SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.27Community libraries: dialogue and collaboration with children to decolonize ourselvesBeing a Zapatista at 4 years old. Socialization and subjectivity of Tseltal children author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Share


Linhas Críticas

Print version ISSN 1516-4896On-line version ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.27  Brasília  2021  Epub July 19, 2021

https://doi.org/10.26512/lc27202135191 

Dosier: Participaciones y resistencias de las infancias y juventudes de América Latina: Agencia, protagonismo y movilización colectiva

Por que rimos das crianças?

¿Por qué nos reímos de los niños?

Why do we laugh at children?

Marisol Barenco Corrêa de Mello1 
http://orcid.org/0000-0002-9341-0230

Jader Janer Moreira Lopes2 
http://orcid.org/0000-0003-3510-8647

Márcia Fernanda Carneiro Lima3 
http://orcid.org/orcid.org/0000-0001-6423-3741

1Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) (2003). Professora Titular da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense.

2Doutor em Educação pela Universidade Federal Fluminense (2003). Professor Associado 4 da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora.

3Doutora em Educação pela Universidade Federal Fluminense (UFF) (2020). Professora da Faculdade Tecnológica do Estado do Rio de Janeiro (Faeterj). Membro do Grupo de Estudos e Pesquisa Atos UFF.


Resumo

Por que rimos das crianças? Por que tomamos suas falas, seus pensamentos, suas lógicas e suas descobertas como exóticas, divertidas, inóspitas e risíveis? Por que, em um auditório repleto de pesquisadores das infâncias, uma afirmativa lógica de uma criança provoca altas gargalhadas? Nesse texto refletiremos sobre as condições das pesquisas com crianças em uma sociedade que não as toma como sujeitos enunciadores. Se compreendemos que as condições mínimas de qualquer diálogo sejam a palavra em resposta e a compreensão responsiva, tendo a escuta como prévia a qualquer ato na linguagem, precisamos construir um campo que não existe: aquele da palavra plena da criança.

Palavras-chave Educação; Enunciados de crianças; Pesquisas com crianças

Resumen

¿Por qué nos reímos de los niños? ¿Por qué tomamos sus discursos, sus pensamientos, su lógica y sus descubrimientos como exóticos, divertidos, insólitos y risibles? ¿Por qué en un auditorio lleno de investigadores de la infancia, la afirmación lógica de un niño provoca risas fuertes? En este texto reflexionaremos sobre las condiciones de la investigación con niños en una sociedad que no los toma como sujetos enunciadores. Si entendemos que las condiciones mínimas de cualquier diálogo son las palabras, las respuestas y la comprensión receptiva, teniendo la escucha como antesala a cualquier acto en el lenguaje necesitamos construir un campo que no existe: el de la palabra completa del niño.

Palabras clave Educación; Enunciación de los niños; Investigación con niños

Abstract

Why do we laugh at children? Why do we take their speeches, their thoughts, their logic and their discoveries as exotic, fun, inhospitable and laughable? Why, in an auditorium full of childhood researchers, does a child's logical statement provoke loud laughs? In this article, we will reflect on the conditions of research with children in a society that does not take them as enunciating subjects. If we understand that the minimum conditions of any dialogue are the word in response and responsive understanding, having the act of listening as a prior to any act in language, we need to build a field that does not exist: the one of the child's full word.

Keywords Education; Children's enunciate; Research with children

Auditório e Audiência ou Os Risos da Palavra

Era março de 2018. O local: um auditório situado em uma universidade na região centro-oeste brasileira. Na audiência, pessoas implicadas em suas diferentes condições e origens com trabalhos e pesquisas envolvendo bebês e crianças. A segunda apresentação da mesa tem início. É exibido, como ponto de partida da fala, uma nota de campo que transcrevemos integralmente a seguir:

Havíamos saído com as crianças, andando no passeio do entorno da escola. A proposta da professora é que observassem o caminho, pois iriam fazer um mapa ao voltar para a sala. Em sala, as crianças foram convidadas a desenhar o que viram e mais gostaram, e é solicitado que desenhem pontos fixos para entrar no mapa. Um pássaro morto, já em estado de decomposição chamou fortemente a atenção das crianças, que teceram muitos comentários [...] a professora pede às crianças que comentem sobre os pontos que observaram, em roda, elas falam de várias coisas, Matheus[1] lembrou o pássaro morto, a professora logo retrucou: – Matheus tem que ser pontos fixos! Ele respondeu: – Professora, o passarinho ‘tava’ morto, ele não se move mais... é uma coisa parada... é um ponto fixo para o mapa... pássaro morto não voa. (Lopes, em entrevista a Frigério & Marques, 2020)

A nota estava acompanhada das seguintes fotos:

Fonte: Lopes (2018).

Imagem 1 Fotografia da apresentação 

Fonte: Lopes (2018).

Imagem 2 Fotografia da apresentação 

A exibição da nota provocou gargalhadas na audiência. Os risos cessaram com a continuidade da apresentação. Terminada a fala, nos encontramos e uma das professoras que a assistia chega com uma explícita inquietação e nos pergunta: por que rimos das crianças?

No momento apenas trocamos olhares entre nós! Sua pergunta já tinha em nossas expressões uma resposta, não precisava de palavras faladas, os gestos faciais enunciavam! Nos deslocamos para o espaço externo daquele prédio; conosco, a indagação e o silêncio, repleto de ditos.

Já se passaram alguns anos desse evento, desse fato narrado e criado, mas como o tempo não se forja de forma cronológica em todos os âmbitos do viver – mesmo que certos preceitos da modernidade tentem nos levar constantemente a isso –, mas se refolha em muitos movimentos, revisitamos as palavras de Matheus e, a partir delas e da pergunta que, naquele átimo de espaço e tempo nos foi direcionada, a escolhemos para nomear esse texto. Este é, assim, um repositório de muitas palavras amorosamente apanhadas no decorrer de nossas caminhadas. Para isso, nos referenciamos metodologicamente nos estudos da filosofia da linguagem de base bakhtiniana (Bakhtin, 2010; 2011), que reconhecem o cotejo como princípio epistêmico e ontológico da compreensão do processo da vida na própria vida. Assumimos essa estratégia teórico-metodológica por reconhecermos que as relações sociais não são passíveis de decomposições analíticas, retiradas de seus contextos enunciativos vivos, onde a relação é, ela mesma, a condição de possibilidade do sentido. O cotejo, portanto, é a palavra e suas contra palavras no sentido da responsividade dos pesquisadores, avizinhadas aos enunciados de crianças e de autores em seus próprios diálogos singulares. Dessa forma compreendendo o ser humano como centro emotivo-volitivo cuja consciência se faz pela e na linguagem das relações concretas e indissociáveis no mundo.

É assim que nosso encontro se fez, com esse pássaro morto, que teimava em viver no mapa que estava sendo confeccionado naquela escola, situada em outra região do território brasileiro, distante em muitos quilômetros de onde os risos aconteceram. São os ecos geográficos que forjam a história humana. O pássaro continua vivo, cotejemos com ele.

Audiência ou o riso e a palavra

Trouxemos a nota de campo anterior para abrir este texto, porque nele desejamos refletir sobre as condições das pesquisas com crianças, em uma sociedade que não as toma como sujeitos enunciadores. Por que a atitude de Matheus frente a um evento do mundo, um convite de sua professora para compor o mapa que estava em construção é causadora de risos? Por que sua forma de expressar os elementos da cultura cartográfica que estão presentes no plano social, na qual ele também se insere, foram acolhidas daquela forma? Se compreendemos que as condições mínimas de qualquer diálogo sejam a palavra em resposta e a compreensão responsiva, tendo a escuta como prévia a qualquer ato na linguagem, precisamos construir um campo que não existe: aquele da palavra plena da criança.

Para nós que nos debruçamos sobre a filosofia da linguagem, especialmente aquela que tem como base a pesquisa filosófica de Mikhail Bakhtin e seu Círculo, a grande problemática da falta de consideração ao logos infantil tem suas raízes na própria relação que o ocidente passou a estabelecer, a partir dos séculos XV-XVI, levando a conta a linguagem enquanto sistema de representação. Como manufaturas de um mundo que se expandia, paisagens e territórios eram erguidos seguindo a lógica de um centro que se irradiava para espaços outros ceifando existências e saberes e, na busca por impor sua hegemonia, dois sentidos de dois conceitos se fundem: a representação passa a ser sinônimo de verdade. É assim, por exemplo, que mapas confeccionados do mundo passam a ser o mundo, que a palavra se endurece, se congela, se petrifica em sons, fonemas, consoantes e vogais, as linguagens se fazem em geologias, fósseis presentes no mundo social, em alguém que fala, em possíveis escutas situadas em estratos fora do humano. Pássaros se tornam mortos.

Ao perderem-se as similitudes (Foucault, 2004), as semelhanças (Benjamin, 1994) ou as vizinhanças (Bakhtin, 2002) enquanto lógica de relação entre a linguagem e o mundo, marchou-se paulatinamente, ao longo dos séculos para uma perspectiva racionalista da mesma. A linguagem como sistema de representação que funciona através do ordenamento e medida do real, ao mesmo tempo em que foi tomada como a realidade em si própria, fez com que a tomássemos no final do século XIX como sistema categorial, modo pelo qual o pensamento organiza o factual como veracidade. Ao mesmo tempo, a linguística enquanto ciência nascente, principalmente a partir de Saussure, em 1916 e, com o desenvolvimento de sua perspectiva, contribuiu para a consideração sistemática da linguagem enquanto língua, tomando em análise seus elementos permanentes em detrimento das dimensões comunicativas e expressivas das linguagens. Essa mesma perspectiva, servindo de padrão para a consideração psicológica do desenvolvimento humano, consolidou a linguagem como sistema lógico relacionado intimamente aos conteúdos da lógica proposicional (Mello, 2001), categorial (Mello, 2003), da razão instrumental (Santos, 1999) e das tradições positivistas e racionalistas do estudo da linguagem (ligadas à fonologia, à semiologia, à gramática normativa e à linguística estruturalista).

Foi nesse cenário que se forjaram as descrições psicológicas – e até mesmo sociológicas – do desenvolvimento infantil. Ou seja, a imagem da criança, de seus processos cognitivos, linguísticos, relacionais, etc., foi construída tendo como base e fundamento uma visão estruturalista, racionalista e, calcada em noções evolucionistas, incluem-se o ser e estar das crianças em seu existir no mundo, e nele o desenvolvimentismo da linguagem e suas formas.

Apesar de hegemônica nas ciências humanas e sociais essa visão sempre contou com a dificuldade capital de servir de base descritiva e compreensiva dos processos humanos reais. Isto é, apesar de exaustivamente consolidada em estudos – principalmente europeus e norte-americanos – as teorias geradas sempre encontraram enorme dificuldade em servirem de guia para a compreensão dos processos, por exemplo, do desenvolvimento infantil em outras culturas que não as próprias de referência dos estudos realizados. Nem em suas tradições kantianas (como a teoria piagetiana e seus desdobramentos), nem em suas tradições liberais (como as teorias mais comportamentalistas) e nem mesmo nas tradições histórico-culturais (principalmente tomando em conta o vínculo de Vigotski e Luria com a perspectiva do ponto de chegada do desenvolvimento da linguagem enquanto sistema categorial de pensamento – ver nesse sentido (Mello, 2001), os resultados das pesquisas foram facilmente cotejáveis. Isso se deu majoritariamente quando as culturas humanas a serem estudadas foram e são culturas do sul, como as populações infantis latino-americanas, por exemplo. Em um exemplo apenas, o resultado de um estudo psicológico realizado com crianças suíças, ao ser replicado com crianças brasileiras revelava que essas últimas apresentavam índices de subdesenvolvimento cognitivo (Mello, 2003). Dessa forma as diferenças se tornaram hierarquias entre culturas.

Por muitos anos nos debatemos a buscar alternativas dentro desse sistema, tentando encontrar os pontos em que as crianças latino-americanas, especialmente brasileiras, pudessem ser compreendidas em sua especificidade humana, única e irrepetível. Nas últimas décadas reconfiguramos esses esforços, e nos voltamos a estudar possibilidades outras de pensarmos as linguagens, o logos humano em uma perspectiva dialógica, e a própria vida relacional humana.

Nesse movimento tivemos muitos encontros, entre eles com os estudos bakhtinianos que, como filosofia, busca reinscrever os processos humanos e sociais desde outros fundamentos. Mikhail Bakhtin e seu Círculo – assim chamados os grupos de pesquisas e estudos na Rússia do início do século XX –, formado principalmente pelos estudiosos Valentín Volóchinov e Pável Medviédev, buscaram refundar os estudos da linguagem tomando como ponto central da sua filosofia a dimensão ética, ou seja, a vida. Embora seja impossível compilar em um pequeno artigo suas ideias, focaremos em dois conceitos correlacionados que parecem lançar luz à nossa problemática central neste presente texto.

Para o Círculo de Bakhtin, a linguagem está no centro da compreensão da vida e das formas de sua consideração, como a história, a arte e a filosofia. Sua filosofia da linguagem entende a vida – a dimensão ética da existência – como o ponto central a partir do qual qualquer ação humana, em qualquer esfera da cultura (ciência incluída) pode ser realizada, compreendida e descrita. Linguagem, na compreensão desses autores, está vinculada aos índices ideológicos da cultura, estando inextrincavelmente relacionada às condições concretas da vida. Apesar disso, a linguagem tem em si mesma a força ancestral que, historicamente, tanto forja quanto é forjada pelas sociedades humanas. Sendo assim, é uma dimensão relativamente autônoma da cultura, que “de dentro” influencia e tensiona os processos. Não é, absolutamente, ferramenta esvaziada de valor, mas ao contrário, obra humana em forma, material e conteúdo.

A linguagem compreendida nesse diapasão, como força humana histórica, anterior e fundante de toda humanidade, mas ao mesmo tempo produto social e histórico das respostas contemporâneas humanas, não pode ser compreendida como coisa. Nenhuma palavra humana, em qualquer gênero que seja enunciada, é objeto, coisa, puro material. Como unidade mínima da linguagem, fluxo de comunicação discursiva ininterrupto, o enunciado possui acabamento, ou seja, é ele mesmo uma obra humana complexa, sempre dirigida ao outro, em resposta viva às problemáticas da vida.

Um enunciado humano possui, portanto, duas forças titânicas: a primeira é a ancestralidade presente e pesada em cada elemento de sua composição (intencionalidade, forma composicional, léxico, estilo, etc. – ver a respeito Medviédev (2011), e Bakhtin (2011), que confere a todo enunciado, o mais simples que possa parecer, força humana histórica. A segunda é a força da resposta singular do sujeito enunciador no ato do enunciado: como autor do mesmo, este faz com que a linguagem, antiquíssima, seja desta forma – e somente neste momento, nunca antes – realizada.

É o que podemos dizer do Janus bifronte (Bakhtin, 2010): o enunciado possui, ao mesmo tempo, a força antiga de todos os contextos de luta pelo sentido dos quais fez parte, e a força explosiva da novidade radical, já que nunca uma resposta fora antes assim organizada, composta e enunciada. É anunciação e prenúncio, é o já dito, o dito e o será dito. Forças espaço-temporais que se convergem no ato de criação.

Todo enunciado humano é equanimemente potente para o Círculo de Bakhtin, que se ocupou de diferentes enunciados, e principalmente os artístico-literários e poéticos, uma vez que é a palavra artística a possuir maior índice de capacidade libertária. Mas ao longo da história da humanidade as forças oficiais (Bakhtin, 2010) formaram-se tendo como tarefa central estabilizar, amortizar e despotencializar as forças dos enunciados artístico-literários e poéticos, criando sistemas abstratos, desvinculados da vida, não responsáveis (Bakhtin, 2010), em uma palavra, teoréticos. Não seria demais que nos lembrássemos sempre de reler Foucault (2014), mas ainda mais compreender, nas realidades vividas por nós – enquanto professores e professoras, pesquisadores e pesquisadoras, trabalhadores e trabalhadoras com os movimentos sociais –, que as ordens oficiais têm assassinado as forças criativas e inventivas dos seres humanos desde as infâncias com “golpes de universal”, de abstração, de sistemas lógicos descontextualizados, com golpes de gramática, de bem-dizeres, com golpes de certas perspectivas de escolarização.

A história de institucionalização da infância não é uma história desacompanhada. É a solidão de um mundo sempre acompanhado e conduzido, criado e ofertado de forma material e simbólica, para que suas autorias se convertam em fantasias, e, por serem fantasias e não as “representações do real” precisam ser desconsideradas e abandonadas. Quimeras que nos assustam. Para nós, ao contrário, é justamente aí que residem suas grandes potências!

As crianças são seres ativos e participativos nas culturas. Suas palavras tomam parte no tecido compreensivo e criativo da transformação social. Crianças não são seres passivos, ouvintes passivos, seres humanos incompletos que falarão no futuro. Sua palavra é o enunciado vivo, ativo e agora. Precisamos de outros fundamentos para tomá-la em consideração.

Uma primeira recomendação seria a de nos subtrairmos do papel de detentores exclusivos da linguagem. A linguagem, capacidade humana de inventar, criar e transformar o mundo, não é apanágio de quem detém seus estudos, ou de quem detém sua “forma oficial”. Como capacidade específica da espécie humana, a capacidade de criar novos mundos pressupõe um processo não de divisão entre “falantes” e “ouvintes”, esse segundo, aqui no nosso caso, as crianças, até que aprendam a falar “de modo oficial”. O processo que segundo Bakhtin dá conta de realizar uma aproximação aos sentidos da comunicação discursiva, se chama “compreensão respondente”. Nessa perspectiva, não existe o que fala e o que compreende, mas sempre enunciado ativamente responsivo, em processo permanente de diálogo. Segundo o próprio Bakhtin,

Até hoje ainda existem na linguística ficções como o “ouvinte” e o “entendedor” (parceiro do “falante”, do “fluxo único da fala”, etc.). Tais ficções dão uma noção absolutamente deturpada do processo complexo e amplamente ativo da comunicação discursiva. [...] O ouvinte, ao perceber e compreender o significado (linguístico) do discurso, ocupa simultaneamente em relação a ele uma ativa posição responsiva: concorda ou discorda dele [...], completa-o, aplica-o, prepara-se para usá-lo, etc.; essa posição responsiva do ouvinte se forma ao longo de todo o processo de audição e compreensão desde o seu início, às vezes literalmente a partir da primeira palavra do falante. (Bakhtin, 2011, p. 271)

Portanto, diz Bakhtin (2011, p. 272), “toda compreensão plena real é ativamente responsiva e não é senão uma fase inicial preparatória da resposta (seja qual for a forma em que ela se dê)”. As crianças, ao enunciarem, estão ativamente produzindo compreensão responsiva, participando como coautores do enunciado anterior que as provocou, isso apenas para dizer o mínimo. Se pudermos avançar nessa compreensão, argumentaremos que todo enunciado humano é elo na cadeia discursiva ininterrupta, que conecta atualidade e ancestralidade. Cada enunciado conta, uma vez que cria o inexistido.

Por que devemos investir nessa perspectiva que busca um lugar onde a palavra da criança – ademais de todo ser humano – seja plenamente tomada como enunciado? Para então podermos contar com esse ponto de vista totalmente inédito que o enunciado infantil apresenta, indo muito além do objetivo pequeno de garantir a permanência das conquistas humanas. Um ponto de vista novo sobre o mundo, que o estranha e, ademais, estranha e reinventa a própria linguagem que o enuncia. O balbucio humano da criança é, ele mesmo, segundo o professor Augusto Ponzio, palavra poética, dobra na linguagem que nos faz vê-la como se fosse a primeira vez. O que chamamos, portanto, neste texto, de palavra plena da criança tem o caráter do enunciado de sua existência no mundo, enunciado único, irrepetível e iminentemente humano que se forja numa relação entre seres humanos autorizados a dialogar entre si de modo equipotente.

Também Vigotski (2006) nos lembra, questionando as teorias de desenvolvimento de sua época, que os bebês humanos já nascem imersos em um mundo que é social, por isso é o diálogo constituinte de seu ser e de sua consciência, e não as existências egocêntricas, como se contrapôs a alguns argumentos de sua época. E, mergulhado nos princípios spinozistas que serão uma das bases de seus postulados, expressa que qualquer dito deve ser compreendido sempre na unidade afeto-intelecto. A vida do recém-nascido, daqueles que chegam, nesse sentido, seria marcada por uma intensa relação de comunicação com as demais pessoas de seu mundo, onde habitariam formas de linguagens peculiares, potencializadoras do conatus (Spinoza, 2015).

O ponto de vista novo – não porque ingênuo, mas porque inédito no ancestral – nos permite a visão, aquilo que nos faz compreender com distanciamento exotópico o que, habituados que fomos com a cultura e seus processos, adultos que somos, estamos imersos até os olhos na realidade dada, ao nível mesmo do sofrimento. É justamente essa falta de visão que nos faz ver realidades inexoráveis em um mundo que é, por princípio e fundamento, aberto e infinito.

A quem interessaria tal fechamento? A quem interessaria cortar as possibilidades das linguagens em seus processos afetivos, sociais, dinâmicos, explosivos e construtivos.Presentes em cada ato de enunciação humana, das mais complexas teorias até o mais simples ato de fala, por mais cotidiano que possa se manifestar? Apenas, pensamos nós, a quem pertencer a lógica do curral, do dique, da economia de reserva, para fazer parar o fluxo aberto e criativo do mundo e servir-se exclusivamente de suas possibilidades, como se os recursos inesgotáveis do mundo humano estivessem em um celeiro. Nesse anseio de armazém, as palavras podem ser aprisionadas e quantificadas e, como o estoque, depositadas em estantes que se erguem do solo para o teto, arrumadas em perspectivas topológicas, possíveis de serem alçadas pela maturação do humano, que ao estender seu corpo no mundo, tem braços para alcançar os potes de vocábulos. Não desejamos o “anseio de armazém”, mas escolhemos, nessa relação, os sacos a granel, que espalhados pelo chão, permitem mergulhar as mãos (como metáfora da vida) na riqueza da oferta ancestral.

Esse estado de armazém interessa às forças dominantes, portanto, que se expressam nas lógicas oficiais, nos sistemas hegemonizados, nos Estados, nas instituições a serviço do capital e seus fazendeiros. Esse é o princípio mesmo do esgotamento, por sacrifício, do expandir-se – natural – do mundo, dos seus seres viventes, dos seus processos criativos, transformativos.

Neste texto, argumentamos que uma das formas de esgotamento das forças transformadoras do humano expressa-se na ação adulta de rir dos enunciados – compreensivos e responsivos, participantes da teia infinita dos sentidos na linguagem – infantis. E isso nos remete, obrigatoriamente a questionar: por que a autoria [...] adulta muitas vezes não suporta a autoria das crianças? (Frigério & Marques, 2020, p.135).

É assim que um pássaro morto não é apenas um corpo estendido na calçada onde aquelas crianças caminhavam em que, entre elas, encontrava-se Matheus. Eram corpos que se curvavam para contemplar, para surpreender-se, eram memórias a serem carregadas, questões e reflexões sobre morrer, viver e sobre o que fazer. Era vida a ser registrada como um de seus enunciados cartográficos, marcada em suas tradições de representação por objetos estáticos como verdades únicas, ali, naquela escritura, era uma cartografia em averbação, era puro movimento. Mapas pulsantes em vida e renovação. Matheus rasgava uma história que pretendia ser única.

Auditórios e paióis ou O “rir de” e o “rir com”

Algumas formas espaciais têm a incrível potência de instigar movimentos no humano. Sem querer afirmar a universalidade da espacialização da vida a ser determinada por ordenações do espaço físico, nos remetemos à impossibilidade de pensar qualquer elemento da paisagem fora de sua condição semiótica e axiológica. Todo espaço é um texto e, como artefato da cultura, estabelece relações com os sentidos em que é vivido. Neles há um anúncio de sua existência, o qual nos faz seres imersos em suas arquiteturas. O auditório é um desses espaços que existe no mundo como força relacional.

Talvez por isso Vigotski (2006) tenha forjado a categoria vivência, centro em torno da qual deveria se compreender a dinâmica humana no mundo, tendo como base a dramaturgia teatral. A própria concepção de desenvolvimento como “drama” se refere a essa relação. Pois, para ele, a vivência poderia ser compreendida na vida, ao percebê-la como liame entre o estético e o pessoal. Como aponta Sobkin, as “resenhas teatrais de Vigotski do período dos anos 1920 [...] têm um valor indubitável não apenas para a crítica da arte, como também para a psicologia. Nelas, expressam-se claramente as origens [...] da concepção histórico-cultural” (Sobkin, 2017, p. 7).

O evento que abre esse texto aconteceu em um auditório e, como todo auditório é audiência – mesmo quando vazio de pessoas, pois sempre temos a sensação de que as vozes e os corpos reverberam ali – o símbolo cartográfico morto, anunciado em forma de pássaro, gerou muitas vivências. Seria injusto de nossa parte homogeneizar as reações (não entendidas aqui em seus modos calcados na reflexologia clássica, mas no sentido de uma unidade dramática, como apontada por Vigotski (2006), por isso tecemos um olhar atento. Descrevemos.

No fundo da sala de conferências duas mulheres ainda sentadas, meio que pregadas às cadeiras diante da perplexidade que o riso provocara. Expressões fortes, anunciavam estranhamentos. Em outros cantos sussurros, o que diziam? Jamais saberemos, poderia envolver o assunto que ali circulava, mas talvez conversavam sobre outras coisas. Em algumas fileiras risos, em outras pessoas caladas, havia ainda as que conversavam em alto tom! O som era intenso. Havia muitas tonalidades. Matheus, mesmo em sua ausência física, com sua voz reportada por outra pessoa, provocava inúmeras respostas. As contrapalavras emergiam. O social gotejava (Jerebtsov, 2014) em cultura, trazendo as singularidades com que aquela audiência, em forma de auditório, envolvia pessoas que dedicavam parte de suas vidas a estarem com bebês e crianças.

O dado de campo – tinha clara intenção de trazer a situação vivida com a criança, de dizer sobre a capacidade crianceira de estabelecer novas relações com o conhecimento ofertado e ao mesmo tempo inaugurar novos modos de pensar estes conhecimentos – provocava muitas reações nas pessoas que estavam a ouvir.

Mas é preciso dizer: vimos nascer um pequeno coral de apoio que busca saber, “Por que rimos das crianças?” Tal acontecimento nos anima a tratar este assunto como questão de pesquisa, posto que nos estudos que realizamos no campo da Linguagem com o círculo de Bakhtin, e com os poetas cubofuturistas russos, aprendemos que para mudar o mundo é preciso mudar as palavras do mundo. Neste sentido caberia pensar: que palavras/enunciados precisamos mudar, para mudar as relações de escuta e resposta que estabelecemos com as crianças?

Não é raro presenciar essa cena: a criança pequena mostra seu desenho a um adulto que, surpreso e risonho responde: – “Que lindo! Foi você quem fez?”

Temos aqui três elementos que merecem nossa atenção, e são eles: a surpresa, o riso e a pergunta. É importante destacar que estes três elementos não estão separados. A surpresa gera o riso, que acompanha a pergunta.

A surpresa. A surpresa acontece diante de algo inesperado, insólito, inusitado. Resta saber o porquê de uma produção, um conhecimento ou lógica infantil se enquadrar (para nós, adultos), em uma dessas categorias. Nos surpreendemos porque não esperamos que uma criança seja capaz de certas inteligências. E por que não esperamos que sejam as crianças tão capazes? Estaríamos acostumados a soletrar o discurso que relega às crianças ao lugar do não saber?

O riso. Há vários tipos de riso, mas o que nos interessa aqui é compreender o “rir de” e o “rir com”. Este último remete à empatia e à cumplicidade. Já aquele primeiro, à irrisão. Cada riso, em sua esfera, produz um enunciado, um efeito que, por conseguinte, estabelece determinada relação. “Rir com” requer proximidade, um estar ao lado daquele com quem partilhamos a alegria do acontecimento. Trata-se do riso alteritário, que demanda escuta respondente. No seu oposto, “rir de”, marca a distância, localiza-nos longe do outro. Recusa a partilha, imprime o riso identitário e surdo.

A pergunta. É oportuno pensar no que se quer dizer com esta pergunta, “foi você quem fez?”. Tal questionamento parece apontar para uma contradição. Recorremos a Roland Barthes (2013) em seu pequeno conto, “O Cruzeiro do Sangue Azul”. Trata-se, segundo ele, de um episódio “picante” onde a realeza elisabetana embarca em um iate grego em busca de riso e divertimento, vivendo diversas situações de inversão, onde os reis barbeavam-se a si próprios, criavam fantasias de modo que a natureza ao homem se fundia, enfim, nas palavras de Barthes, se aventuravam a vivenciar situações “grotescas pelas suas contradições, do tipo Maria-Antonieta-brincando-de-leiteira” (Barthes, 2013 p. 36). Nessa história, um apontamento chama atenção:

A patologia de tal divertimento é pesada: já que nos divertimos com uma contradição é porque pensamos que os seus termos estão muito afastados; isto é, os reis são de essência sobre-humana, e quando assumem temporariamente certas formas de vida democrática trata-se de, indubitavelmente, uma encarnação contrária à natureza, apenas possível por condescendência. (Barthes, 2013, p. 36)

Parece que em relação à criança, a “patologia de tal divertimento”, também é pesada. Rimos dela porque consideramos contraditório que uma criança possa lançar a nossa escuta algo que nunca havíamos pensado, ouvido ou visto, afinal é destinado somente ao adulto o lugar daquele que sabe e ensina. Os termos “criança” e “conhecimento” parecem estar, neste sentido distorcido, muito afastados, ou unidos apenas em termos de incompletude. Há neste contexto certa inversão de papéis, que também se faz possível apenas por condescendência. Antecede ou sucede ao “Foi você quem fez?” o “Que lindo!” (ou qualquer expressão do tipo) como condescendência elogiosa. Contudo, esse argumento elogioso nada tem de alteritário, de proximidade, de cumplicidade, posto que se segue ao “rir de”. Diz-se “Que lindo! Foi você quem fez?” ao passo que se “ri de”. Estes ensinamentos deveriam estar escritos em “livros de criança velha”.

Agora faz-se necessário convidar outra criança para essa conversa, afinal, imaginamos que nem todos sabem o que é um livro de criança velha. Clara[2] foi quem ensinou. Para falar de Clara, só de baixo para cima. Comecemos pelos pés. Sempre calçados em sandálias de plástico, de preferência em lilás, “que brilha” – por conta dos detalhes em purpurina – e, com leve saltinho, entornam de alegria pés gordinhos como dois pãezinhos de leite. Com pernas roliças e sempre marcadas de roxo, “de bagunça”, Clara desfila entre escorregadores, gangorras e balanços no parquinho da escola. Em geral sua barriguinha escapa da roupa pra ver o dia e participar da correria. Suas mãos curtas e redondas deixam estar uma covinha para cada dedo, e com elas Clara sente a si e ao mundo no alto de seus dois anos de idade. Cabelos escorridos e castanhos emolduram seu rosto solar, cujas bochechas se projetam abusadamente, deixando pouco espaço para sua pequena boca e nariz. Já seus olhos saltam de redondos e brilhantes, radiantemente negros. Em certa ocasião em que havia uma feira de livros na sua escola, Clara vinha acompanhada da mãe e de sua irmã menor escolher um livro. Sua mãe em meio a tantas possibilidades escolhe certo livro, cartonado e resistente. Seria o livro ideal, pois as duas pequenas poderiam utilizá-lo, provavelmente pensou a mãe, de forma prática. Feita a compra, a mãe entrega o livro às mãos de Clara que, depois de olhar o livro de baixo acima, pergunta: – “Mamãe, você podia me dar um livro de criança velha?” (Lima, 2020, p.176).

O que Clara estava a nos anunciar? Quais os sentidos que a expressão “criança velha”, em sua dimensão intercorpórea e narrativa trazida por Clara, faziam convergir ali, naquele ponto (sempre alargado) de espaço tempo enunciativo? O velho estava a anunciar o novo. Esse é o drama do desenvolvimento que Vigotski traz da estética teatral com um dos elementos do viver que está sempre acompanhado de viver. Vamos às palavras de Jerebtsov:

Não por acaso que Vigotski citava as palavras: “Viver significa morrer” [...]. Nessa relação, vale recorrer ao sentido literal da palavra pere-jivat, ou seja, passar por meio da vida, estar em caminho permanente, em busca, sempre morrer e nascer, estar no processo de reformulação de si mesmo, no fluxo da vida. Ao contrário, se não vivenciar – perejit, isso significa não viver. M. K. Mamardachvili dizia que o homem é o único ser no mundo que se encontra em permanente estado de renascimento [...]. (Jerebtsov, 2014, p. 21)

Quando na arena (auditório e audiência) de produção de conhecimento criam-se novos conceitos, os pensadores das diversas áreas das ciências e filosofia discutem a que campo pertenceria tal conhecimento, a que propriedade ele remeteria. Cabe questionar se seria tal discussão privilégio único da filosofia, da sociologia, da história (e assim por diante)? Em nossa cultura ocidental, para cada conceito criado há a necessidade de um fundamento que responda à pergunta: que direito isto tem de existir como verdade? E assim traçam-se as categorias, as classificações, as explicações, os limites e as fronteiras territorializando um espaço tempo epistemológico cuja perspectiva em nosso caso, compartimentaliza e hierarquiza os conhecimentos.

Quando saímos em busca das lógicas e dos movimentos crianceiros, nos deparamos com outra terra. Uma terra sem fundo, uma terra “desfundada” que se abre para um sem-fundo porque se move num fluxo de territorialização e desterritorialização contínuos e concomitantes do conhecimento, de si, de quem a habita e da própria linguagem com a qual se enuncia. Esse é o terroir da infância. Nesta paisagem a pergunta passa a ser outra: que direito isso tem de existir, sem a verdade e a razão já proclamadas? Uma terra sem fronteiras, onde ao mesmo tempo em que se enuncia o acontecimento recém-nascido, enuncia-se também o que antes dele já havia no antigo das existências. Uma terra onde cada conhecimento carrega toda a sua ancestralidade, e ao mesmo tempo uma novidade radical, como um “livro de criança velha”, por exemplo. Há mortes e vidas. Há pássaros nas calçadas, e há pássaros nos mapas.

A criança que pensa o ainda não pensado (mesmo que por ela) cria poeticamente novas existências, novos mundos, tempos, territórios, novas lógicas, através de novas palavras e maneiras de fazê-las existir na concomitante criação de novas existências. Este movimento inspira pensar com as crianças em suas distintas infâncias enquanto povo que, com suas linhas de fuga e seus movimentos desviantes, lutam crianceiramente em defesa de novos modos de existência, criando novos espaços-tempos que não deixam de ser novos territórios e que, ao mesmo tempo, tornam-se planos de desterritorialização na medida em que se abrem para novas lógicas.

A criança, com seu passo vacilante, não cessa de migrar, de errar, de escorregar, de saltar e, deste modo, entranha-se cada vez mais longe nessa desterritorialização. Que terras são as das crianças? Não caberia a elas nenhum lote demarcado, uma vez que deslizam entre diferentes mundos. Mundos que as crianças criam e que, reciprocamente, criam as crianças. Existências que as crianças permitem e que, através delas, intensificam sua própria existência.

Criar novas existências é um ato político de criação/invenção do mundo, ato unicamente humano. Em nossa perspectiva, juntamente com Bakhtin (2011) a não escuta e a não resposta a estas enunciações criadoras é responsável pela esterilização da arte e da vida, assim como a coisificação do sujeito e do mundo. O rir das crianças implica em última análise em rir de um ato político que desqualifica ambos sujeitos: aquele que ri e aquele de quem se ri. Como podemos defender que as crianças sejam sujeitos da cultura, que dela participam e a ela criam, se achamos pitorescas suas filosofias? Que possamos rir com, pesquisar com e aprender com as crianças!

Começamos falando de auditórios e de suas forças relacionais, dele nos deslocamos para outros caminhos, e há um que está em nossa vontade: a condição de paiol. Em nossas infâncias, em muitas residências havia uma construção que nos despertava uma profusão de muitas emoções, era mistério, curiosidade, medo, coragem e outras. Estamos falando dos paióis, edificações geralmente feitas com madeiras envelhecidas pelo tempo, com luz tênue ou mesmo sem luminosidade, localizados nos fundos dos quintais, comuns nas casas de interior. Neles se guardavam os grãos das colheitas, os instrumentos agrícolas e outros artefatos, que convergiam a intensa vida dos moradores daquela residência, e permitia a vida. Dali saíam os alimentos humanos, os alimentos dos animais criados nos terreiros, os instrumentos que transformavam o espaço, as geleias e as conservas. Para nós, crianças, adentrar esse local era intensidade, tínhamos sob nossos olhares e em volta de nossos corpos muitas oferendas, sempre desejadas. A intensidade da relação com essas muitas coisas era a certeza de uma generosidade oferecida, que colocava o existir em uma expressão de autenticidade e vínculo.

Que os armazéns e os auditórios sejam paióis!

O riso com a palavra

Estamos chegando ao fim. Haveria mais coisa a dizer. O próprio Bakhtin (2002; 2010; 2011) se dedicou a escrever sobre o riso como uma das grandes forças do existir humano! Aqui, fizemos algumas escolhas que, para nós, são enleios em suas possibilidades de desdobramentos.

Mas antes de finalizarmos ainda se fazem necessárias algumas palavras, ainda que poucas. Abrimos esse texto com a nota de campo, e ela nos acompanhou em todos os nossos argumentos e agora, nesse fechamento, precisamos continuar com ela. Voltemos a março de 2018. Sentemo-nos, novamente, no auditório. Observemos mais um slide que está sendo projetado:

Fonte: Lopes (2018).

Imagem 3 Mapa elaborado pelo grupo 

Nesse momento não havia mais risos. O silêncio era a força da palavra que se entremeava com a narrativa que provinha da mesa. No slide projetado estava o mapa feito com as crianças, a partir da caminhada no lado externo da escola.

No mapa estão as formigas que chamaram a atenção na curta peregrinação, um boneco de lata de um posto de combustível, alguns carros velhos parados na rua, flores que se enroscavam nas cerca de arame que circundava o prédio, algumas casas de pessoas conhecidas, e o pássaro. A calçada, que agora era sacos de granel, a escola que agora era paiol, fez-se em mapa, enunciado pelas crianças.

Os pontos fixos, móveis, pontos de cartografia que afiguram uma outra cartografia a se fazer: o pensamento infantil como compreensão respondente na cultura, como parte legítima e ativamente criadora desta, em diálogo desafiador e tremulante com as lógicas homologadas, infelizmente portadas por nós, adultos. Que esse ponto trêmulo possa afigurar a força do infantil que ainda nos constitui – como energia profundamente criativa e transformadora, ou como nostalgia de um futuro que nunca saberemos como se desenhará.

Mas, em tudo isso, temos uma escolha, um ato ético e responsivo, que desconstrói a representação (seja ela qual for) e sua pretensa veracidade. Falamos do “com”! Uma pequena palavra que tem em sua existência todas as possibilidades de juntar tudo que enunciamos até esse momento. Olhemos o “com” como um desejo de viver.

É nesse desejo que Matheus e Clara, duas crianças que não se conheceram pessoalmente, estão juntas, estão “com”! Pois o encontro de Matheus “com” Clara, e a afirmação de ambos, que envolve um pássaro morto e um “livro de criança velha”, não apontam para o lado mais pejorativo que esses termos costumam ter em nossas sociedades, mas narram exatamente o contrário: Matheus e Clara estão “com” a vida e “com” sua constante ressurreição.

Referências

Bakhtin, M. (2002). Questões de literatura e de estética a teoria do romance. Hucitec. [ Links ]

Bakhtin, M. (2010). Para uma filosofia do ato responsável. Pedro & João. [ Links ]

Bakhtin, M. (2011). Estética da Criação Verbal. Martins Fontes. [ Links ]

Barthes, R. (2013). Mitologias. DIFEL. [ Links ]

Benjamin, W. (1994). Obras escolhidas n.1. Magia e técnica, arte e política ensaios sobre literatura e história da cultura. Brasiliense. [ Links ]

Foucault, M. (2004). As palavras e as coisas. Martins Fontes. [ Links ]

Foucault, M. (2014). A ordem do discurso. Aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Edições Loyola. [ Links ]

Frigério, R. C., Marques, R. (2020). Entrevista com o professor Jader Janer. Revista Giramundo. http://doi.org/10.33025/grgcp2.v6i12.2582Links ]

Jerebtsov, S. (2014). Gomel - a cidade de L.S. Vigotski. Pesquisas científicas contemporâneas sobre instrução no âmbito da teoria histórico-cultural de L. S. Vigotski. Em Veresk - Cadernos Acadêmicos Internacionais (pp. 7-27). UniCEUB. https://repositorio.uniceub.br/jspui/bitstream/235/5750/6/VERESK.pdfLinks ]

Lima, M. F. C. (2020). Vem ver, Renatinha, uma froza! A criança, o poeta e a poesia numa tese-ninho. [Tese de Doutorado, Universidade Federal Fluminense]. Repositório Institucional UFF. https://app.uff.br/riuff/handle/1/16651Links ]

Lopes, J. J. M. (2018). As formigas também saem para passear: por uma escala das crianças e suas vivências espaciais. Em V. A. M. Chaigar, C. T. Azevedo, & I. M. N. Lopes. A cidade, as crianças e os animais (pp 65-80). Appris. [ Links ]

Medviédev, P. (2011). O método formal nos estudos literários. Editora Contexto. [ Links ]

Mello, M. B. (2001). Relendo Luria: os limites de uma perspectiva. Cadernos de Pesquisa, 112, 99-124. https://doi.org/10.1590/S0100-15742001000100005Links ]

Mello, M. B. (2003). A zona de amplificação cultural: um estudo sobre a cognição infantil situada em contexto escolar. [Tese de Doutorado, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro]. Maxwell. https://doi.org/10.17771/PUCRio.acad.4313Links ]

Santos, B. S. (1999). Um discurso sobre as ciências. Cortez. [ Links ]

Sobkin, V. (2017). As resenhas teatrais de L. S. Vigotski como início da concepção histórico-cultural. Em Veresk - Cadernos Acadêmicos Internacionais (pp. 7-33). UniCEUB. https://repositorio.uniceub.br/jspui/bitstream/235/11339/3/VERESK%20%281%29.pdfLinks ]

Spinoza, B. (2015). Ética. Autêntica. [ Links ]

Vigotski, L. S. (2006). Obras Escogidas IV. Machado Libros. [ Links ]

[1]Matheus é o nome real da criança, participante da pesquisa financiada pela Fapemig, intitulada Vivências sócio-espaciais de crianças em instituições de Educação Infantil: cartografia com crianças, tendo sido aprovada pela secretaria de Educação de Juiz de Fora e pelo comitê de ética.

[2]Clara é um nome fictício, tendo a família da criança aprovado o uso de suas falas na pesquisa a que fazemos referência, porém substituímos o nome real para fins desta publicação.

Recebido: 14 de Novembro de 2020; Aceito: 15 de Junho de 2021

Creative Commons License Esta obra está bajo una Licencia Creative Commons Atribución 4.0 Internacional.