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Linhas Críticas

Print version ISSN 1516-4896On-line version ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.27  Brasília  2021  Epub May 21, 2021

https://doi.org/10.26512/lc.v27.2021.36690 

Dossiê: As dimensões educativas da luta: saberes e aprendizados da e na militância política

Os aprendizados da luta política: trajetórias militantes das mulheres no MTST

Los aprendizajes de la lucha política: trayectorias militantes de mujeres en el MTST

The learnings of the political struggle: the militant trajectories of women in the MTST

Hamilton Harley de Carvalho-Silva1 
http://orcid.org/0000-0002-5007-3334

Kimi Tomizaki2 
http://orcid.org/0000-0001-8804-8188

1Doutor em Educação pela Faculdade de Educação da USP (2018), coordenador executivo do Instituto Vladimir Herzog, membro do TRAMAS - Laboratório de Pesquisa em Educação, Transmissão Intergeracional, Trabalho e Política.

2Doutora em Educação pela Faculdade de Educação da Unicamp (2005), docente da Faculdade de Educação da USP (FEUSP), área de Sociologia da Educação. Líder do TRAMAS - Laboratório de Pesquisa em Educação, Transmissão Intergeracional, Trabalho e Política.


Resumo

O engajamento político se constitui, entre outros fatores, pelos processos educativos vivenciados na dinâmica dos movimentos políticos. Neste artigo, discutiremos as nuances e especificidades dos aprendizados vivenciados por mulheres militantes do Movimento dos Trabalhadores Sem-teto da Região Metropolitana de São Paulo, em três etapas distintas: o encontro com o MTST; o envolvimento na luta; e a continuidade da militância depois do acesso à casa própria. O artigo se sustenta sobre os resultados de uma pesquisa de abordagem qualitativa, com uso de entrevistas biográficas em profundidade e observação dos espaços de atuação política dessas mulheres, entre 2015 e 2018.

Palavras-chave Socialização; Politização; Militância; MTST; Mulheres

Resumen

El compromiso político está constituido, entre otros factores, por los procesos educativos experimentados en la dinámica de los movimientos políticos. Aquí discutiremos los matices y especificidades de las experiencias de aprendizaje de las mujeres militantes del Movimiento de los Trabajadores Sin Techo en la Región Metropolitana de São Paulo, en tres etapas distintas: el encuentro con el MTST; la participación activa; y la continuidad después del acceso à la casa. El artículo se basa en los resultados de un enfoque de investigación cualitativa, con entrevistas biográficas en profundidad y de la observación de los espacios de acción política de estas mujeres, entre 2015 y 2018.

Palabras clave Socialización; Politización; Militancia; MTST; Mujeres

Abstract

Political engagement is constituted, among other factors, by the educational processes experienced in the dynamics of political movements. In this article, we will discuss the nuances and specificities of the learning experiences of women militants of the Homeless Workers' Movement in the Metropolitan Region of São Paulo, in three distinct stages: the encounter with the MTST; the involvement in the struggle; and the continuity of militancy beyond the conquest of housing. The article is based on the results of a qualitative research approach, which collected data from in-depth biographical interviews and observation of the spaces of political action of these women, between 2015 and 2018.

Keywords Socialization; Politicization; Militancy; MTST; Women

Introdução

O inconteste avanço de grupos e partidos ultraconservadores e de extrema-direita, no Brasil e no mundo, que têm colocado em risco inúmeros regimes democráticos, evidencia a necessidade de ampliação e diversificação das pesquisas e reflexões sobre as condições necessárias para se formar cidadãos aderentes aos princípios, valores e às práticas democráticas [1] . Em geral, os estudos que tratam dos efeitos da educação sobre a longevidade e qualidade dos regimes democráticos referem-se especificamente aos impactos da escolarização sobre os comportamentos políticos (Fuks, et al., 2019; Schlegel, 2010). Tendo em vista contribuir para o adensamento deste debate, apresentamos aqui uma discussão sobre o papel dos processos educativos que ocorrem fora do sistema escolar, mais precisamente no âmbito dos movimentos sociais e populares, no aprendizado de valores e práticas democráticas (Fuks et al., 2016; Marcon et al., 2020).

A partir dos anos 1960, constituiu-se nas ciências sociais um amplo debate teórico sobre os ditos movimentos sociais (MS), termo cunhado neste período, que designava movimentos políticos que não se pautariam pela condição ou origem de classe de seus membros, organizando-se a partir de questões como etnia, gênero, estilo e qualidade de vida. Os esforços teóricos para a compreensão desse novo fenômeno se organizaram em “três famílias” da teoria dos MS: Teoria de Mobilização de Recursos; Teoria do Processo Político; e Teoria dos Novos Movimentos Sociais. Após longos embates, nos anos 1990, as teorias dos MS buscaram integrar abordagens e se aproximar de sínteses conceituais, considerando que tais movimentos não surgem espontaneamente diante das desigualdades, nem tampouco do cálculo racional de interesses, envolvendo tanto a ação estratégica quanto a formação de solidariedades e identidades coletivas (Alonso, 2009). E embora não seja possível discutir aqui tais correntes teóricas, vale destacar que nos pautamos em uma concepção processual da ação militante que concebe o engajamento a partir da apreensão de uma multiplicidade de fatores e de lógicas sociais, o que exige tanto a análise biográfica quanto a observação etnográfica das experiências dos militantes (Fillieule, 2001).

Essa análise relacional das distintas “ordens de experiência” nas quais os atores se encontram inseridos permite apreender as lógicas que conduzem ao engajamento e à permanência na militância como resultado de constrangimentos específicos relacionados aos locais, aos itinerários individuais e aos espaços sociais dentro dos quais os atores estão inseridos. (Oliveira, 2010a, p. 58)

Tal abordagem se ajusta muito bem às especificidades do MTST e das trajetórias militantes produzidas em seu interior, dado que se trata de um movimento de caráter classista, organizado a partir de territórios urbanos periféricos e vulneráveis, mas que se diferencia em termos táticos e estratégicos de movimentos políticos ditos tradicionais, como sindicatos e partidos.

Finalmente, embora o artigo não assuma a questão de gênero como seu eixo principal de análise, evidentemente um estudo sobre militância de mulheres precisa considerar que, apesar das importantes conquistas em termos de igualdade de gênero, as mulheres ainda são quase exclusivamente responsáveis pelo trabalho doméstico, cuidado da casa e dos filhos, ainda que exerçam atividade remunerada fora do lar, o que se desdobra em inúmeras barreiras à participação política, que exige tempo e dedicação. Em outro sentido, o machismo estrutural também coloca desafios e limitações à participação das mulheres, seja por meio dos conflitos e/ou impedimento dos companheiros ou familiares, seja pelas relações desiguais de gênero existentes no próprio âmbito das organizações políticas, o que também é uma realidade no MTST e precisa ser considerada no âmbito da complexa dinâmica entre classe, raça/cor/etnia e gênero (Hirata, 2014).

Assim, diante das inúmeras possibilidades de análise dos processos de engajamento, neste artigo, partindo da constatação de que tal fenômeno é marcado, entre outros fatores, pelos processos educativos que são promovidos pela própria dinâmica da militância, analisaremos as nuances e especificidades dos processos de socialização política e politização vivenciados pelas mulheres militantes no Movimento dos Trabalhadores Sem-teto da Região Metropolitana de São Paulo (MTST/RMSP).

A pesquisa de doutorado que sustenta essa discussão tem caráter qualitativo, com uso de entrevistas biográficas em profundidade e observações nos espaços de atuação das mulheres sem-teto [2] (Carvalho-Silva, 2018). Foram entrevistadas 15 mulheres, entre 27 e 62 anos de idade, que se encontravam em diferentes momentos do engajamento político. Apresentamos abaixo um quadro com informações sobre as entrevistadas, cujos nomes foram alterados para garantir seu anonimato.

Fonte: Quadro elaborado pelos/as próprios/as autores/as.

Quadro 1 Perfil Socioeconômico das EntrevistadasLegenda: EF: Ensino Fundamental; EM: Ensino Médio; EJA: Educação de jovens e adultos. 

Os dados coletados evidenciaram três etapas fundamentais nas trajetórias políticas dessas militantes: (i) o encontro com o MTST, em geral, motivado pela ausência de alternativas para a conquista de moradia digna; (ii) o envolvimento e a permanência no movimento, marcados pelo aprendizado de princípios, valores e práticas do MTST; (iii) a continuidade da militância depois do acesso à casa própria. Os aprendizados que se desdobram dos processos de socialização política e politização vivenciados ao longo dessas etapas de engajamento são responsáveis por alterações significativas nos modos como essas mulheres concebem o mundo social e seu lugar nele.

Como já discutimos em publicação anterior, a socialização é um processo de transmissão e assimilação de modos de viver e se relacionar com o mundo, que se estende por todo o curso da vida. A noção de socialização política refere-se a algo mais específico: à formação de opiniões, valores e práticas relacionadas à política. Consequentemente, somos todos socializados politicamente, ainda que com nuances variadas, de acordo com os percursos sociobiográficos e a conjuntura política, econômica e social. (Tomizaki et al., 2016; Darmon, 2015; Dubar, 2005; Percheron, 1993). Desse modo, enquanto a socialização política atinge a todos, os processos de politização atingem um grupo menor de sujeitos, o que indica a necessidade de que esses sejam detalhadamente contextualizados em cada caso estudado. De acordo com Aït-Aoudia et al. (2011), podemos distinguir duas definições de politização: uma mais restritiva, que aborda as relações que os indivíduos estabelecem com a esfera institucional; e outra, mais abrangente, que considera politizados os interesses, as atitudes e práticas sem ligação direta com o espaço institucional, mas que podem revelar, por exemplo, o avanço de uma atitude individualista a uma perspectiva coletiva de enfrentamento das questões sociais e econômicas (Duchesne & Haegel, 2004; Lagroye, 1994; 2003). Neste sentido, consideramos que a militância no MTST transita entre essas duas dimensões, uma vez que se remete às instâncias estatais e governamentais, mas se apoia (e depende) da politização de suas militantes que, mesmo com níveis desiguais de entendimento e participação, se engajam nesse movimento político, convictas da importância da luta coletiva.

A dimensão pedagógica da organização política

O MTST constituiu suas bases em meados dos anos 1990, especialmente no estado de São Paulo, quando surge a necessidade de alterações na estrutura de organização do Movimento Sem-Terra (MST) para o enfrentamento dos desafios da questão urbana que afetavam os “excluídos da cidade”, em sua maioria, antigos trabalhadores rurais alocados em postos precários de trabalho, que adensavam as periferias dos centros urbanos. Contudo, o marco político de instituição do MTST ocorreu em 1996, quando foram estabelecidos vínculos entre os sem-terra e os participantes de três ocupações urbanas da cidade de Campinas/SP, organizadas por outros movimentos populares de luta por moradia (Goulart, 2011; Oliveira, 2010b).

Desta maneira, a atuação do MTST, desde sua origem, tem foco nas periferias urbanas, sobretudo em regiões fortemente marcadas pela pobreza. Esse contexto de atuação influi na caracterização majoritária do perfil socioeconômico dos seus militantes: homens e mulheres, mas sobretudo mulheres, com baixa escolarização, empregadas informalmente em trabalhos não qualificados, com baixa remuneração ou desempregadas, que vivem em condições precárias de moradia (áreas irregulares, de risco ou em aglomerados multifamiliares); organizadas em famílias monoparentais femininas; com escasso acesso a serviços e equipamentos públicos. Dito de outro modo, o perfil das participantes do MTST é similar ao conjunto das populações pobres que adensam e vivem nas periferias dos grandes centros urbanos. Entretanto, vale ressaltar que, assim como nas periferias, apesar das homologias constituídas pela experiência da pobreza de seus moradores, encontramos também no MTST a heterogeneidade microssocial que caracteriza o território pobre e periférico (Boulos, 2014; Kowarick, 2009; Sarti, 2011; Telles & Cabanes, 2006; Telles, 2010).

Durante o período de coleta de dados, o movimento sem-teto possuía uma organização que combinava de forma articulada, instâncias políticas, administrativas, jurídicas e operacionais, que atuavam vertical e horizontalmente, interna e externamente, orientando o funcionamento de suas diferentes frentes de ação, desde as manifestações de rua até as negociações e os acordos com o poder público. Basicamente, existiam três categorias de coletivos nos quais se sustentava a estrutura organizacional do movimento: Coletivos políticos formados pela coordenação nacional e as coordenações estaduais, no âmbito das quais se decidem as principais linhas políticas de atuação; Coletivos organizativos ou setoriais, que têm a função de tomar decisões e executar tarefas em relação à organização cotidiana; Coletivos territoriais constituídos pelas coordenações regionais (que reúnem as coordenações dos acampamentos de uma cidade ou região) e a coordenação de acampamento, responsável pela organização das ocupações em curso. Portanto, a coordenação de acampamento é responsável pelas assembleias diárias e pela gestão dos oito núcleos que garantem o funcionamento dos acampamentos, seja este em território ou nucleado: infraestrutura, organização, autodefesa, autossustentação, negociação, formação política, comunicação e trabalho comunitário.

Os acampamentos em território são as ocupações que estão em andamento, até que o grupo de acampadas tenha atendido parte de suas reivindicações, seja a destinação de uma Zona Especial de Interesse Social (ZEIS) [3] para a construção de Habitação de Interesse Social (HIS) [4] ou a garantia de recebimento do auxílio aluguel [5] . Após a desocupação territorial, as acampadas passam a integrar os chamados acampamentos nucleados, ou seja, continuam organizadas pela coordenação do acampamento de origem e de seus núcleos. Portanto, todo acampamento nucleado foi antes um acampamento em território e simboliza um avanço na luta, dado que a desocupação de terreno acontece, geralmente, em função do êxito nas negociações com o poder público. Caso um terreno seja desocupado por força judicial (reintegração de posse) sem garantias ou ganhos, as militantes podem realizar uma nova ocupação em outro terreno. Neste sentido, a ocupação é uma estratégia para levar o poder público a abrir negociações com o movimento, constituindo-se, assim, como o principal instrumento de luta do MTST.

Para efeitos dessa publicação, nos interessa, sobretudo, o papel desempenhado pelas coordenações de acampamento e seus setores internos nos processos de aprendizado desenvolvidos no âmbito da militância sem-teto, visto que são essas coordenações que têm contato direto e constante com as militantes, sendo responsáveis por sua formação política e organização cotidiana da ocupação. O ingresso de uma pessoa no MTST se dá, inicialmente, pelo preenchimento de um pré-cadastro em um dos acampamentos em território. Entretanto, o cadastro somente poderá ser efetivado depois que a interessada constrói seu barraco e faz parte de um dos núcleos do acampamento, mantendo participação assídua nas assembleias do acampamento, que se realizam diariamente em três períodos. A lista de presença, na qual as acampadas registram sua participação em assembleias e outras atividades do movimento, exerce uma dupla função: (i) como mecanismo que busca garantir que a militante apreenda o funcionamento do movimento, suas pautas, táticas e estratégias, além de criar laços com seus integrantes; e (ii) como instrumento de pontuação, que auxilia na formação de uma ordem de prioridades das acampadas no acesso aos programas de habitação popular, ou seja, as militantes que tiverem maior número de pontos adquiridos com sua participação, a depender da disponibilidade das políticas públicas de moradia, estarão mais próximas de uma bolsa aluguel ou mesmo da conquista da casa própria. No entanto, não somente a pontuação contabilizada pelas listas de presença é considerada na lista de prioridades, problemas de doença e/ou idade também são critérios relevantes.

Os acampamentos em território são divididos em setores, e cada setor possui uma coordenadora (em geral, uma militante mais antiga ou uma acampada nucleada), além de cozinhas e banheiros coletivos, e espaço de atividades e convivência. Esses setores auxiliam na organização das acampadas inclusive durante as manifestações públicas, pois as marchas são organizadas por acampamentos e seus setores internos. Durante as assembleias das ocupações, são distribuídas diferentes tarefas que atendem às necessidades do acampamento e de cada setor dentro dele, e aos interesses das acampadas, assim tais assembleias cumprem um papel importante para que cada participante se aproprie dos princípios e práticas do movimento, bem como de suas responsabilidades no acampamento, constituindo assim, uma primeira etapa de formação política.

Desse modo, embora o MTST não possua uma proposta pedagógica ou de formação política com método próprio, a dinâmica e a organização internas do movimento encerram em si mesmas uma pedagogia do engajamento, que atua diretamente no processo de politização de suas militantes. Pedagogia essa que, considerando o perfil majoritário de suas militantes, se pauta em princípios e práticas que buscam, primeiramente, inserir as militantes em um ambiente de acesso a informações e análises de conjuntura, construídas e transmitidas de um modo direto e objetivo e em linguagem acessível (sobretudo oralmente, mas também com materiais escritos). E, em segundo lugar, criar espaços de debate e tomada de decisões coletivas, como assembleias e rodas de conversa nas quais a experiência da tomada de palavra pública, discussão e votações têm um lugar de destaque. Em sociedades em que as práticas democráticas muitas vezes se limitam ao rito do voto obrigatório, e até mesmo o acesso à informação de qualidade é um privilégio de poucos que têm escolaridade mais alta, tempo e condições de acessar veículos variados de informação, oportunidades de participação efetiva, como as vivenciadas no MTST, são muito raras (Caldart, 1997; 2000).

O encontro com o MTST: a ocupação como resistência e espaço de aprendizado

Minha irmã está na luta da moradia tem nove anos. Eu falei pra ela que não sei se teria essa paciência e ela me falou: ‘mas tem trinta anos que a gente tá aqui em São Paulo sem moradia’. É verdade. Eu já fiz de tudo. Daí eu falei: ‘quando tiver uma ocupação você me fala!’. Aí no dia ela me ligou: ‘amanhã vai ter uma ocupação!’. Eu falei: ‘Eu vou! Nossa, é pra ontem!’. Eu que não tenho medo de nada mesmo. Aí fiz uma bolsa, coloquei cobertor, fiz mochila de lanche, garrafa de café e fui. Eu não via a hora de acontecer a ocupação. [...] O ônibus dava volta e dava volta e dava volta e chegamos. Aí todo mundo descendo, os caminhões com os feixes de bambu, o portão assim estreitinho e todo mundo entrando, com seu kit de bambu e de lona, mas eu dava tanta risada, que depois me deu cólica. E pra mim tava muito bom e divertido. É algo extraordinário que nunca tinha acontecido. Todo mundo entrando, aquele mato, ninguém com medo, minha irmã com medo de bicho. [...] Aí todo mundo quieto madrugada adentro, uns ajudando a montar os barraquinhos pra gente dormir. Aí na madrugada a Marília [nome fictício] fez uma assembleia. O que me incentivou foi aquela assembleia. Precisa de ver que mulher forte. Que palavra que ela deu. Acho que era umas quatro horas da manhã e ela fez essa assembleia. Aquela fala dela não sei se é eu que vi como especial pra mim, porque não era um homem que tava falando naquele dia. Achei que era um homem, porque pra levar três ônibus e ocupar um terreno... Aí veio aquela voz daquela mulher na escuridão da noite. A mulher trazendo aquela força, que ela fala assim: ‘Hoje, apesar…’. Porque a polícia jogou bomba assim que nós entramos e a gente em vez de fugir deu risada e todo mundo ficou parado, normal. Aí ela falava: ‘apesar da recepção que nós tivemos por parte da polícia militar...’ foi mais ou menos assim a palavra dela: ‘a gente mostrou, vocês mostraram, nós mostramos a nossa força’. [...] Por isso que eu abracei mesmo o movimento, porque às vezes eu esqueço que é pra moradia, entendeu? Porque às vezes tem alguém que você vai conversar, tem um problema que é pra resolver. Então, na verdade, esse é o trabalho da ocupação, do MTST, é de levar a ter voz. Então, são mulheres prontas a escutar o que você tem pra falar também, têm sempre uma palavra. Elas só te ouvem, daqui a pouco elas falam e dá aquela palavra pra gente. Como que abre o universo, a mente. [...] Então a ocupação tá levando o quê? Igualdade pra todos! [...] Precisa ter vida melhor pra todos. Não excluir a periferia pra cá e a burguesia pra lá, se é a periferia que faz o crescimento da burguesia. Porque somos nós que faz o crescimento. (Depoimento de Marilda, 56 anos, cabeleireira)

Os estudos sobre o engajamento político sugerem que a adesão à luta coletiva depende de dois fatores principais: (i) predisposições individuais e posse de determinados capitais (econômicos, culturais, sociais e simbólicos), resultantes das origens e trajetórias sociais dos indivíduos; (ii) percepção das recompensas ou retribuições materiais e simbólicas que os/as militantes são capazes de atribuir à participação política. As análises que associam essas duas dimensões desenvolvem uma perspectiva relacional e processual da militância na qual são consideradas tanto as experiências anteriores à militância, quanto as interações e os benefícios percebidos pelos militantes nos contextos da ação coletiva, capazes de constituir identidades também coletivas (Naujorks & Silva, 2016; Sawicki & Siméant, 2011). Neste sentido, os dados dessa pesquisa indicam que apesar da carência de capitais específicos, experiências acumuladas ou heranças políticas, que constituiriam elementos fundantes das disposições para a militância, as mulheres do MTST se tornam militantes aguerridas e, portanto, neste momento nos interessa discutir as condições objetivas e subjetivas de aproximação e envolvimento com o MTST, e as recompensas materiais e simbólicas que as sem-teto são capazes de atribuir à sua participação nesse grupo (Leite & Dimenstein, 2010; Seidl, 2009; Silva & Ruskowski, 2016).

O depoimento de Marilda, acima destacado, evidencia inúmeras dimensões da experiência das mulheres do MTST em seu encontro com o movimento; em primeiro lugar, a percepção de que não há como se conquistar a moradia por meios próprios, em geral, decisiva para a aproximação com o movimento. Como dito anteriormente, a principal razão de aproximação com o MTST, segundo os depoimentos das mulheres entrevistadas, é a busca de alternativas concretas de melhoria das condições de vida por meio da conquista de uma casa própria. Vale ressaltar que essas mulheres (e suas famílias) se encontram em situações relativamente diferentes em relação à necessidade de um abrigo imediato: há mulheres, por exemplo, que conseguem, mesmo com dificuldades, custear um aluguel; enquanto outras mulheres chegam ao movimento quando já estão prestes a ficar desabrigadas, acelerando sua entrada e instalação imediata no acampamento, o que muitas vezes é percebido como um alívio, apesar da precariedade de se viver um em abrigo improvisado com lona e bambu. Sobre as retribuições iniciais da entrada no movimento, as entrevistadas destacam que foi a formação de laços de solidariedade, afeto e apoio mútuo que deu o tom de suas vivências iniciais no interior das ocupações do MTST, o que provoca inclusive uma profunda reavaliação de suas impressões anteriores sobre o movimento sem-teto, visto que muitas delas partilhavam das representações sociais comuns na sociedade, que associam as práticas do movimento a atos passíveis de criminalização e reprovação moral.

Além da motivação inicial, o depoimento de Marilda nos apresenta, a partir da rememoração do momento da sua primeira ocupação de terreno, a expressão da força coletiva: o encontro com “mulheres fortes”, lideranças do MTST, e a possibilidade de “ter voz”. Experiências que, em geral, são aprofundadas na vivência cotidiana das ocupações. Assim, por meio dos relatos das mulheres entrevistadas e das observações, destacamos as dimensões fundamentais das experiências nas ocupações: (i) a ocupação como um lugar de segurança diante de constrangimentos e ameaças vivenciadas por conta da precariedade da moradia, tais como os riscos físicos e morais de se viver em áreas de risco, assim como os preconceitos sociais e estigmas que recaem sobre as pessoas moradoras de favelas e cortiços; (ii) a ocupação como um lugar de proteção contra a violência doméstica; (iii) a ocupação como um espaço de sociabilidade e lazer; (iv) a ocupação como espaço de solidariedade e apoio mútuo.

O conjunto dessas experiências configura uma primeira fase do processo de politização das militantes do MTST no qual a vivência prática de diferentes processos coletivos possibilita a constituição de novas chaves interpretativas sobre suas trajetórias e situações de vida, o que reflete em sua capacidade de conceber modos de resistência e de luta contra diferentes formas de opressão e injustiça. Assim, se a motivação do ingresso no MTST se dá pela expectativa de encontrar uma alternativa às suas condições precárias de moradia, por outro, é preciso sublinhar que essas mulheres encontram nas ocupações uma rede de apoio e suporte para “escapar”, às vezes momentaneamente, dos múltiplos efeitos negativos das situações de vulnerabilidade que marcam suas trajetórias, desde a exploração nos locais de trabalho, ausência de lazer, até a experiência da violência doméstica. Sumariamente, nas ocupações, essas mulheres vão se perceber como portadoras de direitos, dos direitos que lhes têm sido negados sistematicamente, sendo a moradia digna somente um deles.

O adensamento da luta e o aprendizado das práticas democráticas

A gente pega a dor do companheiro e vai brigar por ele. Acredito na igualdade. Eu bato no peito e falo: ‘eu acredito’. Pode ser que meus filhos, meus netos ainda não vejam isso, mas vão dizer: ‘a nossa mãe foi uma revolucionária, a nossa vó foi uma revolucionária’. Então isso que faz a gente lutar cada vez mais, pra que nossos filhos, nossos netos tenham orgulho dos pais, dos avós. Essa igualdade está longe, mas eu acredito. Igualdade de fazer sem preconceito. Igualdade de ter uma escola melhor, uma escola igual ao de um rico. Da periferia ter a liberdade de entrar num shopping sem ser olhado desconfiado, de um negro passar na rua e outro dá um olhar, de um homossexual passar na rua e o outro olhar de rabinho. Isso aí dói muito! A gente vê, hoje mesmo presenciei uma cena dentro do ônibus e aquilo choca, a gente fala: ‘oxi, pessoas da periferia, pessoa nossa, receber preconceito dentro da periferia’. Então a igualdade que eu acredito... você sentar do lado do Presidente da República e ele te respeitar, não com falsidade ou querendo o seu voto, tendo você como companheiro, assim como nós quer a outra pessoa como companheira. É isso que aprendi na militação. (Depoimento de Rita, 59 anos, comerciante)

Esse trecho do depoimento de Rita, centrado na questão da igualdade, aponta para um movimento comumente encontrado nas trajetórias das mulheres sem-teto nesta segunda etapa do engajamento: a ampliação do escopo da percepção das desigualdades, bem como das lutas a serem enfrentadas. Assim, para além do movimento pela moradia, essas mulheres, por meio dos processos de politização, dão corpo e substância a muitos sentimentos de injustiça e revolta que já carregavam consigo; encontrando no MTST as condições para melhor compreender a origem e os mecanismos de funcionamento das desigualdades, assim como as alternativas para seu enfrentamento. Desse modo, na segunda fase do seu processo de engajamento político, o desempenho de funções e tarefas ligadas às formas de organização adotadas pelo movimento se destaca como uma dimensão fundamental da politização, e que se desdobra em ressignificações múltiplas, garantindo que essas mulheres não só permaneçam na luta coletiva, como reestruturem seus modos de vida. Sendo assim, a participação efetiva em tarefas e responsabilidades concretas e cotidianas constitui um importante mecanismo de politização através do qual os valores democráticos são apreendidos de modo prático e direto, inclusive em toda sua dimensão conflitiva. Para realizar tal discussão, apresentaremos dois mecanismos de organização das ocupações que contribuem enormemente para essa etapa de engajamento das mulheres: a cozinha coletiva e a trilha.

A cozinha coletiva, que integra o setor de autossustentação dos acampamentos, é a primeira construção a ser erguida na ocupação, envolvendo um espaço fundamental desde o primeiro momento, na qual são reunidas as doações de alimentos e preparadas diariamente todas as refeições (café da manhã, almoço e jantar), portanto a cozinha constitui um espaço de encontro, troca de informações e debates sobre diferentes ordens de questões. Dessa maneira, nas cozinhas coletivas, o ato de cozinhar, que em geral já fazia parte da vida dessas mulheres desde sua infância, se converte em um ato político de destacada importância para a organização da luta na medida em que as refeições são fundamentais para a existência, permanência e sustentabilidade da ocupação. Enquanto cozinham, as mulheres abordam assuntos relacionados às suas próprias vidas, aos problemas com os filhos e filhas, ao trabalho e ao próprio movimento sem-teto, fazendo com que a dimensão doméstica do ato de cozinhar, geralmente desvalorizada em nossa sociedade, se converta em uma dimensão pública e política.

Nas cozinhas também se organiza o cotidiano por meio de conversas informais que se materializam em uma rica troca de informações e microarticulações para garantir o bom funcionamento da ocupação; no mesmo sentido, avalia-se continuamente a situação do acampamento, seu êxito ou esvaziamento, seus problemas internos, por exemplo, as relações assimétricas entre homens e mulheres. Neste sentido, as mulheres entrevistadas que se dedicavam às cozinhas das ocupações relataram que seu trabalho era a garantia de que todos pudessem se alimentar, o que as fazia estar sempre atentas à necessidade de cálculo dos alimentos e à busca de novas doações para que ninguém ficasse alijado desse direito fundamental, inclusive as mulheres que chegavam mais tarde do trabalho e pudessem ter a tranquilidade de encontrar suas filhas e filhos alimentados e um prato de comida guardado. Vale destacar ainda que a busca de doações na vizinhança para garantir a alimentação das famílias acampadas, tarefa realizada por algumas das depoentes, é um importante exemplo de politização na medida em que todas declaravam que teriam vergonha de pedir alimentos de porta em porta para si próprias, mas que não se sentiam humilhadas pedindo alimentos para a ocupação, portanto, para um coletivo político em luta. Pelo contrário, se sentiam orgulhosas e aproveitavam para esclarecer à vizinhança sobre a existência e os objetivos do MTST, dito de outra forma, nesta ação prática e direta, a ilegitimidade social era transmutada em legitimidade política (Pudal, 1989).

A trilha, por sua vez, é uma atividade do setor de infraestrutura que ocorre cotidianamente nas ocupações, envolvendo, direta ou indiretamente, todos seus participantes. Refere-se à caminhada estratégica que percorre todo o acampamento para observação da estrutura, organização e higiene local. Além disso, no diálogo constante com o coletivo, recolhe-se informações sobre as principais demandas das acampadas, desde a verificação das necessidades de vestuário, alimentos e medicamentos, até a busca de soluções para possíveis conflitos internos [6] . A realização dessa atividade também contribui para a eleição de temas a serem debatidos nas futuras assembleias ou ao aprofundamento de debates já realizados. Desse modo, a trilha constitui um importante meio de fortalecimento dos laços entre militantes e lideranças através de um duplo mecanismo de aprendizado: a escuta e o diálogo, que possibilitam a concepção e elaboração de ações práticas e estratégicas necessárias para sanar os desafios cotidianos.

A crença de que a adesão aos valores, princípios e às práticas democráticas está associada a maiores níveis de escolarização e ao acesso a informações vem sendo colocada em questão em estudos recentes. E embora as pesquisas tendam a apontar que a escolaridade ainda é um elemento importante na consolidação dos regimes democráticos, discute-se também que tal correlação não pode ser feita de modo automático (Borba & Ribeiro, 2021; Schlegel, 2021). Sendo assim, a experiência das mulheres sem-teto, em geral com baixa ou nenhuma escolaridade, se destaca como um exemplo da importância, para a construção de uma sociedade democrática, de processos de politização que se pautem em experiências concretas de mobilização coletiva, o que evidentemente é vivenciado com muitas contradições e muitos conflitos, mas que estabelece para essas mulheres outro patamar de concepção da vida em sociedade, na qual fica evidente uma tendência importante de rejeição às práticas autoritárias, violentas e repressivas do poder público e/ou no âmbito privado da vida, bem como de crítica às desigualdades sociais e econômicas, e à ausência de garantia de direitos fundamentais, e a necessidade de se combater o machismo e racismo.

Para além da conquista da casa: uma luta que se alonga no tempo

Eu falo assim: quem acreditar no MTST vence. Primeiramente, Deus. É com sacrifício. É com luta. Não é fácil, mas vence. Agora se você ficar em casa assistindo televisão, ‘eu vou passear’, ‘não vou tomar chuva’, ‘não vou tomar sol que isso é bobeira’..., igual muita gente criticava a gente, chamava a gente de vagabundo, que não tinha o que fazer e nós lutando pelo bem nosso e do povo... Porque nós luta não só pela moradia. Nós luta pela escola, nós luta pela melhoria do transporte, nós luta pela saúde... Enquanto tiver coisa errada no país, você pode ver isso aí, nós do movimento estamos na linha de frente pra melhorar tudo. Se fosse só pela moradia, quando nós conquistasse a moradia parava de lutar. Mas nossa luta continua e nossa luta não vai parar nunca. Se o governo quiser, não vai parar; e se não quiser, não vai parar nunca, porque nós vai pra cima e tem que vencer, porque é um direito nosso, é dos bisavós, é dos seus, é de família, é um direito que nós não conhecia que tinha esse direito e hoje o governo não vai ficar com tudo que é de nós como ficava. Tudo que o país tem é direito nosso, porque é nós que paga. (Depoimento de Irina, 62 anos, agricultora/desempregada)

Irina é uma das entrevistadas que continuou engajada no MTST após uma longa luta e da conquista do seu apartamento. Nesse trecho de depoimento, além de passar pela questão do aumento do escopo da luta, ela destaca outra questão fundamental: sua longevidade. A conquista do direito à moradia digna via mobilização coletiva exige uma longa duração no engajamento: para as quatro depoentes que conquistaram suas casas, foram necessários nove anos de participação contínua no movimento. A entrega das chaves da casa, sem dúvida, é o coroamento da luta coletiva, e seria esperado que, depois disso, as militantes desejassem “fechar suas portas”, ter uma vida privada, um descanso, o que não significaria necessariamente falta de envolvimento ou descompromisso (Miagusko, 2012). Entretanto, essas quatro depoentes que entrevistamos, e que conquistaram suas casas, continuavam engajadas, mesmo que em menor intensidade, atitude que se sustenta num sentimento de compromisso resultante do duplo sentido da militância das mulheres sem-teto: de uma parte, naquilo que elas esperam receber e conquistar pela sua participação (retribuições advindas), e de outra, naquilo que podem oferecer ao movimento, sobretudo em apoio às novas militantes e à continuidade e expansão do movimento (ato de retribuir). A ajuda aparece, então, como uma categoria nativa, talvez a palavra mais repetida na totalidade das entrevistas e conversas informais. No encontro com o MTST, a ajuda surge como necessidade de sobrevivência individual e familiar dada à precariedade das condições de vida; em seguida, na segunda etapa, a ajuda assume o sentido de participação, pertencimento e necessidade de sobrevivência coletiva, enquanto que, durante a consolidação do engajamento, após a conquista da casa, a ajuda tem o significado de retribuição para com o movimento, através do fortalecimento da luta.

Mas é preciso destacar que esse não é o único sentimento sobre o qual se sustenta a continuidade da luta. Há também uma alteração mais profunda, que inclui a militância política como um modo de vida, baseado em novas redes de solidariedade e em uma postura de crítica à organização desigual da sociedade, que promove um “segundo nascimento”, pautado em um processo complexo de ressocialização e nos aprendizados discutidos anteriormente (Pudal, 1989).

Trata-se, portanto, de uma fase de aprofundamento e consolidação do engajamento político, sem que isso signifique a resolução de todas contradições e conflitos desse processo de apreensão de valores e práticas políticas muito distantes das vivências dessas mulheres durante grande parte de suas vidas. E neste sentido, é importante destacar como diferentes dimensões da socialização política e da politização se combinam na formação destes novos modos de vida, dentre as quais podemos destacar as dimensões cognitiva e afetiva. Dito de outro modo, o engajamento político dessas mulheres se sustenta sobre a ampliação do acesso a informações e a compreensão dos princípios e valores políticos defendidos pelo MTST, mas também sobre o fato de que tal compreensão se desenvolve na vivência concreta das ocupações, portanto, no interior de redes de apoio e solidariedade, perpassada por afetos e novas práticas de vivência coletiva, que valorizam a capacidade de debate e as tomadas de decisão coletivas (Muxel, 2008; 2014). E como nos diz Irina em seu depoimento, essas transformações profundas e radicais em seus modos de vida, para além de lhes restituir a dignidade negada por diferentes processos históricos, as fazem sonhar com o reconhecimento e orgulho das futuras gerações.

Considerações finais

Nesse artigo, apresentamos uma discussão sobre as especificidades dos processos de socialização política e politização das mulheres militantes do MTST, tendo em vista analisar como os processos educativos que se desenvolvem em função mesmo da organização dos movimentos políticos podem redundar no aprendizado (teórico e prático) de princípios, valores e práticas democráticas. Neste sentido, mesmo sem ter um método específico de formação política, o MTST desenvolve uma pedagogia do engajamento por meio da qual as mulheres sem-teto que, em geral já apresentavam determinadas predisposições ou sensibilidades contra situações de injustiças e desigualdade, resultado de outros processos de socialização (familiar, escolar, religiosa etc.), constituem novos sentidos para suas vidas.

Em maior ou menor grau, essas mulheres passaram a organizar suas vidas a partir da experiência do engajamento, reconfigurando inclusive seu lugar nas relações familiares e em seus projetos de futuro. Trata-se, assim, de um processo de reconfiguração profunda de suas trajetórias, fortemente marcadas pelas consequências da pobreza e da violência, que encontram na militância as condições para realizar, concreta e/ou simbolicamente, uma transição para um futuro melhor, por intermédio da aquisição de outros capitais (sociais, culturais, simbólicos) que as ajudam a planejar a vida. Ressaltamos ainda que a aquisição e a transmissão desses capitais não são o resultado de um projeto pedagógico e político coeso e, neste sentido, as aprendizagens no MTST se dão menos por discussões dirigidas, leituras ou cursos de formação, e mais pela vivência prática de novos modos de agir e pensar que ganham sentido na própria ação coletiva e, por vezes, são marcados também por contradições e conflitos internos, oriundos muitas vezes de outras dimensões da desigualdade, como por exemplo, a desigualdade de gênero ou raça/cor/etnia.

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[1]De acordo com Benevides (1996), democracia é o regime político fundado na soberania popular e no respeito integral aos direitos humanos, capaz de garantir liberdades civis, igualdade e solidariedade, alternância e transparência no poder, respeito à diversidade e tolerância.

[2]A observação participante ocorreu por meio de um projeto de extensão universitária desenvolvido em parceria com o MTST, reuniões de formação na sede do MTST, assembleias nos acampamentos, atividades culturais, reuniões de núcleos e coletivos e manifestações públicas. As entrevistas em profundidade ocorreram nas ocupações ou nas residências das militantes.

[3]Zonas Especiais de Interesse Social é uma ferramenta de planejamento urbano e habitacional de São Paulo, que visa a garantir a construção de novas Habitações de Interesse Social, por meio da regularização fundiária de loteamentos irregulares e da urbanização de favelas.

[4]Habitação de Interesse Social (HIS) corresponde à habitação destinada a famílias com renda igual ou inferior a seis salários mínimos.

[5]O auxílio aluguel destina-se ao atendimento de famílias afetadas por obras públicas, por determinação judicial ou localizadas em áreas de risco iminente. O período e o valor do auxílio são definidos pelo Conselho Municipal de Habitação.

[6]As ocupações possuem regimentos internos que orientam as regras de convívio, buscando manter o clima de cordialidade entre acampadas, proibindo o consumo de álcool e drogas, bem como quaisquer manifestações de violência física ou verbal ou atos discriminatórios de qualquer ordem.

Recebido: 26 de Fevereiro de 2021; Aceito: 17 de Maio de 2021

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