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Linhas Críticas

versión impresa ISSN 1516-4896versión On-line ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.27  Brasília  2021  Epub 07-Jun-2021

https://doi.org/10.26512/lc.v27.2021.36242 

Dossiê: As dimensões educativas da luta: saberes e aprendizados da e na militância política

Narrativas, memórias e experiências: o processo de ocupação estudantil na Baixada Fluminense

Narrativas, memorias y vivencias: el proceso de ocupación estudiantil en la Baixada Fluminense

Narratives, memories and experiences: the student occupation process in the Baixada Fluminense

1Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (2012). Fez Estágio de pós-doutorado pela Universidade de Coimbra (2020). É professora adjunta da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Pesquisadora líder do Grupo de Pesquisa Espaços de Saberes – GRUPES.

2Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (2000). É professor adjunto da Universidade Federal de Alfenas. Pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.


Resumo

Abordam-se narrativas de memórias das experiências contadas, por meio de entrevistas semiestruturadas, de cinco jovens que participaram do processo de ocupação estudantil em uma instituição de educação básica e outra de educação superior, em 2016, na Baixada Fluminense. As narrativas de revisitas de experiências centraram-se nos processos coletivos do vivido, que se constituíram largamente formativos, inclusive por meio das práticas políticas participativas e com tendências horizontais. As experiências tiveram efeitos importantes nos trajetos individuais, bem como, ao se vincularem com lutas pretéritas e futuras, anunciaram novos modos de se mobilizar coletivamente.

Palavras-chave Narrativas; Memória; Experiências; Movimento Estudantil; Juventude

Resumen

Se abordan narrativas de memorias de las experiencias contadas, a través de entrevistas semi-estructuradas, de cinco jóvenes que participaron en el proceso de ocupación estudiantil en una institución de educación básica y otra de educación superior, en 2016, en la Baixada Fluminense. Las narrativas de revisitas de experiencias se centraron en los procesos colectivos de lo vivido, que fueron en gran parte formativos, incluso a través de prácticas políticas participativas y con tendencias horizontales. Las experiencias tuvieron efectos importantes en las trayectorias individuales y, cuando se vincularon con luchas pasadas y futuras, anunciaron nuevas formas de movilización colectiva.

Palabras clave Narrativas; Memoria; Experiencias; Movimiento Estudiantil; Juventud

Abstract

Narratives of memories of the experiences told are approached, through semi-structured interviews, by five young people who participated in the student occupation process in an institution of basic education and another of higher education, in 2016, in Baixada Fluminense. The revisit narratives of experiences centered on the collective processes of the lived, which were largely formative, including through participatory political practices and with horizontal tendencies. The experiences had important effects on the individual trajectories, and, when they were linked with past and future struggles, they announced new ways of mobilizing collectively.

Keywords Narratives; Memoir; Experiences; Student Movement; Youth

Introdução

O movimento de ocupações estudantis, secundaristas e universitárias, especialmente as primeiras, aconteceu entre os anos 2015 e 2016, em distintas regiões brasileiras, e teve relevante adesão de estudantes, com base em diferentes motivações, a depender da localidade em que tais ações coletivas aconteceram. Transcorridos cinco anos, aproximadamente, importa a este texto [1] analisar as narrativas de memórias sobre as experiências de jovens que participaram desses acontecimentos, especialmente no segundo semestre de 2016, no contexto de duas instituições de ensino públicas federais, sendo um colégio técnico e uma universidade, ambos localizados em um município de médio porte da região da Baixada Fluminense, estado do Rio de Janeiro.

As ocupações estudantis no Rio de Janeiro tiveram dois distintos momentos, de acordo com Silva e Melo (2017). O primeiro, iniciado em março de 2016 e centralizado no ensino médio, se tratou de um movimento com pauta estadual, advindo do apoio à greve da categoria docente. Nesse momento, discentes apresentaram pautas adeptas ao enfrentamento da deterioração da qualidade de ensino evidenciada na degradação dos recursos físicos, das relações pouco democráticas estabelecidas nas escolas entre os diferentes sujeitos escolares e dos baixos salários designados a trabalhadoras e trabalhadores da educação. No segundo momento, entre outubro e dezembro de 2016, a ação mobilizou, sobretudo, estudantes de universidades e de institutos federais, agora mais afetado pelo macrocenário político do país, em uma onda que envolveu quase todas as unidades da federação, a partir da rejeição às medidas do governo federal de Michel Temer. Em ambos os períodos, estudantes também possuíram distintas pautas identitárias - destacando-se o combate ao machismo, ao racismo e à LGBTTfobia - e intimamente relacionadas com suas demandas locais, como as políticas de assistência estudantil.

A primeira ocupação fluminense aconteceu na capital, em 21 de março de 2016, no colégio estadual Prefeito Mendes de Moraes: escola inaugurada em 1949, com histórico de oferta de ensino profissionalizante nos anos 1970 e formação para o magistério na década de 80, no ano em que ocorreu a ocupação, atendia 2.149 alunos de modo que parte destes residia próximo à unidade e outra morava em localidades mais distantes, como a comunidade da Maré, Morro do Timbau e Vila do João (Tomaz, 2019), configurando uma importante referência de oferta de ensino médio na Ilha do Governador. Foi nesse contexto que estudantes protestavam contra a evidente degradação das condições concretas de funcionamento da educação pública no estado, contudo, cabe também ressaltar a existência de um cenário de profunda crise financeira e política, esta processada por uma histórica governança marcada por denúncias de corrupção de distintas naturezas e má gestão dos recursos públicos. No primeiro semestre de 2016, sob o governo de Luiz Fernando Pezão, tal crise se agravou e, oficialmente por meio do Decreto n.º 45.692/16 (Rio de Janeiro, 2016), o então governador declarou estado de calamidade pública. No âmbito da educação estadual, vigorou uma extensa e histórica greve de docentes em torno de um conjunto de reivindicações: a reconfiguração da forma de eleição da gestão escolar, a readequação do plano de carreira, a elevação e o cumprimento de um calendário de pagamento dos salários e a melhoria das condições físicas das escolas, dentre outras pautas (Cardia, 2016). Embora, neste quadro, as ocupações secundaristas tenham se iniciado em um curso originário e apoiante à greve docente da rede estadual, se constituíram como um movimento singular, com suas assembleias e demandas próprias. Em um levantamento realizado por Costa et al. (2018), cerca de 70 escolas da rede pública foram ocupadas por estudantes, em sua maioria do ensino médio e em diferentes regiões do estado; já Gomes e Gómez-Abarca (2018) afirmaram ter chegado a 80 unidades.

No segundo semestre de 2016, as ocupações estudantis respondiam antes a uma configuração nacional, em um contexto político marcado pelo recente golpe parlamentar que derrubou Dilma Rousseff e empossou Michel Temer (Cleto et al., 2016). Destacamos que, no Rio de Janeiro, foram mobilizados, principalmente, estudantes da educação superior nesse momento, enquanto que em outros estados continuou a haver o protagonismo do estudantado do ensino médio, mas agora com apoio de ocupações de universidades. O movimento se teceu então como reação à implementação da, na época, Proposta de Emenda à Constituição (PEC) n.º 241/2016 (Brasil, 2016a) que, aprovada como Emenda Constitucional n.º 95 (Brasil, 2016b), instituiu novo regime fiscal quanto aos gastos públicos demandados, por 20 anos, bem como à, na ocasião, Medida Provisória n.º 746/2016 (Brasil, 2016c), que estabeleceria uma política de fomento à implementação de escolas de ensino médio em tempo integral e imporia distintos itinerários formativos, implicando na não obrigatoriedade da oferta de disciplinas, como filosofia e sociologia, elementos que se constituíram em um contexto de amplo descontentamento e de afrontes a direitos sociais conquistados.

Perante o inegável impacto das ocupações, faz-se fundamental revisitar e examinar o tema, em específico para capturar os aspectos formativos que propiciaram importantes experiências a quem participou das referidas ações. Outrossim, frisamos, é pertinente compreender a configuração da memória das ocupações no processo de composição histórica da formação da juventude, como já ressaltado por Groppo e Silveira (2020). No âmbito do estado do Rio de Janeiro, o tema tem sido tratado sob distintas dimensões de modo a capturar processos formativos, de diversas naturezas, experienciados por estudantes. À vista disso, o contexto atual de produção de conhecimento no campo tem indicado, sistematicamente, que trajetos de formação foram produzidos pela população juvenil, por meio de múltiplos percursos pessoais e coletivos. É justamente nessa área de relevância e geração de conhecimentos que este escrito está situado, e objetiva, principalmente, a partir da memória das narrativas, identificá-las com o intuito de conhecer e realizar outras formas de contar a história. Movimento que se relaciona com a revisita ao passado: processo de rememoração que reconhece, no presente, um pretérito intencionado (Benjamin, 2017). As narrativas aqui discutidas expressam as existências de jovens que protagonizaram formas outras de integrar o patrimônio cultural em disputa ao longo da história humana, e que denotam ainda experiências em comum a partir do vivido nas ocupações. Portanto, objetivamos conhecer como o presente é ocupado por um passado que não se foi, porque resiste por intermédio das narrativas dos trajetos formativos granjeados pelos sujeitos: o ato de rememorar como um processo que não pretende recompor o vivido tal como ele foi, mas como um deslocamento que se preocupa com as capturas de arquitetônicas outras que, no agora, se apresentam.

Para atingir este propósito, o artigo está sistematizado em quatro seções: na primeira, denominada introdução, apresentamos uma breve contextualização acerca da abordagem da investigação. Na segunda, discorremos sobre os aportes teóricos da temática intitulada “ocupações estudantis: narrativas, memórias e experiências”. Posteriormente, dialogamos sobre o método, expomos o perfil predominante dos sujeitos participantes do estudo e evidenciamos os instrumentos utilizados para o tratamento dos dados. Em seguida, explicitamos os resultados e os analisamos. Por fim, nas considerações finais, destacamos as contribuições e possíveis recomendações do trabalho produzido.

Ocupações estudantis: narrativas, memórias e experiências

Um levantamento bibliográfico acerca das ocupações estudantis no estado do Rio de Janeiro encontrou um expressivo conjunto de trabalhos que se reportam às dimensões formativas das ocupações estudantis, como Barreto (2019), Côrbo (2020) e Leite (2017) [2] . Tenderam a explorar instrumentos de produção de dados de natureza qualitativa, como entrevistas, observação participante e análises de documentos diversos, o que possibilitou caleidoscópicas interpretações sobre suas existências, nos processos de tessituras de juventudes, inclusive devido à relevante relação estabelecida entre sujeitos pesquisadores em campo durante o processo de ocupação: um ponto comum identificado, nos textos analisados, foi tal inserção de investigadoras e investigadores de maneira prevalentemente etnográfica, como Fernandes (2017), Silva e Melo (2017) e Gomes e Gómez-Abarca (2018). A grande maioria dos trabalhos se reportam ao primeiro período das ocupações, aspecto que adiciona relevância a este texto, pois trata do segundo período. O artigo traz algo que também foi pouco tratado em outros trabalhos, a saber, a relação entre ocupações secundarista e universitária.

Ainda foi possível constatar, de modo corrente, que as ocupações ocorridas em São Paulo, em 2015, sob anúncio de um programa de reestruturação da rede estadual de ensino que implicaria um significativo fechamento de escolas, e que expôs um conjunto de pautas que denunciava a precariedade estrutural do ensino (Piolli & Mesko, 2016), influenciaram os movimentos acontecidos no estado do Rio de Janeiro, embora preservadas as singularidades dos contextos. Perante os muitos processos formativos evidenciados pelas pesquisas, destacamos: autogestão; decisões acordadas coletiva e democraticamente com base em organizações por comissões; relação e comunicação com a comunidade; articulação com pautas locais, identitárias e de outros movimentos; promoção de atividades formativas diversas; revitalização dos espaços físicos das escolas; enfrentamento com movimentos opositores e com a polícia. Destarte, as investigações destacadas ocupam um presente constituído de um passado que se fez e ainda se faz em meio a crises sociais. Portanto, tratamos de trajetos formativos compostos na tensão do vivido que evidenciam, por sua vez, aberturas múltiplas acerca de outros potenciais temas, como também apontam um constructo social a respeito das ocupações, o qual abordamos a seguir através dos temas narrativas, memórias e experiências.

Para Benjamin (2017), a arte de narrar como comunicação artesanal advinda da genuína oralidade popular estaria em extinção, diante da fadiga social provocada pela arqueologia da modernidade, já que não expressamos unicamente palavras, mas narramos uma composição cultural de relação conosco, com a natureza e com a sociedade. Narramos contínuas culturas ancestrais transformadas em histórias formuladas por nós em um tempo presente, capturamos interpretações possíveis em forma de palavras, gestos, imagens, para contar ao outro. O ato narrativo desencadeia o encontro entre pessoas que narram e ouvem, numa partilha de experiências e aconselhamentos: histórias se encontram com outras histórias por meio de uma comunidade narradora de culturas, enunciadas por sujeitos que potencializam outra forma de contar a história, aquela emitida pelas vozes dos sujeitos vencidos, na perspectiva benjaminiana. O rememorar do passado, de acordo com Benjamin (2017, p. 11), nos é apresentado “como imagem irrecuperável e subitamente iluminada no momento do seu reconhecimento”, por isso articular o pretérito não seria revisitá-lo tal como ele aconteceu, mas nos relacionarmos com uma recordação que se manifesta em um momento de perigo, a saber, o perigo “de nos transformarmos em instrumentos das classes dominantes” (Benjamin, 2017, p. 11).

A luta travada entre sujeitos vencidos e vencedores, entre oprimidos e opressores, ocupa a centralidade do interesse no passado, para Benjamin (Löwy, 2005). Narrar o passado diz respeito, inclusive, ao presente que reconhece um tempo que se faz intencionado no agora, pelas palavras daqueles que contam a partir do lugar social que ocupam: trata-se de uma relação dialética temporal instaurada pela potência da transformação formativa que se faz no hoje que se conta e por isso “precisamos sentir, concretamente, que a nossa relação com o passado só é verdadeira se mexer conosco, se nós estivermos nos dando conta de que aquele passado nos concerne, tem algo de nós” (Konder, 1988, p. 54). Por isso, as relações construídas com/no/pelo tempo cronológico deflagram a consciência do tempo da vida, uma especificidade humana, experienciado no ato de narrar.

Diante da nossa condição de sujeitos sócio-históricos, o ato de rememorar deflagra fenômenos mnemônicos singulares e coletivos, eis por que as narrativas de estudantes ocupas nos são tão caras: potencialmente espelham mônadas (Benjamin, 2017) que podem revelar a experiência entendida como feito comunicável de possíveis saberes, ou ainda, numa perspectiva larrosiana, como algo que acontece e toca o sujeito de modo que vivê-la se constitui uma raridade em tempos de excessos de trabalho, de informação e de opinião, e ainda de escassez de tempo, de superexcitação e efemeridade (Larrosa, 2014). Portanto, a importância da narração reside na constituição do sujeito (Gagnebin, 2013), visto que ele revisitaria não unicamente o que teria consciência, mas inclusive o que lhe é incontrolável, uma abertura que “consiste igualmente numa ampliação da dimensão social do sujeito que, renunciando à clausura tranquilizante, mas também à sufocação da particularidade individual, é atravessado pelas ondas de desejos, de revoltas, de desesperos coletivos” (Gagnebin, 2013, p. 74).

Tal amplitude se faz na tensão da narrativa da rememoração da experiência porque o discurso, imbricado da continuidade existencial dos sujeitos, constrói formas próprias no tempo do contar, expõe um mundo interno na relação com o ambiente externo (Marques & Satriano, 2017). As memórias das experiências são revisitadas no presente. Elas são constituídas pelo indivíduo que tece escolhas por intermédio de marcadores formativos e temporais, que opta por determinadas palavras, que manifesta concepções construídas no decorrer do tempo, sendo este conjunto a denominação da construção de sentidos para o que verbaliza. Destarte, um narrador revela a sua identidade por meio do ato de contar histórias, tecidas no bojo de discursos singulares/coletivos e históricos, mas também por meio de movimentos exotópicos que denotam imagens internas e externas de si: narrar é um ato relacional e não neutro no qual o excedente de visão (Bakhtin, 2003) se faz na relação com o outro. Isso porque, enquanto narra, o sujeito posiciona-se axiologicamente diante do mundo e das demais pessoas, agindo responsiva e valorativamente na atividade única, estética e irrepetível de contar, de modo que o estranhamento tecido se faz em um movimento de deslocamento que não se dá no vazio, isto é, como indivíduo me desloco “cheio de mim” (Bakhtin, 2003), me exercitando e exercitando como o outro vê. A potência do intercambiamento de posições entre sujeito narrador e personagem deflagra o valor biográfico da narrativa:

Ao narrar sobre minha vida cujas personagens são os outros para mim, passo a passo eu me entrelaço em sua estrutura formal da vida (não sou herói da minha vida mas tomo parte dela), coloco-me na condição de personagem, abranjo a mim mesmo com minha narração; as formas de percepção axiológica dos outros se transferem para mim onde sou solidário com eles. (Bakhtin, 2003, p. 141)

À vista disso, o narrar não se compõe como ato isolado: espelha relações, historicidades e contextos, também deflagra enunciados gerados por/nos coletivos, no âmbito de estruturas culturais, ou seja, experiências humanas desencadeadas no interior de classes sociais (Thompson, 2002). Nesse sentido, a experiência é interpretada como social, sendo “definida pela combinação de várias lógicas de ação” (Dubet, 1994, p. 93) de distintas naturezas, além de ser inacabada, não robotizada e crítica: se produz, tensamente, de modo processual. Logo, “as experiências não se acumulam no curso de uma vida através de um processo de adição ou aglomeração, mas são articuladas dialeticamente” (Mannheim, 1982, p. 80), e é justamente pela experiência que mulheres e homens compõem repertórios que expressam saberes de/nos modos de existir, ou seja, legados, palavras que atravessam o tempo, aconselhamentos, ao tomarmos Benjamin (2017) como interlocutor. Vale ressaltar, ainda, que não se trata de informação, opinião ou efemeridade, mas de “algo que nos acontece” (Larrosa, 2014, p. 27), desencadeando a fundação de “uma ordem epistemológica e uma ordem ética” (Larrosa, 2014, p. 26) distinta da técnica, mas sim alicerçada em um saber e uma práxis, ambos construídos pelos sujeitos, de modo caro e raro em tempos contrários às experiências, em constante perigo de extinção.

O tratamento desenvolvido sobre o conceito de experiência por Dubet (1994), Thompson (2002), Larrosa (2014) e Benjamin (2017), ainda que por distintas perspectivas e assentamentos, converge em abordagens que denotam uma atividade tipicamente humana produzida com outra pessoa ou pessoas, além de repertoriar o(s) sujeito(s) em sociedades que se opõem à organicidade da experiência, já que ela está voltada ao vivenciamento, ao reconhecimento do fazer/pensar/sentir. Dada à diversidade e complexidade das atividades construídas no interior das ocupações, é possível dimensionar que experiências plurais foram configuradas e, nesse sentido, Groppo e Silveira (2020, p. 7) consideram que “as ocupações podem ser definidas como uma experiência de classe, com um nível real de luta e consciência de classes”. Não se trata da classe pensada na forma marxista ortodoxa como posição na estrutura econômica, mas, antes, da constituição política de um coletivo de pessoas que pensam suas penas, seus interesses e desejos, não apenas a partir da configuração socioeconômica, mas também de seus esforços de organização para sobreviver e resistir, conforme Thompson (2002). Contar o vivido na ocupação expõe, portanto, uma amálgama de elementos sociais, políticos, educacionais e culturais que foram tecidos no passado, mas que são processados no decorrer do tempo e atualizados, por intermédio dos distintos trajetos formativos. Sendo assim, as histórias narradas por ocupas manifestam um consistente conteúdo experiencial que se refere a um certo fazer histórico revelado como movimentos de reparação por uma luta contínua de uma determinada classe social, aquela composta por pessoas oprimidas (freireanamente falando) e/ou vencidas (em termos benjaminianos).

O percurso metodológico e o perfil plural dos sujeitos

A amostra, constituída por cinco participantes da investigação, foi produzida entre os meses de março e abril de 2020, por intermédio da entrevista semiestruturada virtual, capturada através de chamadas de vídeo realizadas via aplicativos como Skype e Whatsapp, procedimentos apropriados diante do distanciamento social imposto pelo contexto pandêmico provocado pela doença do coronavírus (SARS-CoV-2). O roteiro de questões foi preparado pela equipe da pesquisa, sendo que os convites foram feitos à luz dos seguintes critérios: disponibilidade para conceder as entrevistas, bem como possuir sinal de internet disponível o suficiente para realizá-la, já que o tempo médio de cada interlocução teve a duração de 1 hora e 30 minutos. Todos os cuidados éticos foram tomados, conforme aprovação pelo comitê de ética de pesquisa com seres humanos [3] , e cada estudante foi identificado com o pseudônimo escolhido, a fim de preservar suas identidades. As questões, organizadas por eixos temáticos de acordo com os objetivos propostos pela investigação nacional, objetivavam, primeiramente, a aproximação de um possível perfil de tais jovens, e posteriormente, se reportaram aos processos formativos vividos. De início, optamos por apresentar possíveis retratos experienciais de tais jovens, e após, os resultados organizados por categorias, tratadas e codificadas via recursos do software de investigação qualitativa MAXQDA, diante do expressivo volume de informações.

Ressaltamos que na ocasião da ocupação, em 2016, os entrevistados Cruz, Dé e Léo participaram como secundaristas do colégio técnico; já Gui e Luna atuaram na condição de estudantes do ensino superior. Ambas instituições ocupadas são localizadas em um município com características socioambientais rurais e urbanas, na região da Baixada Fluminense, território com histórico de violência e abandono do poder público, aspecto socioeconômico que perpassa a constituição da formação e do lugar das ocupações. O colégio técnico, inclusive, pertence à universidade que também foi ocupada.

Quanto ao início dos movimentos, destacamos que a decisão de ocupar o colégio técnico aconteceu por intermédio de uma assembleia estudantil, inflamada pelas notícias de ocupações já ocorridas em outros estados, bem como por inspiração da ocupação já iniciada na universidade próxima. A decisão foi comunicada à equipe gestora da escola, mas as e os estudantes permitiram a manutenção dos serviços de secretaria já previstos, e como forma de auto-organização, trabalharam coletiva e democraticamente em diferentes comissões: limpeza, alimentação, comunicação, segurança, atividades culturais. Já na instituição superior em questão, o processo se fez de modo semelhante: o início por meio de assembleia geral, a ocupação do prédio central por discentes de distintos cursos e a organização de comissões. Contudo, cada instituto delineou pautas internas aliadas àquelas já acordadas no começo do movimento.

Sobre as pessoas entrevistadas, seus relatos e perfis, iniciamos com Cruz. Atualmente, é estudante do curso de licenciatura em Pedagogia na universidade tratada pela pesquisa, entretanto, na ocasião da ocupação, participou como estudante do colégio técnico; afirmou ser mulher, lésbica, negra, não possuir religião, carioca, com renda familiar de 01 salário mínimo e meio. Sua mãe é cuidadora de idosos e seu pai, mecânico de automóveis. Na época da ocupação, frequentava o curso de agroecologia integrado ao ensino médio. Participou da ocupação por cerca de 40 dias, entre novembro e dezembro do ano 2016.

O segundo participante, Gui, no momento da ocupação era estudante do curso de Pedagogia, e atualmente cursa uma especialização em educação das relações étnico-raciais no ensino básico. Declarou ser homem, negro, heterossexual, candomblecista, fluminense, com rendimento familiar de 03 salários mínimos. Sua mãe é doméstica e seu pai, funcionário público municipal. Afirmou que participou da ocupação durante 32 dias no espaço do instituto de educação da universidade.

O participante Dé disse ter participado durante 60 dias como estudante secundarista, na época, do curso técnico em agroecologia no colégio técnico. Na ocasião da entrevista, já estava cursando graduação em Agronomia e relatou ser homem, bissexual, negro, não possuir religião, ser fluminense e possuir renda familiar de um salário mínimo. O pai é operador de máquinas e a mãe, diarista.

Luna ocupou a instituição de ensino superior por 54 dias, instituição em que ainda cursa licenciatura em Pedagogia. Relatou que participou das ações coordenadas no campus todo, não tendo, portanto, colaborado com um instituto de modo específico. Informou ser mulher, branca, fluminense, heterossexual, não ter religião e possuir renda familiar de 03 salários mínimos. O pai é supervisor de vendas e a mãe, dona de casa.

Por fim, Léo ocupou o já referido colégio técnico durante 43 dias, sendo que, na ocasião, frequentava o curso de agroecologia integrado ao ensino médio. Declarou ser homem, branco, fluminense, heterossexual, não ter religião, possuir renda familiar de 03 salários mínimos. Atualmente, é estudante no curso de Agronomia. O pai trabalha com contabilidade e a mãe em supermercado.

Análise e Discussões dos Resultados

Os dados referentes às verbalizações das cinco pessoas entrevistadas foram transcritos e organizados a partir de critérios reincidentes no MAXQDA, e estão expostos na tabela a seguir.

Tabela 1 Indicadores, categorizações e codificações dos discursos 

Indicadores Categoria Codificação
Imagens da memória coletiva e singular da ocupação Imagens da memória IM
Formação política Formação política FP
Experiência como transformação e legado Experiência E
O tempo não cronológico e intenso como orientador formativo da existência e como legado Tempo T

Fonte: os autores.

As categorias investigadas denotam um processo reflexivo (Aguirre & Porta, 2019) dos aspectos formativos das memórias das experiências estudantis. Inicialmente, destacamos que o ato de narrar apareceu como quem faz uma viagem às imagens do vivido (Benjamin, 2017), num coletivo que se fez em um processo de organização (nas assembleias, nas comissões, no contato com outros grupos, na ida à Brasília etc.). Na narrativa, o tempo passado é ressignificado como luta por garantir um futuro melhor para os mais novos, mas uma luta que humaniza as próprias pessoas que fazem o movimento estudantil:

É algo que não se diz respeito só a mim mas também às gerações futuras . A minha irmã, ela é mais nova do que eu, então ela vai entrar no ensino médio depois de mim, se eu deixo passar uma reforma do ensino médio e ela não vai ter a educação que eu tive, que tipo de pessoa eu sou? (Dé, 21 anos, estudante do ensino superior, grifos dos autores)

O que mais marcou foi estar participando disso, da ocupação […] foi olhar e falar que enquanto pessoa estudante de uma universidade pública eu via que foi participativo, os professores participavam, os estudantes participavam e aquilo aproximava a gente também, meio que humanizava as pessoas. Então eu tenho contato com várias pessoas que se aproximaram a partir da ocupação. […] Esse é um dos maiores ganhos, tinha uma questão política, humanista de pensar nisso e saber que a gente participou disso, […] de entender que existem outras formas de educação que não só aquela de sentar em sala de aula, escrever no quadro, debater texto. […] então tipo tudo isso é pedagógico, tudo isso é revolucionário, então eu acho que o que fica é tudo isso, a questão do humano mesmo. (Gui, 30 anos, estudante de pós-graduação, grifos dos autores)

Essas memórias se apresentaram tecidas coletiva e singularmente: se fizeram no interior das relações com as demais pessoas, num movimento de fazer/pensar/descobrir, de modo que as dimensões formativas da ocupação não estavam postas/evidentes antes dela se concretizar, mas se constituíram educativas no decorrer de sua existência.

[…] eu acho que a coletividade foi a palavra que impulsionou e que manteve a ocupação […] a palavra que eu ouvi ao longo da ocupação toda foi a cooperatividade na ocupação toda, foi a única coisa que manteve a gente ali […] a gente fez tanta coisa e a gente não sabia que iria fazer nem a metade daquilo quando a gente iniciou o processo, então, eu vejo que a ocupação é um processo às cegas, que você só tem que confiar no poder de todo mundo que tá com você ali e hoje em dia eu sou muito grato a todo mundo da ocupação. Eu fico muito feliz de ter feito parte, a formação é tanto política quanto pessoal […] então a memória que eu vejo é afetiva para todo mundo que participou, todo mundo tem uma memória boa […]. (Léo, 21 anos, estudante do ensino superior, grifos dos autores)

[…] depois da ocupação isso foi fundamental para crescimento pessoal e profissional na minha vida, então, ter essa integração com os outros cursos. […] Então, eu só ficava muito com as pessoas do meu curso, no máximo alguém da psicologia […] e esse foi meu momento antes da ocupação. Eu acho que depois disso tudo mudou drasticamente, tudo mudou na minha vida. (Luna, 24 anos, estudante do ensino superior, grifos dos autores)

Outro aspecto importante se refere a que, apesar de serem contadas experiências em duas distintas instituições educacionais públicas de um mesmo município, podemos identificar as dimensões do aprendizado no/do coletivo explicitadas em todas as entrevistas, sejam por estudantes com vivências sistemáticas prévias em outros espaços de atuação política, como no caso de Gui e Cruz, sejam por quem mencionou possuir pouca ou nenhuma atividade de natureza semelhante, caso de Dé, Luna e Léo.

A ocupação estudantil foi um somatório de coisas, experiências e todo mundo somou com um pouco daquilo que sabia […] Somou com o que eu já conhecia, a partir de todas as formações que vivi, ao longo de todos os meus anos de escolarização […] No balanço geral que a gente fez no final de tudo, na ocupação, é que ela foi um dos maiores processos formativos acontecidos dentro do colégio técnico, principalmente porque ela foi formadora de militantes no sentido mais geral e em relação à luta estudantil. (Cruz, 20 anos, estudante do ensino superior, grifos dos autores)

Quanto à estrutura interna de organização da ocupação, foi possível identificar, pela narrativa de todos participantes, mas em especial a explicitada por Gui, que o formato de decisões democráticas de composição de comissões diversas (alimentação, cultural, política, segurança e limpeza) coincide com aquelas também analisadas por Fernandes (2017) e Côrbo (2020), dentre outros autores que também investigaram localidades do estado do Rio de Janeiro, mais detidamente.

[...] a gente lá do instituto de educação foi mesmo uma questão independente, a gente criou comissões de atividades culturais, de atividades políticas de debates e aí pessoas ficavam responsáveis em chamar professores e palestrantes pra irem lá conversar com a gente na ocupação e com os outros estudantes que participavam das atividades. O pessoal do curso de Psicologia criou um grupo de teatro durante a ocupação e aí a gente tinha o cine debate, mas a gente não tinha uma cartilha não, a gente decidia coletivamente quem seria responsável pelas atividades do dia e a gente pensava atividades que poderiam contemplar todo mundo […] e tinha uma ata […] diária que a gente fazia, a gente contava as pessoas que participavam, quem iria dormir lá na ocupação, quem ficaria responsável por cada atividade, tinha também o pessoal da segurança e da alimentação. (Gui, 30 anos, estudante de pós-graduação, grifo dos autores)

O que me gratificou foi união e a mobilização que a gente teve dentro de todo o processo de ocupação. […] foi exatamente esse balanço geral que a gente fez no final de toda ocupação. É que a ocupação foi um dos maiores processos formativos dentro do colégio. (Cruz, 20 anos, estudante do ensino superior, grifos dos autores)

Do ponto de vista singular, a revisita da memória da ocupação foi mencionada como “positiva” e “afetiva” por Léo, ou ainda como algo que “mudou a vida”, como disse Luna, mas possuiu também uma dimensão “pedagógica” e “revolucionária”, como Gui especificou. Esses aspectos expressam a constituição de marcadores biográficos nos trajetos de formação, sendo esses criadores de configurações existenciais. As identidades coletivas e singulares se compuseram, então, por intermédio da vivência intensa de atividades diversificadas, e através de relações subjetivas de aproximação, especialmente pela amizade, indicada por Léo, mas também durante os conflitos, seja no defronte com grupos opositores à ocupação, seja nas distintas situações de negociação e contato – inicial ou já existente – com organizações apoiadoras, como o Levante Popular da Juventude e o Cursinho Popular, relatados por Gui.

Na ocupação, a gente conseguiu fazer com que todos cursos se unissem, finalizamos essa rincha de que um curso seria melhor que outro. Mas, o que mexe comigo é mais a questão do coletivo, a questão do cuidado com o próximo, de você estar cuidando do seu amigo e ele estar cuidando de você. Vocês estarem se cuidando e vocês estarem nessa conexão, mais profunda da coisa. A gente conseguiu fazer em dois meses o que o colégio tenta fazer em vários anos, entendeu? E a gente conseguiu fazer isso porque a gente teve esse espaço na ocupação, por mais que o colégio fosse e ainda é um colégio aberto, havia muito autoritarismo de professor, então a gente não tinha espaço pra fazer eventos que a gente como juventude queria fazer no colégio pra poder tirar um pouquinho esse peso do que é você estar só estudando. […] o colégio foi ocupado pela primeira vez pela gente e a partir dali a gente tem conseguido projetar os anos posteriores nessa visão política dos estudantes. (Dé, 21 anos, estudante do ensino superior, grifos dos autores)

[…] ao longo da ocupação, a gente viu que a gente foi se integrando e no final da ocupação a gente fez até viagem de formatura juntos, a gente virou amigo, todo mundo, foi muito legal, porque no primeiro ano, a gente não se falava, a gente nunca se falou e a ocupação foi muito importante nesse sentido de integrar todo mundo que era do 3.º ano dessa época e isso refletiu bastante, que eu vejo que hoje em dia o pessoal do ensino médio não tem mais essa rincha com agroecologia e com os outros cursos, como meio ambiente e hotelaria. (Léo, 21 anos, estudante do ensino superior, grifos dos autores)

A formação política foi explicitada em todas as entrevistas, com exceção de Luna, que entretanto, reconhece o desenvolvimento processual dessa formação, por meio de diferentes sujeitos (estudantes, docentes e pessoas apoiadoras), mas fundamentalmente pela apropriação de formas de pensar e de se organizar próprias da natureza do movimento da ocupação, com relações construídas a partir de práticas tendencialmente horizontais e democráticas, concebidas pelo e no coletivo. Tal natureza de formação coletiva, processual e política – que se revelou pedagógica – também foi relatada por Gomes e Gómez-Abarca (2018), Silva e Melo (2017) e Leite (2017) em seus estudam que tratam sobre o tema no contexto fluminense e carioca. É verdade que nesse segundo momento das ocupações estudantis fluminenses, as entidades estudantis e juventudes partidárias estiveram mais presentes que no início de 2016 – orientadas politicamente pelo centralismo democrático e pela visão estratégica (Barreto, 2019). Entretanto, mesmo agora, as ocupações estiveram imersas na chamada política pré-figurativa (Reguillo, 2013), a saber, formas de luta que antecipavam os contornos da sociedade, da política e até da escola que se desejava construir.

A ação coletiva não apenas quebra o distanciamento da política de estudantes que não atuavam em partidos ou entidades, mas leva ocupas a vivenciarem uma forma de política diferente. Essa política não é direcionada apenas ao tempo futuro – voltada à consecução de um objetivo (o atendimento de uma pauta) -, mas principalmente para a vivência no presente da utopia delineada, por meio da horizontalidade das assembleias, da dialogidade das atividades formativas, da inclusividade das identidades de gênero, raciais e de orientação sexual, entre outros. Não à toa, como se verá abaixo, a ocupação é rememorada como uma compressão gigantesca do tempo, tal a profusão de experiências únicas e originárias.

[…] eu acho que ter compartilhado aquele momento com pessoas que eu nem conhecia […] e conheci ali na hora e, do nada, depois de 3 dias, de ser tudo tão intenso, como se a pessoa fosse parte de você assim há um tempão, sabe? Defender a mesma causa para construir com você e estar no dia a dia mesmo, numa relação de preocupação com você e você com a pessoa. Eu acho que os laços que eu vi ali na ocupação, naquele momento, porque hoje infelizmente cada um seguiu sua vida, cada um está do seu lado, e naquele momento ali foi tudo muito intenso para quem estava vivendo aquilo. Mas, se fosse contado para as pessoas de fora, eu acho que só viveu mesmo aquele momento quem estava ali dia após dia vivendo, fazendo a comida, tendo as dificuldades. […] Enfim, estar construindo isso foi mais importante, os laços mesmo, ver que naquele momento ali as pessoas se ajudaram, estavam se ajudando mesmo sem se conhecer. (Luna, 24 anos, estudante do ensino superior, grifos dos autores)

Já os diferentes, mas congruentes conceitos de experiência apresentados na seção anterior ajudam a iluminar os depoimentos de quem entrevistamos. Primeiro, todas as pessoas relataram que a ocupação foi algo que modificou seus trajetos formativos. Assim, elas fazem jus ao conceito de experiência de acordo Larrosa (2014), já que as verbalizações expõem certa ruptura existencial em relação aos contextos até então vividos: “tudo mudou na minha vida”, como disse Luna. Segundo, a experiência em diálogo com Benjamin (2017) é evidenciada pela narrativa de Dé, em que as ocupações são um legado às gerações futuras. Dessa maneira, as ocupações compõem um conjunto de saberes aprendidos e transmitidos por meio da narrativa de histórias do vivido que se tornam outra forma de contar a história, essa mais íntima aos sujeitos. Finalmente, a verbalização de Léo, que se refere ao caráter processual da experiência do ato de ocupar, sendo esse melhor compreendido e mais conjecturado no decorrer da ação que era desenvolvida no/pelo coletivo. Temos aqui a experiência em seu sentido de construção articulada dialeticamente (Dubet, 1994; Mannheim, 1982), bem como a experiência como atividade tipicamente humana, porque foi construída por meio do viver do singular no coletivo (Benjamin, 2017) e/ou compreendida como circunscrita por um grupo social (Thompson, 2002).

O tempo, como um marcador acentuado nas/das diferentes posições configuradas nas narrações, foi referenciado ora como um elemento formativo contínuo, mencionado por Cruz como “um somatório de coisas […] ao longo de todos os meus anos de formação”, mas também como um componente orientador do futuro carregado de compreensões sobre legado e constituição de identidade, aspectos verbalizados por Dé quando disse que se trata de “algo que não diz respeito só a mim, mas também às gerações futuras, […] se eu deixo passar uma reforma do ensino médio e ela não vai ter a educação que eu tive, que tipo de pessoa eu sou?”. Dessa maneira, inclusive, Dé, enquanto narra, expressa a exteriorização de imagem interna de si, em especial quando se autoquestiona, além de expor projeções educativas de si e do outro, sendo que essas posições não se constituem apenas como elementos carregados de temporalidade, mas também de deslocamentos de lugares valorativos discursivos. Foi possível também identificar uma intensidade temporal desvencilhada de cronologia, como relatada por Luna:

[…] eu acho que ter compartilhado aquele momento com pessoas que eu nem conhecia […] e conheci ali na hora e, do nada, depois de 3 dias ser tudo tão intenso como se a pessoa fosse parte de você, assim, há um tempão, sabe? (Luna, 24 anos, estudante do ensino superior)

Tais enunciações expressam uma estética de escolha de palavras que remetem a posicionamentos de estudantes sobre o que acordam e/ou desacordam, como deslocamentos exotópicos (Bakhtin, 2003) construídos no ato de narrar, tal qual um movimento produzido no tempo presente para o passado e para o futuro: um ser-no-tempo que é uma forma de ser-no-mundo (Ricouer, 2007). O tempo mercantilizado da sociedade de consumo foi, então, forjado – derretido e remodelado – por tais jovens em suas atividades na ocupação, uma vez que ele foi reconstituído com outros e novos sentidos para a experiência do viver em sociedade, conforme também problematizam Leite e Araújo (2018).

De forma articulada, as categorias imagens da memória, formação política, experiência e tempo expressam as narrativas das memórias da experiência que extrapolam histórias de jovens voltadas às suas condições de estudantes, mas configuram a inteireza inacabada de mulheres e homens. Por isso explicitam uma natureza formativa e educativa mais ampla, em meio a um contexto de sucessivas crises em que ocorreram as ocupações.

Considerações Finais

As juventudes contemporâneas têm se constituído por meio de múltiplos percursos pessoais e coletivos, incluindo, para parte delas, a participação e até mesmo o protagonismo em ações coletivas, como as ocupações estudantis no Brasil. Pesquisar a construção e reconstrução de memórias dessas experiências de atuação em ações coletivas, por meio de narrativas, foi o objetivo desse artigo, focado nas ocupações estudantis em um município da Baixada Fluminense no 2.. semestre de 2016. Esse esforço investigativo conheceu um importante exemplo de como jovens vêm articulando essas experiências em suas memórias, como significam e ressignificam as lutas sociais nas quais participaram, a despeito da suposta derrota do movimento diante da aprovação da Emenda Constitucional n.º 95 (Brasil, 2016b).

As narrativas de memórias das experiências contadas por ocupas perpassam imagens que foram capturadas e representadas pelas escolhas do que e como dizer, mas também por modificações importantes nos modos como se relacionavam como estudantes na escola e universidade investigadas. O movimento, no caso, teve o intercâmbio de vivências e apoios entre um colégio de Ensino Médio e um campusuniversitário, ao lado de organizações políticas e entidades estudantis apoiadoras. A interlocução e a construção da ação coletiva entre sujeitos relativamente heterogêneos promoveram o cotejo – não sem tensões – entre perspectivas distintas que, entretanto, conforme as entrevistas, não impediu a construção de um sentimento de uma coletividade, de um “nós” vigoroso, para além das amizades e dos coleguismos de turma ou de curso.

O movimento se revelou potencialmente formativo, aglutinando demandas sociais e anseios educacionais mais democráticos e estruturados em inclinações horizontais. Demonstrou ainda uma natureza formativa e, portanto, educativa, reverberada por um processo que potencializou a reconstrução de identidades, produzidas em locus, mas também através da tessitura de relações potencializadas pela partilha de saberes potencializados ao longo da experiência vivida em cada um, seja na condição estudantil, seja como mulheres e homens no mundo.

O ato de narrar deflagrou um elo que vinculou ocupas do passado com lutas sociais do presente e futuro, jovens que foram desalunizadas e desaluzinados (Groppo e Silveira, 2020), que se formaram com palavras e contrapalavras próprias e alheias, num movimento de protagonismo de luta e resistência diante do cenário vivido. As narrativas construíram retratos que integraram a própria história da juventude, ou seja, não apenas tiveram importantes efeitos nos trajetos individuais, mas também constituíram contornos próprios nos modos de se movimentar coletivamente.

A despeito das dimensões fronteiriças, claramente delimitadas no estudo abordado, explicitadas principalmente pela consonância do recorte temático e qualitativo, as recomendações se voltam a pesquisas que possam especificar mais detalhadamente as dimensões educativas do pós-ocupação. O trabalho discutido expôs, por fim, um conjunto de experiências juvenis que compuseram a formação de memórias de estudantes que implicaram estéticas potenciais de ser e existir no mundo.

Referências

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[1]Esse texto compõe parte dos resultados da pesquisa “Ocupações secundaristas no Brasil em 2015 e 2016: Formação e auto-formação das/dos ocupas como sujeitos políticos”, financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

[2]O levantamento encontrou 23 produtos, entre artigos, teses de doutorado, dissertações de mestrado, trabalhos em eventos acadêmicos e livros, que podem ser encontrados no site da pesquisa: https://www.ocupacoesestudantis.com.br/

[3]Aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos da Universidade Federal de Alfenas. CAAE: 94809518.1.0000.5142.

Recebido: 28 de Janeiro de 2021; Aceito: 28 de Maio de 2021

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