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Linhas Críticas

Print version ISSN 1516-4896On-line version ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.27  Brasília  2021  Epub May 26, 2021

https://doi.org/10.26512/lc.v27.2021.36442 

Dossiê: As dimensões educativas da luta: saberes e aprendizados da e na militância política

As ocupações secundaristas em Francisco Beltrão-PR – 2016: fazer-se e experiências

Franciele Maria David1 
http://orcid.org/0000-0003-3812-2807

Suely Aparecida Martins2 
http://orcid.org/0000-0002-7876-6634

1Franciele Maria David Mestre em educação pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (2019), Professora- pedagoga da Secretaria do Estado da Educação do Paraná. Membro do grupo de pesquisa sociedade, trabalho e educação e do grupo educação superior, formação e trabalho docente. E-mail: david_fran@hotmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3812-2807

2Suely Aparecida Martins Doutora em sociologia política pela Universidade Federal de Santa Catarina (2009). Professora associada da Universidade Estadual do Oeste do Paraná, campus de Francisco Beltrão. Membro do grupo de pesquisa sociedade, trabalho e educação. E-mail: martins_sue@hotmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7876-6634


Resumo

Em 2016 vários estudantes ocuparam mais de 800 escolas no estado do Paraná. Esta ação se estendeu para as universidades e para outros estados. Este artigo reflete sobre este movimento em Francisco Beltrão. A partir de entrevistas semiestruturadas, reportagens veiculadas no jornal local e revisão bibliográfica, analisa-se as experiências formativas vividas pelos secundaristas, bem como sua contribuição no fazer político destes jovens. Com base nas categorias experiência e fazer-se de Thompson conclui-se que as ocupações foram importantes no fazer político dos participantes que, ao disputarem a educação pública e o espaço escolar, colocaram-se como sujeitos de seu tempo histórico.

Palavras-chave Movimento estudantil; Experiência; Formação política; Educação

Resumen

En el año 2016 varios estudiantes ocuparon más de 800 escuelas en el Estado del Paraná. Esta acción se extendió a las universidades y a otros estados. Este artículo refleja sobre este movimiento en Francisco Beltrão. A partir de entrevistas semiestructuradas, reportajes vinculados en el periódico local y revisión bibliográfica se analizan las experiencias formativas vividas por los jóvenes estudiantes de secundaria, bien como su contribución en lo hacer político de estos jóvenes. Con base en las categorías, experiencia y hacerse de Thompson se concluye que las ocupaciones fueron importantes en lo hacer político de los participantes que al disputaren la educación pública y el espacio escolar se han puesto como sujetos de su tiempo histórico.

Palabras clave Movimiento de los Estudiantes; Experiencia; Formación política; Educación

Abstract

In 2016, several students occupied more than 800 schools in the state of Paraná. This action was extended to universities and other states. This article reflects on this movement in Francisco Beltrão. From semi-structured interviews, reports published in the local newspaper, and bibliographic review, the formative experiences lived by high school students are analyzed, as well as their contribution to the political making of these young people. Based on the categories, experience, and Thompson's role, it is concluded that the occupations were important in the political work of the participants who, when competing for public education and the school space, placed themselves as subjects of their historical time.

Keywords Student movement; Experience; Political training; Education

Introdução

O engajamento dos jovens, especialmente dos estudantes, tem sido recorrente na América do Sul e no Brasil, especialmente na última década. A Revolta dos Pinguins, no Chile, em 2008, foi um prenúncio de uma série de acontecimentos que estariam por vir e que, ainda que com particularidades locais, demarcaram a denúncia contra as políticas educacionais neoliberais[1] no continente, bem como um formato organizativo dos jovens pautado pelo desejo de participação mais autônoma e direta, buscando romper com hierarquias e centralismos, presentes em entidades representativas estudantis tradicionais. Do Chile para a Argentina, da Argentina para o Brasil: São Paulo, Goiás, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Ceará, Espírito Santo, Paraná, entre outros estados, seguiu-se uma onda de manifestações juvenis, tendo uma característica comum em suas ações: as ocupações de prédios escolares como a principal tática de luta.

Entende-se, como Martins (2018, p. 156), que este engajamento das juventudes se constitui como parte do “processo histórico engendrado pela luta de classes no capitalismo brasileiro e que os jovens, no seu fazer político, em diferentes momentos, com menor ou maior consciência, têm evidenciado, especialmente nas lutas que travam em relação à educação”. São processos presentes nas lutas dos jovens nas décadas de 1960 e 1970 e, de forma mais latente, nos movimentos juvenis que surgem nas décadas de 1980 e 1990 e que tiveram na cultura das periferias urbanas, formas de expressar seu protesto por meio da música, da dança etc. Este foi um período em que já se delineava a atuação de grupos de jovens independentes nos movimentos estudantis no Brasil, com certo afastamento em relação às práticas rígidas e hierárquicas tradicionais (Sousa, 2003).

São ainda características que se fizeram presentes nas manifestações que eclodiram no país em junho de 2013, em um momento de instabilidade econômica e política, no qual o projeto de conciliação de classes apresentava sinais de esgotamento. Das ruas vieram as mobilizações, com “sujeitos distintos com interesses e reivindicações distintos. Assim, há uma diversidade de pautas com múltiplas cores, bandeiras e apelos, por vezes contraditórias, como a defesa da democracia participativa e a volta da ditadura militar” (Marcon et al., 2020, p. 5). As mobilizações de rua reascenderam um território em disputa no país, polarizado entre esquerda e direita. Este conflito fomentou o processo que, em 2015, levou ao impeachment da presidenta Dilma Rousseff.

Também foi em 2015 a mobilização de jovens secundaristas no movimento das ocupações em São Paulo e, de lá, alcançou outros estados, mas com uma pauta comum: a denúncia das políticas neoliberais em avanço no país e a defesa pela educação pública. Se, num primeiro momento, que vai até o primeiro semestre de 2016, elas tiveram como causa medidas educacionais neoliberais locais implementadas no âmbito dos diferentes estados, as mobilizações estudantis do segundo semestre de 2016, tendo como epicentro o Paraná, foram uma reação dos jovens contra políticas neoliberais anunciadas pelo Governo Federal (Groppo, 2018). Isto é, a Medida Provisória (MP) n. 746/2016 (Brasil, 2016a), aprovada, em 2017, como lei n. 13.415 (Brasil, 2017), que propunha a reformulação do Ensino Médio e a proposta que limitava os gastos públicos por 20 anos e que, após tramitar na Câmara dos Deputados e no Senado como Projeto de Emenda Constitucional (PEC), foi aprovada como Emenda Constitucional n. 95/2016 (Brasil, 2016b).

Passados quatro anos desde as ocupações paranaenses, dentre as pesquisas já realizadas, a maioria concentrou-se na análise deste processo em Curitiba e região metropolitana (Steimbach, 2018; Pacheco, 2018; Stoiev, 2019) ou numa análise mais geral do movimento na sua totalidade. Assim, entende-se a importância de dar visibilidade às ocupações no interior do estado, especialmente em cidades pequenas (Corso, 2020).

Este artigo apresenta os resultados de pesquisa [2] sobre as ocupações secundaristas no município de Francisco Beltrão, cidade localizada no sudoeste do Paraná. A partir da problematização de como o processo das ocupações escolares no Paraná em 2016 se constituiu na experiência formativa das juventudes deste município, tem como objetivos: analisar as experiências formativas vividas pelos secundaristas e sua contribuição no fazer político destes jovens, além de historicizar o processo de ocupações nesta cidade.

A pesquisa foi qualitativa e foram realizadas entrevistas semiestruturadas com onze jovens que participaram ativamente das ocupações em 2016, sendo selecionado pelo menos um jovem participante de cada escola urbana no município e que se dispuseram voluntariamente a participar[3] e no caso dos menores de 18 anos, com a devida autorização de seus pais, seguindo-se todos os protocolos da ética em pesquisa[4]. As entrevistas aconteceram no segundo semestre de 2018, tendo em média duração de 30 minutos a 2 horas, foram gravadas, transcritas e analisadas. Para preservar a identidade dos participantes, utilizou-se de pseudônimos. A análise das entrevistas foi realizada a partir das contribuições de Thompson (1981; 2002, 2004) e de produções bibliográficas referentes as ocupações no Paraná, do período de 2016 a 2019. Dentre estas produções destaca-se uma tese de doutorado, sete dissertações, além de 12 artigos e uma publicação de caráter documental.

Além disso, o artigo lança mão de documentos produzidos durante as ocupações, como reportagens divulgadas no principal jornal impresso da cidade e que trataram das ocupações no município no período de 11/10 a 21/11/2016, totalizando 15 reportagens, sendo que elas se constituíram como fonte que ajudaram a historicizar as ocupações em Francisco Beltrão. Utilizou-se ainda de materiais disponibilizados em páginas do Facebook produzidos pelos estudantes.

O artigo está organizado em três partes. De início, trazem-se a definição de juventude que orienta este estudo e as contribuições teóricas de Thompson (1981, 2004), especialmente as categorias de história, experiência e fazer-se para demonstrar a importância delas na compreensão dos movimentos de juventudes inseridos na luta de classes. Em seguida, historiciza-se o processo de ocupações em Francisco Beltrão e analisam-se as experiências formativas dos jovens, entendidas como parte do fazer-se das juventudes das classes populares.

A experiência como processo formativo em Thompson

Entende-se a juventude como estando inserida em uma realidade concreta e, portanto, sendo produto desta. A juventude ou as juventudes resultam das relações sociais, de gênero, étnicas, geracionais, econômicas, estruturais e de classe (Margulis & Urresti, 1996). Concorda-se com Groppo e Silveira (2020, p. 09) de que “Não há uma juventude homogênea em dada sociedade ou nação, mas diferentes formas de viver a condição juvenil de acordo com inúmeras variáveis sociais”. Da mesma forma, entende-se que os movimentos de juventude expressam essa diversidade: além dos movimentos estudantis secundaristas e universitários, tem-se movimentos de jovens das periferias, de jovens do campo, entre outros. Sobre o movimento estudantil é importante considerar ainda outros fatores, indicativos de sua complexidade, tais como sua heterogeneidade interna, abrigando posições político-ideológicas diferentes, e a relação que estabelecem com outros movimentos e partidos políticos.

Além disso, nem todos os movimentos protagonizados por jovens são progressistas. Haja vista na história, por exemplo, o movimento juvenil nazista na Alemanha, o movimento juvenil fascista na Itália ou, mais recentemente, grupos de jovens que se articulam em torno do Movimento Brasil Livre (MBL), com pautas conservadoras e reacionárias (Flach & Boutin, 2019, p. 196).

Entende-se também as juventudes inseridas em uma determinada materialidade histórico-social, com possibilidade concreta de agir sobre ela. Aqui, tornam-se importantes as categorias experiência, fazer-se e história. Em Thompson (1981), compreende-se, que para além das estruturas determinadas e enrijecidas pelo sistema capitalista, existem sujeitos, homens, mulheres, jovens, que são partícipes da construção da história, sendo esta resultado e processo, movimento e inércia, ação e retrocesso, dado que é a dialética da própria sociedade. O autor afirma que “qualquer momento histórico é ao mesmo tempo resultado de processos anteriores e um índice da direção de seu fluxo futuro” (Thompson, 1981, p. 58).

As ocupações são parte do processo histórico que o movimento estudantil universitário e secundarista vem ajudando a construir a partir das diversas experiências forjadas no Brasil e no mundo. Pode-se lembrar das ocupações realizadas pelos movimentos estudantis de 1968, mas foi na Revolta dos Pinguins no Chile, em 2006 e em 2011 e nas ações dos jovens secundaristas na Argentina entre 2010 e 2014 que as ocupações são retomadas como tática de luta dos estudantes secundaristas (Groppo, 2018, p. 93) e depois reavivadas nas ocupações no Brasil em 2015 e 2016. Elas são reveladoras de um processo autoformativo que coloca os jovens, especialmente aqueles das classes populares, como sujeitos políticos. Estes jovens, para além de seu tempo histórico específico, ousam agir coletivamente na luta pela educação pública e de qualidade e ousam se colocar contra o status quo, ainda que com contradições.

Thompson (2004) desenvolve a categoria da experiência ao analisar a formação da classe operária inglesa no século 18. Para ele, a formação da classe operária inglesa se formou a partir da experiência dos trabalhadores em uma articulação entre passado e presente e em uma articulação entre as experiências impostas pelo modo de produção e as experiências de diferentes sujeitos que vivem, refletem e agem em relação aos processos de exploração e dominação do tempo histórico vivido.

Desta forma, entende-se que homens e mulheres, nas suas relações sociais, passam por acontecimentos significativos que transformam suas experiências diárias, ampliando suas percepções e modificando o ser social. A qualquer momento os sujeitos podem ser surpreendidos por fatos, acontecimentos, tragédias que afetam diretamente na forma de observar e refletir sobre a vida. Falando do sentido da experiência, Thompson (1981, p. 16) afirma: “O que queremos dizer é que ocorrem mudanças no ser social que darão origem a experiência modificada; e essa experiência é determinante, no sentido que exerce pressões sobre a consciência social existente”.

É essa mudança que ocorre no ser social o que pode influenciar no posicionamento de homens e mulheres frente aos acontecimentos. Portanto, essas experiências diárias afetam homens e mulheres e modificam as estruturas do ser social, sendo que perpassam por outro conceito deste pesquisador, que é o conceito de fazer-se. Essa ideia pressupõe um “estudo ativo, que deve tanto à ação humana como aos condicionamentos” (Thompson, 2004, p. 9). É no fazer-se, mediado pelo conjunto de experiências vividas, que se forma a consciência de classe.

A classe social forma-se quando homens e mulheres passam por experiências correlatas nas relações produtivas e compreendem os antagonismos sociais, e quando passam a refletir e lutar por interesses comuns. Thompson (2004, p. 9) escreve que ele não vê “a classe como uma ‘estrutura’, nem como uma ‘categoria’, mas como algo que ocorre efetivamente (e cuja ocorrência pode ser demonstrada) nas relações humanas”.

As ocupações secundaristas foram um momento em que os jovens compartilharam experiências comuns e se identificaram com interesses opostos aos de outros grupos sociais. Para muitos dos participantes, as ocupações possibilitaram aprendizados importantes no fazer-se como classe. Essas ocupações são entendidas como respostas dos jovens à situação precária da educação pública, sistema que se vê mais ameaçado ainda com as reformas neoliberais. Os ocupas e as ocupas, como os próprios jovens se chamam, insurgem-se e, ao insurgirem-se, dão continuidade a lutas passadas, reafirmam a bandeira pela educação pública e de qualidade. Ao mesmo tempo, eles trazem novas questões, novas práticas políticas e de organização muitas delas destoantes daquelas das organizações representativas dos estudantes, como a UPES (União Paranaense dos Estudantes Secundaristas) e que demonstram a complexidade do movimento estudantil. O vivido nas ocupações direcionou-se para práticas de organização e participação mais diretas e autônomas que se colidiram a formas mais indiretas e hierárquicas presentas nas entidades representativas.

Ainda que se possa afirmar que as ocupações pouco ou quase nada afetaram a política e a estrutura social capitalista, concorda-se com Groppo e Silveira (2020, p. 12) de que elas “foram fundamentais na formação política auto-organizada de um grupo de pessoas durante o processo que teve como lugar a escola”.

É dessa forma que as ocupações secundaristas no Paraná estão inseridas nos movimentos das juventudes, em um processo autoformativo, de fazer-se, em que os jovens vão constituindo-se como sujeitos políticos e com possibilidades reais de desvelarem as contradições sociais e se engajarem politicamente.

As ocupações escolares em Francisco Beltrão-PR

O município de Francisco Beltrão localiza-se no sudoeste do Paraná e tem aproximadamente 85 mil habitantes. Nele, a rede estadual de ensino tem 16 estabelecimentos, destes, 11 foram ocupados em 2016. Para esta pesquisa, entrevistaram-se 11 jovens participantes das ocupações em 9 escolas urbanas. Dentre eles, 5 apresentam renda familiar entre 1 a 3 salários mínimos; 4 entre 4 e 6 salários mínimos, e apenas 2 declararam ter renda familiar acima de 7 salários mínimos. Seis jovens afirmaram que, na época das ocupações, conciliavam trabalho e estudo.

Os participantes das ocupações e os demais estudantes das escolas públicas de Francisco Beltrão provêm, na sua maioria, das classes populares, sendo filhos de trabalhadores que enfrentam diariamente as dificuldades do sistema dominante. Características semelhantes foram encontradas por Steimbach (2018) em ocupações de Curitiba: muitos ocupas conciliavam estudo e trabalho, estando inseridos, na maioria dos casos, em trabalhos precarizados e informais. Dessa forma, os estudantes secundaristas que participaram das ocupações são, majoritariamente, filhos de trabalhadores.

De certo modo, as ocupações em Francisco Beltrão dão continuidade a um processo de participação que já vinha acontecendo e que contava com a presença de muitos jovens secundaristas que, depois, se somariam a outros, na realização das ocupações no município. Um destes momentos mais impactantes foi a participação dos jovens na greve dos professores em 2015 e que se deflagrou em função de um conjunto de medidas do Governo do Estado do Paraná que retrocediam direitos trabalhistas e previdenciários dos servidores públicos, conhecido como Pacotaço. Essa greve foi marcada pela violência contra os servidores, materializada especialmente no massacre de 29 de abril. Corso (2020), em pesquisa realizada em Irati, identificou esta experiência de greve, com forte resistência dos servidores face à ação violenta do estado, como uma das motivações que levaram os jovens a ocuparem as escolas.

Em Francisco Beltrão, a greve teve grande adesão de professores e funcionários da educação [5] , sendo um momento de ampla mobilização da categoria na cidade, com forte envolvimento dos estudantes.

As ocupações começaram no Paraná em 3 de outubro de 2016, em uma escola do município de São José dos Pinhais, região metropolitana de Curitiba. Esta ocupação desencadeou uma onda de ocupações por todas as regiões do estado. A cada instante uma nova escola era ocupada, e assim sucessivamente, chegando a 850 escolas ocupadas, 14 universidades e 3 núcleos regionais de educação (Flach & Boutin, 2019, p. 196).

Já motivados pelas ocupações que aconteciam no Paraná, os jovens beltronenses participavam de várias atividades realizadas localmente, tendo como pauta as reformas propostas pelo governo Temer. Em 9 de outubro de 2016, um domingo, estudantes secundaristas e de ensino superior, além de lideranças de entidades de trabalhadores, reuniram-se para discutir e debater a proposta de reforma do ensino médio. No dia seguinte, organizaram uma passeata contra a retirada de quatro disciplinas (filosofia, sociologia, artes e educação física), como previa a MP n. 746/2016 (Brasil, 2016a) e como publicou o jornal local: “Ontem de manhã, centenas de estudantes de vários colégios estaduais participaram de caminhadas pelas ruas, portando cartazes e entoando palavras de ordem contra a MP. No calçadão eles fizeram um ato público” (Pedron, 2016).

Em 11 de outubro de 2016, aconteceu a primeira ocupação em Francisco Beltrão no Colégio Estadual Leo Flach, na periferia do município. Depois foi a vez dos alunos do Colégio Estadual Mario de Andrade realizarem a ocupação. A ocupação desta escola, conforme relatos, também foi antecedida por reuniões e conversas entre os alunos e em grupos de WhatsApp. Nestas reuniões, discutiram sobre as medidas tomadas pelo governo. Logo, decidiram aderir ao movimento, pois as ocupações já aconteciam em outros lugares e os estudantes tomavam ciência pelas notícias que circulavam na internet e outros meios de comunicação.

Assim como ocorreu nas ocupações paulistas de 2015, a utilização dos meios de comunicação virtual foi fundamental para a organização e divulgação da luta estudantil, distanciando-se das mídias tradicionais. As redes sociais serviram como contraponto às notícias dos meios de comunicação de massa que buscavam deslegitimar o movimento. Para a comunidade externa, elas divulgaram a realidade dos ocupas, as pautas que defendiam, as atividades realizadas. Além disso, o uso do instrumental virtual possibilitou acesso a documentários sobre outras ocupações, como as que aconteceram no Chile e em São Paulo, a cartilhas que orientavam como ocupar uma escola e exemplos das atividades de outras escolas ocupadas (Stoiev, 2019).

As ocupações foram se ampliando para outros colégios da cidade e região. Em Francisco Beltrão, foram 11 escolas ocupadas, uma localizada no campo. Do total de 93 escolas vinculadas ao Núcleo Regional de Educação de Francisco Beltrão, 36 foram ocupadas (Stoiev, 2019, p. 67). Ainda houve a ocupação de uma universidade pública estadual e protestos realizados por universitários de uma instituição federal.

Diferentemente da maioria das escolas do município, no Colégio Mário de Andrade a ocupação foi organizada pelo grêmio estudantil. Isso somente se repetiu em mais duas escolas: o Colégio Estadual Reinaldo Sass e Colégio Estadual Industrial. Na maioria dos colégios, o grêmio não teve atuação no movimento, da mesma forma não houve influência direta por parte da UPES, que no período era quase inexistente no munícipio, e nem de outras organizações e movimentos políticos, ainda que houvesse apoio por parte do sindicato dos professores e coletivos independentes.

Mas em âmbito estadual houve a tentativa da UPES em tornar-se a porta-voz dos ocupas, seja por meio da convocação de assembleias, seja se colocando como interlocutora em negociações com o governo, o que gerou impasses com os ocupas que não aceitavam este tipo de representatividade que contrariava a própria forma organizativa de participação direta e horizontal que caracterizou a maioria das ocupações (Minucelli et al, 2016., p. 270), como pode-se observar na própria experiência vivida em Francisco Beltrão.

Neste município, na maioria dos colégios, os estudantes organizaram as ocupações de forma independente. Conforme os relatos, fizeram reuniões antes das ocupações e de esclarecimentos aos pais, assembleias, buscaram ajuda na comunidade, contaram com o apoio de familiares e de parte dos professores e utilizaram-se de comissões para organizar e estruturar os ocupas com adoção de escalas e divisão de tarefas, o que demonstra uma articulação do movimento em âmbito estadual e semelhanças com as demais ocupações (Groppo, 2018). O relato a seguir sintetiza a preocupação com a organização interna das ocupações:

Então sempre tinha alguém, por exemplo: o que a gente tinha que fazer de almoço hoje? A gente tinha ali mais ou menos as pessoas que se organizavam [...] a gente também cuidava das próprias doações que recebia [...] a gente conseguia ter essa divisão e organização. (Carlos, 18 anos, estudante)

Além disso, também houve a organização de atividades formativas e culturais. Rodas de conversas, palestras e debates, sarau e oficinas fizeram parte das atividades dos jovens durante o período das ocupações. Algumas dessas atividades eram abertas à participação da comunidade externa.

Embora contassem com o apoio de pais e professores, os estudantes também eram pressionados por pais, professores, alunos contrários ao movimento, pela mídia local e pelo estado, representado na cidade pelo Núcleo Regional de Educação e pelo poder judiciário. Esta reação de parte da sociedade contra as ocupações ficou explícita a partir da campanha Desocupa, que reuniu pais, alunos, diretores e professores, foi amplamente divulgada pela imprensa local e teve o apoio do Movimento Brasil Livre (MBL). Frente aos acirramentos dos conflitos, os estudantes participaram de uma audiência pública no Fórum de Francisco Beltrão em 24 de outubro de 2016.

Após a audiência, em 25 de outubro, a promotoria expediu um mandato de reintegração de posse, a pedido do governo estadual. Assim, nos dias posteriores, as escolas de Francisco Beltrão receberam um oficial de Justiça, notificando-os sobre a decisão, sendo que estes teriam doze horas para desocupar os prédios. A polícia militar e o conselho tutelar acompanharam a reintegração. Os estudantes saíram pacificamente, deixaram as escolas limpas e organizadas. Os secundaristas do Colégio Léo Flack retiraram-se ao receber a notificação. Porém, 24 horas depois tentaram ocupar novamente a escola, mas foram impedidos pela polícia.

As ocupações em Francisco Beltrão terminaram no fim de outubro. Foram uma experiência formativa importante para os jovens participantes:

Então, os estudantes que fizeram as ocupações, eles perceberam isso, e não precisou alguém dizer porque eles estavam lá todos os dias, não foi só pelos movimentos, mas a gente também aprendeu enquanto seres humanos, porque a gente viu, a gente vê nos movimentos sociais de diversas formas de sociedade, mas a gente nunca estava presente, então a gente teve a experiência concreta de você ser reprimido pela sociedade de algumas formas, de você ser tachado pela família... (Fernando, 18 anos, estudante)

Aprendizados que se constituíram no fazer-se dos jovens e que aponta as ocupações como importante experiência formativa para os estudantes em Francisco Beltrão.

Fazer-se e experiências nas ocupações estudantis: quando a luta se torna aprendizado

Martins (2009) destaca que as ocupações não se resumem apenas ao ato de ocupar um espaço físico, mas traduzem uma dimensão educativa importante para os sujeitos que delas fazem parte. Essa dimensão educativa, construída no processo de luta, foi se formando a partir das diversas experiências nas ocupações estudantis em Francisco Beltrão. Tal dimensão está presente no reconhecimento da educação e da escola como direito, no processo de participação e auto-organização, nas práticas pedagógicas e coletivas e na vivência do conflito.

Os jovens insurgem quando veem ameaçados os direitos à educação e à escola, tanto na reforma do ensino médio como na medida de cortes dos gastos públicos:

O que mais revoltou os estudantes foi a reforma do ensino médio, que foi algo superficial [...] o governo tentou de várias formas, nos convencer de que seria algo bom através da mídia e de diversas outras ferramentas, mas sabíamos que não e que a exclusão era nítida no projeto quando a gente estudava naquela época. (Lucas, 18 anos, estudante)

Ao conseguirem pautar politicamente os problemas das reformas educativas, os secundaristas demostraram entender a educação como um direito que, por sua vez, se somava a outros, também ameaçados. Como dizem os estudantes chilenos “la toma”, ou seja, tomar posse de um ambiente que historicamente traz as marcas das contradições e das lutas na sociedade de classes. Ainda que seja reprodutora das desigualdades, a escola também se constitui como espaço importante de acesso ao conhecimento sistematizado e pode se tornar um espaço de lutas, do fazer-se dos estudantes enquanto sujeitos políticos.

As ocupações escolares asseveram a luta dos secundaristas em defesa da instituição pública, do acesso à escola. Eis um processo que se torna mais relevante quando se considera que ele ocorreu em um contexto de desvalorização da instituição de ensino público. Ao ocuparem as escolas, colocando em pauta o direito à educação, os estudantes reafirmam a importância social da escola e enfatizaram, ao mesmo tempo, a importância de várias disciplinas, notadamente as de humanas, neste processo. Para Corso (2020, p. 178), esta motivação construída a partir do processo pedagógico escolar “traz um elemento educacional importantíssimo de valorização da escola e do magistério e também referente ao propósito das ciências humanas na formação do indivíduo que têm sido negadas ou precarizadas historicamente na educação dos trabalhadores”. Nesse sentido, os próprios conteúdos e debates proporcionados por muitas escolas e professores são referenciais importantes que ajudam a entender as ocupações no Paraná como parte de um processo formativo crítico na vida destes estudantes.

Além disso, os estudantes secundaristas perceberam que a mudança nas estruturas do sistema educacional os atingiria diretamente e agiram em relação a isso, contradizendo o discurso do jovem alienado e alheio às mudanças em seu meio. O relato a seguir reforça como as ocupações foram importantes para a constituição do jovem como sujeito político, demonstrando sua importância como experiência formativa para a juventude, no seu fazer-se:

[...] porque a gente não ficou escondido, a gente não ficou esperando, a reforma do Ensino Médio ser aplicada. Sujeito concreto, a gente não foi apenas um objeto, a gente pensou, eu fui um sujeito que pensou, como todos eles foram sujeitos que pensaram e que fizeram essa escolha de fazer a mobilização. [...] a gente não ficou quieto, a gente teve essa resistência e foi bem gratificante, porque a gente via que às vezes a juventude não tem voz, então a gente deu voz à juventude. (Fernando, 18 anos, estudante)

Ao ocuparem a escola, os aprendizados vieram também a partir das formas organizativas dos jovens que questionaram a maneira tradicional escolar. Vincent et al. (2001, p. 38) destacam que “a escola e a escolarização foram desenvolvidas até se tornarem essenciais na produção e reprodução de nossas formas sociais, das hierarquias, das classes que as constituem”. Por consequência, o tempo escolar, a fragmentação dos conteúdos, a organização do espaço escolar e de sua estrutura física, as relações hierárquicas ratificam o modo de produção capitalista. A experiência organizativa dos ocupas, baseada na auto-organização e na autogestão dos estudantes, questiona este formato verticalizado e traz novas possibilidades educativas, mais participativas e menos hierárquicas.

Pacheco (2018, p. 170) afirma a ocupação “como o momento em que a organização tradicional da escola é suspensa, bem como suas regras”, revelando, de certo modo, “a insatisfação com o sistema educacional brasileiro, bem como com a MP 746” (Pacheco, 2018, p. 170). Ao analisar ocupações em Curitiba, Stoiev (2019) anuncia a constituição de uma pedagogia das ocupações em oposição ao processo de ensino e aprendizagem tradicional. O autor destaca a organização e a tomada coletiva de decisões, a divisão de tarefas entre os ocupantes, independentemente de gênero, a autonomia em relação a partidos, sindicatos e entidades estudantis, a realização de aulas e oficinas ministradas por colaboradores em um formato horizontalizado. São características que estiveram presentes em Francisco Beltrão, como vistos aqui: “A gente tinha algum horário do dia, depende de como tinha notícia ou alguma coisa, a gente se reunia no saguão para conversar, discutir e organizar a atividade” (Pedro, 18 anos, estudante) e aqui: “Nós dividimos as tarefas entre os meninos e as meninas, sem nenhuma distinção assim” (Helena, 16 anos, estudante).

As tarefas eram divididas desde alimentação até a segurança da escola. As atividades de limpeza eram compartilhadas entre meninos e meninas. As ocupações, em Francisco Beltrão, caracterizaram-se pela auto-organização dos jovens. Importa lembrar que a cartilha CómoTomar un colegio, elaborada por estudantes argentinos e traduzida pelo Coletivo de estudantes secundaristas paulistas O Mal Educado, foi utilizada como material orientador no processo organizativo das ocupações de São Paulo. No Paraná, ela foi importante em muitas ocupações. Estratégias de como ocupar uma escola foram divulgadas em páginas do Facebook. Além disso, a visita a escolas já ocupadas e a comunicação estabelecida entre os jovens foram vetores importantes segundo Stoiev (2019). Nas ocupações beltronenses, esse formato organizativo apresenta-se no constructo dos ocupas, revelando que este processo se encontrava disseminado no interior das ocupações, contribuindo para o fazer-se dos jovens secundaristas.

As ocupações possibilitaram aos estudantes reorganizar o espaço escolar. Os secundas organizaram ciclos de palestras, rodas de debates, saraus musicais numa interação com a comunidade externa. Nesse processo auto-organizativo, o debate sobre as reformas se misturava com questões identitárias, muitas delas negligenciadas pelo currículo escolar:

Eu aprendi política nas ocupações. Eu conheci o que era a diversidade de gênero, aprendi sobre racismo, porque a gente era aquela pessoa que só ia para o colégio, porque a gente não tem uma aula que fale sobre racismo, sobre homofobia, sobre diversidade social, exclusão e tal. (Antonio, 17 anos, estudante)

Esta experiência auto-organizativa, que remonta a outras ocupações escolares no Brasil, Argentina e no Chile, pós-anos 2000, mostra que os estudantes secundaristas, ao ocuparem a escola, ensaiam uma forma escolar distinta da tradicional. Ao mesmo tempo, tal experiência possibilita-lhes um redimensionamento em relação à escola e forja mudanças no processo de formação política e social dos secundas, apontando que o processo formativo dos sujeitos não acontece do dia para noite, mas no próprio fazer-se (Thompson, 2004).

Os estudantes tentam romper com as velhas formas de organização escolar. Eles promovem outras direções e esboçam uma forma escolar horizontalizada, que passa principalmente pelos principais sujeitos da educação, os estudantes. Este processo contribuiu para uma maior identificação do jovem com a instituição escolar:

Que normalmente o estudante acha que ele não é nada dentro da sala de aula, dentro da escola. E não é verdade. A gente tem voz. Eu acho que após as ocupações, tanto professores, direção, até nós alunos, a gente percebeu que a gente tem um pouco de poder, de voz. (Jean, 17 anos, estudante)

Entende-se que a experiência de organização dos ocupas ensaiou formas escolares distintas da escola, mais participativas, democráticas e atentas às necessidades de seus sujeitos. Thompson (2002, p. 45) chama a atenção para a relação dialética entre experiência e educação, destacando a necessidade de os processos de escolarização estarem abertos à experiência, todavia reconheceu que historicamente eles estiveram distantes. É elucidativo a fala de Ana Júlia[6]que explicita este divórcio mesmo depois das experiências das ocupações:

Desesperador. É desesperador todas as vezes que eu me vejo sentada em uma carteira, olhando para o quadro. Ou todas as vezes que eu não consigo falar sobre aquilo, sem expressar um segundo aquilo que eu aprendi na ocupa [...]. É triste, porque você vai para a aula dos professores e eles não entendem nada do que aconteceu. Eles continuam com as mesmas aulas, com as mesmas falas, os mesmos métodos [...]. É isso que resume como foi voltar para escola. É horrível ver o que ela é realmente, tendo em vista o que ela poderia ser. (Silveira & Groppo, 2018, p. 40)

A fala desta estudante reflete percepção de muitos outros frente ao formato e à estrutura escolar. O seu dizer revela que os aprendizados nas ocupações se constituíram como outra possibilidade nas práticas escolares.

De certa forma, tais elementos presentes na forma escolar burguesa refletem as relações sociais vivenciadas fora dela e que reforçam afirmações de que “a escola é lugar de estudar, não de política”, de que “os jovens são imaturos, desinformados”, ou que “os jovens são baderneiros”, que “os direitos individuais prevalecem sobre os coletivos”. São afirmações presentes nos argumentos que se construíram contra as ocupações escolares e que repercutiram nos conflitos vividos pelos jovens durante as ocupações e que são considerados parte importante no aprendizado político dos jovens.

O governo estadual do Paraná, tendo como aliada a mídia tradicional e movimentos conservadores da sociedade, procurou construir uma narrativa contrária às ocupações. O governador buscou desqualificar o movimento, reiterando nas suas falas, reverberadas pela mídia, que eram jovens manipulados, doutrinados e que não sabiam o que faziam. Por sua vez, o governo federal, como forma de pressão anunciou o cancelamento do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) nas escolas ocupadas. Em 24 de outubro, a morte de um estudante em uma escola ocupada “deu fôlego para o discurso conservador que também vinha do Governador” (Minucelli et al., 2016, p. 259) e que levou grupos conservadores a organizarem-se contra as ocupações. Estes grupos, muitos organizados pelo MBL, buscaram mobilizar pais e alunos contrários em uma ação chamada Desocupa Paraná. No final de outubro, eles promoveram ofensivas de desocupação, algumas mais violentas, como as que ocorreram em colégios da capital paranaense ou aquelas que buscaram intimidar virtualmente os participantes das ocupações (Polli et al., 2018). O uso da intimidação e violência não foi algo vivido somente no Paraná. Já nas ocupações em 2015 e no início de 2016 se fizeram presentes. Sofiati et al. (2021) relata que em Goiás durante as ocupações contra a transferência da gestão escolar para “Organizações Sociais”, os estudantes sofreram com as perseguições policiais e a pressão que vinha da secretaria da educação e de parte de pais e alunos.

Os ocupas de Francisco Beltrão também vivenciaram momentos de tensão e conflitos. Inicialmente, estes vieram por meios virtuais: “O meu Facebook tinha ameaça de gente falando que ia mandar a polícia me bater” (Luiza, 18 anos, estudante). Mas, após o início da campanha desocupa, os secundaristas enfrentariam uma ofensiva. O Colégio Estadual Beatriz Biavatti seria a primeira escola a ser desocupada. A direção escolar, juntamente com alguns pais e professores, forçaria a desocupação. Isto aconteceria com embates entre os lados, sendo chamada a Polícia Militar para efetuar a desocupação (G1 PR, 2016).

Em 21 de outubro, um grupo de pais reuniu-se com a diretora do Núcleo Regional de Educação, em Francisco Beltrão, para falar da necessidade das ocupações e da necessidade da desocupação pacífica das escolas (Jornal de Beltrão, 2016a). Já em 24, pais se dirigiram às escolas locais para exigir a desocupação, alegando que seus filhos estariam sendo prejudicados por não poderem frequentar as aulas, e que os estudantes dos terceiros anos estariam sendo afetados. Isso porque a maioria prestaria vestibular ou Enem em breve (Jornal de Beltrão, 2016b).

O acirramento dos conflitos levou a uma audiência no fórum, convocado pela promotoria para os ocupantes. Este momento ficou marcado pela compreensão da imparcialidade da justiça:

E alguns foram para audiência pública. Chegando lá a gente percebeu o que iria acontecer, nós parecíamos boizinhos indo para o matadouro, um plenário cheio de pessoas contra nós, policiais nas portas do fórum, onde aconteceu a audiência, tinha policiais nas portas, professores e diretores que eram contrários a nós. (Fernando, 18 anos, estudante)

Para Thompson (1981) a elaboração da experiência vivida pelos sujeitos nunca se dá somente no pensamento. Conforme o autor, “[...] também experimentam sua experiência como sentimento e como lidam com esses sentimentos na cultura, como normas, obrigações familiares e de parentesco, e reciprocidades, como valores...” (Thompson, 1981, p. 189). O caso do fórum foi marcante para a maioria dos entrevistados. Durante a realização das entrevistas, os jovens se emocionaram ao falar sobre este dia, expressaram tristeza, lágrimas e indignação: “Eu comentei sobre a história do fórum porque foi realmente o período que mais, dentre todos os sentimentos de todas as organizações foi uma das coisas que mais mexeu comigo” (Carlos, 18 anos, estudante).

Para muitos deles, foi determinante o entendimento de que a justiça tem lado. Ali experienciaram o conflito de maneira clara e tiveram a percepção de que a luta estudantil contrariava valores dominantes da sociedade burguesa, como o individualismo e, consequente, a falta de coletividade:

Nossos argumentos foram extremamente claros, explicamos o que fazíamos e por que lutamos, nós falamos que éramos contra o congelamento de 20 anos e a reforma do ensino médio, eles queriam com a reforma tirar nosso ponto crítico da sociedade, nós explicamos tudo, depois fomos sentar. Depois foi falar quem eram contra as ocupações, só que os argumentos não foram exatos, eles pensavam em si próprios, eles não pensavam nos outros, não pensavam na sociedade, não pensavam no futuro. (Ernesto, 17 anos, estudante)

A parcialidade da promotoria, assim como dos coadjuvantes do episódio, possibilitou aos jovens secundaristas experienciar a força coercitiva do braço do estado, da mídia tradicional e dos donos do poder local. Reiterando Thompson (2004), não existe experiência sem conflito, e estas podem proporcionar mudanças na constituição dos sujeitos. Para os e as ocupas de Francisco Beltrão, demarcou a compreensão dos antagonismos presentes na sociedade: “Então eles e nós, enquanto ocupantes, a gente viu na prática” (Fernando, 18 anos, estudante). Eis um processo importante no fazer-se da juventude das classes populares.

Considerações finais

Os sujeitos das ocupações escolares de Francisco Beltrão, juntamente com outros jovens secundaristas do Paraná, mesmo não sendo ouvidos em suas pautas, ecoaram uma canção de protesto e resistência. Eles não foram meros receptores passivos das mudanças que ocorriam no sistema educacional. Foram jovens que, diante do cenário das políticas neoliberais, insurgiram-se. A reforma do ensino médio e a PEC dos Gastos foram o estopim para que os jovens se organizassem e se unissem em torno de uma causa comum.

Vale salientar que a ação dos jovens traz as experiências das lutas já travadas pelas juventudes em tempos idos. Sua força e potência revelam que, com o passar dos anos, criam-se constructos sociais sobre as juventudes e que isso permanece vivo no fazer-se jovem. É de lembrar também que, em 2013, nas Jornadas de Junho, muitos estudantes secundaristas tiveram suas primeiras experiências de organização direta, sendo que este processo formativo iluminaria a primeira onda das ocupações (Groppo, 2018). Assim, é possível afirmar que as ocupações que ocorreram antes contribuíram para o processo formativo dos jovens e gerou outras possibilidades de luta dos secundaristas no país, como no processo das ocupações em 2016.

Os estudantes em Francisco Beltrão demonstraram compreender que a escola é um direito social e um território em disputa. A partir da auto-organização, ensaiaram experiências mais horizontais de participação com assembleias, divisões de tarefas, palestras, minicursos e atividades culturais, revelando uma alternativa para a forma escolar tradicional e marcando a experiência formativa dos secundas. Afirma-se que o movimento das ocupações no município foi significativo para o processo formativo dos jovens envolvidos.

Por fim, nas ocupações, os estudantes vivenciaram conflitos, disputaram o espaço escolar e, ao fazê-lo, colocaram-se como sujeitos que pensam, refletem e agem sobre o seu meio. Entende-se este momento autoformativo como contínuo e processual, agregador das diferentes experiências formativas dos jovens participantes, inclusive a acadêmica, e que culmina com as ocupações. Mas essa é uma experiência que se sobressaiu na medida em que explicitou as contradições da sociedade de classes e expôs condições efetivas para a sua problematização: “Eu vi muita coisa que antes sem a ocupação eu não viria” (Lucas, 18 anos, estudante).

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[1]De acordo com Lagoa (2019, p. 5) “O fundamento de tais reformas está na transferência da Educação da esfera dos direitos sociais à esfera do mercado, reduzindo-a a uma condição de propriedade. De maneira que as instituições escolares devem ser pensadas e reestruturadas sob modelos produtivistas e empresariais”.

[2]Trata-se da pesquisa de mestrado Movimento das Ocupações Escolares: “O fazer político dos jovens secundaristas” no município de Francisco Beltrão – Pr, do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), campus de Francisco Beltrão.

[3]Apenas jovens de uma escola urbana, que enfrentaram de forma truculenta a ofensiva de direção, professores e pais contrários, e jovens de uma escola do campo, não participaram.

[4]A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UNIOESTE, conforme parecer 2.828.179.

[5]No período em que ocorreram as ocupações no Paraná, os educadores novamente entrariam em greve, tendo como pauta o não pagamento da data base pelo governo estadual.

[6]Ana Julia Ribeiro foi destaque nas ocupações estudantis paranaenses após proferir discurso, em 26 de outubro de 2016, na Assembléia Legislativa do Paraná e que teve enorme repercussão nacional.

Recebido: 12 de Fevereiro de 2021; Aceito: 13 de Maio de 2021

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