SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.27Investigative Supervised Internship: overcoming the disarticulation between theory and practice?From the uncertainties in the pandemic to the challenges of the present time author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Share


Linhas Críticas

Print version ISSN 1516-4896On-line version ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.27  Brasília  2021  Epub Oct 26, 2021

https://doi.org/10.26512/lc27202138933 

Ensaios

Da impossibilidade do flanar à potencialidade do vadiar: etnografia e Currículo Cultural

De la imposibilidad de deambular al potencial del haraganear: etnografía y Currículo Cultural

The impossibility of wandering to potencial of loafing: ethnography and Cultural Curriculum

Mário Luiz Ferrari Nunes1 
http://orcid.org/0000-0003-0680-5777

Barbara Cristina Aparecida dos Santos2 
http://orcid.org/0000-0002-8671-7875

1Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (2011). Professor da Faculdade de Educação Física da Universidade Estadual de Campinas. É líder do grupo de pesquisa Transgressão.

2Especialista em Docência no Ensino Superior pela Universidade Cruzeiro do Sul (2020). Mestranda em Educação Física pela Universidade Estadual de Campinas. Membro do grupo de pesquisa Trangressão.


Resumo

Nos últimos anos, a etnografia afirmou-se como ferramenta importante para as pesquisas em educação e a figura do flâneur, apresentada pelo poeta Charles Baudelaire, destacou-se como metáfora para o etnógrafo. Por entendermos que esta figura não se coaduna com nosso contexto, neste ensaio propomos a vadiagem enquanto representação para a postura etnográfica das pesquisas acadêmicas em educação, em especial para o Currículo Cultural da Educação Física, por este tomá-la como parte constitutiva da ação pedagógica. Advogamos que as figuras do vadio e da vadia estão de acordo com os desafios sociais, políticos e culturais que enfrentam a educação (física) destes tempos.

Palavras-chave Etnografia; Educação Física; Vadiagem

Resumen

En los últimos años, la etnografía se ha consolidado como una importante herramienta de investigación en educación y la figura del flâneur, presentada por el poeta Charles Baudelaire, se ha destacado como metáfora del etnógrafo. En este ensayo, proponemos la vagancia como representación de la postura etnográfica de la investigación académica en educación, especialmente para el Currículo Cultural de la Educación Física, ya que la toma como parte constitutiva de la acción pedagógica. Abogamos por que las figuras de la callejera y la vadia estén de acuerdo con los desafíos sociales, políticos y culturales que enfrenta la educación (física) de estos tiempos.

Palabras clave Etnografía; Educación Física; Vagancia

Abstract

In recent years, the ethnography was stated as an important tool for educational analysis and the figure of flâneur, presented by the poet Charles Baudelaire, stood out as a metaphor for the ethnographer. So, in this essay, we propose loitering as representation for the ethnographic posture in academic research in education, specially, for the Cultural Curriculum of Physical Education, by taking it as part of pedagogical practice. We advocate that the figures of loafer are in agreement with the social, political and cultural challenges facing the (physical) education of these times.

Keywords Ethnography; Physical Education; Loitering

O conceito de etnografia

A etnografia é uma opção metodológica bastante utilizada nas pesquisas científicas. São muitos os livros que a descrevem como atitude a ser adotada na investigação qualitativa, e vários deles apontam as mudanças pelas quais a concepção da pesquisa etnográfica passou durante as últimas décadas, como é possível destacar nos escritos de Flick (2009), Denzin e Lincoln (2006) e Ludke e André (2013).

Em se tratando das transformações dos usos da etnografia nas pesquisas acadêmicas, Mattos (2011) evidencia que foi com base na Antropologia que as pesquisas etnográficas inicialmente foram pautadas. A autora destaca os primeiros feitos a partir de Bronislaw Malinowski (1884-1942), considerado um dos pais da etnografia, antropólogo que se dedicou a pesquisar e descrever o modo como trabalhou durante longo tempo e colheu seus dados no contato com outras culturas.

Como mostram as autoras Ludke e André (2013), a pesquisa do tipo etnográfica foi primeiramente concebida como a observação de determinada tribo ou grupo social para que fosse possível aprender mais sobre ele e sua cultura, mediante a análise dos símbolos, rituais, valores e práticas compartilhadas, reconstituindo ou informando os modos de pensar e viver deste grupo. Para as autoras, o etnógrafo deve descrever tão cuidadosamente os significados do grupo cultural analisado, de modo que quem leia a pesquisa, se sinta parte do grupo objeto de estudo.

Esta posição também é discutida por Mattos (2011). Segundo a autora, a observação participante tem de ser imprescindível para que o pesquisador conheça a cultura do outro com rigor e profundidade. Desta forma, a etnografia ficou entendida como uma pesquisa de extensa duração, pois, o pesquisador deveria permanecer por longo tempo convivendo com o grupo estudado, participando como membro daquela cultura.

Neste sentido, etnografar diz respeito à descrição científica dos modos de ser de um povo, de sua cultura, seus costumes, e esta descrição é orientada pelas observações feitas pelo pesquisador. Por um lado, os primeiros registros de descrição das civilizações consideradas primitivas foram feitos por missionários, exploradores, a partir da visão dos dominadores, o que conferiu uma suspeita por parte dos estudos contemporâneos, já que as descrições foram consideradas tendenciosas por serem feitas segundo uma perspectiva europeia. Mais tarde, por outro lado, a etnografia superou a busca por povos considerados primitivos ou subdesenvolvidos, desvinculou-se da ideia de descrição da cultura do outro como forma de captá-lo, e assim conseguiu expressar novas versões de si enquanto investigação (Vidich & Lyman, 2006).

Os autores ainda afirmam que a etnografia contemporânea permitiu uma ruptura com as concepções do mundo moderno, como a teoria do progresso, a superioridade moral, a classificação dos grupos considerados primitivos ou tribos consideradas exóticas, buscando hierarquizá-los. A etnografia passou a ser vista como uma orientação e uma prática, o etnógrafo pode ser considerado um estudioso ou um observador participante que faz densas descrições e análises. Com esta abertura, a etnografia foi utilizada por diferentes áreas do conhecimento.

Além da visão supracitada, o estudo etnográfico é legitimado na área da Educação porque as investigações no campo também contam com observação e descrição das relações em sala de aula. Assim, é destacada a presença do pesquisador em momentos específicos no interior da cultura escolar e acadêmica, visto que os moldes não se assemelham à investigação de grupos considerados exóticos. Na Educação, a etnografia conta com a presença restrita do pesquisador nas aulas/escola, o que caracteriza uma etnografia recontextualizada (Ludke & André, 2013).

Vidich e Lyman (2006) ampliam esta análise. Cientes desta limitação, ressaltam que o processo de coleta de dados na etnografia nunca é descrito em sua totalidade. Os autores afirmam que a experiência da observação em seu dia a dia é impossível de ser capturada. Advogam que a solução para os problemas culturais e sociológicos observados é prioritária em detrimento da ênfase que era dada ao relato do método. Defendem que a descrição do método é um relato retrospectivo, realizado ao término da investigação. Isto indica que qualquer estudo etnográfico se trata da reconstrução da realidade investigada e que será impossível reproduzir de fato o que ocorreu no campo da investigação. Mais ainda, a realidade descrita é mediada pela história de vida que o pesquisador leva para dentro do estudo.

Desta forma, as descobertas geradas pelo método são apenas parte da realidade peculiar de cada observador, isto implica a prerrogativa de que a observação dos fenômenos está condicionada às visões científicas, às perspectivas teóricas existentes, às condições de observação e às do pesquisador. A etnografia, além de ajudar na compreensão dos mecanismos dos processos sociais e dos sujeitos, também possui um compromisso com a compreensão do eu em função da relação que o pesquisador estabelece com o observador (Vidich & Lyman, 2006).

Segundo Ludke e André (2013), foi na década de 1970 que a etnografia passou a ser utilizada como método nas pesquisas em educação, não mais limitada pelo viés da longa duração e observação de grupos culturais específicos. Desde então, muitas foram as contribuições feitas com base na postura etnográfica.

Nos anos de 1980, a etnografia ficou ainda mais importante para as pesquisas na área, com a escrita de dissertações e teses cujo enfoque estava nas relações estabelecidas dentro das salas de aula. Foi assim que a etnografia ganhou papel de destaque nos estudos feitos sobre a educação (André, 1997).

Não por menos, no campo da Educação Física, ela ganhou relevância na década seguinte, principalmente após os consagrados estudos de Daolio (1995) e da revisão sistemática e proposições elaboradas por Molina Neto (1999), que deram forças para a inserção de estudos de campo e com enfoque antropológico na Educação Física. No entanto, cabe destacar que, recentemente, os estudos de Salomão (2017) acerca dos usos da etnografia na área da Educação Física indicaram que apesar da descrição do método em grande parte das pesquisas da área afirmar o uso da etnografia, elas passam ao largo de sê-la. Como coloca Magnani (2012, p. 22):

[…] sinônimo de observação participante, confundida em outros, seja como pesquisa-ação, seja como pesquisa participante, a etnografia foi transformada num verdadeiro passe-partout sempre quando houve algum tipo de envolvimento com os pesquisadores, e na maioria dos casos terminou servindo antes como um rótulo do que como efetivo instrumento de trabalho.

Visto o entendimento de como a etnografia passou a ser utilizada no campo da Educação, considerando a utilização de diferentes modos para este tipo de pesquisa, levando em conta que a ela também foi atribuída a figura do flâneur como maneira de atuar no campo e diante das dificuldades apresentadas para que os estudos etnográficos pudessem ser realizados na Educação Física, este ensaio propõe uma ressignificação da postura etnográfica, rompendo com a figura do flâneur, já bastante divulgada, evidenciando seus limites e apostando em uma postura etnográfica com base na vadiagem e suas potencialidades para os pesquisadores e docentes do Currículo Cultural (CC) da Educação Física.

As (im)possibilidades do flanar nas pesquisas etnográficas

Com as transformações já citadas sobre a etnografia, a figura do flâneur pôde ser relacionada a este tipo de pesquisa. Então, é possível citar, como exemplo, as muitas pesquisas no campo da Comunicação que adotaram a etnografia com base no flâneur, como se pode ressaltar com Massagli (2008), Nunes (2015), Nunes e Bin (2016); e na Educação Física, como é o caso de Nunes e Zambon (2018).

É certo que as pesquisas etnográficas aderiram ao flanar enquanto atitude para ser possível a aproximação com o objeto a ser estudado. Não distante disto, o flanar como parte da etnografia permitiu que a observação ganhasse uma significativa relevância e se relacionasse com a figura do flâneur.

A figura que realiza o flanar é descrita como um homem que caminha pela cidade, sem destino programado e sem compromissos prescritos, apenas pelo devir de aproveitar a vida urbana. Seus passos traçam a civilização e a vida na cidade acontece, então, segundo este mesmo homem despreocupado que caminha. Embora o termo flâneur surgisse no meio do século XVII (Monnet, 2009), assumiu realce com o poeta francês, Charles Baudelaire no século XIX, que se debruçou em escrever sobre esta figura boêmia e livre em busca de significados para a vida na cidade.

Na sua obra O pintor da vida moderna, Baudelaire (2010) reverencia a figura do flâneur a partir de duas inspirações: Constantyn Guys, pintor a quem se dá o título à obra supracitada por seus quadros representarem a vida na modernidade; e Edgar Allan Poe, autor que instaurou a personagem flâneur, sem nomeá-la, em seu conto Um homem na multidão, traduzido para o francês pelo próprio Charles Baudelaire. Na interpretação possível de ser feita do texto mencionado de Poe, o flâneur não poderia ser lido, dele não se extraíam informações porque era justamente ele quem buscava ler e vivenciar os muitos significados que poderiam ser encontrados na vida da modernidade.

A esta interpretação soma-se os escritos de Walter Benjamin. Para o autor, a personagem de Baudelaire não apenas aproveitava a modernidade, mas tentava vivenciar as transformações que nela estavam acontecendo. Com o intuito de compreender as mudanças na sociedade, Benjamin se referiu a esta figura e mostrou que o flâneur estava no limiar entre a vida burguesa e a cidade nova. Por isto, para o filósofo alemão, o lugar deste homem é a multidão, local por excelência onde não pode ser lido, em contrapartida, observa o que acontece sem ser alvo de grandes olhares (Silva & Lima, 2014).

Foi a relevância da observação utilizada como ferramenta das pesquisas etnográficas que permitiu a sua relação com o flâneur. Para Mclaren (2000), embora o flâneur seja associado com Baudelaire e outros autores modernos, na etnografia profissional o flâneur se divide entre a estranheza de se encontrar no espaço com o popular e seu pertencimento ao âmbito acadêmico e suas regras duras. Na leitura que Mclaren faz, o etnógrafo como flâneur ocupa espaços proibitivos, realiza suas observações dentro e fora da relação acadêmica, na busca por ressignificar a etnografia de seu sentido literal e moderno, marcado pela rigidez.

No entanto, entendemos que este homem burguês europeu da modernidade não deve ser essencializado, sequer igualado às identidades que são assumidas pelos sujeitos brasileiros contemporâneos, nem mesmo tomado como referência, porque as condições de existência os distanciam. Esta afirmação parte da constatação de que a sociedade em que o flâneur foi descrito, o seu contexto histórico, político e econômico não é o mesmo da atual configuração histórica, política e econômica do Brasil. Não só isto, quando se remete a um determinado local e época, é necessário também compreender que a cultura e os modos de vida dos sujeitos que nela se construíram não se aproximam de outros costumes em muitos aspectos.

A modernidade anunciava transformações para a sociedade, entre elas destacam-se o domínio da razão, o conceito de universalidade, o positivismo, o determinismo e o iluminismo. Silva (2011) anuncia o surgimento da modernidade com a Renascença, seu desenvolvimento com o iluminismo e afirma o ideal moderno com base na ideia de racionalidade, progresso, funcionalidade e educação pautada na transmissão de conhecimentos ditos universais, e complementa com a definição de sujeito como aquele que se baseia na identidade, que lhe é própria e é unitário, no sentido de ter uma consciência que não admite contradições, assim como sua constituição enquanto sujeito.

O sujeito da modernidade se desenvolvia conforme a sua própria essência indivisível, os processos da vida moderna eram centrados no sujeito que detinha a razão. Já na sociedade contemporânea, o sujeito não é concebido como unidade, mas de forma fragmentada e descentrada. O sujeito não é entendido como o centro das relações e sua racionalidade não cria a sociedade da forma como ela se constitui. Entende-se que é pela linguagem que a realidade vai ser constituída, o que pressupõe a sua fabricação e a do próprio sujeito. O modo de significação para as coisas do mundo vai compor as relações sociais. É por meio dos jogos de saber e de poder que a realidade e as relações ganham significado. Há evidente distinção entre o sujeito moderno e o contemporâneo, muitas vezes denominado de pós-moderno (Silva, 2011). Mesmo que se considerasse o modelo social interativo, como explica Hall (2003), o descentramento do sujeito só acontece com o rompimento da modernidade ou, como propõe, com a sua crise[1].

Além disto, a contemporaneidade não é o século XIX. A realidade brasileira não pode ser igualada a Londres de Poe e a Paris de Baudelaire, muito menos à Europa do entre guerras de Benjamin. Há de se levar em consideração que a modernidade já deixou de ser atual e o século XXI traz novos desafios aos sujeitos que vivem nas cidades brasileiras, distintas em suas características geográficas e geopolíticas das cidades inglesas e francesas, bem como de todo o continente europeu. Enquanto o Brasil é um país tropical, uma sociedade com racismo estrutural, desigualdade social, Inglaterra e França contam com invernos rigorosos e são potências bélicas, econômicas e políticas na ordem mundial. Enquanto no nosso país as lutas visam superar os abismos sociais, as duas nações europeias lutam para se manter no topo da hierarquia da agenda imperialista.

Retomando, para Baudelaire (2010), o homem andava pela cidade, buscava, descobria, se encantava com a vida que a modernidade lhe proporcionava. Seu local, por excelência, era as ruas movimentadas e pavimentadas das metrópoles. Em meio à multidão é que o flâneur, este ser que caminhava em busca da urbanização, se sentia em casa. As ruas lhe davam segurança, prazer, era como se este homem tivesse sido constituído para a paisagem moderna que se instaurava na sociedade.

Para Baudelaire, embora o flanar fosse a prática de um sujeito anônimo, foi pensado como uma vivência relacionada estritamente à figura masculina, o homem na Paris do século XIX, palco de profundas transformações e urbanização distintas da sociedade contemporânea. A sociedade atual lida com os ditames do mercado, as transformações constantes dos modos de comunicação, o consumismo, a competição, a indiferença, a mercantilização do espaço público, as contradições políticas, as lutas sociais e por reconhecimento, a violência, entre outros problemas que se desenvolveram como efeito da própria modernidade.

Mais! O flâneur não foi concebido como figura feminina, e nem poderia ser por muitas razões. Foi o próprio processo de urbanização que marcou o planejamento arquitetônico das cidades modernas, delimitando-as em zonas distintas, delegando funções e possibilidades de atuação e circulação de grupos e pessoas diversas. No mesmo momento e correlato a este zoneamento, os papéis masculinos e femininos foram marcados, limitando as mulheres à esfera doméstica. O final do século XVIII marca a restrição da liberdade das mulheres e a designação de “donas de casa”, discurso sistematizado ao longo do século XIX (Monnet, 2009) e que ainda encontra eco nos dias de hoje. Como efeito, as mulheres estão sempre com seus compromissos delimitados, muitas são donas de casa com seus afazeres domésticos, as mães com a educação e cuidado para com a prole, as que optaram por uma carreira profissional estão envoltas com seus deveres laborais etc. Todas estas identidades de mulher ainda lutam por direitos. Seja pelos compromissos, seja pelo assédio ou violência nas ruas: à mulher não coube o flanar. O que dizer, então, com outras "formas" de ser sujeito: transgênero, crossdresser, andrógeno, idoso, quilombola e todas as infinitas possibilidades de ser que transgridem as imposições modernas ao ser sujeito.

Há um termo, flâneuse, feminino singular de flâneur, que diz respeito à mulher que ama o flanar. Mas, além de a expressão ser pouco utilizada em comparação com o flâneur, seu significado não parece adequado. Primeiro, porque para ser o feminino do homem que flana, haveria de se ter o direito à liberdade de caminhar pelas ruas da cidade à noite, sem preocupações e medos, o que não era permitido às mulheres do século XIX por conta dos rigores morais da época.

É fato, também, que esta possibilidade não acontece a contento em pleno século XXI pelos motivos anunciados. Enquanto ao homem coube o lugar tido como natural no contrato social, à mulher coube a luta por espaço, reconhecimento, voz, igualdade, enfim, a necessidade de lutar por direitos antes negados, uma vez que sequer eram vistas como sujeitos de direitos – condições sócio-históricas que afastam a mulher da possibilidade de flanar por livre e espontânea vontade. Para a conquista dos direitos femininos, muitas mulheres morreram, sofreram, foi preciso viver a resistência. Deixamos claro que não coadunamos com qualquer afirmação que deslegitime os direitos das mulheres, ou ainda, não permita a elas viver a experiência do desenraizamento e da liberdade de movimento que as grandes cidades promovem, tampouco consideramos os argumentos referentes à fragilidade ou algo similar.

Apesar de se ter anunciado diferentes pesquisas realizadas com base na postura etnográfica pautada no flâneur, flanar foi inicialmente pensado para a sociedade moderna europeia e mais precisamente para a figura masculina da época. Com a enunciação das impossibilidades nos argumentos já destrinchados, fica evidente a negação e o impasse do flâneur e da flâneuse para os pesquisadores etnógrafos destas terras, destes tempos. O que se pretende neste ensaio é apresentar a vadiagem como possibilidade de representação para as futuras pesquisas etnográficas.

A produção de uma etnografia vadia

A vadiagem, ora assumida como possibilidade, enquanto postura etnográfica para o Currículo Cultural da Educação Física (quiçá para outros campos), é tomada aqui como atitude crítica, no sentido dado por Foucault[2]. Instaura-se, também, como prática transgressora das formas dominantes que mobilizam a etnografia. Explica Foucault (2009a) que a transgressão não se refere a atos subversivos, tampouco é da ordem negativa. Transgredir é afirmar o limite a abrir-se para o ilimitado, relevando sua possibilidade de existência. A experiência do limite requer para tanto uma transgressão afirmativa. Na empreitada pós-estruturalista, Williams (2013) aponta o limite como positivo e a abertura para o novo, busca mudar o senso de verdade e suas postulações fixas. “Ele é a afirmação de um poder produtivo inexaurível de limites” (Williams, 2013, p. 17). Com base nos textos citados, compreendemos a transgressão em sua lógica positiva.

Como se sabe, o termo vadiar apresenta vários sinônimos, como vaguear, vagabundear; e, também muitos significados, como andar à toa, de um lado para o outro, sem se fixar; divertir-se com brincadeiras, jogos e passatempos, entre outros. O etnógrafo vadio não se prende ao lócus da pesquisa. Vagueia por ele. Pensa a partir dele, vadiando em outros espaços, textos e momentos, que impactam em uma autocompreensão sensível aos valores e condições da vida, dos lugares, dos outros, possibilitando uma escrita situada.

Na história da composição do Estado e da sociedade brasileira, o termo vadio ganhou notoriedade na passagem do século XVIII para o XIX. Tempos em que se estabeleceu a noção de ordem social, reduzida a três instâncias: a do governo, onde quem circulava pela cidade possuía direitos; a do trabalho, marcada por trabalhadores assalariados e escravizados; e a da desordem, formada por homens livres e pobres, muitas vezes classificados como vadios (Pechman, 2002).

Com a promulgação do Código Penal da República em 1980, muitas práticas produzidas pelos representantes da cultura afrodescendente, recém-libertos da escravidão, como as religiosas, cânticos, as rodas de capoeira, festas, entre outras, foram criminalizadas. A vadiagem foi vista como ameaça e, em sua decorrência, várias instituições correcionais foram estabelecidas. Em 1893, como exemplo, no governo de Floriano Peixoto, estabeleceu-se um Decreto (Brasil, 1893) que autorizou a criação de um estabelecimento prisional, na Ilha Grande, Rio de Janeiro, que por meio do trabalho visava à correção dos vadios, vagabundos e capoeiristas que fossem encontrados na Capital Federal. Esta instituição durou por dois anos. Em São Paulo, o processo também foi intenso mediante a criação do Instituto Disciplinar para menores, o Manicômio Judiciário, anexo ao Hospital do Juquery em Franco da Rocha, o Asilo dos Inválidos no bairro do Guapira e a Colônia Correcional na Ilha dos Porcos. Todas estas instituições se organizaram a partir da lógica de higienização do espaço público com a remoção dos indesejáveis, dos vadios (Teixeira et al., 2016). Fato ainda visível na sociedade brasileira como pode ser notado, principalmente na preparação para a realização dos megaeventos da Copa do Mundo (2014) e Jogos Olímpicos (2016).

Diante da expansão do higienismo e das formas de controle dos corpos da população afrodescendente, a vadiagem tornou-se contravenção a partir do Decreto-Lei n.º 3.688 de 1941 (Brasil, 1941). Apenas em 2004, o Congresso Nacional aprovou o Projeto de Lei n.º 4.668/2004 (Brasil, 2004), do então deputado José Eduardo Cardozo, que retirou a punição para vadiagem. Em seu relatório, argumentava que não se poderia punir aquele que já fora jogado à exclusão social.

Condenado a caminhar de um lado para o outro em busca de condições de sobrevivência, por não ser aceito ou se enquadrar nas condições exigidas, tampouco compor o exército de reserva dos postos de trabalho qualificado, ao vadio restava a instância da desordem. O vadio é próprio da cidade e a rua é o seu lugar. Em uma sociedade escravista, identifica-se facilmente quem tem o direito ao ócio e a circular pela cidade, e quem está ocioso, que por circular ao léu é considerado ameaça à ordem social. Por estar livre, o vadio não tem amor ao trabalho e, em contrapartida, tem amor às paixões.

Em uma sociedade escravista é imprescindível tanto a compulsão pelo trabalho, como a contenção das paixões (Pechman, 2002). Em uma sociedade capitalista esta condição é mais do que necessária. O vadio transgride o limite de si mesmo, pois, a cada dia torna-se outro para sobreviver às condições dadas; pratica a liberdade e escapa tanto da normatividade que lhe quer capturar, como dos discursos que tentam lhe impingir uma representação negativa e lhe fixa uma identidade. O vadio joga a capoeira nas praças, se senta ao relento nos bancos, brinca com o dominó nos bares, envolve-se em amores fugidios, anda ao léu, vê o mundo, inventa mundos. O vadio é a diferença que ameaça a identidade das coisas fixadas pela cultura.

Se o vadio se infunde um sentimento ambíguo de pavor, pela ameaça da sua presença e admiração pela sua liberdade, a vadia se insere em outra ordem discursiva, apesar de causar o mesmo sentimento, por representar a transgressão normativa. Ela diz respeito ao que é ou não ser mulher. Se o vadio é definido pelo valor do trabalho, a vadia é obra do machismo e do patriarcado. Vadia é a mulher da vida licenciosa, imoral, sem ser prostituta. É a que não respeita as normas, é sensual, que se comporta fora dos padrões impostos pela sociedade machista e patriarcal. A mulher vadia, ao contrário das mulheres de bem, da casa, está na rua, brinca o carnaval (Garcia & Sousa, 2015).

Recentemente, o movimento feminista rompeu com a fixidez da representação negativa da vadia. A vadia passou a ser aquela que é dona de seu corpo, atua e pratica a liberdade nos espaços delimitados pelos homens e, dentre outras ações contestadoras, luta para não ser vítima de violência e nega a naturalização de práticas de assédio moral e sexual. A vadia passou a estar nos bares, na orgia, nas arquibancadas e jogos de futebol, e também na sua casa, questionando a normatividade masculina. A vadia também é a diferença que desestabiliza a identidade.

Andar e sobreviver na cidade, na rua, faz com que a vadiagem permita outro olhar para a urbe (Pechman, 2009), promove uma estética dos marginalizados, das periferias, da negritude, das mulheres, das crianças, dos idosos, dos seres abjetos, dos sem-teto, dos sem-classificação, dos sem-nada, sem, no entanto, ser igual a ela mesma, mas repleta de singularidades, transgressão, diferença. Eis o foco do etnógrafo vadio. Eis a estética da sua existência.

Como prática etnográfica, a vadiagem contesta a presença do flâneur, do flanar como postura em moda nos estudos etnográficos atuais. E por quê? Como exposto, diferente de ser uma personagem da urbanização europeia e somente masculina, a vadiagem, ao contrário, é produto e realizada em nossas terras tanto pelos homens, quanto pelas mulheres ou por qualquer sujeito que queira desestabilizar as normas sociais, morais e, também, científicas[3].

É ameaça individual e coletiva à ordem dada, que a muitos oprime. Está presente na desordem das ruas, nos movimentos de contestação, como na Marcha das Vadias[4], ou nos movimentos artísticos, como no espetáculo musical “Fui feita pra vadiar” — realizado em 2019, em tributo às mulheres do samba. Está nas escolas, nos alunos vadios, nas alunas vadias e nas práticas de vadiagem que produzem formas de contestação, de resistência aos ditames dos excessos de governo que a escolarização muitas vezes insiste em promover.

Por viver “por um fio”, para sobreviver, o vadio e a vadia observam para experienciar a rua nos seus limites, identificar seus perigos e aberturas para a produção de outros mundos, por isso a sua atenção aos detalhes que quem apenas passa pela rua ou flana por ela não se atenta. Eis a condição do trabalho para a realização de uma atitude etnográfica vadia.

A aposta na atitude etnográfica vadia para o Currículo Cultural da Educação Física

Considerando a configuração da sociedade contemporânea e suas demandas, insatisfeitos com as ferramentas conceituais e teorias curriculares disponíveis à época, docentes de Educação Física, atuantes na educação básica e no ensino superior, no início deste século começaram a estudar e discutir as teorias pós-críticas de currículo a fim de compor práticas que coadunassem com as condições da escola contemporânea, que passou a atender a todos (corpos, raças, credos, etnias, sexualidades etc.). Buscavam a valorização das diferentes vozes e saberes silenciados no currículo, a compreensão dos jogos de forças que os compunham e a produção de outras formas de dizer e fazer acerca das práticas corporais objetos de estudo da Educação Física (Neira & Nunes, 2018). Apoiados neste referencial, visavam potencializar teias de vidas solidárias, tal como enfatizou Foucault (2010) há mais de três décadas.

Como anunciam Neira e Nunes (2018; 2020), o CC, inicialmente, se amparou nos Estudos Culturais, em seu viés pós-estruturalista, e no Multiculturalismo Crítico, e posteriormente estabeleceu diálogos com o pós-colonialismo, o pensamento decolonial, a teoria queer e, principalmente, com as formulações da filosofia da diferença de F. Nietzsche e herdeiros tais como Michel Foucault, Gilles Deleuze (e sua parceria com Félix Guatarri), Jaques Derrida, Giorgio Agambem, Jean F. Lyotard e outros à medida que novas problemáticas emergiram.

O Currículo Cultural toma a centralidade da cultura e os processos de subjetivação nela produzidos, por isto valoriza além da produção científica, a experiência singular, o conhecimento local e a realidade cotidiana de cada cultura, em cada tempo e lugar. Assume que o sujeito é constituído pela linguagem, com seu caráter instável e imprevisível, e convive com a provisoriedade da multiplicidade de discursos formulados em meio às contingências das relações de poder, problematizando as verdades estabelecidas (Neira & Nunes, 2018; 2020).

Em consonância com os pressupostos descritos, os autores indicam ser importante que docentes e discentes assumam a posição temporária de etnógrafos, pois, esta fornece elementos para que as atividades didáticas permitam aos envolvidos, no processo de ler e interpretar a linguagem das práticas corporais, tomar o devido cuidado diante dos múltiplos significados que constituem as danças, os esportes, as ginásticas, as lutas, as brincadeiras e aquelas ainda não enquadradas pelos sistemas classificatórios.

Defendem a partir da atitude etnográfica que os participantes no processo acessem os códigos de comunicação que constituem as práticas corporais e estão presentes na gestualidade, nos locais, nos discursos, nos artefatos, nas formas de regulação, nas gírias, nos jogos de força que determinam seus limites, enfim, nos processos de assujeitamento e resistência que permitem aos membros do grupo cultural produtor dos significados tanto estabelecerem vínculos e formas de pertencimento, sua identidade, como estratégias com vistas a modificar suas estruturas.

Por permitir acessar os modos de ser, pensar e agir de certo grupo cultural, a postura etnográfica contribui para que as ações engendradas nas aulas possam desnaturalizar representações e potencializar a elaboração de outras, possibilitando formas de regulação mais afeitas à vida dos envolvidos. Enquanto textos da cultura a serem interpretados, as práticas corporais tematizadas no contexto das aulas permitem aos docentes e discentes etnógrafos perceberem seus afetos, discutirem suas impressões, construírem coletivamente modos de interpretação, reelaborarem os códigos de comunicação, ressignificar representações por meio de vivências, narrativas, observações, relatos etc., isto é, promover outras escrituras. Com isto, o sujeito do Currículo Cultural poderá perceber o caráter constitutivo das práticas corporais, da cultura, do mundo e de si mesmo, a fim de poder reelaborar os limites determinantes do modo como discursa sobre as práticas e seus praticantes, isto é, sobre seus modos de ser, pensar, narrar-se, julgar-se, governar-se. O que se pretende é permitir ao sujeito escapar das amarras impostas pela cultura que insiste em fixar identidades (Nunes, 2016b).

Por tomar docentes e discentes como artistas da prática pedagógica, afirmamos a atitude etnográfica como determinante para a realização do Currículo Cultural, bem como dos infinitos agenciamentos que possa promover. Neste sentido, defendemos que aceitar o desafio de investir na vadiagem dialoga com este currículo-aposta, uma vez que permite além do contato direto com os sujeitos praticantes, com os locais de prática, com seus costumes e modos de ser, e possibilita encontros e emergência de hibridizações múltiplas, favorece aos sujeitos envolvidos no processo, mais afeição uns aos outros e, assim, potencializa vidas mais solidárias.

A etnografia com base na vadiagem aqui incitada busca tomar o lócus da investigação, seja onde ocorrem as práticas corporais, seja nos espaços da escola, como o vadio ocupa a desordem da cidade, como a vadia atua frente aos efeitos da normatividade patriarcal, isto é, percebendo as incertezas e o acaso da vida. Assim como a vadiagem se dá pelas condições imanentes da rua, da cidade, da folia, o que se pretende é tomar a aula do mesmo modo como elas são planejadas no Currículo Cultural, isto é, no plano de imanência (Neira & Nunes, 2009). Isto só será possível pelos agenciamentos que este currículo promove, como: abrir portas para as práticas corporais marginais e do centro, para a voz dos seus representantes, fomentar o dissenso, tematizar e investigar inúmeras possibilidades, planejar as aulas diante das problematizações que discentes fazem às representações das práticas corporais apresentadas como verdade, não negar os conflitos, resistências e concordâncias que o devir-aula promove, pelo contrário, trabalhar com e a partir deles.

A etnografia vadia descreve e analisa os acontecimentos no contexto escolar em que a aula de Educação Física de determinada turma ocorre. Tenciona entender as práticas pedagógicas e seus efeitos de resistência às relações saber-poder promovidas pela inter-relação escola-docência-discência-prática corporal, relações que dão vida às aulas de Educação Física. Desta maneira, as observações e análises efetuadas se dão a partir de dentro e de fora. Toma isto como um desafio para ultrapassar a noção etnográfica de um relato cultural fixado pela autoridade do pesquisador.

Com Foucault, o Currículo Cultural promove ampliações do que se sabe, não apenas com os conhecimentos validados, mas traz à cena também os conhecimentos esquecidos, subjugados, dos homens e mulheres infames; apresenta os saberes do Sul do pensamento pós-colonial, os saberes dos indígenas desta terra decolonial, terra de vadios e vadias. Aprofunda o estudo, fazendo uma genealogia das redes de saber-poder que influem a prática corporal, desestabilizando qualquer noção de fundamento. Ou seja, tanto busca conhecer em profundidade, como afundar qualquer noção de fundamento da verdade (Silva & Nunes, 2021).

A atitude etnográfica possibilita vaguear pelas aulas, compreendendo os limites impostos pela escolarização, como o vadio compreende e rompe os limites da rua determinados pela ordem e pela polícia, como a vadia questiona o patriarcado. Vaguear pelas aulas, tomando-as como heterotopias, no sentido dado por Foucault (2009b) — o filósofo francês apresenta esta noção em uma conferência promovida para arquitetos em 1967, a fim de questionar a rigidez com a qual a sociedade moderna significou seus espaços, em oposição à noção de utopia, que significa não-espaço ou o que jamais terá lugar, propondo a noção de heterotopia (hetero = outro + topia = espaço) para pensarmos espaços que coabitam com aqueles que foram institucionalizados. Espaços que existem em todas as culturas, que são contestações dos espaços onde vivemos.

De acordo com Gallo (2013), a escola precisa proporcionar heterotopias enquanto modo de resistência aos excessos de governo que nela ocorrem, enquanto forma de instituir outros jogos de poder que permitam espaços de constituição de sujeitos e de práticas de liberdade. Para Giglio e Nunes (2018), os alunos já se adiantaram neste movimento e as heterotopias comumente são promovidas por alunos e alunas, vivenciando os afetos produzidos no devir-aula: desejos, repulsas, ódios, paixões, orgulhos, solidões, tédios e o que ainda não foi capturado pela linguagem, pela cultura e o que nunca poderá sê-lo.

A atitude etnográfica vadia toma as aulas como produtoras de encontros, de relações (de poder), de assujeitamento e resistências; espaço de produção discursiva, na qual se enunciam discursos científicos, populares, do senso comum, boatos, cochichos e notícias fakes ou não, e produtora de outras ordens discursivas; local de circulação de afetos que se alastram por outros tempos e espaços da vida dos seus sujeitos, que dão forma aos acontecimentos, e do mesmo modo afetam discentes e docentes a potencializarem práticas de liberdade[5], práticas transgressoras dos limites de si mesmo dados pelo neoliberalismo.

Ao assumirem a condição de etnógrafos incitados pela vadiagem, os docentes podem vaguear pelos diversos ambientes, dispensados de uma busca pré-determinada ou da incansável necessidade de produzir resultados, bem como de chegar a caminhos já esperados. Assim, têm a possibilidade de não só observar com atenção, mas de participar das brincadeiras de crianças, dos jogos nos bairros, da ginga da capoeira, dos encantos proporcionados pelos dribles do freestyle, enfim, aquele que assume a postura vadia adquire uma relação outra com os espaços antes frequentados. Dessa forma, os docentes podem sentir na pele a experiência da relação com os diferentes grupos e descrever de outras formas os caminhos da prática pedagógica.

Considerações à vadiagem…

A partir das transformações apresentadas sobre a utilização da etnografia e da sua ampla realização no campo da Educação, evidenciamos a aproximação feita com a figura do flâneur, concebida por Charles Baudelaire e posteriormente relacionada ao fazer etnográfico. Com base nos argumentos e críticas cujos resultados apontam um rompimento com esta figura masculina e europeia nas pesquisas, mostramos a relevância do fazer etnográfico nas aulas de Educação Física e apontamos a potencialidade da postura com base na vadiagem para melhor compreensão das práticas corporais, seus sujeitos e dinâmicas das relações sociais.

Ao longo da aposta na vadiagem, discorremos sobre o entendimento tanto do vadio, quanto da vadia de forma ressignificada. Entendemos que ambos representam com mais propriedade os enfrentamentos ao capitalismo e ao patriarcado. Acreditamos ser de suma importância que o fazer etnográfico esteja de acordo com o que é vivido por seus sujeitos, ou seja, estar em consonância com os desafios contemporâneos, com a multiplicidade de vozes, sentimentos, com os embates e resistências.

Consideramos como potência de encontro e agenciamentos que no Currículo Cultural da Educação Física docentes e discentes invistam em uma postura de etnógrafos vadios e vadias, com o intuito de vaguearem pelas aulas e ambientes onde as práticas corporais acontecem, na tentativa de melhor compreenderem os jogos de forças que produzem as representações sobre as práticas e seus praticantes, inventando posições de sujeito temporárias que abalem hierarquias e afirmem a diferença[6].

A vadiagem pode ser uma possibilidade aos pesquisadores que escolhem a postura etnográfica para realizarem seus objetivos e, também, representa potencialidade à prática pedagógica dos docentes do Currículo Cultural da Educação Física.

Referências

André, M. E. D. A. (1997). Tendências atuais da pesquisa na escola. Cadernos Cedes, 18(43), 46-57. https://doi.org/10.1590/S0101-32621997000200005Links ]

Baudelaire, C. (2010). O pintor da vida moderna. Em C. Baudelaire. O pintor da vida moderna (pp. 13-90). Autêntica. [ Links ]

Brasil. (1893). Decreto n.º 145, de 11 de julho de 1893. Presidência da República. https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-145-11-julho-1893-540923-publicacaooriginal-42452-pl.htmlLinks ]

Brasil. (1941). Decreto-lei n.º 3.688, de 03 de outubro de 1941. Presidência do Brasil. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del3688.htmLinks ]

Brasil. (2004). Projeto de Lei n.º 4.668, de 15 de dezembro 2004. Câmara dos deputados. https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=273651Links ]

Daolio, J. (1995). Da cultura do corpo. Papirus. [ Links ]

Denzin, N. K., & Lincoln, Y. S. (2006). O planejamento da pesquisa qualitativa: teorias e abordagens. Artmed. [ Links ]

Flick, L. (2009). Introdução à pesquisa qualitativa. Artmed. [ Links ]

Foucault, M. (2004). A ética do cuidado de si como prática de liberdade. Em M. Foucault. Ditos & Escritos V: Ética, Sexualidade, Política (pp. 258-280). Forense Universitária. [ Links ]

Foucault, M. (2009a). Prefácio à transgressão. Em M. Foucault. Ditos & Escritos III: Estética, literatura, pintura e cinema (pp. 28-46). Forense Universitária. [ Links ]

Foucault, M. (2009b). Outros espaços. Em M. Foucault. Ditos & Escritos III: Estética, literatura, pintura e cinema (pp. 411-422). Forense Universitária. [ Links ]

Foucault, M. (2010). Os direitos do Homem em face dos governos. Em M. Foucault. Ditos e escritos VI: repensar a política (pp.396-397). Forense Universitária. [ Links ]

Foucault, M. (2017). O que é a crítica? Seguido de a cultura de si. Texto & Grafia. [ Links ]

Gallo, S. (2013). Foucault e as “práticas de liberdade”: possibilidades para o campo educativo. Em S. T. Muchail, & M. A. Fonseca, & A. Veiga-Neto. O mesmo e o Outro: 50 anos de História da Loucura (pp. 355-364) Autêntica. [ Links ]

Garcia, D. A., & Sousa, L. M. A. (2015). No carnaval a fantasia é minha. O corpo é meu: memória e rupturas feministas na folia. Rua, 1(21), 87-107. http://doi.org/10.20396/rua.v21i1.8637523Links ]

Giglio, S. S., & Nunes, M. L. F. (2018). Reflexões sobre a regulação e a heterotopia nas aulas de Educação Física. Pro-posições, 29(3), 590-613. https://doi.org/10.1590/1980-6248-2017-0107Links ]

Hall, S. (2003). A identidade cultural na pós-modernidade. DP&A. [ Links ]

Ludke, M., & André, M. E. D. A. (2013). Pesquisa em educação: abordagens qualitativas (2ª ed.). E.P.U. [ Links ]

Magnani, J. G. C. (2012). Da periferia ao centro: trajetórias de pesquisa em antropologia urbana. Terceiro Nome. https://doi.org/10.4000/pontourbe.606Links ]

Massagli, S. R. (2008). Homem da multidão e o flâneur no conto “O homem da multidão” de Edgar Allan Poe. Terra roxa e outras terras - Revista de Estudos Literários, 12, 55-65. http://www.uel.br/pos/letras/terraroxa/g_pdf/vol12/TRvol12f.pdfLinks ]

Mattos, C. L. G. (2011). Estudos etnográficos da educação: uma revisão de tendências no Brasil. Em C. L. G. Mattos, & P. A. Castro (Orgs.). Etnografia e educação: conceitos e usos (pp. 25-48). EDUEPB. https://doi.org/10.7476/9788578791902Links ]

Mclaren, P. (2000). O etnógrafo como flâneur pós-moderno: Reflexividade Crítica e Pós-hibridismo como engajamento narrativo. Em P. Mclaren. Multiculturalismo Revolucionário: pedagogia do dissendo para o novo milênio (pp. 83-117). Artes Médicas Sul. [ Links ]

Molina Neto, V. (1999). Etnografia: uma opção metodológica para alguns problemas de investigação no âmbito da Educação Física. Em V. Molina Neto, & A. N. S. Triviños. (Orgs.). A pesquisa qualitativa na Educação Física: alternativas metodológicas (pp. 107-139). Ed. Universidade/UFRGS/Sulina. [ Links ]

Monnet, N. (2009). Flanâncias femininas e etnografia. Wagadu a jornal of transnacionalwomen’sandgenderstudies, 7, 218-234. http://www.redobra.ufba.br/wp-content/uploads/2013/06/redobra11_23.pdfLinks ]

Neira, M. G., & Nunes, M. L. F. (2009). Educação Física, currículo e cultura. Phorte. [ Links ]

Neira, M. G., & Nunes, M. L. F. (2018). As possibilidades de emergência do Currículo Cultural da Educação Física: contribuições do Grupo de Pesquisas em Educação Física escolar da FEUSP (GPEF). Em D. Maldonado, V. A. Nogueira, & U. S. Farias. (Orgs.). Os professores como intelectuais: novas perspectivas didático-pedagógicas na educação física escolar brasileira (pp. 173-193). CRV. [ Links ]

Neira, M. G., & Nunes, M. L. F. (2020). As dimensões política, epistemológica e pedagógica do Currículo Cultural da Educação Física. Em F. Bossle, P. Athayde, & L. Lara. (Orgs.). Educação Física escolar (pp. 25-43). EDUFRN. [ Links ]

Nunes, M. L. F. (2016a). Afinal, o que queremos dizer com a expressão “diferença”? Em M. G. Neira & M. L. F. Nunes (Orgs.). Educação Física Cultural: por uma pedagogia da(s) diferença(s) (pp. 15-66). CRV. [ Links ]

Nunes, M. L. F. (2016b). Educação física na área de códigos e linguagens. Em M. G. Neira & M. L. F. Nunes (Orgs.). Educação Física Cultural: escritas sobre a prática (pp. 51-72). CRV. [ Links ]

Nunes, M. L. F., & Zambon, R. H. (2018). É proibido cochilar: os signos e significados das práticas corporais do forró universitário como contribuição para o currículo cultural da Educação Física. Revista Conexões, 16, 565-581. https://doi.org/10.20396/conex.v16i4.8652583Links ]

Nunes, M. R. F. (2015). Relatos de campo: a flânerie e a História Oral como métodos de pesquisa em cenas lúdicas. Em L. M. S., Martino, & A. C. S. Marques (Orgs.). Teoria da Comunicação: Processos, Desafios e Limites (pp. 315-335). Plêiade. https://casperlibero.edu.br/wp-content/uploads/2016/09/Livro-Mestrado-Um-Olhar-Multiplo-Sobre-as-Teorias-da-Comunicacao_Relatos-de-campo-a-Fl%C3%A2nerie-e-a-hist%C3%B3ria-oral-como-m%C3%A9todos-de-pesquisa-em-cenas-l%C3%BAdicas.pdfLinks ]

Nunes, M. R. F., & Bin, M. A. (2016). Espartilhos e espadas: vitorianos e medievalistas em práticas juvenis. Líbero, 19(38), 69-80. http://seer.casperlibero.edu.br/index.php/libero/article/view/802/792Links ]

Pechman, R. M. (2002). Cidades estreitamente vigiadas: o detetive e o urbanista. Casa da Palavra. https://doi.org/10.22296/2317-1529.2001n5p120Links ]

Pechman, R. M. (2009). 9 cenas, algumas obs-cenas, da rua. Fractal: Revista de Psicologia, 21(2), 351-368. https://periodicos.uff.br/fractal/article/view/4752/0Links ]

Salomão, A. F. (2017). Pesquisas etnográficas em Educação Física escolar: um balanço de dissertações e teses. [Tese de doutorado, Universidade de São Paulo]. Biblioteca digital USP. https://doi.org/10.11606/T.48.2017.tde-31102017-114822Links ]

Silva, F. M. C. E., & Nunes, M. L. F. (2021). O embate do encontro: o currículo cultural da educação física como lugar de conflitos. Educação e Filosofia, 34, 799-828. https://doi.org/10.14393/REVEDFIL.v34n71a2020-52940Links ]

Silva, P. T. F., & Lima, J. E. P. (2014). O observador dos panoramas e o flâneur: reflexão sobre a obra Paris, a capital do século XIX de Walter Benjamin. Cadernos Walter Benjamin, 13, 74-84. https://www.gewebe.com.br/pdf/cad13/caderno_06.pdfLinks ]

Silva, T. T. (2011). Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. Autêntica. [ Links ]

Teixeira, A., Salla, F. A. & Marinho, M. G. S. M. C. (2016). Vadiagem e prisões correcionais em São Paulo: mecanismos de controle no firmamento da República. Estudos Históricos, 29 (58), 381-400. https://doi.org/10.1590/S2178-14942016000200004Links ]

Vidich, A. J., & Lyman, S. (2006). Métodos qualitativos: sua história na Sociologia e na Antropologia. Em N. K. Denzin, & Y. S. Lincoln. O planejamento da pesquisa qualitativa: teorias e abordagens (pp. 49-90). Artmed. [ Links ]

Williams, J. (2013). Pós-estruturalismo. Vozes. [ Links ]

[1]Ao descrever o descentramento do sujeito moderno, o autor destaca as contribuições do marxismo, dos estudos de Freud, da linguística estruturalista de Saussure, dos estudos de Foucault e do feminismo na pós-modernidade. Ainda que importantes para o assunto aqui tratado e embasarem epistemologicamente o Currículo Cultural, estas análises não são o foco deste ensaio.

[2]Em palestra proferida em 1978 na Sociedade Francesa de Filosofia, denominada O que é crítica? Foucault (2017) afirma que não é possível pensar a governamentalização do Estado, dissociada da questão do como não ser governado de tal modo, por certos princípios e diante de tais objetivos e meios. Refere-se à atitude crítica como a arte de não ser governado de tal maneira.

[3]No caso, nos referimos aos efeitos do biopoder e das políticas bio regulamentadoras.

[4]Em janeiro de 2011, diante do medo instaurado pela violência sexual na Universidade de Toronto, no Canadá, o policial Michael Sanguinetti diz que “as mulheres evitem se vestir como vadias” para que não ocorra estupro. No dia 3 de abril, três mil pessoas foram às ruas de Toronto, como movimento de contestação. No Brasil, foi conhecido como Marcha das Vadias.

[5]Para Foucault (2004), não há sociedade sem relações de poder. O que impede um provável retorno do sujeito ao seu eu interior, uma consciência plena unificada. Deste modo, não é possível o sujeito atingir um estado de liberdade total. As práticas de liberdade podem ser pensadas como atitude crítica de recusa e de escolha de outras formas de ser governados.

[6]Em Nunes (2016a), o conceito da diferença é detalhado, evidenciando as suas distintas possibilidades de entendimento e afirmando a diferença como positiva, enquanto única possibilidade de ser, condição de produção para o Currículo Cultural da Educação Física.

Recebido: 16 de Julho de 2021; Aceito: 20 de Outubro de 2021

Creative Commons License Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons CC BY 4.0.