumentado por Garcia (2012), os elementos constitutivos da prática de ensino podem ser um foco privilegiado das pesquisas, inclusive nas possibilidades que oferecem para a relação entre a universidade, a escola e seus sujeitos.

O ESI ocorrerá no contexto de uma escola historicamente definida, socialmente organizada. Acontecerá na relação com sujeitos imersos em culturas muitas vezes distintas. O estagiário encontrará em seu processo investigativo uma realidade concretizada, mas nem por isso estática ou impossível de ser modificada. Considerar esse concreto nas tomadas de decisões e colocar a atenção nas problemáticas que emergem dessa realidade, trabalhando em parceria e colaborativamente com a instituição escolar e seus sujeitos, é não impor uma realidade teórica a uma realidade concreta que se desconhece; é assumir na concepção e na ação que teoria e prática são indissociáveis na produção do conhecimento e na transformação da realidade a partir de uma perspectiva crítico-reflexiva.

A proposta aqui esboçada, uma possibilidade dentre outras existentes, visou sistematizar, por meio da dinâmica dos 3MP, alguns princípios de uma educação crítica no ESI, cuja essência buscamos defender e sustentar neste ensaio. É importante frisar que, em uma proposta como essa, são imprescindíveis condições dignas para o trabalho docente, tanto do orientador da universidade como do supervisor na escola básica, além de condições gerais das instituições e dos trabalhadores da educação como um todo. Depende muitas vezes de fatores alheios a vontade dos sujeitos envolvidos, diga-se até, da própria condição dos estagiários dos cursos de licenciatura, que não poucas vezes, são trabalhadores que estudam - ou estudantes trabalhadores - com todos os limites e possibilidades que esta condição lhes impõe. Que se faça uma (ou várias) crítica sobre a utopia dessa proposição. Será válida! Porém quanto a isso, a posição que não se pode abandonar é a de que princípios como a problematização, o diálogo, a horizontalidade e a colaboratividade, não apenas são necessários para uma articulação entre teoria e prática, quanto fundantes da própria práxis, que parece ser essência de um movimento formador genuinamente crítico e com poder de transformar.

Referências

Brasil. (2008). Lei 11.788 de 25 de setembro de 2008. Presidência da República. Casa Civil. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11788.htmLinks ]

Centro de Articulação das Licenciaturas da Universidade Federal do Paraná (Ceali UFPR). (2020, outubro 20). A pesquisa com/sobre/na escola e o professor pesquisador: mediações desde o estágio [vídeo]. YouTube. https://www.youtube.com/watch?v=ZHHDKZ5vPmYLinks ]

Cyrino, M., & Souza Neto, S. de. (2017). Parceria universidade e escola no estágio curricular: um processo em constituição. Revista Diálogo Educacional, 17(52), 661-682. http://doi.org/10.7213/1981-416X.17.052.AO07Links ]

Delizoicov, D., Angotti, J. A., & Pernambuco, M. M. (2009). Ensino de Ciências: fundamentos e métodos (3a ed.). Cortez. [ Links ]

Diniz-Pereira, J. E. (2011). A pesquisa dos educadores como estratégia para construção de modelos críticos de formação docente. Em J. E. Diniz-Pereira, & K. M. Zeichner (Orgs.). A pesquisa na formação e no trabalho docente (pp. 11-37). Autêntica. [ Links ]

Foerste, E., & Lüdke, M. (2003). Avaliando experiências concretas de parceria na formação de professores. Avaliação-Rede de Avaliação Institucional da Educação Superior, 8(4), 163-182. http://periodicos.uniso.br/ojs/index.php/avaliacao/article/view/1251/1241Links ]

Freire, P. (1987). Pedagogia do oprimido (17a ed.). Paz e Terra. [ Links ]

Galindo, M. A. (2014). O trabalho colaborativo entre instituições como possibilidade de superação de algumas controvérsias. Em S. Camargo, L. G. R. Genovese, J. M. H. F. Drummond, G. R. P. C. Queiroz, Y. E. Nicot, & S. S. Nascimento (Orgs.). Controvérsias na pesquisa em ensino de física (pp. 89-101). Livraria da Física. [ Links ]

Garcia, T. M. F. B. (2012). Ensino e pesquisa em ensino: espaços da produção docente. Em N. M. D. Garcia, I. Higa, E. Zimmermann, C. C. Silva, & A. F. P. Martins (Orgs.). A pesquisa em Ensino de Física e a sala de aula: articulações necessárias (pp. 239-259). Livraria da Física. [ Links ]

Giacomini, A. (2014). Intervenções curriculares na perspectiva da Abordagem Temática: avanços alcançados por professores de uma escola pública estadual do RS. [Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Santa Maria]. Repositório Institucional da UFSM. https://repositorio.ufsm.br/handle/1/6678Links ]

Illeris, K. (2013). Introdução. Em K. Illeris (Org.). Teorias contemporâneas da aprendizagem (pp. 7-13). Penso. [ Links ]

Lambach, M., Silva, A. F. G. da, & Marques, C. A. (2018). Avaliação de Processos para a Formação Docente fundamentados na perspectiva dialógico-problematizadora: categorias de análise. Ensaio: Avaliação e Políticas Públicas em Educação, 26(100), 1128-1150. https://doi.org/10.1590/s0104-40362018002601105Links ]

López, T. I. S., & Nardi, R. (2017). Um panorama da pesquisa sobre o estágio curricular supervisionado relatada em eventos acadêmicos nacionais. Anais do XI ENPEC - Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil. http://www.abrapecnet.org.br/enpec/xi-enpec/anais/resumos/R0498-1.pdfLinks ]

Muenchen, C. (2010). A disseminação dos três momentos pedagógicos: um estudo sobre práticas docentes na região de Santa Maria/RS. [Tese de doutorado, Universidade Federal de Santa Catarina]. Repositório Institucional da UFSC. https://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/93822Links ]

Muenchen, C., & Delizoicov, D. (2012). A construção de um processo didático-pedagógico dialógico: aspectos epistemológicos. Ensaio Pesquisa em Educação em Ciências, 14(3), 199-215. https://doi.org/10.1590/1983-21172012140313Links ]

Oliveira, I. A. de. (2017). A dialogicidade na educação de Paulo Freire e na prática do ensino de filosofia com crianças. Movimento - Revista de Educação, 7, 228-253. https://periodicos.uff.br/revistamovimento/article/view/32633/18768Links ]

Pagliarin, L. L. P., & Silva, I. M. M. (2019). A construção da aprendizagem da docência: Ouvindo licenciandas em estágio curricular supervisionado. Linhas Críticas, 25, e24016. https://doi.org/10.26512/lc.v25.2019.24016Links ]

Pimenta, S. G. (2012). O estágio na formação de professores: unidade teoria e prática? (11a ed.). Cortez. [ Links ]

Pimenta, S. G., & Lima, M. S. L. (2006). Estágio e docência: diferentes concepções. Poiésis Pedagógica, 3(4), 5-24. https://doi.org/10.5216/rpp.v3i3e4.10542Links ]

Rabelo, L. O., & Abib, M. L. V. S. (2018). Projeto de investigação à docência no estágio supervisionado da Licenciatura em Física. Anais do XVII EPEF - Encontro de Pesquisa em Ensino de Física, Campos do Jordão, São Paulo, Brasil. https://sec.sbfisica.org.br/eventos/epef/xvii/programa/pesqAutor.aspLinks ]

Sales, N. L. L. (2014). Problematizando o ensino de física moderna e contemporânea na formação continuada de professores: uma análise das contribuições dos três momentos pedagógicos na construção da autonomia docente. [Tese de doutorado, Universidade de São Paulo]. Repositório Institucional da USP. https://doi.org/10.11606/T.81.2014.tde-03122014-110755Links ]

[1]O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPQ, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - Brasil (nº do processo: 441093/2019-1), no âmbito do Programa Ciência na Escola, Edital MCTIC/CNPq Nº 05/2019. A primeira autora é bolsista do CNPq pelo mesmo programa (nº do processo: 441093/2019-1).

[2]De acordo com as autoras, o termo foi inicialmente cunhado pelo poder público num movimento de crítica à academia.

[3]Neste texto, adotamos a terminologia presente na Lei 11.788/2008 que dispõe sobre o estágio de estudantes e refere-se ao profissional da parte concedente como supervisor e ao professor da instituição de ensino como orientador (Brasil, 2008).

Recebido: 03 de Maio de 2021; Aceito: 30 de Agosto de 2021

Creative Commons License Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons CC BY 4.0.