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Linhas Críticas

Print version ISSN 1516-4896On-line version ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.27  Brasília  2021  Epub June 23, 2021

https://doi.org/10.26512/lc27202136528 

Dossiê: As dimensões educativas da luta: saberes e aprendizados da e na militância política

“O melhor medo da minha vida” - emoções nas ocupações estudantis

“El mejor miedo de mi vida” - emociones en las ocupaciones estudiantiles

“The best fear of my life” - emotions in student occupations

1Doutora em História pela Universidade Federal do Paraná (1998). Professora Titular do Programa de Pós-graduação em Sociologia da UFPR. Coordenação do Grupo de Pesquisa Imagem e Conhecimento (CNPq) desde 2002.

2Doutora em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas (2006). Professora Associada do Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Paraná. Membro do Grupo de Pesquisa "Pensamento social, intelectuais e circulação de ideias".


Resumo

A partir da perspectiva sociológica, refletimos sobre o lugar das emoções no movimento de ocupação das escolas por estudantes secundaristas do Paraná em 2016. O material empírico é constituído por 23 entrevistas que estão organizadas em dois conjuntos: o primeiro compreende entrevistas realizadas em 2016 com sete estudantes de Curitiba; e o segundo com entrevistas ocorridas em 2019, da qual participaram 16 estudantes de diferentes municípios do estado do Paraná. Dialogamos com autores da sociologia das emoções procurando delinear de que modo emoções se apresentam nas narrativas dos jovens estudantes que ocuparam as escolas.

Palavras-chave Movimento Juvenil; Ocupações Estudantis; Sociologia das Emoções

Resumen

Desde la perspectiva sociológica, reflexionamos sobre el lugar de las emociones en el movimiento de ocupación escolar por parte de los estudiantes de secundaria de Paraná en 2016. El material empírico consta de 23 entrevistas que se organizan en dos conjuntos: el primero comprende entrevistas realizadas en 2016 a siete estudiantes de Curitiba; y el segundo, con entrevistas que pasaron em 2019, a 16 estudiantes de escuelas ubicadas en municipios del estado de Paraná. Dialogamos con autores de la sociología de las emociones y tratamos de esbozar cómo las emociones se presentan como estructurantes de las narrativas de los jóvenes estudiantes que ocuparan las escuelas.

Palabras clave Movimiento Juvenil; Ocupaciones Estudiantiles; Sociología de las Emociones

Abstract

As from the sociological approach, we reflect on the place of emotions in the process of struggle with the occupation of schools by high school students in 2016. The empirical material consists of 23 interviews that are organized in two sets: the first comprises interviews conducted in 2016 with seven students from Curitiba; and the second, interviews which took place in 2019, when 16 students from schools in different municipalities in the state of Paraná participated. We dialogue with authors of the sociology of emotions, seeking to outline how emotions present themselves in the narratives of young students who occupied schools.

Keywords Youth Movement; School Occupations; Sociology of Emotions

As emoções são pensamentos de alguma forma sentidos em rubores, movimentos dos nossos fígados, mentes, corações, estômagos, pele. São pensamentos incorporados, pensamentos infiltrados pela percepção de que estou envolvido. (Rosaldo, 1984, p. 143)

E-moção, uma moção, um movimento que nos coloca para fora de nós mesmos, um gesto ao mesmo tempo interior e exterior. Quando a emoção nos atravessa, nossa alma se move, treme, se agita, e o nosso corpo faz uma série de coisas que nem sequer imaginamos. (Didi-Huberman, 2016, p. 26)

Para começar, emoções no movimento

A frase que intitula este artigo foi pronunciada por uma estudante ocupante ao ser indagada, um ano após o fim das ocupações, sobre o modo como resumiria sua experiência no movimento. A expressão nos permitiu notar duas características que encontramos também em outras narrativas de estudantes ocupantes: a) a definição da vivência daqueles dias a partir de um sentimento; e b) a positividade do que foi sentido se opondo à definição mesma do sentimento.

Neste artigo, procuraremos delinear hipóteses sobre o lugar das emoções nas narrativas de estudantes que ocuparam escolas durante o movimento que ficou conhecido como “Primavera Secundarista” e que teve o Paraná como epicentro (Groppo et al., 2021). No período entre o início de outubro e final de novembro de 2016, 1197 escolas e instituições de ensino superior foram ocupadas no Brasil, dentre as quais 843 do Paraná (Pacheco & Mattar, 2018, p. 68).

Cerca de um mês após o afastamento definitivo da Presidenta Dilma Rousseff do cargo, estudantes (especialmente do ensino médio) se insurgiram contra duas ações em particular: a Medida Provisória 746 (Brasil, 2016a), publicada em 22 de setembro de 2016 pelo Presidente Michel Temer, alterando a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional [1] (Brasil, 1994); e a iminência da aprovação, pelo Congresso, da Proposta de Emenda Constitucional 241, impondo o congelamento dos gastos do Estado brasileiro pelo período de 20 anos [2] (Brasil, 2016a).

Diante desse cenário, jovens secundaristas brasileiros lançaram-se em um movimento sem precedentes no país. Enfrentaram, por cerca de um mês (o período de ocupações variou de acordo com as escolas), oposição dos diretores e pedagogos, de muitos estudantes e professores e da opinião pública.

Conforme demonstra Pacheco (2018), o movimento se insere em um conjunto de mobilizações ocorridas no Brasil desde 2013. Considerando esse aspecto, acreditamos que é necessário que se compreenda as ocupações a partir da perspectiva da constituição de uma base comum de necessidades afetivas, comunicativas e de solidariedade (Melucci, 2001).

Notáveis nas entrevistas que se apresentam no conjunto de estudos sobre ocupações estudantis no Brasil, as emoções dos estudantes têm sido tangenciadas de maneira marginal, quando não ignoradas. As pesquisas se dedicam predominantemente a entender os sentidos políticos que jovens emprestam ao movimento e seu modus operandi, além de identificar disposições para a socialização política dos ocupantes (Catini & Mello, 2016; Costa & Groppo, 2018; Farias, 2020; Medaets et al., 2019; Pacheco, 2018; Queiroz et al., 2017; Steimbach, 2018). E ainda que a afetividade entre os ocupantes já tenha sido objeto de reflexão, é analisada sem levar em conta a forma narrativa como se expressa (Medaets et al., 2018).

Nesse sentido, pretendemos apresentar uma reflexão sobre o movimento das ocupações sob uma perspectiva que se interessa pelo modo como as emoções estruturam a narrativa dos estudantes.

Partimos do pressuposto de que sentimentos exercem papel fundamental nas mobilizações coletivas. E nisso não estamos sozinhas: a sociologia das emoções que tem permitido avanços inéditos na compreensão de processos políticos.

Goodwin et al. (2001) e Queré (2019) reivindicam a superação da dicotomia racional versus irracional na análise de ações coletivas. Com efeito, estudos destacam condicionamentos culturais e sociais das emoções e as elevam a um estatuto heurístico capaz de auxiliar na compreensão sociológica de processos políticos. Desta perspectiva, há o entendimento de que sentimentos e afetos não se situam somente no campo da subjetividade e de que desempenham papel fundamental no destino da vida pública.

Considera-se, pois, que emoções são constitutivas da emergência e do curso dos movimentos sociais. De acordo com Jasper (2012, p. 50), o componente fundamental dos movimentos sociais é fundamentalmente um desejo que reclama uma transformação.

Vidrio (2016, p. 408) reivindica também o reconhecimento das emoções como determinantes para a agência humana argumentando que é necessário identificar a energia emocional que, no nível microssocial de interação, desempenha papel decisivo para a compreensão de fenômenos macrossociológicos.

Ariza (2016, p. 144) entende que emoções assumem tonalidades diversas que atuam como recursos que permitem responder estrategicamente aos imperativos de uma determinada situação. Para ela, emoções podem transitar de um polo negativo para positivo, num continuum bastante variável.

Certamente estes desdobramentos teóricos que têm colocado em destaque as emoções possuem relação com a dinâmica dos movimentos sociais contemporâneos. Com efeito, Melucci (2001) observa que os movimentos sociais contemporâneos trazem questões que integram múltiplas dimensões da vida e constituem circuitos de solidariedade e sociabilidade que diferem profundamente da imagem do ator coletivo tradicional politicamente organizado.

Reguillo (2017, p. 144), ao analisar insurgências e ocupações que ocorreram em espaços públicos na primeira década dos anos 2000, formula a ideia de “movimentos-rede” que formam “zonas de intensificação afetiva” configuradas a partir e através do contato humano tecnologicamente mediado. Essas zonas compreendem a potencializacão do intercâmbio através da co-presença nas ruas e nas redes sociais e o reconhecimento de que algo em comum articula trocas e favorece a possibilidade de sensibilizar e ser sensibilizado.

Álvarez (2011) também compartilha o entendimento de que as emoções podem ser pensadas como práticas políticas capazes de estabelecer um modo de comunicação, ao mesmo tempo verbal e não-verbal. Convém ainda lembrar de Aguilera-Ruiz (2016, p. 239) que, ao discutir imagens produzidas pelos movimentos sociais, segue em direção semelhante mostrando como a visibilidade é alvo de grande disputa e a demonstração das emoções se torna conteúdo fundamental desta iconografia do confronto.

Nesse sentido, o que estas contribuições nos têm feito notar é que movimentos sociais não podem ser compreendidos se não forem vistos da perspectiva de uma rede que comunica e produz emoções.

Fonte: as autoras.

Figura 1 Estudante durante a ocupação 

Com efeito, a imagem acima [3] parece ser paradigmática desta discussão sobre o sentido social das emoções que atuam como origem, como recurso e como prática (comunicativa) nas mobilizações. A foto, produzida durante o período de ocupação em uma escola do centro de Curitiba, mostra um estudante na laje superior da fachada do colégio, vestido de preto, com olhos fechados e boca amordaçada, segurando em suas mãos a faixa “OCUPADO!”. É uma imagem reveladora da atuação das emoções neste fenômeno de insurgência juvenil: um gesto que performa e comunica sentimentos.

As narrativas: dois tempos

Dois conjuntos de entrevistas constituem a base empírica desta análise. O primeiro, com sete estudantes ocupantes de uma escola de Curitiba, foi realizado em dezembro de 2016, um mês após a desocupação [4] . Refere-se a um grupo de jovens relativamente homogêneo e pouca variação etária.

Tabela 1 Relação das/os entrevistada/os em 2016 

Pseudônimo Características Tipo de ocupação
Ana 16 anos, branca, heterossexual CE central na capital do Paraná
Abel 16 anos, branco, homossexual CE central na capital do Paraná
Bueno 16 anos, pardo, heterossexual CE central na capital do Paraná
Joana 17 anos, preta, bissexual CE central na capital do Paraná
Josiane 18 anos, parda, homossexual CE central na capital do Paraná
Kátia 16 anos, parda, heterossexual CE central na capital do Paraná
Samara 18 anos, branca, bissexual CE central na capital do Paraná

Fonte: Grupo de Pesquisa “Sentidos e Sentimentos nas/das Ocupações” (2021).

Neste conjunto de entrevistas, o protocolo de questões foi aberto, exigindo apenas que definissem experiências de relacionamento (com o espaço físico da escola, professores, colegas, equipe pedagógica e funcionários) antes, durante e depois da ocupação.

O segundo conjunto compreende 16 entrevistas, realizadas em 2019 no marco de uma pesquisa nacional [5] . Diferentemente do primeiro, este é constituído por um grupo bastante heterogêneo de jovens de diversos municípios do Paraná, entre os quais Paranaguá, São José dos Pinhais, Toledo, Jaguaraíva, Pato Branco, Ponta Grossa e Francisco Beltrão [6] .

Tabela 2 Relação das/os entrevistados em 2019 

Pseudônimo Características Tipo de ocupação
Ivã 18 anos, homem, branco, heterossexual Colégio estadual (CE) periférico em pequeno município no Sudoeste
Frida 18 anos, mulher, branca, lésbica CE periférico em pequeno município no Sudoeste
José 19 anos, homem, branco, bissexual. CE em bairro de classe média em pequeno município no Sudoeste
Eliseu 24 anos, homem, pardo, heterossexual Diversas escolas na capital e pequeno município do Sudoeste
Tadeu 20 anos, homem, pardo, orientação sexual não declarada CE central em pequeno município em Campos Gerais
Andréa 20 anos, mulher, parda, heterossexual CEs periférico e de bairro de classe média em Ponta Grossa
Gustavo 20 anos, homem, branco, LGBT CEs periférico e de bairro de classe média em Ponta Grossa
Cláudia 20 anos, mulher, branca, lésbica CE central em São José dos Pinhais
Luís 18 anos, homem, não declarou raça e orientação sexual CE central em São José dos Pinhais
Natália 19 anos, mulher, branca, lésbica CE em bairro de classe média em São José dos Pinhais
Antonio 21 anos, homem, branco, heterossexual CE central em Curitiba
Cristiane 18 anos, mulher, branca, heterossexual CE central em Curitiba
Hermínia 18 anos, mulher, branca, homossexual CE central em pequeno município no Primeiro Planalto
Marielle 19 anos, mulher, negra, bissexual CE periférico de Curitiba
Juliana 21 anos, mulher, branca, bissexual Instituto Técnico Federal (IF) em Paranaguá
Márcia 21 anos, mulher, parda, heterossexual Instituto Técnico Federal (IF) em Paranaguá

Fonte: Projeto Interinstitucional de Pesquisa “Ocupações secundaristas no Brasil em 2015 e 2016” (2021).

Neste conjunto, havia um roteiro semiestruturado com 31 questões separadas, nos seguintes blocos de temas: a) primeiros anos de trajetória escolar; b) formação política; c) movimento de ocupação; e d) impacto do movimento de ocupação.

Do ponto de vista metodológico, privilegiamos as falas dos agentes identificando, nos dois contextos em que ocorreram as entrevistas, momentos distintos para a qualificação da experiência: no primeiro, a energia emocional é mais intensa, embora não menos reflexiva; ao passo que, no segundo, a dimensão autorreflexiva se impõe com maior nitidez, não somente orientada por um protocolo de questões mais estruturadas, mas também pelo distanciamento entre o acontecimento e a experiência rememorada.

Seguimos a sugestão de Jasper (2012), que propõe que técnicas usadas para analisar significados cognitivos sejam também aplicadas para o estudo das emoções. A contribuição de Vidrio (2016) para a noção de energia emocional e a de Ariza (2016) para as tonalidades das emoções nos orientaram nesta análise.

Apresentaremos termos indicadores que expressam emoções e que variam não apenas segundo o grau de envolvimento que as/os jovens estudantes tiveram no processo de ocupação, mas também segundo a temporalidade das falas. Organizamos o material empírico dando ênfase às emoções que mobilizaram a ação de “ocupar a escola” e a avaliação da experiência emocional que isso representou. Pudemos observar, por meio de indicadores emocionais explícitos e tácitos, o modo como os fatos se atualizam na consciência dos agentes se constituindo como realidade vivida.

Primeiro tempo – 2016

Destacamos dois relatos de Samara: o primeiro descrevendo o que sentiu no momento imediato à ocupação da escola e, em seguida, o que comentou a propósito do fim da ocupação:

Na hora que a gente entrou foi... nossa [suspiro profundo] [...] uma felicidade... a gente começou a correr.... Aí quando a gente entrou foi um sentimento assim... eu entrei e as portas já estavam abertas, porque assim: o diretor deixou a escola completamente trancada. O objetivo era sabotar mesmo. Se a gente pulasse o muro, a gente ia ter que ficar pra fora da escola no frio. Só que o menino, ele estava tão energizado que ele empurrou a porta, e na hora que ele empurrou a porta, a porta abriu. (Samara, 18 anos, estudante, grifo nosso)

A gente desocupou a escola, a gente tem noção de que a gente perdeu essa batalha, mas a luta continua. E que a MP não foi aprovada e ela não vai ser aprovada. E se ela for aprovada... Segura. Porque se a gente ocupou a escola só com a possibilidade dela ser aprovada, se ela realmente for aprovada, a gente não vai deixar ela passar. A gente tem essa noção, sabe? E a gente entende o quanto é cansativo e quando a gente foi pra Brasília, foi eu e a Josiane, a gente teve contato. Mas é o que eu falei, eu falei na ocupação inteira. É muito mais intenso. O dia na ocupação parece que é uma semana inteira. Então aquilo era intensidade. Era muito, muito intenso. Eu sempre dizia, é um big brother isso aqui. [...] A gente não entende a galera do big brother falando: ah isso aqui é muito intenso, eu não consigo entender. A gente tinha que agir do nosso bom senso. E é muito intenso. Um dia é mil semanas na vida real. Porque a gente passa quatro horas dentro da escola. É muito diferente você passar quatro horas dentro da escola e passar 24 horas. (Samara, 18 anos, estudante, grifo nosso)

Ambas formulações da estudante colocam em destaque a grandeza da energia emocional investida na ocupação. Abel também se refere a isto, acrescentando ainda, em sua narrativa, um fluxo de sentimentos diversos e incongruentes com o qual qualifica as transformações na percepção de si e dos outros que lhe ocorreu naqueles dias:

Não, que tipo... eu odiava as pessoas, mas é que eu não estava acostumado. Então... antes da ocupação, sei lá, a palavra certa é doloroso, porque eu nunca fui acostumado assim. Eu tinha pessoas que eu odiava, odiava mesmo. Um medo, assim, um ódio, um medo. Uma coisa...pitoresca, chega a dar um pouco de nojo de falar. A Ana Lea e a Samara tiveram presentes no momento mais lindo da minha vida, que eu parei e falei: não, tá... eu sou gay e não tem problema. E....aí vou chorar de novo... tá na intensidade de estar ali, tá ligado? É uma coisa muito bizarra. Porque, você... principalmente sobre homossexualidade, cara, você não tem noção, tipo.... e o meu ódio era mascarado de medo [...] é amor, eu expus o íntimo do íntimo do íntimo que existe em mim. Eu expus da minha maior alegria, ao meu maior medo, minha maior tristeza, sabe? Eu... eu comecei a ocupação: ok, a gente vai sair daqui amigos, mas eu não tinha noção da intensidade que ia sair isso, sabe? Eu amei como eu nunca amei na minha vida, eu me entreguei como eu nunca me entreguei, eu me envolvi como eu nunca me envolvi com ninguém. Eu tava com tanta dor de cabeça, tanta dor de cabeça, eu estava com tanto medo daquela reintegração de posse chegar, como que ia ser depois, sabe? medo de ser uma coisa agressiva. Se ia ser... sabe, medo, eu estava com medo. [me descontruí e me construí ali dentro, ... durante a ocupação. Eu me senti ... vou tentar resumir em poucas palavras... eu me senti amado, livre e... feliz. Acho que esse é o ponto principal. Porque eu percebi que eu mudei muito. Eu mudei coisas que, tipo, eu achava ruim em mim sabe? (Abel, 16 anos, estudante, grifo nosso)

Esta é, pois, uma narrativa comum: a de que houve uma transformação positiva em relação à própria estima. Ana Lea sintetiza isso do seguinte modo:

Agora eu tenho orgulho de mim, eu tenho orgulho de quem eu me tornei, e eu sei que eu sou capaz de fazer as coisas, sabe? Agora literalmente eu me amo exatamente do jeito que eu sou. Com todos os meus defeitos, tanto fisicamente, quanto psicologicamente, e com todas as minhas qualidades. Eu realmente posso dizer hoje que eu tenho auto-estima, que eu tenho coragem, que eu tenho força de vontade, eu sei que eu sou capaz e eu sou forte para aguentar qualquer coisa, entendeu? Capacidade, eu me sinto capaz.” [...] Porque a gente saiu de lá forte, a gente saiu de lá unido e a gente saiu com mais força, sabe. É, com vontade de lutar. Sabe, a gente não saiu. A gente ficou triste pela falta que a rotina de não estar todo mundo junto. Isso que a gente sentiu tristeza, sabe. Mas a gente sentiu força. A gente se abraçou, e a gente falou... a luta continua. Tá só começando. (Ana Lea, 16 anos, estudante, grifo nosso)

Bueno descreve também suas emoções colocando em destaque o sentimento de medo e de amor de um modo muito específico: o temor como porta de entrada para o vínculo amoroso.

Quando a gente tá com medo a gente consegue sentir mais coisas... e o medo acaba provocando vários...como eu posso dizer...vários sentimentos, um sentimento de amor mesmo com qual eu me identifico assim com você, porque você faz amizade muito fácil, mas assim, mas como você conseguiria traduzir esse sentimento? E tentar pegar pelo geral, assim... que eu abro a boca e falo de coração que eu sinto amor mesmo, são eles mesmos. Acho que o melhor sentimento de toda a minha vida eu senti ali dentro, porque eu falei, foi a minha melhor família e vai ser sempre, porque eu sabia que se fosse pra apanhar, e eles também [...] (Bueno, 16 anos, estudante, grifo nosso)

Julia narra este fluxo de emoções que permitiu que laços de amizade fossem forjados entre lágrimas e risos. Mas ela não se refere apenas aos laços de amizade entre ocupantes senão também ao vínculo com a própria escola.

Era um movimento sério assim, mas a nossa hora que a gente brincava era, tipo, a melhor hora da vida, tipo [chora...risos] as pessoas que ficavam pra dormir, que não eram muitas, mas enfim...é.. a gente criava um laço na hora que era impressionante, a gente chorava junto, a gente ria junto [...] É, eu não sei, acho que… a gente entra com um sentimento… e depois entra com outro sentimento. Então, é… eu não sei. É como se você criasse um laço com aquele espaço (a escola), sendo que antes você não tinha. (Julia, 17 anos, estudante, grifo nosso)

Kátia, a exemplo de outras narrativas, diz que as relações que foram estabelecidas na ocupação se assemelham às relações familiares. Isso parece significar muitas coisas: a percepção de que as amizades que nasceram ali serão duradouras, a demonstração da intensidade dos afetos e, por fim, a perspectiva de que forjaram um parto de si no esforço (cansativo) de convivência comum:

Eu vou falar, eu vou falar porque eu não tô culpada de nada [risos] fui a única decente da ocupação... [risos] mas, sei lá, tipo, relação de amor, eu só criei relação de família. Em quatro semanas eu criei uma relação de amor e família com eles. Mas, não vou mentir, rolou muitos outros sentimentos naquela ocupação. [...] A gente entrou na escola com o objetivo de não nos transformar, mas transformar, conseguir o nosso objetivo da PEC e MP. Só que a gente... Eu entrei uma pessoa de um jeito e saí totalmente de outra, sabe? Bem melhor!” [...] assim, porque eu não sou muito de chorar. É bem difícil. Eu só choro de raiva. Raiva eu não sentia, só sentia cansaço. Cansaço psicológico. (Kátia, 16 anos, estudante, grifo nosso)

Josiane refere-se a um cansaço que, de fato, parece ter caracterizado a atividade emocional nas ocupações. A passagem seguinte é nítida na descrição do trabalho emocional que supõe não apenas alternância no gradiente das próprias emoções, mas também colocar-se no fluxo de sentimentos do outro:

Foi, assim, tempo de abrir a mente e ver que nem tudo é como eu quero, nem tudo é do jeito que eu quero e... aceitar o lado de qualquer pessoa seja ele qual for, que independente...a gente não sabe o que essa pessoa vai passar, então...eu me senti muito melhor depois da ocupação, porque...foi por isso, eu acho que eu consegui sentir o que todas as pessoas sentem. Não todas exatamente, mas sim as que eu conheço e me pôr no lugar delas e, sei lá, somente sentir e... por aí vai [risos]. (Josiane, 18 anos, estudante, grifo nosso)

Josiane afirma que esses vínculos de amizade que surgiram nas ocupações foram tão singulares que não puderam ser imediatamente compreendidos pelos demais estudantes, não ocupantes:

[...] a menina que sentava atrás de mim, a Bar, quando voltou as aulas ela falou: ‘meu, isso tudo aí que você tá fazendo não vai dar certo, porque eles não são seus amigos, são quatro semanas você não pode amar todo mundo, não pode existir esse sentimento.’ Aí eu falei assim: “Desculpa, mas você não passou três dias, um dia lá inteiro para ver como que é a gente entre nós”. Tipo, tinha gente vegetariana, tinha gente tal, a gente pensava em cada pessoa na hora da cozinha, vamos preparar isso pra tal pessoa. É um coletivo que eu nunca vi igual, que eu achei que não existia. Porque é uma galera adolescente, tá todo mundo, cada um querendo, sei lá, acho que a gente tá numa fase ‘Ah, vamos se explodir’. Não, momento ruim, precisamos manter uma organização. (Josiane, 18 anos estudante, grifo nosso)

Nesse trecho ela nos dá pistas de que o cuidado mútuo (o medo e a alegria também mutuamente produzidos) e o fato de realizar conjuntamente tarefas cotidianas fizeram brotar um vínculo que não encontra equivalente entre colegas da escola que não viveram a ocupação. Com isso, os ocupantes parecem sentir, imediatamente após o fim das ocupações, uma realização emocional: mudar a si mesmo, amadurecer aceleradamente através do acolhimento e da capacidade de realização; uma distinção fundamental em relação aos colegas não ocupantes.

Segundo tempo – 2019

Interessante constatar que os relatos a posteriori não se referem apenas a esta comunhão, mas são um balanço das dificuldades e dos resultados da ocupação. Juliana lembra o cansaço ao longo da ocupação e a dificuldade de lidar com sua posição de liderança num movimento que pretendia a horizontalidade radical. Ainda assim, ela destaca sentimentos de coragem e esperança durante o processo que contrastam com a frustração e tristeza por voltar a estas lembranças:

A gente então, não, vem cá. Foi incrível porque eu entrei na escola e as pessoas ficaram com medo, mas eu entrei na escola mesmo assim. Subi num banquinho de concreto no meio da quadra: gente venham aqui, eu preciso dar um recado. A gente acabou de ocupar e é por esse motivo: por isso... por isso... lembro que catava meu celular assim, umas cartinhas com dados eu tinha medo se tinha alguma coisa errada, eu li no celular, cheia de papel impresso. O pessoal “meu deus é isso mesmo. A gente pode fazer isso. A gente pode. A gente deve”. [...] Mas a sensação de falar sobre isso lembra muitas pessoas que falam sobre a Ditadura Militar sobre o período de militância na época da Ditadura. O sentimento é que faz muito tempo que passou embora não tenha acontecido há muito tempo. [...] É uma sensação de que nós estamos trazendo esperança talvez para pessoas que acreditaram que isso não seria possível. Esse e um dos exemplos que ficam. Apesar de toda a frustração. Ao mesmo tempo que na empolgação de falar sobre isso. É muito triste falar sobre isso. (Juliana, 21 anos, estudantes, grifo nosso)

Juliana descreve a desocupação como um momento muito ambíguo, no qual coexistiram desejo de permanecer e impossibilidade de ficar:

As pessoas foram ficando cada vez mais desgastadas, choravam pelos cantos. A gente foi começando a ter mais rodas de desabafo. As rodas de desabafo foram ficando cada vez mais delicadas, tristes e frustrantes. [...] Ao mesmo tempo que a gente queria desocupar, a gente não sabia porque a gente tinha medo de desocupar a escola. A gente só desocupou quando ninguém mais tinha forças para aguentar. (Juliana, 21 anos, estudantes, grifo nosso)

O medo de desocupar a escola foi vencido pelo cansaço do mesmo modo que, antes, a esperança o subjugara. Juliana posiciona o sentimento do medo em dois momentos cruciais: primeiro o medo de ocupar e, depois, de desocupar. Não obstante, conforme constatamos em outras narrativas, o medo foi um sentimento sempre presente, capaz de selecionar quem permaneceria ou não no movimento. Vejamos a narrativa da Natália:

A gente foi ameaçado de morte. Eu recebi muita ameaça de morte nesse período, né? Da ocupação. [...] Não é pro emocional de todo mundo, então muita gente foi desistindo, foi indo embora. O pessoal começou a ficar assustado com as coisas que estavam acontecendo, né? Com a morte desse rapaz também[7]. [...] Eu lembro que num primeiro momento eu fiquei um pouco abalada, assim, mexeu bastante com a minha cabeça, mas depois eu fiquei... eu não sei assim, na época acho que eu tinha muito mais coragem do que eu tenho hoje, assim. [...] Chegou no final assim, último dia de ocupação, tinha três pessoas dentro da escola e aí foram embora, porque aconteceram muitas coisas no decorrer da ocupação da nossa escola que fez com que as pessoas tivessem medo e desistissem. Coragem. Foi seria uma palavra assim, eu acho que eu tinha muito medo de me posicionar, de me colocar de algumas formas e tal, e a ocupação me trouxe isso assim, esse incentivo de me sentir capaz. Eu acho que por exemplo, se não fosse a ocupação eu não ia estar aqui hoje, não ia estar na universidade. (Natalia, 19 anos, estudantes, grifo nosso)

Marielle se refere a um misto de sentimentos: diz que sentiu “empatia ao conhecer pessoas diferentes”; preocupação com a entrada de pessoas contrárias à ocupação no colégio; cansaço, estresse . frustração com a desocupação. Porém, também destaca que o movimento foi responsável por motivá-la a ingressar no Ensino Superior (Marielle, 19 anos, estudante, grifo nosso).

Claudia refere-se aos termos empatia, solidariedade, responsabilidade, empolgação, medo, frustração, tensão, irritação para qualificar sua experiência na ocupação. Inicia a entrevista afirmando estar emocionada e sua voz, de fato, confirma empolgaçã. e entusiasmo, ainda que esteja narrando episódios de tensão e medo em razão das ameaças de agressão. A convivência foi descrita como “cansativa, mas bem sucedida”. Afirma que ocupou a escola por um “senso de responsabilidade” com as outras pessoas que seriam afetadas pela Medida Provisória. E, por fim, confessou “frustração com a desocupação” (Claudia, 20 anos, estudante, grifo nosso). Mas ao lado do sentimento de frustração em relação à falta de efeitos políticos da ocupação, coexiste também a sensação de que houve conquistas pessoais do movimento. A síntese de Claudia é paradigmática dessa formulação:

Eu acho que foi autodescobrimento, assim. E em alguns momentos eu acho isso meio uma visão egoísta minha assim, eu participei de um movimento social pra me autodescobrir, assim, mas e aí...eu... foi o momento que eu percebi quem eu era na sociedade, qual era o meu papel, e quem... por mais que eu já tivesse tido relances a minha vida inteira do meu privilégio, do meu dever, da minha posição, foi ali que eu fui jogada no olho do furacão... (Claudia, 20 anos, estudante, grifo nosso)

Esta elaboração de Claudia expressa a ambiguidade deste processo: um movimento político coletivo que trouxe sobretudo transformações pessoais resultantes do convívio comunitário [8] .

José, por sua vez, qualifica do seguinte modo o momento da desocupação: “foi um momento triste, mas com a consciência limpa de ter feito alguma coisa e não ter ficado sem posição sobre tudo que vinha de cima” (José, 19 anos, estudante, grifo nosso). Observamos, portanto, um senso de responsabilidade que aponta para um compromisso com o futuro, com jovens não nascidos, para quem era dever defender o Ensino Médio. Há um vínculo concreto com os amigos da ocupação, mas há também um vínculo abstrato com os futuros estudantes.

Antonio atribui sua mudança pessoal ao contato com visões diferentes, às conversas e discussões constantes. Durante a entrevista, sua voz ficou cada vez mais animada ao lembrar da ocupação (inclusive comenta que adorou ser convidado para a entrevista). Para ele, o movimento trouxe uma sensação diferente que é difícil de expressar com palavras, mas que definiu como “sentimento de viver em comunidade”, mesmo que por pouco tempo. Menciona também o medo durante as tentativas de ataques à escola (promovidos por movimentos organizados de desocupação), principalmente depois da fala da Ana Julia na Assembleia Legislativa [9] . No entanto, em sua entrevista, inegavelmente predominou um sentimento de união, cuidado e proteção que resultou em sua maior autonomia e estima:

Para mim as ocupações de fato mudaram a minha vida, então elas foram um fator determinante de tudo que eu conheço até hoje, um dos mais importantes momentos da minha vida que me fizeram amadurecer, me fizeram ficar mais independente, me fizeram pensar sozinho, foi de fato libertador. Isso foi as ocupações pra mim. (Antonio, 21 anos, estudante, grifo nosso)

Eliseu menciona um sentimento de orgulho e confessa ter ficado surpreendido com a disciplina e capacidade de organização dos estudantes secundaristas. Destaca também o contraste entre o que as ocupações representaram para a opinião pública e o que elas, de fato, foram para cada ocupante; um contraste equivalente ao que se observa no fracasso político do movimento em oposição às transformações pessoais alcançadas:

Eu acho que eles se emanciparam, uma boa parte deixou de ser moleque, deixou de ser menina travessa e passou a ser jovem com ousadia sabe, um jovem que queria alguma coisa, que sabia o que estava fazendo. [...] Eu sinto que as ocupações no final das contas elas foram maravilhosas para quem ocupou sabe essa é a minha leitura, elas foram muito boas para quem ocupou, mas elas não ganharam o mesmo tom de positividade dentro da opinião pública, a galera não vê com bons olhos a ocupação até porque politicamente ela foi derrotada. (Eliseu, 24 anos, estudante, grifo nosso)

Luis faz um balanço crítico de todo o período. Descreve sofrimento ao perceber que dentro das ocupações havia pessoas que “não sabiam o que estavam fazendo”. Usou várias vezes o termo triste para se referir à falta de empatia e de compreensão das pessoas que não apoiavam a ocupação. Disse também se sentir cansado ao longo da ocupação. Descreve o contato com entidades estudantis como “deprimente”, porque iam ao colégio tirar fotos para divulgação, mas não teriam oferecido apoio. Sentiu-se especialmente pressionado pelos professores que questionavam sua participação na ocupação. De positivo, menciona o valor do “sentido de amizade” que criou dentro da ocupação. Fala com carinho sobre como era legal e bonito a organização da ocupação feita por eles. “A gente sofria uma pressão psicológica muito grande ali… eu sofri muito lá. Tipo, nesse quesito. É muito triste, realmente, ver uma pessoa desinteressada por algo bonito” (Luis, 18 anos, estudante, grifo nosso).

Hermínia também se refere à beleza do movimento a despeito de sentir-se ambiguamente frustrada com seu resultado:

Porque a gente acaba percebendo que é muito importante ver a realidade do outro antes de pensar na sua, sabe? Ver sempre o que o outro tá passando também, que foi muito bonito assim, sabe? Depois que eu entrei pro movimento estudantil e percebi as coisas... Bem legal. Minha consciência melhorou, assim, mas, não sei você, mas quando eu percebo o quanto mais a gente tem conhecimento, mais frustrado a gente fica [risadas]. (Hermínia, 18 anos, estudante, grifo nosso)

No seu relato, a frustração é resultado do conhecimento e da consciência solidária que desenvolveu na ocupação. Nesse sentido, a frustração não aparece apenas como parte constitutiva da derrota política, mas é ironicamente produto de um aperfeiçoamento cognitivo e intelectual que os deixa mais atentos aos impasses.

Márcia comenta sobre um sentimento de derrota quanto às questões políticas que motivaram as ocupações, embora afirme ter havido conquistas gratificantes.

Os resultados acho que eles trouxeram uma contribuição pessoal para as pessoas que participaram. No meu caso, eu acabei...Se antes eu me interessava pela política, bom eu fiquei extremamente mais politizada e os contatos que eu tive com outras escolas, sabe? [..]E conhecer tanta gente nova assim que estava encabeçando uma luta. Eu acho que isso era a coisa que mais deixava a gente feliz, sabe? Ver que a gente estava fazendo alguma coisa, que aquilo era real. A gente conseguiu conquistas pessoais pra instituição. (Márcia, 21 anos, estudante, grifo nosso)

Gustavo reflete sobre o que mudou desde 2016 até 2019, referindo-se a um adoecimento mental progressivo dos jovens que resulta de uma insensibilidade social que é exatamente o oposto do que teria ocorrido durante as ocupações:

Esse período percebemos algumas coisas. Que precisa ter segurança na ocupação, precisa ter comida... precisa ter sensibilidade com o sentimento dos outros. Porque era uma época que não discutíamos sobre saúde mental. A gente não estava nem aí com essa questão. Ninguém tinha tanto problemas como é hoje em dia...um complexo de acabar com a saúde mental da gente. (Gustavo, 20 anos, estudante, grifo nosso)

Esta reflexão de Gustavo é interessante porque ele não apenas define em termos emocionais a sua experiência na ocupação, mas também a experiência social em seu conjunto. A derrota das ocupações lhe aparece como sintomática de uma derrota da sensibilidade, da empatia; é uma derrota de toda a juventude.

A síntese das diferentes emoções expressas pelas/os ocupas durante as entrevistas resulta no seguinte conjunto de palavras:

Fonte: as autoras

Figura 2 Palavras-chave das narrativas das/os ocupas 

Esta figura nos ajuda a aproximar do conjunto de emoções e sentimentos com as quais, na memória vivida durante as entrevistas, jovens definem sua experiência nas ocupações. O que observamos é que a ocupação se transformou, sobretudo, em um evento decisivo à artesania de si, narrativa cuja potência e intensidade varia quanto mais próxima do movimento foi a entrevista.

Observamos também que a frustração se constitui como uma categoria emocional importante, sobretudo para os ocupantes entrevistados em 2019. O curso do processo histórico, a aprovação (em dezembro de 2016) da Emenda Constitucional 95 (Brasil, 2016b) e (em fevereiro de 2017) da Medida Provisória 746 (Brasil, 2016a) permitiram, a posteriori, a elaboração deste sentimento que não era tão nítido no conjunto de entrevistas realizado imediatamente após a desocupação das escolas. E ainda mais do que as duas leis, possivelmente o aprofundamento acelerado das reformas do Estado iniciadas em 2016 ressoa nas falas dos estudantes como uma espécie de derrota sucessiva, que ignora especialmente a voz e o corpo dos jovens.

Jasper (2012) chama a nossa atenção para o fato de que a frustração está ligada frequentemente ao fato de não ser escutado, reforçando aquela imagem que apresentamos no início de nosso artigo. Por outro lado, ao abrirmos o espaço de fala durante as entrevistas, percebemos como essa dimensão do falar e ser ouvido ganha potência na luta contra o esquecimento, reavivando, inclusive, as conquistas pessoais da luta.

A frustração se vincula a uma dimensão marcada pela ideia de autonomia, em que a voz e o corpo desses jovens confrontam significados gestados no neoliberalismo. Conforme destaca Barbosa (2012, p. 257), trata-se de um regime de vida que mantém sempre atualizados os sentimentos de culpa e fracasso que, por sua vez, atuam como meios de controle social.

Essa dimensão observada por Barbosa (2012) desvela outros sentidos que podem estar encobertos na experiência de memória do movimento das ocupações, resistindo de novo e de novo ao uso instrumental de seus significados.

Para prosseguir: as emoções em movimento

A primeira aproximação deste conjunto heterogêneo de narrativas é reveladora do modo como os sentimentos são marcadores da experiência dos estudantes ocupantes.

Nas próximas etapas desta pesquisa pretendemos olhar com uma lupa para a fluidez com que o choro se converte em riso, o medo em liberdade e esperança, a rejeição em admiração, o egoísmo em responsabilidade, a indiferença em solidariedade.

Formulações de Ariza, Didi-Huberman e Jasper continuarão a nos ajudar nesta nova tarefa. Ariza nos diz que emoções não são estados puros, mas se constituem como um fluxo em que coexistem estados emocionais contíguos, semelhantes ou díspares. Uma emoção pode suscitar outra, afim ou contrária (Ariza, 2016, p. 284). Didi-Huberman (2016) nos auxilia entendendo que as emoções estão no campo da ação; um tipo de ação em particular que promove movimento, deslocamento. Jasper (2012), nesta mesma perspectiva, chama atenção para o fato de que muitos movimentos de protesto contemporâneos visam a produzir um tipo específico de deslocamento emocional: transformar a vergonha em orgulho, como ocorre especialmente nos movimentos dedicados à liberação gay e lésbica [10] . Para entender a mescla de emoções nos movimentos contemporâneos, Jasper propõe a categoria de “baterias morais”, que consiste na junção de uma emoção negativa a uma positiva: orgulho e vergonha, pesar e alegria, revolta e esperança (Jasper, 2012, p. 52).

É notável observar como ocorreu este continuum de sentimentos na narrativa dos ocupantes. Como a jovem Julia aqui mesmo expressou: “a gente entra com um sentimento… e depois entra com outro sentimento”. Ou a fala do Abel: “o meu ódio era mascarado de medo [...] Eu expus da minha maior alegria, ao meu maior medo, minha maior tristeza, sabe”. Finalmente é, também, o que expressa a frase do título deste artigo: um sentimento negativo qualificado com sentido positivo. Trata-se de um fluxo de emoções que é posto em ação não apenas no cotidiano das escolas ocupadas, mas na sua rememoração. Será que podemos considerar, tal como enuncia Reguillo (2017) que esse processo gerou a criação temporária de uma Zona de Intensificação Afetiva (ZIA)? Pelo que pudemos observar na leitura destas narrativas, é seguro afirmar que sim.

É justamente nesse caminho que pretendemos seguir. É como se fôssemos convidados a olhar mais profundamente, ultrapassando a superfície de um lago, rumo a uma camada onde se encontram contidas outras substâncias vivas que se deslocaram do fundo com o movimento.

Referências

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[1]A Medida Provisória 746 tramitou no Congresso Nacional em regime de urgência e, em fevereiro de 2017, se transformou na Lei Ordinária 13.415/2017 (Brasil, 2016b; 2017).

[2]A Proposta de Emenda Constitucional 241 tramitou desde 10 de outubro de 2016 no Congresso Nacional, sendo aprovada no Senado no final de novembro. Em 15 de dezembro foi promulgada passando a compor o ordenamento jurídico como Emenda Constitucional 95 (Brasil, 2016a).

[3]Essa imagem integrou a oficina que realizamos com as/os Ocupas em 2017 na Universidade Federal do Paraná. Foram cedidas pelos autores e autorizadas através do uso de Termo de Consentimento Esclarecido.

[4]Um grupo de professoras, pós-graduandas e pós-graduandos do Programa de Pós-graduação em Sociologia da UFPR organizou entrevistas com estudantes ocupantes de uma escola de Curitiba imediatamente após as desocupações. Foram feitas em grupo e em três momentos diferentes: Bueno e Joana, Abel e Ana e Josiane, Katia e Samara. O material originou o projeto “Sentidos e Sentimento nas/das Ocupações”.

[5]Em 2019, a equipe do projeto “Sentidos e Sentimentos” passou a integrar um Projeto Interinstitucional de Pesquisa, financiado pelo CNPq e coordenado pelo professor Luis Antonio Groppo, da Universidade Federal de Alfenas.

[6]Compõem também o grupo do Projeto Interinstitucional as professoras: Simone de Fátima Flach, que realizou três entrevistas em Ponta Grossa, e Suely Aparecida Martins, que contribuiu com três entrevistas no município de Francisco Beltrão.

[7]Natalia faz referência à morte de um estudante de 17 anos, cujo corpo foi encontrado dentro de uma escola ocupada no dia 23 de outubro de 2016. O crime fortaleceu ações de desocupação promovidas por grupos organizados, além de aumentar a pressão do Governo do Paraná contra as ocupações.

[8]Para além deste balanço, cumpre observar que o movimento das Ocupações Estudantis de 2016, ainda que derrotado em sua agenda mais abrangente, conseguiu impedir pontualmente processos de reestruturação e militarização de escolas.

[9]Antonio se refere ao discurso da então estudante secundarista Ana Julia Ribeiro, para a Assembleia Legislativa do Estado do Paraná, pronunciado no dia 27 de outubro de 2016.

[10]A propósito, vale à pena destacar que, embora o movimento das ocupações estudantis tenha surgido com base em uma pauta ligada às questões do sistema educacional, pudemos observar a centralidade dos temas ligados à sexualidade, orientação sexual e gênero.

Recebido: 15 de Fevereiro de 2021; Aceito: 08 de Junho de 2021

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