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Linhas Críticas

Print version ISSN 1516-4896On-line version ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.27  Brasília  2021  Epub May 11, 2021

https://doi.org/10.26512/lc.v27.2021.36500 

Dossiê: As dimensões educativas da luta: saberes e aprendizados da e na militância política

Marxismo, consciência e comportamento político

Marxismo, conciencia y comportamiento político

Marxism, consciousness and political behaviour

Alessandro Soares da Silva1 
http://orcid.org/0000-0003-3637-2458

Antonio Euzébios Filho2 
http://orcid.org/0000-0002-5276-3697

1Doutor em Psicologia Social pela PUC-SP (2006). Professor Livre docente (2012) da Escola de Artes, Ciências e Humanidades - EACH - no Curso de Gestão de Políticas Públicas e no Programa de Pós-Graduação em Estudos Culturais da Universidade de São Paulo (USP). É líder do Grupo de Estudos e pesquisas em Psicologia Política, Políticas Públicas e Multiculturalismo.

2Doutor em Psicologia pela PUC-Campinas (2010). Professor do Instituto de Psicologia e do programa de pós-graduação em Psicologia Social, Instituto de Psicologia, Departamento de Psicologia Social e do trabalho da Universidade de São Paulo (USP). Membro do Grupo de Estudos e pesquisas em Psicologia Política, Políticas Públicas e Multiculturalismo.


Resumo

O comportamento político sustenta-se em diversas áreas. Com vistas a refletir sobre essa produção, retomaremos as contribuições sobre o tema desde um olhar materialista histórico e dialético. Aqui, analisaremos os encontros e desencontros entre diferentes posições no campo marxista, se debruçando em conceitos como fatalismo e conscientização, estes percebidos como indicadores psicopolíticos.

Palavras-chave Fatalismo; Psicologia Política; Classe

Resumen

El comportamiento político se mantiene en varios ámbitos. Para reflexionar sobre esta producción, retomaremos las aportaciones sobre el tema desde una perspectiva histórica y materialista dialéctica. Aquí, analizaremos los encuentros y desencuentros entre diferentes posiciones del campo marxista, centrándonos en conceptos como el fatalismo y la concienciación, estos percibidos como indicadores psicopolíticos.

Palabras clave Fatalismo; Psicología Política; Clase

Abstract

Political behavior is sustained in several areas. In order to reflect on this production, we will resume the contributions on the theme from a historical and dialectical materialist viewpoint. Here we will analyze the meetings and mismatches between different positions in the Marxist field, focusing on concepts such as fatalism and conscientization, these perceived as psychopolitical indicators.

Keywords Fatalism; Political Psychology; Class

Introdução

Ao buscarmos o termo Comportamento Político no CNPq, o encontramos na área da Ciência Política. Quem sabe por isso não esteja associado, de imediato, à Educação, à Psicologia ou a áreas Interdisciplinares. Mas Comportamento Político (CP) e Psicologia Política (PP) estão intimamente ligadas (Sandoval, 1997) e são muitos os estudos sobre CP feitos pela PP.

Neste texto, analisaremos o CP numa perspectiva psicopolítica (Sandoval, 2015; Sandoval & Silva, 2016; Martín-Baró, 2013) em diálogo com o materialismo histórico e dialético (Marx, 2011; Lukács, 2003; Frederico, 1979). O CP não é um termo nem tão utilizado nem rechaçado pelo marxismo, o que não significa que não haja pontes para definição deste conceito baseada por esta concepção compreendida como práxis política orientada dialeticamente para um fim social. Atuando para reprodução das relações sociais capitalistas ou para sua dissolução, o CP atua no complexo social da ideologia, compreendido por Lukács (2003) como um campo em que se trava uma batalha de ideias no âmbito dos conflitos sociais.

Abordaremos o CP desde o marxismo de Lukács com ênfase nos aspectos teórico-conceituais que caracterizam o fenômeno na literatura elegida. Desse lugar, propomos indicadores psicopolíticos, isto é, elementos que explicitam a dimensão relacional da política presente nos processos de socialização. Tais indicadores são compreendidos na intersecção dialética da ideação com as estruturas do modo de sociabilidade capitalista (Euzébios Filho, 2011). A dimensão psicopolítica do CP exige um olhar interdisciplinar que articule o conhecimento nos campos da psicologia e das ciências sociais. É nesta articulação que a PP é parte.

A PP é um campo particularmente fértil para o estudo do CP. Ignacio Martín-Baró (2013, p. 576) recorda que “ao se buscar a elaboração sistemática da Psicologia Política, começaram a aparecer, explicitamente, diversos problemas enfrentados por este ramo do quefazer das ciências sociais”. Para ele, CP está na gênese da Psicologia Política e aponta ao menos três elementos: a. o caráter político provém daquilo que se faz; b. sua especificidade surge mais claramente do como se faz; e c. o político está determinado pelo sentido do que se faz. Essas três abordagens do CP localizam a perspectiva latino-americana de ver e fazer PP desde uma epistemologia da práxis de corte marxista. Esses pressupostos questionam os sentidos da produção de saberes; seus critérios de validação e reconhecimento do que possa ser considerado verdadeiro, pois “o que fazer psicopolítico não está condicionado apenas pelo ‘a partir de onde’ e ‘a partir de quem’, mas também pelo ‘para onde’ e o ‘para quem’” (Martín-Baró, 2013, p. 581).

A realidade latino-americana nos desafia pensar na dimensão ético-política do conhecimento. E é a conjuntura atual a responsável pelo incremento da relevância dos estudos de CP no país ocorridos em face dos tensionamentos políticos iniciados em 2013. Nesse contexto, os estudos de CP ganharam mais repercussão, seja em função das manifestações de junho de 2013 (Euzébios Filho & Guzzo, 2018), seja em função do acirramento das disputas político-eleitorais que conduziram ao impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff e à eleição de Jair Bolsonaro, ancorada num discurso moralizante, de anticorrupção, religioso e neoliberal.

Por isso, “fazer psicologia política implica envolver-se de maneira explícita no jogo de forças políticas, com tudo o que isso significa no interior dos regimes existentes nos países latino-americanos” (Martín-Baró, 2013, p. 576).

Indicadores Psicopolíticos: um Olhar Sobre o Comportamento Político

Diante do atual cenário político, que combina retirada de direitos com autoritarismo (Silva, 2015; 2020), mas também indignação com revolta popular, procuramos problematizar conceitos que permitam a identificação de indicadores psicopolíticos do CP presentes na literatura relacionada ao marxismo. A partir das análises da produção sobre o tema feitas por Schlegel (2010), é possível notar que há um predomínio de investigações convencionais que são caracterizadas por uma perspectiva funcionalista, na sociologia, ou cognitivista, na psicologia. Ambas limitadas aos procedimentos técnico-descritivos da investigação empírica.

Tais estudos se dedicam a analisar a relação entre escolaridade e participação política; o comportamento eleitoral de determinada população; aspectos ligados a preconceitos, movimentos sociais e eleições. Há, portanto, o predomínio de uma relação instrumental com o conceito, que não que leva em conta nem a dimensão da práxis política, compreendida como resultado de múltiplas determinações, tampouco o elemento fundante da ideologia e da própria vida política: a produção da vida material (Lukács, 2003).

Para Schlegel (2010), a análise convencional se caracteriza pela concepção homogênea de sociedade, que nega conflitos de ordem estrutural, isto é, a luta de classes. Assim, os estudos convencionais sobre CP carecem de um debate ontológico, teórico, histórico, político e conjuntural.

A perspectiva convencional parte de uma realidade estática, que obscurece a natureza histórica dos aspectos psicopolíticos, quando estes são considerados. Nesta concepção, os indicadores de um determinado fenômeno são acessados pelo uso de técnicas e métodos, uso de softwares cada vez mais sofisticados e capazes de acessar os processos comunicacionais e de formação de crenças e opiniões que constituem o CP. A crítica de que indicadores são mistificados pelo manto da “neutralidade científica" é fundamental para superar distorções e percebê-los como chave em processos de mudança social. Isso os limita à descrição de respostas aos itens do questionário, da escala utilizada etc. (Rosa & Strieder, 2019). CP, nesta ótica, se configura como uma soma de atitudes e opiniões individuais, passíveis de serem plenamente captadas no momento empírico (Schlegel, 2010).

Destarte, o termo ‘indicadores’, amplamente utilizado em políticas públicas, vale dizer que aqui traz outro sentido e foi pouco usado no materialismo histórico e dialético. Marx não utilizou o termo, embora tenha considerado absolutamente necessário que qualquer obra científica almeje identificar os elementos da realidade concreta, que neste texto denominamos, para fins didáticos, de indicadores. Na ótica marxiana, o pensamento científico é caracterizado por um conjunto de representações sistematizadas sobre um determinado aspecto da realidade com a finalidade de “representar o concreto” (Marx, 2011, pp. 54-55). Indicadores em Marx podem ser entendidos como os elementos que permitem analisar as condições sociais e políticas, fundadas pelos processos de produção da vida material. Como afirma o filósofo: “Os meios de trabalho servem para medir o desenvolvimento da força humana de trabalho e, além disso, indicam as condições sociais em que se realiza o trabalho” (Marx, 1985, p. 153).

Marx marca tanto o caráter teórico-metodológico quanto o ético-político. Deixa, ainda, um indicativo que pode ser útil para a ação política e para a militância: elas devem se basear em análises científicas da realidade para conhecer os movimentos concretos da luta de classes. É a partir de Marx que pensamos em indicadores psicopolíticos como uma dimensão dentre várias determinações da luta de classes, bem como a prática política, a militância. Tanto a ciência como a militância não podem se furtar de conhecer os movimentos do real.

Os indicadores são indispensáveis a qualquer teoria que propõe conhecer as dimensões que configuram as multideterminações da realidade social. Como todo fenômeno social, o objeto de estudo da PP não é puramente psicológico ou social. Os indicadores são invariavelmente multideterminados, sendo eles próprios instrumentos analíticos que se sustentam em diversos pressupostos de ordem econômica, social, cultural, política, psicológica.

Os desafios de pensar e construir indicadores estão em identificar um desencadeamento de relações tanto sociopolíticas como psicológicas, em que a pertinência de indicadores ganha sentido e legitimação na realidade. Para pensar alguns destes indicadores, observamos o que Martín-Baró (1983) denomina de dimensão psicossocial da realidade, a qual revela uma postura epistemológica voltada a compreender as tramas da dialética que envolvem o social, o político e o psicológico. Um importante objetivo psicopolítico é compreender a ação enquanto ideológica, pois um dos focos desse fazer científico e praxiológico são as mediações entre consciência e ideologia.

Ao cotejar autores da PP e do materialismo histórico e dialético, nota-se que a leitura psicopolítica do CP - e de seus indicadores - passa pela consideração de dois elementos articulados em uma totalidade concreta não imediatamente aparente, a saber: 1. as particularidades históricas dos modos de produção e reprodução da vida em sociedade; 2. os movimentos reais dos atores políticos que atuam e produzem uma determinada conjuntura. Desses dois aspectos, os indicadores psicopolíticos enfatizam a dimensão relacional dos processos da consciência política e como eles emergem nos processos de socialização compreendidos na dialética singular-particular-universal (Lukács, 1967).

Nesta concepção, o CP corresponde a um fenômeno que se liga dialeticamente às três dimensões, sendo o singular representado pelo indivíduo - único e irrepetível - e o universal compreendido como os aspectos estruturais de um modo de sociabilidade. A particularidade é justamente aquela que estabelece a mediação entre o sujeito e as estruturas sociais, por meio dos grupos e das instituições sociais. Trata-se do lócus privilegiado de desenvolvimento da consciência política e do encontro entre consciência de classe e consciência psicológica (Lukács, 2003). Um enfoque psicopolítico deve se ocupar em compreender a dimensão particular dos fenômenos políticos.

Esses princípios superam a perspectiva convencional que não nega que comportamentos, atitudes e ações políticas estabelecem relação com os grupos e a instituições, mas não considera essa relação como constituinte do fenômeno psicopolítico e o universal como elemento estruturante do singular. É preciso reconhecer não haver um alinhamento necessário entre singular e universal, assim como não é possível estabelecer vinculações mecânicas entre CPs particulares e as estruturas sociopolíticas.

No plano individual, o CP é caracterizado por aspectos cognitivos e emocionais que se produzem em dadas situações econômicas e conjunturais a serem analisadas pelos indicadores. Portanto, no pensamento marxiano há uma teoria do CP que busca explicar a dinâmica do comportamento individual-coletivo, interseccionado numa teoria da ideologia e da consciência de classe.

Esses elementos do CP encontram-se na literatura psicopolítica latino-americana (Martín-Baró, 1983; 1999; Euzébios Filho & Gradella Jr., 2020). Nossa perspectiva do CP parte de posicionamentos hermenêuticos psicopolíticos críticos e nos permite desvelar o projeto de sociedade resultante dos entrelaçamentos entre o social e o político.

O Social e o Político: contrapontos críticos sobre comportamento político

Para Martín-Baró, (1983), ao longo da história da psicologia há três posturas ético-políticas que coadunam com os interesses de determinados setores da sociedade e que delineiam estudos sobre o CP nas ciências sociais e na PP. A primeira posição ético-política se manifesta na pergunta: o que mantém os membros de uma sociedade coesos? Essa questão conduz à emergência da PP moderna que se focaliza na compreensão de fenômenos políticos coletivos, como multidões e massas. Inaugura-se, assim, o pensamento psicopolítico sobre o CP que se valia de concepções dualistas de sujeito e de sociedade.

A questão “O que integra as pessoas à ordem social?” norteia a segunda postura ético-política. Elementos grupais e individuais do CP estão na base das demandas de setores privilegiados da sociedade, principalmente nos países centrais do capitalismo. O domínio da opinião pública e do CP, tratados numa compreensão atomizada de sujeito experimental, dão corpo e garantem a adaptabilidade do sujeito às normas constitutivas da sociedade capitalista.

A terceira postura rompe os princípios adaptacionista e positivista do CP e se volta ao entendimento sobre o que nos liberta da ordem estabelecida? A partir deste questionamento é possível compreender o marxismo como uma filosofia para a construção de uma alternativa de ruptura ao modelo hegemônico de sociedade que está presente em fazeres dominantes na PP hegemônica. Uma perspectiva crítica do CP parte de três princípios: 1. compreender a realidade como social e histórica e em constante construção; 2. adotar um modelo conflitivo; 3. querer tornar claro o papel político do fazer científico e profissional, comprometido com a mudança social.

Os fundamentos do marxismo são claros, pois tomam a história - compreendida como movimento operado pelos sujeitos reais - como ponto de partida para qualquer empreendimento teórico no campo das ciências sociais e caracteriza a PP crítica (Lacerda Jr. & Hur, 2016). Para que a ciência seja crítica, ela deve se opor às formas dominantes nas dimensões ontológica, epistemológica e metodológica, sobretudo política, considerando não haver fronteira bem definida entre ciência e ideologia.

Do ponto de vista do CP, a contraposição é ontológica e tem a ver com a forma com que se compreende a natureza deste fenômeno nos diferentes projetos teórico-políticos existentes nas Ciências Sociais. Para a PP assentada no marxismo, trata-se de um fenômeno multideterminado que perpassa as dimensões singular, particular e universal, mas que ganha corpo a partir de um acúmulo histórico de tensões, esclarecimentos, processos de ideologização e identificação, reivindicações, questionamentos e lutas sociais. No olhar pautado numa PP Crítica, CP refere-se ao modo como o sujeito atua frente ao poder, seja ele disruptivo e libertário, marcado pela autonomia e a emancipação do cotidiano alienante, seja pela subordinação face à força que o sistema ideológico dominante tem sobre sua capacidade de perceber e reagir frente à imposição de controles que embotam sua consciência-de-si. Para Martín-Baró (2013, p. 582):

A psicologia política, ao contrário, remete o ser humano e seu comportamento ao sistema social do qual é parte e ator e, assim, obriga a inclusão do marco estrutural em toda análise, não como algo extrínseco ao comportamento das pessoas e dos grupos, mas como um constitutivo essencial.

A distinção epistemológica entre as perspectivas crítica e dominante refere-se à superação, por incorporação, da lógica formal. Como sabemos, o fundamento da lógica formal baseia-se na noção rígida de oposição e identidade. Não há espaço para contradição. Ela é considerada como entrave para o desenvolvimento positivo da ciência. Por sua vez, a lógica dialética aparece como uma perspectiva crítica de superação teórico-metodológica do modelo positivista.

Perspectivas críticas não negam que haja oposição e identidade entre os fenômenos que compõem um todo, mas reconhecem que algo pode ser e não ser ao mesmo tempo. Como diz Iasi (2006), um sujeito, grupo ou classe podem operar, ao mesmo tempo, entre o consentimento e o questionamento da ordem. Não há alienação nem emancipação absolutas. Um desafio à PP que qualificamos como crítico refere-se à integridade do ser humano. Esse é um aspecto que articula teoria, empiria e metodologia de um fazer crítico. Para Martín-Baró (2013, p. 582):

O ser humano é uma realidade objetiva no âmbito de uma sociedade e, portanto, objeto e sujeito nas circunstâncias, produto e produtor de condições materiais, interlocutor e referência de relações sociais. Mas o ser humano também é realidade subjetiva, criador de uma perspectiva e de uma atividade.

Com efeito, o fazer científico crítico não pode abrir mão de um olhar constante acerca das interações ontológicas entre subjetividade e totalidade concreta. Sobretudo tratando-se de CP, essas interações revelam-se no campo das relações de poder, isto é, da própria política. A condição de ser político é tanto mais clara se resultante de um processo de conscientização - decodificação das relações de poder (Freire, 2001).

Dentre várias abordagens críticas, adotamos o materialismo histórico e dialético como referência. A consciência de classe aparece como conceito fundamental para estabelecer as bases teórico-políticas dessa análise, assim como para realizar articulações desse pensamento com a PP latino-americana na caracterização dos indicadores do CP.

A Consciência como Objeto do Comportamento Político

A ideia de consciência de classe varia segundo a vertente do campo marxista. Varia a posição do sujeito e o seu lugar no âmbito político. Se todos partem de Marx, todos se reposicionam a partir do próprio autor e mediados por distintas condições históricas vivenciadas por cada um. São pelo menos duas perspectivas ético-políticas que antagonizam neste campo: a revolucionária e a democrático-popular (ou reformista). Na primeira, situam-se Lênin, Trotsky e Lukács. Eles valorizam a práxis política e compreendem a consciência de classe “para si” como fenômeno histórico. Na segunda, temos a tradição democrático-popular que busca estabelecer uma relação mais ou menos direta entre as reformas democráticas e a revolução socialista. São parte deste campo autores como Freire e Martín-Baró. Dão mais ênfase ao trabalho de base e a mobilização social.

Ressaltamos que, para Lukács, não é possível pensar a política e o político sem pensar os movimentos históricos da consciência de classe. É por isso que Lukács pode constituir-se como fundamento de um olhar psicopolítico crítico, pois a dialética singular-particular-universal, extraída do pensamento marxiano, corresponde a um método de apreensão da totalidade concreta que possa desvelar dialeticamente as contradições, tensões e conexões entre as dimensões do indivíduo (de baixo para cima), os processos grupais e as estruturas sociais (de cima para baixo). Assim, propomos extrair sínteses a partir das distinções estabelecidas pelo que Lukács denominou de consciência psicológica e consciência de classe, em diálogo com outros autores do pensamento marxista.

Nessa senda, parece-nos que Iasi (2006) buscou estabelecer, em parte de sua obra, mediações entre a dimensão psicológica da realidade (que sob as bases parcelares do pensamento científico burguês, limitou-se equivocadamente ao campo da psicologia) e o marxismo, ao tratar de questões relacionadas aos processos da consciência de classe. O autor afirma que o conteúdo emocional antecede o conteúdo racional. Para ele, “um valor pode ser assimilado antes de assumir uma forma sistematizada de ideia, ou conceito, muito longe, portanto, de um valor moral ou saber científico” (Iasi, 2006, p. 140). Isto indica que a adesão a um projeto político não depende, somente, de uma apreensão lógica da realidade, que retrata, objetivamente, o funcionamento da sociedade de classes ou como é produzida esta ou aquela desigualdade. Essa adesão também estaria relacionada à vivência afetiva e à apropriação simbólica de um determinado fenômeno social.

Lukács (2003) faz uma distinção entre consciência de classe e consciência psicológica. A primeira delas refere-se a uma possibilidade histórica de emergir uma consciência de classe como categoria econômica, a partir da posição que a classe trabalhadora, e principalmente o proletariado, ocupam no modo de sociabilidade capitalista. Esse tipo de consciência não depende, para emergir como fenômeno universal da classe, de vínculos psicológicos estabelecidos entre indivíduos e grupos que compõem a classe. Com isso, Lukács quer destacar aquilo que é essencial para a compreensão do fenômeno: as condições econômicas da sociedade e os interesses objetivos decorrentes dessas condições.

Evidentemente que nem Marx, nem Engels rejeitam a mediação inalienável das dimensões singular, particular e universal. Mas para que possa haver o salto de qualidade representado por um processo revolucionário, é necessário que a vida no capitalismo seja insuportável nestas três dimensões: do ponto de vista da existência humana; da fragmentação dos processos coletivos; e do ponto de vista econômico - esse último considerado como elemento fundante da consciência de classe: sem ele não é possível à classe emergir como classe (Marx & Engels, 2007).

Nesta via, Lukács (2003) afirma que um processo revolucionário só pode ser colocado em curso, como elemento essencial do processo, em períodos de acirramento das crises econômicas do capital. Isso não significa que a consciência responda mecanicamente aos processos universais. Dessa maneira, a dimensão psicopolítica - não compreendida individualmente ou como micropolítica, mas como vivência e identidade de classe sentidas nos planos da singularidade e particularidade - torna-se um elemento importante.

Para Frederico (1979, p. 30):

[...] a consciência psicológica envolve todas as experiências possíveis do indivíduo. Ela conserva em cada operariado seu caráter a posteriore [...] é uma forma que espelha o acontecido. [...] A consciência psicológica distingue-se temporal e estruturalmente da consciência de classe. Num segundo momento, a consciência de classe, que é mais organizada que a consciência psicológica, acaba também por influenciá-la, moldando as atitudes e a mentalidade do indivíduo.

Percebe-se que a consciência de classe, por emergir num primeiro momento como vivência prática imediata do ser de classe, tem uma dimensão singular e particular, ou seja, se desenvolve como sujeito e como grupo. E para se concretizar como classe e superar a condição imediata - a pseudoconcreticidade - é necessário que as duas primeiras dimensões estejam articuladas com a condição universal posta pelo capitalismo para a classe trabalhadora.

Isso pode impor limites às teorias psicopolíticas que caracterizam a consciência de classe a partir de questões mais ligadas aos processos psicológicos, culturais ou dependentes das vivências afetivas dos sujeitos. Não se trata de desqualificar essas dimensões, mas de não as colocar como fundantes do desenvolvimento da consciência de classe como classe. Para Mészáros (2008, p. 89):

O desenvolvimento da consciência de classe necessária não implica sua constituição como “um vínculo psicológico homogêneo” [...] mas a elaboração de programas de ação estrategicamente viáveis, que englobem uma multiplicidade de grupos sociais específicos.

Isso não significa que a afetividade não cumpra um papel fundamental para englobar uma multiplicidade de grupos sociais. Observe-se que Mészáros reconhece a afetividade como uma dimensão inalienável do ser social sem que ela seja fundante da consciência de classe. A interposição de sujeitos e grupos no contexto da luta de classes não se constitui, simplesmente, por vínculos afetivos.

A consciência de classe tanto mais avança quanto mais os indivíduos ou grupos se apropriam das propriedades objetivas do capitalismo, para negá-las ou reafirmá-las como classe e ao mesmo tempo como sujeitos e grupos sociais. Porém, essa apropriação pode estar carregada de afetividade (Iasi, 2006), mas sem determinar o desenvolvimento da consciência de classe como classe (Lukács, 2003).

Ao reconhecer que a consciência de classe pode ser desencadeada no contexto imediato das relações sociais, Lukács dá importância aos fenômenos particulares à medida que eles caracterizam as mediações entre singular e universal. São, então, no método de análise dessas mediações, que nascem diferentes concepções do que se pode entender como processos de consciência ou níveis de consciência.

Níveis de consciência é uma expressão corrente nos estudos sobre consciência de classe. Iasi (2006) e Frederico (1979) identificam três momentos predominantes da consciência política, que convivem entre si de maneira contraditória, do individualismo à coletividade, entre indivíduo, grupo e classe.

O primeiro fica mais preso ao campo da singularidade, mas uma singularidade que se expressa nos processos de fetichização, reificação e individualismo. O segundo liga as demandas singulares ao campo das particularidades - nesse caso, os autores se referem àqueles trabalhadores que travam uma luta sindical por melhores condições salariais, por exemplo, mas não articulam essa demanda com a condição universal da classe trabalhadora. Enfim, tanto Iasi (2006) como Frederico (1979) destacam a articulação entre singularidade, particularidade e universalidade como um terceiro momento caracterizado pela organicidade entre modo de vida, projetos coletivos e direção classista de mudança social.

Mas como caracterizamos, concretamente, cada um desses momentos? Como eles se articulam entre si e em que momento ocorrem essas articulações? Seria o terceiro momento plenamente alcançado pela classe? Essas questões movem dilemas nem sempre bem solucionados no interior do marxismo. A nosso ver, os momentos convivem uns com os outros e a consciência de classe pode dar saltos, atingindo rapidamente momentos de radicalidade política.

O terceiro momento apontado por Iasi (2006) e Frederico (1979) não elimina as contradições prescritas nos processos da consciência, tampouco, exclui elementos de alienação e ideologização. Se a consciência avança como práxis refletida, esse avanço também depende de certos graus de apropriação racional de um aspecto da realidade, que, no caso da consciência de classe, é o modo de funcionamento da sociedade capitalista e as formas de sua superação.

Sob outra perspectiva, as particularidades da consciência política podem ser compreendidas com base naquilo que Freire (2001) denominou de conscientização: um fenômeno que consiste em um processo de decodificação da ideologia dominante. A partir de Freire, Martín-Baró (2013) caracterizou o processo de conscientização como um processo psicopolítico, uma vez que se deu enfoque à manifestação da consciência crítica nos processos de socialização, ainda que não descolado dos elementos estruturais do modo de sociabilidade capitalista. O autor conclamou a psicologia política latino-americana a se posicionar pelo que chamou de desideologização.

Considerando a conscientização como um fenômeno psicopolítico, tanto Martín-Baró quanto Paulo Freire enfatizaram uma consciência que avança ou retrocede a partir de um processo de decodificação da ideologia construída pela classe dominante. Essa decodificação da realidade de classes é compreendida como um processo eminentemente cognoscitivo, de conhecimento crítico da realidade, refletindo a tentativa de articular marxismo com o pensamento fenomenológico.

Ainda assim, a perspectiva da conscientização tem por trás uma compreensão classista da sociedade capitalista. E não era apenas a dimensão do conhecimento, mas da práxis anticapitalista que fez com que Freire (2001) elaborasse as ideias de consciência dominada e emancipada. Entre esses dois tipos de consciência prevalecia uma concepção dialética, considerando o desenvolvimento da consciência política como fenômeno em movimento, num movimento não linear, mas contraditório. Isso nos permite entender que a consciência de classe não é fenômeno absoluto, mas caracterizado por momentos complexos que revelam diferentes práticas e compreensões sobre a sociedade de classes.

Indicadores do CP: um olhar psicossocial sobre os processos de socialização política

Já vimos algumas divergências de fundo entre o que chamamos de PP dominante ou crítica. Também ficou evidente que o conceito de consciência de classe, numa perspectiva marxista, assume um papel organizador dos estudos sobre CP. Faremos um exercício para compreender alguns pontos possíveis de convergência entre o materialismo histórico e dialético e alguns pensamentos presentes na PP crítica brasileira e latino-americana, buscando indicadores para uma compreensão do CP.

Elementos de convergência entre os conceitos e autores citados são: 1. a superação da concepção estática sobre a realidade social; 2. o social é constituinte do fenômeno psicológico; 3. questionamentos em relação ao adaptacionismo científico; 4. incorporação, por superação, da lógica formal; 5. superação do empirismo e das práticas laboratoriais como pontos de acesso exclusivos (ou privilegiados) do CP.

A partir desses pontos de convergência, elegemos três conceitos que podem se aproximar mais ou menos da perspectiva materialista histórica e dialética: 1. fatalismo (Martín-Baró, 1999) e capacidade de ação restritiva (Holzkamp, 2016), que revela tensionamentos entre mobilização/passividade do sujeito político; 2. conscientização (Freire, 2001), que discute os processos e níveis de decodificação da ideologia dominante; 3. o modelo de Sandoval (1994; 2001) para o estudo da consciência política, que segundo Silva (2015) e Sandoval e Silva (2016), possibilita uma análise dialética da (des)mobilização social.

Fatalismo, segundo Martín-Baró (1999), revela a necessidade de compreender as formas com que determinados sujeitos internalizam a condição de alienação e a ideologia do destino. Martín-Baró chamava atenção para um fenômeno muito presente na sociedade: a religiosidade. Ao criticar o pensamento religioso tradicional, ele demonstra como o catolicismo hegemônico atua para culpabilização dos pobres pela própria condição de pobreza. É possível que se estabeleça aqui uma relação com a alienação em Marx, especialmente na sua crítica ao pensamento místico-religioso. Porém, o enfoque baroniano se refere mais ao que ele denomina de internalização das relações de dominação, causando repercussões negativas na auto-imagem, na identidade social e na memória histórica das populações marginalizadas.

Assim, o fatalismo naturaliza as relações de poder e a subalternidade sociopolítica, produzindo a crença no sucesso advindo do esforço individual e/ou da vontade divina; a descrença na eficácia das instituições democráticas e dos movimentos sociais; o silenciamento e distanciamento emocional diante da injustiça, entre outros aspectos. O fatalismo se agrava quando associado às experiências de humilhação social, gerando angústia derivada de uma condição de classe que produz vivências de submissão e diminuição da própria condição como sujeito político.

Outro conceito relevante para os indicadores de CP é a capacidade de ação e a capacidade restritiva de ação (Holzkamp, 2016). Para Holzkamp, a capacidade de ação corresponde à capacidade de o sujeito, em associação a outros indivíduos, tornar-se um sujeito político. Isso ocorre quando as premissas de vida individualmente relevantes são estendidas e levadas ao entendimento coletivo, conformando processos de identificação e dissidências políticas. Seria um processo que corresponde à maximização da capacidade de ação do sujeito político e ao fortalecimento dos processos de participação e representação política.

A capacidade restrita de ação, por sua vez, é compreendida como uma situação de isolamento social e político que resulta na minimização desses processos. Refere-se ao afrouxamento dos vínculos psicopolíticos do sujeito com um grupo ou classe, sendo esse afrouxamento proporcional também à capacidade de um coletivo em absorver diferentes sensibilidades políticas.

Para Holzkamp (2016), as aproximações ou dissidências políticas se dão pelas razões ou fundamentações de ação que emergem do vínculo entre sujeito e grupos sociais. O olhar sobre esse vínculo também aparece no conceito de conscientização de Freire (2001), que considera a capacidade de superação e enfrentamento da ideologia (entendida como ideologia da classe dominante) pode ser alargada ou restrita pela combinação entre aspectos particulares da vida do sujeito e as configurações histórico-sociais de uma coletividade. Freire (2001) e Martín-Baró (1999) entendem que o aprofundamento das relações democráticas implica em rupturas nas relações de poder subalternizantes.

Para Martín-Baró (2013), os graus de participação e representatividade política são acompanhados por determinados graus de comprometimento psicológico dos sujeitos com as causas assumidas coletivamente e com grupos que atuam em níveis distintos nos conflitos sociais e nos processos de polarização política. Isso faz com que os fenômenos da participação e representação produzam afetos, os quais são acompanhados de representações de si mesmo e dos outros, de preconceitos, humanização ou desumanização das relações sociais, banalização ou combate à violência, dor e enfrentamento das memórias da dor, contribuindo de diferentes maneiras para demarcar identidades políticas. É importante precisar que os afetos decorrentes dos processos de aproximação e dissidência política são compreendidos pelo autor como fenômenos subordinados ontologicamente à produção da vida material e têm um papel mais decisivo no âmbito imediato da socialização.

O Modelo Analítico da Consciência Política (MACP) de Sandoval possibilita a síntese entre singular, particular e universal. O MACP é composto de sete dimensões e se aproximam de autores como Heller, Gramsci, Tilly e Luxemburgo. O MACP é eclético e faz uma síntese teórico-metodológica que traz importantes contribuições ao estudo do CP desde a PP, ao mesmo tempo que problematiza questões do marxismo (Silva, 2015).

A crítica de Sandoval ao marxismo se refere a uma postura hermética que não absorve análises processuais, colocando todas as dimensões na dependência da universalidade econômica. Neste particular, o autor não diferencia, por exemplo, a obra marxiana do vasto pensamento marxista no instante em que ele focaliza o pensamento marxista na sua tradição estruturalista.

Sandoval (2015) considera que, após a década de 1980, um elemento marcante da conjuntura é a desmobilização derivada da reorganização que o neoliberalismo e a tecnologia passaram a impor ao mundo do trabalho (Sandoval, 2001; 2015). Aquele cenário político do final dos anos 1980 revelava o esgotamento de “teorias macrossociais”, incluindo o marxismo estruturalista. A nosso ver, seria importante diferenciar o marxismo e o pensamento marxiano, afastando qualquer confusão entre eles e clarificando sua posição sobre o campo de pensamento originado em Marx.

Para Sandoval (2015, pp. 178-179), o MACP foi desenvolvido a partir:

[...] das contribuições de diversos autores e correntes teóricas que, em algum momento, deram foco à problemática da formação do pensamento e da visão de mundo de indivíduos em sua interação com a realidade social. Optamos pelo conceito de “consciência” para nomear esse pensamento social do indivíduo por entender que, tradicionalmente, na literatura de movimentos sociais e nos enfoques de Paulo Freire e da psicologia social latino-americana de Ignacio Martín-Baró, a noção de consciência é o constructo conceitual usado para nomear esse pensar social e traz para nosso enfoque o lugar central da “conscientização” como o processo pelo qual os indivíduos alteram suas consciências frente aos acontecimentos das realidades vividas por eles. Nessa perspectiva, consciência e conscientização recuperam um passado perdido da psicologia social, que tem suas raízes tanto na tradição interacionista iniciada por George Herbert Mead e a Escola de Chicago, quanto nos trabalhos de sociólogos e ativistas dos movimentos sociais, desde o início da tradição marxista do século XIX.

Sandoval associa teorias macro e microssociais fazendo frente à anulação histórica do sujeito histórico, que remete ao Stalinismo, e traz aspectos relevantes na dinâmica coletivo-indivíduo que permitem indicadores interdisciplinares na análise do CP. A partir das categorias identidade, oposição e totalidade propostas por Touraine para analisar a consciência operária, Sandoval (1994) inicia seu modelo introduzindo a categoria da predisposição para intervenção, trazendo indicadores nem sempre associados ao CP. O MACP é ampliado de quatro para sete dimensões (categorias) em 2001, enriquecendo a análise do complexo entrelaçamento entre singular, particular e universal nos fenômenos de CP.

Os indicadores derivados dessa compreensão teórico-metodológica do CP permitem a construção de instrumentos e roteiros de pesquisa que articulam diferentes tradições de estudos sobre CP. Por meio do MACP, se pode enfocar legitimidade atribuída a uma ação, sentimento de justiça social, percepção das características sociais e culturais de seu grupo ou classe, definição e percepção sobre papéis sociais, sobre condutas de consumo, entre outros elementos que procuram alcançar as nervuras do tecido social, indo além do formalmente institucionalizado pela lógica do trabalho alienado e do aceito como forma de participação política pelo Estado.

No MACP, Sandoval se aproxima do materialismo histórico e dialético de modo difuso e transversal, como indicado por Silva e Ferreira Jr. (2015), o que possibilita um olhar psicopolítico da relação entre o sujeito e os contextos de socialização, por meio de ações coletivas e do envolvimento com instituições e movimentos políticos. Como Freire e Martín-Baró, Sandoval entende que os processos de socialização adquirem um caráter histórico e cumprem um papel importante na conformação do/da fatalismo/conscientização/coesão e distanciamento social. Este é um grande achado na história das Psicologias Política e Social, considerando suas origens marcadas, hegemonicamente, pelas perspectivas individualistas e adaptacionistas (Martín-Baró, 1983; Silva, 2015).

A análise dos processos de socialização, mediada por instituições e grupos sociais mais imediatos, contribui para uma reflexão sobre o (des)encontro entre a consciência psicológica e consciência de classe. Frederico (1979, p. 30) aponta para isso quando diz que “para cada trabalhador individual, o caminho para atingir a consciência de classe objetivamente possível só pode passar pelas experiências imediatas para atingir, depois, a clarificação”.

As experiências imediatas decorrem de processos de socialização que aproximam, dialeticamente, o sujeito particular (singular) das estruturas sociais (universal), sendo a socialização um elemento crucial na formulação dos conceitos de conscientização e fatalismo em Martín-Baró, Freire e Sandoval. Para eles, o fatalismo é sustentado por estruturas e processos dialeticamente articulados em sociedade de classes, sendo a ideologia dominante o princípio alienador no cotidiano das pessoas, internalizado como crenças e valores societais transmitidas por família, escola, religião, trabalho e outros espaços de socialização (Sandoval & Silva, 2016).

Os indicadores psicopolíticos que surgem a partir da influência de Marx (2011) tornam possível gerar linhas gerais de como conduzir um processo de educação e socialização política. Formar militantes é uma tarefa política e científica e é parte do campo de estudos do CP. Pois bem, de modo geral, as articulações pensadas podem se configurar na seguinte relação com a perspectiva de Marx e Lukács, adotada ao longo desse trabalho, como mostra o quadro abaixo:

Fonte: os autores.

Quadro 1 Indicadores psicopolíticos do comportamento político 

Considerações Finais

A compreensão do CP inspirado em Marx e em determinados autores marxistas e não marxistas parte de uma identificação da ideologia dominante como sistemas de ideias que afetam social, política e emocionalmente o CP do trabalhador, ao instilar falsas crenças e valores autodestrutivos no trabalhador. Ela triunfa quando pode instilar valores ou preferências que impulsionam o comportamento individual de maneiras contrárias aos interesses materiais objetivos do indivíduo.

As ideologias mudam a ação individual intencional, instalando um conjunto de falsas crenças sobre as propriedades causais do mundo e sobre como os arranjos existentes afetam os interesses de uma pessoa. Indivíduos racionais, operando sob as garras de uma ideologia, empreenderão ações que são contrárias aos seus interesses materiais objetivos, mas são totalmente racionais, dadas as falsas crenças que possuem sobre o mundo social que habitam e suas suposições errôneas sobre seus reais interesses e valores, o que os leva a se abster de ações políticas direcionadas a derrubar o sistema de classes.

Para Marx, esses fatores motivacionais servem para unir os membros de uma classe e facilitar suas atividades coletivas. A consciência de classe toma a forma de motivos, como a lealdade aos outros membros da classe, a solidariedade com os parceiros em uma luta política e o compromisso com uma ordem social futura na qual os interesses da classe são mais bem atendidos. Foi a partir do conceito de consciência de classe que encontramos um caminho para estabelecer uma ponte teórica entre o materialismo histórico e dialético e um olhar psicopolítico. A ponte foi traçada especificamente pela diferenciação de Lukács entre consciência psicológica e consciência de classe. Nessa senda, Martín-Baró, Sandoval, Freire e Holzkamp apontam a ação política como o mote do CP por possibilitar uma relação dialética entre sujeito psicológico e sujeito político, ainda que produzida no modo de socialização capitalista pautado no fatalismo subalternizante e no controle do capital econômico.

Sandoval traz um modelo vivo e em perspectiva, ora margeando, ora se apropriando do pensamento marxista, dada a ecleticidade do MACP. A articulação aqui realizada aponta para indicadores psicopolíticos de ação que possibilitam enfrentar o solepsismo próprio desse estagio neoliberal da sociedade capitalista com aportes e contribuições que podem ajudar a pensar os tensionamentos, aproximações e distanciamento entre consciência psicológica e política. Assim como a militância, o CP se encontra no limiar das consciências, se desenvolve e se transforma nos processos de socialização, que constituem a dimensão particular de uma dada realidade, sendo ela compreendida a partir da dialética singular-particular-universal, isto é, nas intersecções entre sujeito, grupo e classe. Entender essa complexidade é assumir instrumentos de mudança dessa realidade social perversa e injusta.

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Recebido: 15 de Fevereiro de 2021; Aceito: 03 de Maio de 2021

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