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Linhas Críticas

versão impressa ISSN 1516-4896versão On-line ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.27  Brasília  2021  Epub 05-Abr-2021

https://doi.org/10.26512/lc.v27.2021.36527 

Dossiê: As dimensões educativas da luta: saberes e aprendizados da e na militância política

Educação e trabalho em famílias de ex-metalúrgicos(as)

Educación y trabajo en familias de antiguos trabajadores metalúrgicos

Education and work in former metalworker families

Jaime Santos Júnior1 
http://orcid.org/0000-0002-7809-6976

Marilda Aparecida de Menezes2 
http://orcid.org/0000-0001-5815-975X

1Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (2014). Professor Adjunto do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Paraná.

2PhD pela University of Manchester (1997). Professora Colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal do ABC.


Resumo

A proposta deste artigo é analisar como a militância sindical e a experiência de trabalho de metalúrgicos(as) foram constituintes de processos de aprendizagem e se converteram em expectativas de educação formal para os(as) filhos(as). As entrevistas foram feitas com mulheres e homens metalúrgicos, seus filhos e filhas, da região do ABC Paulista, que participaram do ciclo de greves de fins da década de 1970. A partir de suas memórias, podemos mostrar como as trajetórias de militância e trabalho fornecem indícios para compreender as influências nos investimentos educacionais dos filhos e filhas.

Palavras-chave Sindicalismo; Educação; Socialização; Trabalho; Famílias

Resumen

El propósito de este artículo es analizar cómo el activismo sindical y la experiencia laboral de los metalúrgicos fueron componentes de los procesos de aprendizaje y se convirtieron en expectativas de la educación formal para sus hijos. Las entrevistas se realizaron con mujeres y hombres metalúrgicos de la región ABC Paulista, que participaron en el ciclo de huelgas a fines de la década de 1970, y con hijos e hijas. A partir de sus memorias, podemos mostrar cómo las trayectorias del activismo y el trabajo muestran evidencias para comprender las influencias en las inversiones educativas de hijos e hijas.

Palabras clave Unionismo; Educación; Socialización; Trabajo; Familias

Abstract

The purpose of this article is to analyse how union activism and the work experience of metalworkers were part of the learning processes and became expectations of formal education for their children. The interviews were carried out with metallurgical women and men from the ABC Paulista region, who participated in the cycle of strikes in the late 1970s, and with their sons and daughters. From their memories, we can show how the trajectories of activism and work provide evidence to understand the influences on the educational investments of sons and daughters.

Keywords Unionism; Education; Socialization; Work; Families

Alguns pontos de partida: educação e trabalho nos últimos quarenta anos no Brasil

Em 2019, ao término de um projeto de pesquisa que buscou compreender, por meio de uma análise comparativa, práticas sindicais e de greves entre metalúrgicos e canavieiros – de São Paulo e Pernambuco – no período que se estende de fins da década de 1970 ao início de 1980, decidimos desdobrar algumas questões que permaneceram carentes de maior investimento analítico. Se o esforço anterior levou a termo uma análise das memórias de mulheres metalúrgicas e militantes do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC (SMABC) para reivindicar a pertinência da hipótese de que havia, em um processo social de longa duração, uma clivagem de gênero nas formas de se narrar as grandes greves que marcaram aquele período, recuperando pistas deixadas por Souza-Lobo (2011) e Humphrey (1983), o que nos inquietava era a permanência dessas clivagens mesmo passados 40 anos da situação originária em que elas aconteceram. Para dizer, a aparente invisibilidade dessas histórias de mulheres trabalhadoras militantes ecoava no tempo presente com uma “nova” roupagem: lá, era o reconhecimento da presença que estava em disputa; aqui, é a reivindicação de fazer parte da história narrada. Antes era a invisibilidade de corpo, agora é a invisibilidade das memórias.

Com isto em tela, avançamos para compreender não apenas o modo de reprodução dessa divisão sexual das memórias (Piscitelli, 2005), mas as suas repercussões no interior das famílias. O deslocamento de arena de manifestação dessas memórias, do público para o privado, dava consequência ao pressuposto metodológico que desenvolvemos em razão da quase impossibilidade de distinção, nas trajetórias das mulheres trabalhadoras, entre casa e trabalho (Santos Junior & Menezes, 2019). Para elas, e o que não se via nos homens, narrar o trabalho e a militância era também falar das agruras da vida doméstica num contexto que, não esqueçamos, as clivagens de gênero refletiam e amplificavam preconceitos vividos nos dois espaços. Isto nos permitiu arguir em favor da rentabilidade científica da compreensão da transmissão desse legado, em termos de herança geracional, no contexto de socialização das famílias. Temos, pois, que realçar, no desdobramento da pesquisa, i) a transmissão de uma concepção de luta, de militância, de política em sentido mais amplo, forjadas nessas trajetórias de pais militantes, e ii) a maneira como este “estoque de conhecimentos” reverbera nas expectativas dos pais e dos filhos(as) no que tange aos investimentos em educação. Neste artigo nos debruçaremos sobre esse segundo aspecto.

Para o caso dos pais, a despeito de terem ingressado no mercado de trabalho no setor metalúrgico com poucos anos de formação escolar, amiúde com o ensino médio incompleto, a necessidade/desejo de concluir os estudos e pleitear a formação em nível superior ocorreu no final da carreira, ou mesmo quando já estavam aposentados(as). Nesse recorte, interessa-nos sondar os sentidos atribuídos à educação, em sentido amplo, no contraste com as trajetórias ocupacionais e de militância, de modo a contemplar a socialização política como processo educativo. O nosso foco vai além do efeito prático que as credenciais escolares poderiam exercer sobre as oportunidades de trabalho, para flagrar uma dimensão mais difusa que toma a educação como componente necessário para a militância, na formação da “consciência de classe”, e como elemento de prestígio nas relações sociais no microcosmo do sindicato; seja pela pressão exercida através das redes sociais tecidas nesse ambiente, que contava com a presença de médicos, engenheiros, advogados, assessores em seus quadros e que acabava redefinindo a hierarquia dos saberes, seja pela ambição de concorrer à carreira política via partido. Veremos como, nas trajetórias dos(as) filhos(as), as credenciais escolares e os sentidos imputados à educação operam em um quadro social radicalmente distinto quando comparado ao dos pais, com efeitos visíveis nos projetos e expectativas associados aos estudos.

Isto posto, voltemos, para melhor calibrar, ao argumento inicial em favor de uma perspectiva que elege formas de socialização no trabalho, na militância sindical e na família para compreendê-las na chave dos processos educativos, inspirados que somos em considerar o valor de uma perspectiva não escolar no estudo da escola, como propõe Sposito (2003), para reter o insight das diferentes dimensões da socialização, que vão além da educação formal. Certamente há nesse pressuposto uma filiação teórica de partida que, no nosso caso, alinha-se à crítica feita à unicidade do ator (Lahire, 2001).

Ainda que estejamos operando com as memórias dessas famílias sobre a trajetória dos seus personagens, disso não decorre a suposição do peso do passado como um efeito determinante nos sistemas de ação, ao contrário, é-nos útil a distinção feita por Rosenthal (2014) entre “história vivida” e “história narrada”. Entendemos a memória como uma ativação, no tempo presente, de uma “representação de si”, comportando a reflexividade no ato de rememorar. Como sugere Ricoeur (1991), o ato de narrar é capaz de reabrir a dimensão da identidade que supõe a permanência do tempo. A conexão entre acontecimentos distintos é mediada pela temporalidade do ato de narrar, portanto, sujeita a constantes ressignificações. É com esse recurso que lançamos mão das narrativas biográficas dos entrevistados para nelas sondar os sentidos imputados à educação quando é comum a proximidade das trajetórias entre pais e filhos(as), mas são diversos os contextos em que essas socializações foram vividas. Mais uma vez, a ideia não é afastar a explicação disposicional (Bourdieu, 1977), mas deixar espaço para as formas de contestação, rejeição e mudança, a despeito do peso das experiências passadas.

Os(as) metalúrgicos(as) que compõem a amostra dos casos que analisamos fazem parte da primeira geração de trabalhadores que participaram das greves históricas ocorridas entre fins da década de 1970 e início de 1980. São trabalhadores migrantes com origem rural e que ingressaram no mercado de trabalho das indústrias automotivas com pouca, ou nenhuma, credencial escolar. Os requisitos de qualificação foram adquiridos on the job. Isso está em acordo com os achados de outros pesquisadores que, valendo-se de pesquisas com abordagem extensiva, já haviam demonstrado como o mercado de trabalho do setor industrial, entre as décadas de 1950 e 1980, operou recorrendo à mão de obra disponível naquele momento num cenário onde o acesso ao ensino ainda era incipiente. Para todos os nossos casos, os indivíduos chegavam às indústrias sem possuir os requisitos formais demandados pelo ofício que iriam ocupar. A baixa escolaridade era reflexo das desigualdades baseadas na origem de classe dos indivíduos (Valle Silva, 2003). Como sugerem Ribeiro et al. (2015), não era apenas a oferta de oportunidades educacionais que era mais limitada entre as décadas de 1960 e 1970, é que o custo de uma oportunidade de trabalho para o jovem era mais importante do que retardar o ingresso no mercado de trabalho em detrimento do aumento da escolaridade. Um privilégio só acessível às classes mais altas.

Cabe ainda outra preliminar sobre o mercado de trabalho no contexto de ingresso dos pais. Há bons motivos para crer que a regulação do trabalho assalariado sob o guarda-chuva da legislação trabalhista, outorgada na primeira metade do século XX, no Brasil, exercia um efeito de atração para indivíduos com origem rural. A ampliação da proteção legal para o trabalho rural, advinda com o Estatuto do Trabalhador Rural (ETR), só ocorreu em 1963. Sendo assim, o crescimento do setor automobilístico no ABC Paulista, associado à ideia de uma indústria moderna, com melhores salários quando comparado com as demais ocupações disponíveis no mercado, mobilizou amplo contingente de trabalhadores de diferentes regiões do Brasil, notadamente de origem rural (Durham, 1973; Negro, 2004), como nos nossos casos. No entanto, as oportunidades nesse mercado desigualavam-se em razão do gênero com predomínio dos homens, sobretudo entre as décadas de 1960, 1970 e 1980 (Guimarães et al., 2015).

Com esses contornos iniciais do contexto social de inserção no mercado de trabalho para o caso dos pais, a nossa hipótese é que a socialização no trabalho e, sobretudo, na militância sindical e política teriam fomentado esse retorno aos bancos escolares.

Já para o caso dos filhos, nascidos entre as décadas de 1980 e 1990, o cenário é outro. Reflexo das políticas macroeconômicas que surgiram nos anos de 1990 e da reorganização micro organizacional das indústrias, o setor automotivo do ABC Paulista viu o seu efetivo de trabalhadores decrescer em razão inversa ao aumento da exigência das credenciais educacionais como requisito para acesso às ocupações ofertadas. Já catalogado por outros pesquisadores (Tomizaki, 2006; Silva & Tomizaki, 2016), o sonho de se tornar “metalúrgico” vai ficando cada vez mais distante. Uma parte dessa mudança já era sentida no interior das famílias quando os pais não nutriam expectativas de que os(as) filhos(as) dessem seguimento às suas carreiras nas indústrias da região. Isso ocorre em paralelo a um maior investimento em educação formal, com vistas a completar a última transição, no ensino superior. Mais uma vez, os nossos casos confirmam achados de outros pesquisadores que, em estudos sobre estratificação educacional, mostram como as desigualdades horizontais vão se deslocando para os patamares mais elevados da formação pari passu a expansão da oferta de vagas, sobretudo no ensino privado. Para Comin e Barbosa (2011), no Brasil, ao contrário do que ocorreu em outros países, vingou a figura do trabalhador-estudante ao contrário do padrão canônico de transição escola-trabalho. Se antes o encontro entre credenciais educacionais e ocupações não era imperativo de corte no ingresso no mercado de trabalho do setor automotivo para a parcela de mão de obra que estudamos, no caso dos filhos, as exigências de qualificação são maiores e isso se reflete no aumento do tempo gasto na formação escolar. Mas aqui encontramos o exemplo do “trabalhador-estudante”, aquele que vai primeiro ao mercado de trabalho para encontrar o provento capaz de subsidiar os estudos em nível superior.

Na esperança de que o investimento em educação superior se convertesse em melhores oportunidades de trabalho, e ao encontrar um cenário favorável de políticas governamentais de financiamento dos estudos no setor privado tais como o Fundo de Financiamento Estudantil (FIES) (Brasil, 2001) e o Programa Universidade Para Todos (ProUni) (Brasil, 2005), ou pela expansão da oferta nas universidades públicas como o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni) (Brasil, 2007), os(as) filhos(as) dessas famílias de metalúrgicos atribuem outros significados à educação. Ainda que, como veremos, nem sempre ocorre o encontro entre a área de formação e de ocupação.

Temos aqui um cruzamento de elementos externos à escola que fornecem pistas para compreensão da influência da socialização do trabalho, da militância e da família, que, como supomos, incidem sobre as trajetórias educacionais dos nossos personagens. Para os extratos em análise, pais e filhos(as), a gradação necessária para medir os efeitos das disposições herdadas e as condições de reprodução social de uma categoria de trabalhadores não as toma como indicadores permanentes e intransponíveis, à revelia da maneira como as transformações na estrutura de oportunidades do quadro social mais amplo, em que se inserem as trajetórias em estudo, podem constituir campos de ativação e/ou inibição de modos de reprodução social. Concentrando-se nas socializações, almejamos compreender menos a ação e mais o ator que age para sondar as variações nas manifestações do passado incorporado pelos atores[1].

A literatura já havia registrado a tensão existente entre o aumento do investimento em educação superior como forma de habilitar os jovens a concorrer por melhores ocupações e a desvalorização do ensino profissionalizante que, no caso do ABC Paulista, ganha contornos específicos por conta da presença do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI). Sucede que a geração de metalúrgicos dos pais lançou mão fartamente do ensino profissionalizante ofertados no interior das próprias indústrias, em parceria com o SENAI. Este último viria a consolidar-se como agente “autônomo” no processo educacional ampliando inclusive a sua oferta de cursos para além do ensino profissionalizante. Como afirma Tomizaki (2008), um diploma, ou certificado da “escola da Mercedes”, como era conhecida a primeira experiência profissionalizante em parceria com o SENAI, tinha muito valor no mercado de trabalho entre as décadas de 1970 e 1980. Mas à medida que as mudanças nos processos produtivos e nas formas de gestão e usos do trabalho foram se alterando, os códigos atribuídos ao ensino profissionalizante e superior ostentam novos significados, em desfavor do primeiro. Muito próximo do que Beaud e Pialoux (2009) encontram num estudo clássico sobre as transformações da classe operária em uma fábrica da Peugeot, em Sochaux-Montbéliard, na França. No minucioso registro etnográfico, eles percebem como todos os signos e representações que remetem à fábrica, a imagem de operário, ao maquinário mais antigo, ao macacão, eram depreciados pelas novas gerações de jovens trabalhadores que desejam uma vinculação com o que havia de mais moderno no processo produtivo.

Se é verdade que os(as) filhos(as) que analisamos superaram a escolaridade dos pais já em suas primeiras transições para o mercado de trabalho, a reprodução da condição operária como “metalúrgico” foi ficando cada vez mais distante como ambição para pais e filhos(as).

Com esses primeiros acordes, o nosso interesse foi o de situar os elementos do cenário em que as trajetórias das gerações familiares que estudamos têm lugar. Mas a ideia é a de assumir esse pano de fundo em sua dimensão substantiva, não meramente como palco, para arguir em favor da maneira como o contexto também configura uma instância de socialização. Resta-nos dizer ainda que a pesquisa foi desenvolvida em duas fases: num primeiro momento, entre os anos de 2017 a 2019, quando o nosso foco estava mais voltado para as memórias de trabalho e militância dos pais, e, na fase posterior, os desdobramentos mais recentes que iremos nos valer nesse texto ocorreram em 2020, quando fizemos o recorte com os filhos e filhas dos(as) trabalhadores(as) para recolocar a transmissão das memórias no interior das famílias e analisar os projetos educacionais e o legado político dos pais (Santos Junior & Menezes, 2021). A definição dos perfis para compor uma amostra de casos deu-se em razão da trajetória do pai e/ou da mãe como metalúrgicos, que participaram das greves histórias e que tiveram atuação na militância sindical. Excluindo-se os casos de trabalhadores(as) que foram entrevistados sem a extensão para outros membros da família, tivemos um total de três famílias, que se distribuem de acordo com a tabela 1, abaixo:

Tabela 1 Dados dos(as) entrevistados(as)[2] 

Pais Idade Escolaridade Conclusão Filhos Idade Escolaridade Conclusão
Caso 1 Guaraci 71 Superior completo (história) 2000 Ingrid 40 Superior completo (pedagogia) 2017
Rosa 68 Ensino médio incompleto pendente
Caso 2 Telma 73 Ensino fundamental incompleto pendente Valdo 47 Superior completo (direito) 2004
Caso 3 Ieda 63 Superior completo (pedagogia) 2003 Paulo 28 Superior completo (comércio exterior) 2011
Roberto 63 Ensino médio completo 1996 Margarida 32 Superior completo (turismo) 2008
Antônio 30 Superior completo (administração) 2011

Fonte: elaboração própria.

Para a exposição e análise optamos pela agregação dos casos para realçar aspectos comuns nas trajetórias naquilo que atinge os significados atribuídos à educação e a influência dos espaços de socialização sobre as decisões, preservando as variações singulares a cada indivíduo.

Educação e militância

Hoje sabemos como o desenvolvimento do parque automotivo na região do ABC, enquanto cenário, constituiu uma categoria de trabalhadores com uma cultura de ofício reivindicada para designar uma identidade de trabalho, cuja expressão maior foi a imagem do “peão”, “metalúrgica (a)”, e como práticas de militância sindical que teria desenvolvido o que se convencionou chamar de “novo sindicalismo”. A literatura já havia mostrado como as primeiras gerações de operários, que ingressaram entre as décadas de 1950 e 1980, careciam das credenciais escolares, mesmo para os cargos cujo componente de qualificação era maior. O processo de aprendizagem do ofício ocorria na prática e encontrava amparo em cursos profissionalizantes, alguns deles serão ofertados pelo SMABC. Isto não destoava do quadro mais amplo do mercado de trabalho no Brasil, naquele momento, para outros setores de atividade econômica. O que gostaríamos de reter aqui não é somente o registro de um processo de formação profissional em um cenário de carência/precariedade da formação escolar, mas o aspecto simbólico relacionado ao fato de que uma parcela considerável desses trabalhadores tinha origem rural. Sim, porque como mostra Comin (2015) trabalhando com dados dos Censos, a inversão demográfica ocorreu entre os anos de 1960 a 1991. Se em 1960 a agricultura familiar e de subsistência respondia por quase 40% do total das ocupações, em 1991 esse percentual não chegava a 10% (Comin, 2015). Deixando propositadamente em suspenso todo o debate sobre as causas dessas migrações[3], o amplo e intenso processo de inversão da estrutura das ocupações no Brasil ocorreu em prejuízo das populações rurais, ganhando tons mais dramáticos. No tocante às desigualdades educacionais existentes nesse período, Comin (2015) lembra que o déficit educacional entre 1960 e 1970 era maior para os trabalhadores rurais quando comparado aos do meio urbano, chegando a 60% e 10% respectivamente de indivíduos que nunca haviam frequentado a escola. A progressão dessa desigualdade se mantém mesmo com as transformações no acesso ao ensino básico. “Em 2010, 70% dos ocupados urbanos haviam concluído pelo menos o nível fundamental de ensino, enquanto no campo essa proporção mal superava os 20%” (Comin, 2015, p. 379).

O que as estatísticas não dão conta de responder é que os significados atribuídos a essas migrações, na escala individual, assumem a ideia de que o ingresso no mercado de trabalho urbano era também um modo de adquirir uma profissão (Menezes, 2019). Portanto, a experiência de socialização no trabalho adquire desde logo uma dimensão educativa, de formação. Essa chave também nos serve para arguir em favor de como a militância sindical – posteriormente em política partidária para alguns(mas) –, tendo o sindicato como instância de socialização, teria atuado como catalisadora de um projeto educacional. Vejamos como isso transparece nas narrativas.

Os Pais

Filho de pai e mãe com pouco estudo, tendo nascido no interior de Minas Gerais, Guaraci chega a São Paulo aos 16 anos, em 1966, com o ensino médio incompleto, para morar com uns irmãos que já residiam em Diadema. Consegue um primeiro emprego na construção civil e, após um período servindo ao Exército, ingressa na Mercedes Benz onde fica por quatro anos. É levado até a empresa por intermédio de um irmão que já trabalhava lá. Entrou como “ajudante” e saiu como “serralheiro”

Nesse período você volta a estudar ou vai fazer Senai? Ou não, você aprendeu tudo trabalhando na fábrica?

Não. Algumas coisas eu aprendi na fábrica, algumas coisas eu fiz curso, eu fiz curso no Senai, também, fiz curso de desenho, desenho mecânico no Senai, depois eu fiz outros cursos de desenhista, também. Pensei em sair da área produtiva e ir pra área de escritório. Fiz o desenho mecânico, para - como é que fala? - desenhista mecânico. Aí percebi que não era minha área. "Não, eu quero continuar no meio da peãozada". (Guaraci, 71 anos)

Na fase posterior, a trajetória ocupacional se torna errática com a saída da Mercedes atribuída à militância sindical. Vê-se como o processo de formação vai sendo feito no curso da ocupação. Tal artifício não se restringe apenas aos requisitos mais técnicos demandados para executar as atividades que lhe eram atribuídas, estendendo-se também para o aprendizado de outros saberes, relacionados aos direitos. Que será impulsionado pela militância sindical. Mas, antes, vejamos outro exemplo.

Das memórias que guarda da vida com a família no sertão da Bahia, Telma, 73 anos, recorda que os estudos, embora desejados, pareciam mais distantes de se alcançar. Naquele contexto, residindo em pequenas propriedades, distantes dos centros urbanos dos municípios, as famílias chegavam a contratar professores para alfabetizar as crianças. Estamos em 1970. Uma irmã mais velha já havia migrado com o esposo para São Bernardo do Campo, em 1966, seguida por um irmão, e, na sequência, a nossa personagem junta-se a eles em 1972, com 23 anos de idade. Os irmãos sempre trabalharam como metalúrgicos, já ela, o primeiro emprego que consegue é como doméstica. Posteriormente, por intermédio do irmão, consegue uma vaga em uma pequena metalúrgica. Faz ainda outras transições entre empresas e logo fica grávida, tendo um primeiro filho. Nesse momento a trajetória da nossa personagem sofre uma grande inflexão. Mãe solteira, sente na pele as discriminações em razão da gravidez, começa a perceber com maior clareza a clivagem que pesava sobre as mulheres no chão de fábrica: as formas de controle do corpo, o uso da “chapinha[4]” para ir ao banheiro, as restrições impostas às trabalhadoras mulheres que não atingiam os homens, para citar os mais palpitantes. Ocorre que é por esta via que ela chega ao sindicato, em 1976, atraída pela possibilidade de reivindicar direitos em um acordo que fez com uma empresa no momento de uma demissão. É levada pelo irmão que já militava por lá.

É no sindicato que ela tem contato com outras mulheres que viviam situações muito parecidas com as dela e que encontravam na militância a possibilidade de compartilhar essas experiências. A militância vai devolvendo-lhe a possibilidade de lutar por “autonomia”, modo nativo usado para designar os significados atribuídos ao trabalho, e, em sentido mais amplo, o aprendizado da socialização política. Como ela nos conta,

[...] Ele [referindo-se a Lula[5]] falou assim para você?

Falou. Na época, ele nem tinha barba. Era só o bigodão. Ele falou: “é o contrário, você nunca mais vai parar de fazer greve, porque daqui pra frente você vai adquirir consciência de classe”. O que será isso? Consciência de classe? Aí algumas palavras que ficavam me marcando.

Uma era essa?

Consciência de classe. O que será isso? Aí quando eu ficava com uma palavra na cabeça, eu falava: “eu tenho que ir para descobrir, né?” Aí eu ia para as reuniões.

Você falou mais-valia, quais outras palavrinhas?

Mais-valia, luta de classe, consciência de classe, eu falava: “agora que eu tenho que ir para eu entender. Porque eu não entendo... O que é essas coisas?”. E eu fui me fiando, fui me fiando. (Telma, 73 anos)

Os indícios desse processo que afasta a escola pelo ingresso prematuro no trabalho ao passo em que suscita outras socializações que demandam conhecimento encontra semelhança em outros casos. Ieda, 63 anos, migrante do sertão de Alagoas, chegou a São Paulo, no bairro do Ipiranga, aos 6 anos de idade. O pai já havia migrado para tentar uma oportunidade nas fábricas e criar as condições que permitissem, na sequência, a vinda do resto da família. Das lembranças da infância, guarda em cores vivas a precariedade das condições de moradia nesses primeiros anos, até a mudança, quando estava com 12 anos, para São Bernardo do Campo. A permanência no bairro do Ipiranga, residindo com a avó e outros irmãos, ocorreu por conta dos estudos, mas, logo interrompe para ingressar no mercado de trabalho. No início, trabalhando como doméstica, depois consegue uma vaga numa fábrica de borracha, aos 12 anos, sob autorização do juizado de menores, estamos em 1970.

[...] Isso foi em 1970, setembro de 1970. Eu tinha 12 anos e meio. E eu fiquei nessa empresa um ano e meio, mas era uma empresa assim, aí eu tive que parar de estudar. Sempre essa luta minha de ter que parar de estudar, porque lá eu trabalhava uma semana das 6h às 14h e na outra semana das 14h às 22h, e aí eu tentei fazer, na época, o quinto ano, que a gente chamava de admissão, para entrar na 5ª série do antigo ginásio, nós tínhamos que fazer essa admissão, o 5º ano. Aí na semana que eu trabalhava de manhã, eu estudava; na semana que eu trabalhava a noite, eu não estudava. (Ieda, 63 anos)

Para essa geração de metalúrgicos(as), a totalidade dos casos que analisamos apresentam perfis muito próximos no que tange à educação em suas fases iniciais, dando cores ao que as estatísticas já haviam mostrado. No entanto, e esse é um aspecto decisivo em nossa hipótese, a socialização no trabalho e na militância sindical teria atuado como catalizadora do retorno aos investimentos em educação para essa geração, com consequências sobre a trajetória dos filhos(as). Mas vale um alerta: as possíveis influências entre as expectativas dos pais sobre a trajetória dos filhos é um ponto de chegada, não de partida, como pretendemos mostrar. Há ainda outra nuance nos significados atribuídos à posse de credenciais escolares por essa geração de trabalhadores quando comparado ao que sucede com os(as) filhos(as) dessas famílias. A militância sindical demandava o conhecimento de uma gramática específica de maneiras de ser, agir, pensar e sentir, o que nos permite compreendê-la pelo prisma de uma ação educadora, de educação política. Então, em face da precariedade de formação escolar dos(as) trabalhadores(as), a militância constituía um espaço de aprendizagem dos direitos, dos interesses de classe, de uma compreensão política das relações de trabalho, entre outros aspectos.

Para o caso dos pais, o retorno à educação formal para terminar o ensino fundamental e/ou médio e para ingressar no ensino superior ocorreu na fase final das suas trajetórias ocupacionais, para alguns no momento da aposentadoria. Não é de se desmerecer que a socialização no sindicato expunha os nossos entrevistados à convivência com outros profissionais de nível superior – médicos, advogados, contadores, assessores sindicais, para citar os mais recorrentes. Na medida em que alguns vão sendo requisitados para assumir cargos na estrutura burocrática e/ou concorrer a mandatos eletivos, a ausência das credenciais escolares passa a pesar em suas trajetórias. Gostaríamos também de ressaltar que certamente nas assembleias, na manifestação dos interesses, vale dizer, nas situações de fala, disputas simbólicas pela legitimidade dos discursos ganhavam inflexão em razão das credenciais escolares dos seus portadores. Importa o prestígio de quem fala. São disputas que, hoje, se deslocaram para o registro da memória das greves históricas, como expusemos alhures (Santos Junior& Menezes, 2019). Vejamos como emerge nos relatos o retorno à escola.

Entre os que passaram pela executiva do SMABC, Guaraci fez a transição para a política partidária chegando a assumir dois mandatos como vereador em Diadema. Ieda, nossa outra entrevistada, chegou a concorrer ao cargo de vereador, mas não logrou êxito. O que gostaríamos de destacar é que é nesse momento, já na aposentadoria, ou próximo, que eles(as) retornam aos estudos.

[...] E eu estudei, consegui depois de muitos anos né interrompendo, que até para estudar eu tive muitas dificuldades, foi interrompendo, parava na 4ª série do antigo primário, depois parava na 7ª série, depois voltei aí consegui chegar no Ensino Médio, aí parei de novo aí depois de alguns anos, aliás muitos anos, eu fiz, consegui fazer uma faculdade, sou formada em Pedagogia e consegui [...]. (Ieda, 63 anos)

Profissionalmente, você se aposentou?

Tentei, trabalhei como assessoria. Trabalhei em alguns setores. Trabalhei na assessoria da CUT, trabalhei na assessoria do / trabalhei, fui Programa Integrar da CUT, trabalhei como assessoria de algumas entidades. Não lembro aqui, precisar tal. E aí eu resolvi, também, nesse período, voltar a estudar. Voltei a estudar com a cara e a coragem, fui para o vestibular. “Eu vou prestar vestibular pra isso aqui”.

Onde que você prestou vestibular?

Na Fundação Santo André.

Isso em que ano?

Foi em 97. 97, 98, 99, 2000. Foi isso mesmo. Então, os quatro anos de Ciências Sociais na Fundação Santo André. Nesses quatro anos eu não trabalhei, eu só estudei. Eu saí. Ah, não, minto. Nesses quatro anos eu não trabalhei, eu terminei a graduação logo em seguida. Um professor, alguns professores da Fundação, fazendo a propaganda da pós-graduação na PUC, fui pra PUC. Fiz pós-graduação na PUC logo em seguida. Eles falam um... 18 meses, né, mas você acaba pagando dois anos. Então, fiz a pós-graduação em História, Sociedade e Cultura. (Guaraci, 71 anos)

Todo o longo período de trabalho e militância é permeado por experiências educativas, seja nos cursos para Comissão Interna de Prevenção e Acidentes (CIPA), ou nos cursos profissionalizantes feitos on the job, ou na prática sindical que, ao fim e ao cabo, demandava conhecimentos outros relacionados às formas de atuação e ação política. O próprio sindicato nutria o propósito de converter em linguagem acessível as demandas dos trabalhadores habilitando-os a reivindicar pelos seus direitos. Como, por exemplo, na ação do grupo de teatro Forja. Nascido na efervescência das grandes greves de 1978 a 1981, a linguagem do teatro serviu para mimetizar, em forma de arte, as questões postas pelos(as) trabalhadores(as), também atores e atrizes, e pelo sindicato.

Os atores operários de São Bernardo, por meio das peças teatrais (desde o grupo Ferramenta), fundiam diferentes expressões, imagens, metáforas, alegorias e outras figuras que, em conjunto, compunham um cenário significativo, de articulações de um modo de pensar e agir, uma visão do mundo. Em última instância, as formas e produções culturais criam-se e recriam-se na trama das relações sociais, da produção e reprodução da sociedade, como um todo e em suas partes constitutivas. (Paranhos, 2005, p. 113)

Parece que estamos, pois, diante de um microcosmo que criou as condições para um processo educativo em sentido amplo, de formação de consciência, sensibilizando pessoas com pouco ou nenhum estudo no afã de transmitir-lhes uma visão de mundo. Para os(as) trabalhadores(as), são famílias que irão atribuir um lugar afetivo para a escola, ainda que em face da carência de recursos e/ou capital escolar. Vejamos agora a trajetória dos filhos para sondar, no processo de transmissão, os efeitos dos investimentos educacionais.

Filhos(as)

As informações relativas às trajetórias dos filhos(as) serão analisadas levando-se em consideração os seguintes recortes: i) internamente, na família, enquanto espaço de socialização e cruzamento de expectativas dos pais e filhos(as); ii) no contexto do quadro social mais amplo em que se situam essas trajetórias. Desse modo, se permanecemos com a inquietação inicial de compreender como as trajetórias de trabalho e militância sindical de ex-metalúrgicos(as) foram constituintes de processos de aprendizagem nos projetos de formação educacional formal na família, cotejando com as trajetórias dos(as) filhos(as), isso não nos faz cegos à variação do contexto em que essas histórias têm lugar.

Nesse sentido, recuperamos dois balizadores sobre as diferenças no mercado de trabalho e na relação escola-trabalho em que os(as) filhos(as) ingressaram quando comparado ao que vimos anteriormente sobre os pais. O primeiro aspecto é a diferença significativa entre o ingresso precário no mercado de trabalho urbano para os pais, com trajetórias migrantes (rural-urbano), frequentemente associado à obtenção da profissão, do trabalho assalariado com carteira assinada e o ingresso dos(as) filhos(as). Lá, credenciais escolares eram escassas e não se convertiam em entraves para a aquisição do emprego. Cá, para os filhos, que entraram no mercado de trabalho a partir da década de 1990, o cenário era outro. A visibilidade que o desemprego assume é prova da institucionalização de um mercado de trabalho, quando a População Economicamente Ativa passa a encontrar a sua sobrevivência nesse lugar, e das tentativas de mensuração do desemprego que ocorrem a partir do Censo de 1991 (Guimarães et al., 2015). Mas acontece também a expansão do assalariamento formal e da presença feminina no mercado de trabalho que salta de 36,9% em 1985 para 53,4% em 1995 (Guimarães, 2001). Para o caso do setor metalúrgico, isto se traduz na fragilidade das expectativas de pais e filhos(as) no tocante à possibilidade de continuidade de trajetórias ocupacionais no setor metalúrgico.

Esse aparente desencaixe entre o aumento das credenciais escolares para a geração dos(as) filhos(as) e a dificuldade de encontrar postos de trabalho na área de formação encontra outra nuance. A ampliação do acesso ao ensino superior, como mostramos no início desse texto, decantou sobre um mercado de trabalho que pode ser ainda mais seletivo. Para uma parcela das ocupações, aumentou o gap entre o requisito de qualificação e o cargo assumido, tornando a posse do diploma redundante. A literatura também deixou pistas de como a “qualificação” converteu-se em uma peleja discursiva, politicamente disputada por diferentes atores e socialmente construída (Gallie, 1991). Em nossa análise, veremos como a transição para o ensino superior ocorreu em uma fase posterior ao ingresso no mercado de trabalho, consoante com os achados de Comin e Barbosa (2011). A seguir, o nosso esforço será para compreender os projetos educacionais dos(as) filhos(as) cotejando com as trajetórias dos pais.

As lembranças da militância sindical e política do pai ainda parecem muito vivas nas memórias de Ingrid, hoje com 40 anos. A adolescência foi permeada por situações em que ela acompanhou o pai nas reuniões do sindicato, em campanhas políticas, mas também das dificuldades em razão da sua ausência no cotidiano da casa, no acompanhamento das atividades escolares, ou ainda dos momentos mais delicados pelo qual passou a família quando em face do desemprego do pai, compensados sempre nos relatos pela presença da mãe que era dona de casa. Não havia, por parte do pai e dela, como transparece no relato de ambos, a expectativa de continuidade da trajetória laboral nas indústrias metalúrgicas da região. Não é à toa que ela encontra uma primeira oportunidade de trabalho no setor de serviços.

O emprego estava vinculado ao momento em que Ingrid fazia um curso técnico de informática, funcionando como um “estágio”. Ao terminar o ensino médio, ela ingressa na área administrativa de outra empresa e dá início à faculdade de Administração. Conclui o curso superior e permanece nessa empresa até quando estava como 32 anos (aos 23 anos já havia casado e tido um filho). Nessa ocasião, ocorre outra transição de área de formação, é quando decide cursar pedagogia. Segundo nos conta, a mudança teria ocorrido pela falta de perspectiva de crescimento na empresa e pelo cansaço atribuído à intensidade do trabalho. Atualmente, ela é professora contratada pela prefeitura de São Paulo, em uma modalidade temporária. O relato fornece indícios de uma trajetória (ocorreu o mesmo para o irmão) que investe mais tempo na formação escolar e que vai nutrindo outras expectativas de inserção no mercado de trabalho, nem sempre no mesmo setor da área de formação, como veremos nos outros casos. Também podemos afirmar que o engajamento do pai, Guaraci, ao retornar aos estudos, ainda que motivado por outros anseios, cria as condições que tornam possível a transmissão do capital cultural forjado no ambiente familiar.

Em percursos muito próximos ao da Ingrid, os três filhos de Ieda, Paulo, Margarida e Antônio, também ingressam no mercado de trabalho em idades entre os 15 e 20 anos e, no momento seguinte, investem na formação superior. O pai, metalúrgico, sente a ausência das credenciais escolares quando comparado às novas gerações de metalúrgicos que ingressam no setor e é estimulado por Ieda para concluir o ensino médio.

Logo depois, em 1997, e após já ter assumido cargos na diretoria do SMABC, Ieda vai trabalhar em cargo comissionado na prefeitura de São Bernardo do Campo. É o momento em que ela consegue a aposentadoria e resolve fazer faculdade de Pedagogia, mesmo tendo que conciliar com os cuidados da casa. O ingresso prematuro no mercado de trabalho para os filhos assume a acepção de viabilizar os estudos, sempre cobrados por Ieda. Mesmo quando Margarida, a filha mais velha, engravidou aos 16 anos, Ieda insiste para que ela entre numa faculdade.

Margarida fez faculdade de Turismo e, depois, pós-graduação em Gestão. Mas a sua trajetória ocupacional começa aos 16 anos como jovem aprendiz em loja varejista, trabalhando como operadora de telemarketing, depois assume cargo comissionado em prefeitura até chegar a um emprego na administração de um hospital público. São os filhos homens, Paulo (28 anos) e Antônio (30 anos) que, por iniciativa da mãe, esboçam uma tentativa de inserção no setor metalúrgico quando, aos dezesseis anos, tiveram uma passagem como jovem aprendiz no Centro de Formação e Integração Social (Camp), que tinha parceria com a Mercedes Benz. Os aprendizes administrativos do Camp são direcionados às áreas que a empresa necessita, não lhes restando a oportunidade de escolher em qual área irão trabalhar. Mas eles não conseguem ser efetivados e se inserem em outros setores. Na sequência, Paulo faz curso superior de Comércio Exterior e Antônio se forma em Administração, ambos com trajetórias ocupacionais fora do setor metalúrgico. Vê-se como a conversão das estratégias de investimentos educacionais é uma tentativa de maximizar as oportunidades no mercado de trabalho, ainda que os cargos assumidos não tenham como exigência a formação superior na área de estudo.

Se em Beaud e Pialoux (2009) encontramos uma cisão entre duas gerações de trabalhadores metalúrgicos no interior de uma mesma empresa no que tange, entre outros aspectos, aos investimentos educacionais, em nossos casos colhemos os efeitos de estratégias de reconversão dos projetos educacionais observando a trajetória de pais e filhos(as). Vale dizer, é nesse encontro de gerações no interior de uma mesma família, variando o contexto em que as trajetórias de trabalho e estudo têm lugar, que podemos esmiuçar os processos de, por um lado, interiorização de estruturas objetivas e, por outro, negociação e ativação/rejeição do conteúdo do que é transmitido. Só há “herança” se o herdeiro encontrar as condições adequadas para essa transmissão (Lahire, 1997).

Filho da nossa personagem que anotava as palavras que aprendia nas reuniões do sindicato, Valdo nasceu em 1973 e, no momento da entrevista, contava 47 anos. Ele não hesita em falar o quanto a trajetória da mãe, de trabalho e militância, pesou sobre a sua vida. O aspecto mais evidente foi quando, ainda na infância, teve que viver com os avós, no sertão da Bahia, como recurso da mãe em face da difícil conciliação entre o trabalho e os cuidados com o filho na ausência do pai, que nunca assumiu a paternidade. O período inicial da vida escolar conviveu com as ausências da mãe por conta do trabalho. Ao término desse primeiro ciclo formativo, Valdo tem uma experiência como metalúrgico que durou poucos anos. Como nos demais casos, Valdo recorda das frequentes idas ao sindicato acompanhando a mãe nas atividades de militância e, na narrativa, vai deixando transparecer possíveis influências desse ambiente em sua formação política citando, por exemplo, a participação no movimento estudantil na escola. Enquanto trabalhou como metalúrgico, em uma empresa de carburadores para veículos, Valdo nos conta que participou ativamente de atividades sindicais, foi membro da CIPA, todas características muito próximas da trajetória da mãe.

É a atividade sindical, por ter participado de uma greve, que o levará à demissão, em 1999, da segunda metalúrgica em que trabalhou, a Pirelli. Um pouco antes, porém, já com 27 anos de idade, e por incentivo dos colegas, resolve tentar o curso de Direito ante a possibilidade de conseguir um financiamento oferecido pelo governo federal naquele momento, o FIES.

À guisa de conclusão

O processo sociocognitivo de incorporação das estruturas sociais deixa revelar os constrangimentos presentes nos investimentos educacionais dos(as) filhos(as) na forma de uma manifesta preocupação com a inflação da credencial escolar exigida por um mercado de trabalho cada vez mais seletivo e restrito. Estudar vai assumir nesse contexto o anseio para atingir o requisito de qualificação dos empregos disponíveis que, pela permanência de outras desigualdades que se manifestam, por exemplo, nas diferenças de prestígio entre os cursos e faculdades, tornam redundantes os diplomas, associando-os a ocupações precárias e instáveis. Que atinge a maior parcela de empregos nos casos que analisamos.

Por sua vez, há bons motivos para crer que as influências externas à escola, enquanto espaços de socialização, funcionaram como catalisadores de processos educativos em sentido amplo, estendendo os seus efeitos em diferentes momentos do ciclo de vida dos nossos personagens. Contudo a tensão parece exposta quando observamos, no processo difuso de transmissão de valores e bens simbólicos associados à educação, a atribuição de sentido ao que está sendo “herdado” e que precisa encontrar consequência no curso das experiências vividas pelos(as) filhos(as) em outro contexto. Os investimentos que estão por vir pretendemos avançar na compreensão dessa dissociação entre o que Koselleck (2004) chama de “espaço de experiência” e “horizonte de expectativas” nas trajetórias de vida dos(as) filhos(as). Sim, porque ao contrário das trajetórias dos pais, onde o requisito de qualificação repousava em um contexto que absorvia a formação lenta e gradual dos indivíduos, para os(as) filhos(as), o horizonte de expectativas é deslocado para o espaço de experiência, ou seja, os investimentos educacionais, ousamos dizer, almejam antecipar as expectativas futuras para tentar influenciá-las no curso do tempo presente. Mas a permanência de outras formas de desigualdades – prestígios dos cursos e universidades, por exemplo – deprime o esforço. Reservando-lhe, como vimos, empregos precários quando comparados aos dos pais. Eis o desafio que temos pela frente.

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[1]Há, reconhecemos, um elemento de tensão aqui entre um conjunto de modelos interpretativos que querem marcar distância das explicações disposicionalistas, concentrando-se, por exemplo, como fazem Boltanski & Thévenot (1991), na competência dos atores para agir. Ou por meio da filiação à teoria realista, como faz Archer (2003), para recuperar a dimensão da agência sem, contudo, abolir o passado herdado.

[2]Todos os nomes doravante empregados são fictícios.

[3]Declinamos desse esforço pelos limites a que esse texto está sujeito, mas o leitor interessado pode encontrar as primeiras formulações em Singer (1971).

[4]Tratava-se de regular o acesso aos banheiros pelo controle da chave, sempre pendurada na parede e visível à chefia imediato, cujo ícone maior no registro das memórias é o chaveiro em forma de chapa.

[5]Luís Inácio Lula da Silva, ex-presidente da república, à época diretor do SMABC.

Recebido: 15 de Fevereiro de 2021; Aceito: 23 de Março de 2021

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