SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.27On a psychoanalist in educationMartha Nussbaum’s studies and contributions to education author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Share


Linhas Críticas

Print version ISSN 1516-4896On-line version ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.27  Brasília  2021  Epub Oct 13, 2021

https://doi.org/10.26512/lc27202140298 

Resenhas

Retratos de quem escolheu a vida

Retratos de quienes eligieran la vida

Portraits of those who chose life

1Licenciada em Letras pela Universidade Federal de Roraima (UFRR) (1993). Mestranda em Educação pela UFRR. Técnica em assuntos educacionais da UFRR. Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Direito à Educação e Educação Especial (NEPEDE'Es).

2Doutora em Educação Especial pela Universidade Federal de São Carlos (2013). Professora Associada do Centro de Educação da Universidade Federal de Roraima. Pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Direito à Educação e Educação Especial (NEPEDE'Es).

Cararo, A.; Souza, D. P.. Valentes: histórias de pessoas refugiadas no Brasil. 2020. Seguinte, 296p. ISBN: 9788555340963.


Esta resenha apresenta o livro Valentes: histórias de pessoas refugiadas no Brasil, que traça um panorama geral das migrações no mundo com base em relatos de histórias de vida de 20 pessoas de 16 nacionalidades de quatro diferentes continentes. A publicação recebeu o Prêmio da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil na categoria Livro Informativo.

O interesse por esta obra nasceu de nossa atuação profissional no estado de Roraima, localizado na fronteira com a Venezuela, que tem servido como porta de entrada para imigrantes venezuelanos. Vivenciamos aquele que está sendo considerado o maior êxodo da história recente das migrações, com mais de 5 milhões de venezuelanos que, a partir de 2014, já deixaram seu país, fugindo da crise humanitária, da violência, da insegurança, das ameaças e da falta de itens e serviços essenciais.

Nesse cenário, em uma explosão de preconceito e xenofobia, deu-se a expulsão do grupo de venezuelanos da cidade fronteiriça de Pacaraima, episódio presente no depoimento de Thomas, da República Democrática do Congo, um dos entrevistados de Valentes (Cararo & Souza, 2020, p. 120):

Nunca na minha vida pensei que um dia estaria refugiado. Mas acontece. Hoje estamos vendo os brasileiros expulsando os venezuelanos em Pacaraima. Há cinco anos eles não sabiam que viriam para cá. O brasileiro não sabe o que vai acontecer amanhã. Quem sabe se a situação não vai ser contrária? Por isso o refúgio é uma questão que todo mundo tem que abraçar, além de dar condições melhores para o refugiado.

Como nessa contundente reflexão, o livro parte de narrativas de casos particulares, com todas as suas nuances, para problematizar antigos e atuais problemas coletivos e globais. Trajetórias de quem conseguiu construir novos percursos de vida, mas também de quem continua lutando pela possibilidade de condições minimamente dignas.

Resultado de dois anos e meio de uma robusta pesquisa, as autoras Aryane Cararo e Duda Porto de Souza apresentam um material riquíssimo, publicado em 2020, pela editora Seguinte, que atrai e prende a atenção mesmo das pessoas mais leigas no tema, tanto pela beleza e pelo colorido da capa, do projeto gráfico, das imagens e mapas que entremeiam as narrativas, como pela organização e forma clara com que os relatos são expostos.

A ilustração é de Rafaela Villela e a consultoria, de professor doutor João Carlos Jarochinski Silva, docente do curso de Relações Internacionais e do Programa de Pós-graduação em Sociedade e Fronteiras da Universidade Federal de Roraima e profundo estudioso da temática das migrações internacionais. Valentes conta ainda com contribuições de outros estudiosos de destaque na área.

As autoras, jornalistas que já colaboraram em várias publicações, principalmente do segmento infantil, têm em comum o ativismo em direitos humanos e a experiência de já terem morado em muitos lugares, tanto no Brasil quanto no exterior. O resultado dessa experiência se observa no cuidado, respeito e profunda sensibilidade com que trabalham a temática da migração e, mais especificamente, com que tratam os entrevistados e seus relatos.

A produção passou por atualizações antes de seguir para a gráfica, de modo que fosse possível abarcar mudanças no roteiro dos personagens e do mundo, tanto que a temática da Covid-19, cujas primeiras divulgações surgiram no início de 2020, é contemplada na escrita, em cenário no qual as autoras abordam uma das consequências da pandemia: o escancaramento das desigualdades sociais. Evidenciam que, apesar de todos estarem no “mesmo barco”, pois o vírus não reconhece gênero, raça, classe social, religião, etnias ou fronteiras, alguns, como refugiados e migrantes, estão no “deque inferior, onde a água chega primeiro e se instala” (Cararo & Souza, 2020, p. 9).

Organizada em capítulos com textos curtos, na apresentação as autoras já advertem de que o principal objetivo da obra é “tirar a questão da migração de um lugar de sofrimento e levá-la para um lugar de dignidade” (Cararo & Souza, 2020, p. 14).

Em seguida, ao apresentar os conceitos-chave para nominar as diferentes categorias com que são classificados aqueles que deixam seu país, correlacionam esses conceitos com os marcos ligados às políticas públicas de enfrentamento ao fluxo migratório do mundo. No caso brasileiro, apresenta a Lei da Migração do Brasil, sancionada em 2017 (Brasil, 2017), destacada como uma das mais humanas leis de migração, que, alinhada à Constituição de 1988 (Brasil, 1988), garante aos que aqui chegam, entre outras possibilidades, o acesso aos serviços públicos, o combate à xenofobia e a regulamentação do visto de acolhida humanitário. Um avanço em relação ao Estatuto do Estrangeiro (Brasil, 1980), instituído durante a ditadura militar, no qual o imigrante era tratado como ameaça nacional.

Ao longo do texto, entendemos que, apesar dos aparentes avanços, na prática o processo de acolhida, além de ser complexo, normalmente se resume à documentação, alimentação e lugar para dormir. Nesse sentido, muitas barreiras precisam ser derrubadas para que essas pessoas tenham de fato seus direitos garantidos, uma vez que que a xenofobia, o racismo e o preconceito ainda são muito frequentes. Com a fragilidade de políticas públicas efetivas, os trabalhos de combate à xenofobia são feitos quase exclusivamente por iniciativa da sociedade civil e de organizações não governamentais.

No livro, além da questão migratória, são abordados importantes temas transversais, como raça, gênero, intolerância, orientação sexual, entre outros. E, embora sejam descritas cenas de sofrimento, de tristeza e dor, elas são utilizadas para contextualizar as causas do refúgio, com o olhar mais voltado para o processo de superação dos indivíduos. São passagens intercaladas por imagens, mapas e gráficos, o que torna a leitura leve e envolvente.

Na organização textual, antes da história de cada personagem, são apresentados dados históricos e fatos marcantes de seu país, objetivando contextualizar as crises que ocasionaram a “fuga”, seja de perseguições, catástrofes, guerras, ameaças, situando o leitor no tempo e no espaço. No decorrer dos capítulos, as autoras também indicam filmes e documentários que retratam as realidades narradas.

Causam comoção fatos como a utilização do estupro como arma de guerra no Congo, país no qual, a cada hora, 48 mulheres são estupradas; o recrutamento das crianças-soldado, realidade que se verifica em todos os continentes, inclusive em países da América Latina, como a Colômbia, em que as crianças são recrutadas pelas guerrilhas e grupos paramilitares, sendo usadas como combatentes (para roubar e matar), cozinheiras, espiãs e na instalação de minas; ou o caso das meninas-menino afegãs, quando meninas se vestem de meninos para “lutar” contra o extremismo religioso, que impõe duras restrições a pessoas do sexo feminino.

Os motivos da saída dos países de origem são diversos, mas os entrevistados têm em comum o sofrimento, a coragem, a resiliência, o otimismo e o sonho do recomeço. Histórias individuais, mas que representam toda uma sociedade, algumas delas atuais e outras bem mais antigas, fazem-nos viajar por vários países e atravessar décadas, séculos, milênios de conflito. Uma verdadeira aula de história, geografia, direitos humanos, que não deixa lacunas dentro dos objetivos a que se propõe, mas nos instiga a buscar mais.

A harmonização das narrativas dos imigrantes, apresentadas de seu lugar de fala e de forma muito humana e sensível, oferece um mergulhar nos mundos retratados e nos leva a experimentar um pouco (ou muito!) das dificuldades, dores, medos e anseios relatados. Essa aproximação com os personagens é mais um ponto interessante na publicação e um chamamento para que busquemos conhecer quem são esses “outros” que supostamente nos ameaçam, porque muitos preconceitos surgem do nosso desinteresse em conhecer as histórias e os reais motivos da migração.

Os dramas expostos nos convidam a refletir sobre os desafios de quem migra e a desconstruir estereótipos, aprender mais sobre o outro, encontrar meios de saber lidar com as diferenças, aceitar e reconhecer suas culturas, trajetória que exige escuta, empatia, solidariedade, tolerância e convivência.

Os relatos também nos encorajam a pensar sobre qual está sendo nosso papel diante desse cenário, qual a nossa contribuição para que essas pessoas tenham uma vida digna. Mas, sobretudo, incitam-nos a refletir sobre o que faríamos no lugar delas, que tipo de tratamento gostaríamos de receber.

Embora o foco seja naqueles que buscam o Brasil como espaço de recomeço, Valentes nos lembra dos tantos brasileiros que vivem no exterior com status de refugiado, enfrentando ameaças de morte, discriminação racial e tantos outros riscos de violação de direitos. Uma clara demonstração de que qualquer um pode ser fugitivo de seu país, e esse entendimento deveria servir para nos conscientizar de que ser refugiado está longe de ser uma escolha.

No momento em que o Brasil tem experimentado um grande fluxo migratório, Valentes se constitui em uma riquíssima fonte de informação e, mais que isso, de combate à desinformação gerada pelas “falsas informações”, por fornecer ao leitor subsídios para uma visão crítica e problematizadora em relação à questão migratória; por isso, uma leitura extremamente recomendada e necessária para todos os públicos. Mostra-se, até mesmo, extremamente relevante para ser utilizado por educadores na discussão da temática da migração, especialmente com crianças e adolescentes, pela linguagem direta e objetiva, sem deixar de ser poética.

Completando a beleza da obra, sua finalização se dá com frases inspiradoras de grandes personalidades, como Ailton Krenak, Papa Francisco e Zygmunt Bauman, contribuindo com a reflexão sobre o nosso papel na construção de um mundo mais justo, equilibrado e plural.

Referências

Brasil. (1980). Lei 6.815 de 19 de agosto de 1980 (Define a situação jurídica do estrangeiro no Brasil, cria o Conselho Nacional de Imigração). Presidência da República. Casa Civil. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6815.htmLinks ]

Brasil. (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Congresso Nacional do Brasil. Assembleia Nacional Constituinte. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htmLinks ]

Brasil. (2017). Lei 13.445 de 24 de maio de 2017 (Institui a Lei de Migração). Presidência da República. Congresso Nacional do Brasil. Casa Civil. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13445.htmLinks ]

Cararo, A., & Souza, D. P. (2020). Valentes: histórias de pessoas refugiadas no Brasil (1ª ed.). Seguinte. [ Links ]

Recebido: 04 de Outubro de 2021; Aceito: 06 de Outubro de 2021

Creative Commons License Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons CC BY 4.0.