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Linhas Críticas

Print version ISSN 1516-4896On-line version ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.27  Brasília  2021  Epub June 28, 2021

https://doi.org/10.26512/lc27202136547 

Dossiê: As dimensões educativas da luta: saberes e aprendizados da e na militância política

Socialização e ressocialização política entre ex- trabalhadores metalúrgicos do ABC Paulista

Socialización e resocialización política entre los antiguos trabajadores metalúrgicos del ABC Paulista

Political socialization and resocialization among former metalworkers in the ABC Paulista

Maria Gilvania Valdivino Silva1 
http://orcid.org/0000-0002-0256-3259

1Doutora em Educação pela Faculdade de Educação da USP (2017). Investigadora no Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do Instituto Universitário de Lisboa. Membro do TRAMAS – Laboratório de Pesquisa em Educação, Transmissão Intergeracional, Trabalho e Política.


Resumo

Neste artigo abordamos processos educativos relacionados a política, nomeadamente, processos de socialização e ressocialização política vivenciados por trabalhadores moradores de um bairro popular, que fizeram parte do setor metalúrgico no ABC Paulista durante o movimento político e sindical das “Grandes greves”. Interessa-nos compreender os impactos que a vivência e os diferentes níveis de adesão e participação a este movimento exerceram (e ainda exercem) sobre o aprendizado, a compreensão e a participação política desses trabalhadores ao longo de suas vidas. Para tanto, analisamos as biografias de dois ex-metalúrgicos, moradores do bairro e que experienciaram o movimento em questão.

Palavras-chave Socialização; Socialização Política; Gerações; ABC Paulista

Resumen

En este artículo abordamos los procesos educativos relacionados con la política, es decir, los procesos de socialización y resocialización política experimentados por los trabajadores que viven en un barrio popular, que formaban parte del sector metalúrgico en el ABC Paulista durante el movimiento político y sindical de las "Grandes Huelgas". Nos interesa comprender los impactos que la experiencia y los diferentes niveles de adhesión y participación a este movimiento ejercieron (y siguen haciéndolo) en el aprendizaje, la comprensión y la participación política de estos trabajadores a lo largo de su vida. Para ello, analizamos las biografías de dos antiguos trabajadores del metal, residentes en el barrio y que vivieron el movimiento en cuestión.

Palabras clave Socialización; Socialización Política; Generaciones; ABC Paulista

Abstract

In this article we address educational processes related to politics, namely, processes of socialization and political resocialization experienced by workers living in a popular neighborhood, who were part of the metallurgical sector in ABC Paulista during the political and union movement of the "Great strikes". We are interested in understanding the impacts that the experience and the different levels of adhesion and participation in this movement exerted (and still do) on the learning, the understanding and the political participation of these workers throughout their lives. To this end, we analyze the biographies of two former metalworkers, residents of the neighborhood and who experienced the movement in question.

Keywords Socialization; Political Socialization; Generations; ABC Paulista

Introdução e contextualização

Neste artigo debruçamo-nos sobre os processos de socialização e ressocialização política vivenciados por ex-trabalhadores metalúrgicos do ABC Paulista ao longo de suas vidas[1]. Analisamos os impactos que as participações em um movimento associativo (As “Grandes Greves” do ABC) exerceram ou ainda exercem sobre os modos de perceber e se perceber no mundo, especialmente, no que diz respeito às questões de ordem política. Consideramos que a experiência da participação política, em especial quando resulta em engajamento e militância, exerce forte influência sobre os indivíduos, passíveis de alterar os modos de percepção e concepção do mundo (Pudal, 1989). Assim, abordaremos os processos de socialização política vivenciados por trabalhadores, moradores de um bairro popular no ABC Paulista (Ferrazópolis na cidade de São Bernardo do Campo), que fizeram parte do setor metalúrgico na mesma região e participaram das greves. Para isso, apresentamos as biografias de dois ex-metalúrgicos moradores do bairro em questão, que fazem parte de uma geração de trabalhadores que se convencionou chamar de “os peões do ABC”. Indivíduos que tiveram suas histórias de vida marcadas por experiências comuns como a origem rural, o trabalho infantil, a migração, a entrada no mercado de trabalho industrial pós-migração e a participação política via greves e movimento sindical (Abramo, 1999; Antunes, 1992; Tomizaki, 2007). Apesar dos traços comuns, que os caraterizam enquanto grupo e demonstram o peso das estruturas sociais sobre suas condições de existência, cada trajetória individual é marcada por experiências e eventos diversos, que revelam traços da heterogeneidade existente entre os trabalhadores metalúrgicos do ABC (Silva, 2017).

Mais de 40 anos nos separam do início das “Grandes Greves” do ABC (deflagradas em 1978) e ainda há o que se falar sobre esse ciclo da história dos trabalhadores e da política brasileira. As relações sociais desenvolvidas entre os indivíduos que vivenciaram esse acontecimento (mesmo que em diferentes níveis), os impactos nas relações de trabalho e a valorização de uma categoria de trabalhadores como os metalúrgicos são resultados dessas greves. Foi a partir desse movimento que o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC (SMABC) ganhou força e ficou reconhecido como um dos mais importantes e mais combativos sindicatos do Brasil, dando início ao chamado Novo Sindicalismo (Antunes, 1992; Sader, 1988) e que se formou o Partido dos Trabalhadores (PT) e a Central Única dos Trabalhadores (CUT). Foi também desse movimento político e sindical que emergiu a figura de Lula da Silva - mítica para os trabalhadores em questão - liderança da classe trabalhadora por décadas e intransponível no debate político até o momento em que este artigo é escrito, seja por sua importância política como representante da esquerda brasileira a frente do PT ou em função do “antipetismo”[2], antagonismo construído em torno de sua imagem e do partido que fundou e ainda lidera.

Ao longo desse tempo, muita coisa mudou no cenário político, econômico, social brasileiro e, consequentemente, para a classe trabalhadora. O mercado de trabalho mudou, a participação dos setores econômicos se alterou, o processo de desindustrialização iniciado nos anos 1990 se intensificou e, hoje, o Brasil tem um dos mais baixos índices de participação do setor industrial no Produto Interno Bruto (PIB) nacional de sempre (Confederação Nacional da Indústria [CNI], 2020).

Apesar da tendência geral de aceleração da desindustrialização em nível local e nacional, o ABC ainda é um importante polo industrial para o estado de São Paulo e todo o Brasil. Mesmo assim, as mudanças implementadas no mercado de trabalho industrial e o processo constante de desindustrialização exerceram (e ainda exercem) forte impacto na economia, na estrutura e na própria paisagem da região (CNI, 2020; Rodrigues & Ramalho, 2007).

As alterações decorrentes da reestruturação produtiva na indústria (1990) refletiram na vida dos moradores da região, exigindo adaptação para acompanhar as mudanças do mercado de trabalho e modernização da produção, principalmente em relação às demandas de ampliação das credenciais escolares. O desemprego oriundo dessas mudanças afetou de modo violento os moradores do bairro em que vivem os indivíduos analisados. Tais alterações impactaram fortemente São Bernardo do Campo, cidade em que está localizado o bairro Ferrazópolis. Nos anos 1970, a cidade contava com a maior parcela da população empregada atuando em empresas metalúrgicas localizadas na própria cidade, situação que se alterou drasticamente.

Desde meados dos anos 2000, a maior parte da população empregada na cidade já não faz parte do setor industrial e isto resultou em diferentes níveis de mudança. Por um lado, alterou-se a composição da classe trabalhadora, que passou a ser majoritária no setor de serviços em empregos pouco qualificados e mal remunerados ou ficou relegada ao setor informal (Macedo, 2010; Pochmann, 2006; Rodrigues & Ramalho, 2007). Por outro lado, ampliaram-se as dificuldades materiais de existência, reverberando em frustrações de projetos de futuro e de mobilidade social para si e para os filhos. Objetivamente, os trabalhadores perderam o emprego formal, os direitos e a segurança dele advindos. Subjetivamente, vivenciaram a alteração da identidade profissional como metalúrgico do ABC e indivíduo bem-sucedido profissionalmente. Do ponto de vista político, observamos certa frustração das expectativas de obtenção de melhores condições de vida a partir do engajamento, sobretudo entre os mais novos. Além disso, notamos a existência de um sentimento controverso entre parte dos trabalhadores que incide sobre a participação nas greves e a militância política, um misto de orgulho pela participação e a frustração de não ter colhido os melhores frutos da luta (Oliveira, 2013; Santos Jr. & Menezes, 2021; Silva, 2017; Silva & Tomizaki, 2016).

Apesar dessas mudanças, muitos dos trabalhadores analisados ainda se identificam e se apresentam como metalúrgicos do ABC, mesmo que já não o sejam. Assim, neste artigo, analisaremos o impacto da participação nas greves sobre a maneira como os trabalhadores lidam com a política e se percebem no mundo. Esperamos lançar pistas para refletir acerca do caráter formador das experiências de engajamento sobre as aprendizagens políticas desenvolvidas ao longo da vida.

Processos de aprendizagens de natureza política: socialização política

Tema clássico nas ciências sociais, a socialização foi por muito tempo entendida como o processo vertical (e mecânico) por meio do qual os indivíduos aprendem a participar e se comportar no mundo social com ênfase nos primeiros anos de vida (Durkheim, 2002). Entretanto, os avanços dos estudos sobre o tema indicam que são processos cada vez mais plurais e com margem para a reflexão e ação individual. Os aprendizados são passíveis de alterações em virtude de contextos de crise, mudanças profissionais ou engajamento e participação política, embora haja tendência de sua consolidação com o avanço da idade. Os indivíduos podem vivenciar alterações significativas no curso da vida, experiências marcantes capazes de resultar em mudanças nos quadros de percepção do mundo e nos modos de se perceber e reagir em relação a diferentes eventos (Abrantes, 2014; Caetano, 2018; Dubar, 2005; Tomizaki et al., 2016).

Já a noção de socialização política, tradicionalmente se refere ao conjunto dos mecanismos e processos de transmissão e incorporação das opiniões e representações políticas. Neste artigo, a socialização política é entendida como parte indissociável dos demais processos de socialização, que guarda especificidades relacionadas à aquisição e assimilação de valores, normas e condutas, preferências e recusas em relação à política e não se resume à transferência de preferências partidárias. Todos os indivíduos são socializados politicamente e os processos de aprendizagem política se desenvolvem de modo diferente a depender do contexto, dinâmicas e circunstâncias históricas, sociais e políticas em que os indivíduos estão inseridos (Bargel, 2009; Percheron, 1993; Tomizaki et al., 2016).

Tais processos se desenvolvem de modo complexo, nem sempre de forma direta e consciente e em diferentes ambientes ao longo da vida. De modo que, para uma melhor compreensão da relação entre educação e política, consideramos três principais dimensões, (i) os processos educativos gerais, desenvolvidos nas diferentes instâncias de socialização; (ii) a participação política, considerada um processo educativo específico capaz de promover ajustes nos modos de perceber e atuar politicamente; (iii) a emoção envolvida nesses processos, que contribui para a maneira como as experiências são interiorizadas, mobilizadas e atualizadas (Abrantes, 2014; Carvalho-Silva, 2018; Tomizaki et al., 2016).

Embora não seja nosso objetivo fazer uma revisão teórica sobre os estudos em socialização política no Brasil, consideramos importante abordar o desenvolvimento da produção nacional sobre o tema. De modo geral, as pesquisas brasileiras se desenvolveram em diálogo com o conceito de cultura política e o termo socialização política é entendido, de um lado, como o processo de formação de atitudes políticas; e de outro, como processo de interiorização da cultura política, por vezes, com enfoque geracional. Na última década houve um aumento dos estudos dedicados ao tema e que vêm sendo desenvolvidos não apenas sob o ponto de vista das Ciências Políticas, mas também, da Sociologia da Educação, como é o nosso caso (Schmidt, 2000; Setton & Bozzetto, 2020; Tomizaki et al. 2016).

Participação nas greves, militância sindical e aprendizados políticos: o caso de dois ex-metalúrgicos

Os métodos biográficos são muito utilizados nas ciências sociais e tendem a ser a escolha preferencial ao lidar com análises de trajetórias militantes (Tomizaki, 2009). Embora seu uso seja comum, ainda são alvo de críticas que se baseiam em uma suposta primazia de um método ou um objeto sobre o outro (Lahire, 2005). Entendemos que o uso sociológico das biografias não passa apenas pela quantidade – muitas vezes aborda fenômenos que sequer são passíveis de quantificação - mas sim, pela possibilidade de reconstituição do campo no qual as histórias de vida se desenvolveram (Bourdieu, 1986; Elias, 1995).

Neste artigo, debruçamo-nos sobre o grupo que se convencionou chamar metalúrgicos do ABC e abordamos os processos de socialização política vivenciados por eles a partir da análise das histórias de vida de ex-trabalhadores metalúrgicos. Analisamos os modos como esses indivíduos consolidaram ou ressignificaram, a partir da participação política, as suas experiências e seus modos de perceber e reagir às questões dessa natureza, o que corrobora para a compreensão do grupo e revela resultados dos processos de socialização experienciados (Abrantes, 2014; Bertaux, 1997).

Apresentamos, então, a biografia de dois trabalhadores: Pedro Domingos[3] (metalúrgico aposentado, 71 anos de idade), entrevistado em 2016 e Geraldo Ferreira (ex-metalúrgico, 63 anos de idade), entrevistado em duas oportunidades, a primeira em 2010, e a segunda em 2016 (Silva, 2012; 2017). São duas biografias que devem ser lidas com base em suas individualidades, mas também como parte de um grupo. Um grupo constituído do ponto de vista do pertencimento geracional que é marcado pela contemporaneidade, partilha de experiências comuns e a vivência de um mesmo acontecimento histórico (Mannhein, 1993). Justificamos, ainda, a escolha da apresentação dessas duas trajetórias, em detrimento de outras 28 coletadas, porque elas contribuem para a compreensão de dois importantes processos vivenciados pelos metalúrgicos do ABC ao longo dos últimos 40 anos, desde o acontecimento fundante das “Grandes greves”, o primeiro representa aqueles que vivenciaram a inserção no mercado de trabalho, participação política a partir das greves, manutenção do emprego no setor metalúrgico e continuidade da militância política e partidária de modo efetivo. O segundo diz respeito àqueles que não conseguiram manter o emprego no setor metalúrgico e, em função disso, têm trajetórias de trabalho e militância políticas entrecortadas ainda pouco estudadas.

Pedro Domingos, uma vida dedicada à política

[...] Sou totalmente interessado por política, só penso nisso, só falo disso. [...] Eu recebo informações todos os dias, me informo em vários meios, em algumas coisas eu acredito, mas em outras não. Às vezes, nem dormir à noite eu durmo! (Pedro Domingos, 71 anos, metalúrgico aposentado)

Pedro Domingos tem 71 anos de idade, no momento da entrevista era casado e tinha três filhas. Migrante nordestino, nasceu em uma pequena cidade no interior do Piauí, mas considera São Bernardo do Campo a sua casa, cidade em que vive desde que migrou em 1970. Pedro não chegou a completar o Ensino Fundamental, estudou os anos iniciais na Escola Rural da cidade em que nasceu e ali foi alfabetizado pelo avô. Após a migração voltou a estudar, frequentando a escola à noite, em regime de Educação de Jovens e Adultos, entretanto, pelas dificuldades de conciliar trabalho e escola, não concluiu os estudos. Ingressou no mercado de trabalho industrial em uma fábrica têxtil na região do ABC, onde trabalhou por 6 anos. Neste meio tempo, casou-se com Elenice, sua conterrânea que também havia migrado para São Bernardo do Campo. Em 1976, Pedro passou a fazer parte do setor metalúrgico, na linha de produção da TRW Automotive, em Ferrazópolis, bairro para o qual se mudou em 1979. Participou ativamente das greves do ABC desde 1978 e até hoje é militante, atua no PT desde a fundação do partido e, em movimentos de bairro juntamente com sua esposa. A trajetória de Pedro se destaca por ser um dos indivíduos analisados com maior engajamento político e cujo espaço ocupado pela política no ambiente familiar é muito expressivo.

Na narrativa que faz sobre sua trajetória, Pedro fala sobre a inserção da política em sua vida desde muito cedo, quando vivia no interior do Piauí, menciona a politização das pessoas de sua cidade e se refere à adesão política, evidenciada em períodos de campanha eleitoral, muito comum no interior do Brasil. Trata-se de um momento em que se demonstra adesão a uma candidatura, um compromisso marcado por manifestações públicas de apoio e que, de uma forma ou de outra, era vivenciado por toda a comunidade (Heredia & Palmeira, 2005). Embora as primeiras memórias políticas não demonstrem engajamento, os processos de socialização familiares que vivenciou, sobretudo no início da adolescência, e o contato afetivo, em especial, um primo mais velho, mostram que a política sempre teve algum espaço em sua família e nos ambientes que circulava, o que teria facilitado o engajamento imediato nas greves posteriormente.

Na minha cidade natal as pessoas são muito politizadas e eu também tive essa influência. As pessoas são muito envolvidas com políticas, tem briga de partido e de pessoas, lá o pessoal gosta de política! Hoje mesmo eles estavam aqui me mandando pelo zap zap as músicas das campanhas dos prefeitos, hoje tem três candidatos, tudo isso vira assunto, as pessoas se interessam e me mandam porque sabem que eu estou sempre envolvido com isso aí.

[...] Se for para citar alguém, tinha um primo meu, que tinha rádio, um dos poucos na cidade, ele era mais velho do que eu, eu ia lá na casa dele e ele me contava as notícias que passavam no rádio e ele me falava de algumas coisas que eram ruins para o povo [...]. Deu o Golpe Militar eu ia fazer 15 anos, eu me lembro bem em 1964, o rádio deu a opinião de alguns jornalistas que ainda podiam falar e meu primo era quem me transmitia, eu ficava com a opinião dele (Pedro Domingos, 71 anos, metalúrgico aposentado)

No que diz respeito à vida profissional, Pedro relata sua trajetória de modo interligado com o seu envolvimento político, o que estaria por trás de seu sucesso profissional, ele afirma: “[...] na minha vida profissional eu considero que acabei indo bem, porque fui uma pessoa que tive uma experiência política muito diferente dos outros” (Pedro Domingos, 71 anos, metalúrgico aposentado).

Pedro alega ter sido uma pessoa muito consciente dos seus deveres, mas também dos direitos como trabalhador, mesmo antes de ingressar no setor metalúrgico. A dedicação à luta por direitos é motivo de orgulho para Pedro que também se apresenta como consciente e corajoso por chegar a ser o único trabalhador associado ao sindicato no primeiro emprego fabril que teve no ABC. Em sua narrativa, o sindicato aparece como fundamental, em especial, na trajetória política que desenvolveu a partir do ingresso no setor metalúrgico. Ele fala do SMABC como espaço de aprendizado, lugar em que teve bons professores na política e também, como uma instituição capaz de influenciar as movimentações políticas nos bairros e na cidade.

Eu comecei a militar no sindicato, o movimento sindical veio mais forte. Eu entrei para metalúrgica em 1976, na época do movimento de um Regime Militar duro. Conheci o Lula em 1976, e eu já estava no movimento. Eu trabalhava ao lado do sindicato e quando saía da empresa às 14h, já passava no sindicato quase todos os dias. Eu estou nessa de sindicato desde a outra empresa, em que eu era o único filiado ao sindicato da minha planta. [...] Também sou militante do PT. Desde a fundação, participei dos seminários, reuniões, cursos de formação política, aqui e em Cajamar... Eu tive muitos professores como o Suplicy, o Mercadante, etc. Participar desse movimento todo foi muito bom para aprender mais, para fazer alguma coisa que fosse boa. Fora que eu trabalhava com o convencimento de pessoas, falava: ‘cara, você está sendo prejudicado e não está se ligando disso?’. Fazia muitas reuniões, era da comissão de saúde, uma vez consegui trazer o prefeito de Santos para falar com a gente. Eu acho que todo esse movimento que aconteceu aí, nós influenciamos sim os movimentos de bairro como um todo, nós do sindicato, por exemplo, não queríamos ficar só dentro da fábrica, não visávamos só o movimento trabalhista, mas sim a sociedade como um todo, não é? A gente fazia o trabalho, o sindicato dava cursos de matemática, por exemplo, muitas pessoas que nem eram filiadas faziam, o sindicato auxiliava muito e o movimento sindical foi muito importante aqui para o bairro, pela proximidade e, não só para o bairro, como para São Bernardo que é destacado a nível internacional por conta do movimento sindical que teve aqui na década de 1970. [...] A atuação política das pessoas, de uma forma geral, também foi influenciada. Nós criamos o primeiro comitê político em Ferrazópolis, que era um dos mais fortes, isso é o núcleo do PT que eu falo, nós fazíamos reuniões nas garagens das casas aqui, às vezes, tinha reunião do núcleo com mais de 70 pessoas e isso era espalhado pelas vilas, não tinha em uma só. Você imagina discutir política naquela época de ditadura? Então, dá para perceber que era uma coisa muito forte por aqui! (Pedro Domingos, 71 anos, metalúrgico aposentado)

Nota-se o sentimento de orgulho demonstrado na narrativa de Pedro, orgulho de ter feito parte do movimento sindical, confrontado poderes políticos autoritários e ter contribuído para o desenvolvimento de seu local de moradia por meio de luta política.

A trajetória profissional e de militância política de Pedro, se deu de forma linear, permaneceu em uma mesma empresa durante quase 30 anos, não sofreu com desemprego e possui renda de aposentadoria. Conforme mencionamos anteriormente, Pedro faz parte de uma parcela de trabalhadores metalúrgicos no ABC que prosseguiu no setor metalúrgico, no trabalho formal, com maior estabilidade e direitos. Participou das greves do ABC desde o início do movimento e desenvolveu uma trajetória de militância política que se desdobrou em militância de bairro e, posteriormente, no Partido dos Trabalhadores. Nessas duas últimas experiências de militância, sempre teve a companhia da esposa, que alegava ter sido influenciada pelos ideais do marido e optou por acompanhá-lo. Isso reverberou fortemente na educação das três filhas do casal, que, embora menos engajadas (de modo prático, do ponto de vista da militância e atuação política) do que os pais, são filiadas ao PT. Uma delas nos revelou em entrevista que a história da luta política dos seus pais faz parte da constituição de sua identidade. Pedro seguiu uma carreira de militância de modo profissional após a aposentadoria, trabalha em campanhas e assessora candidatos de seu partido de filiação, o PT. Mobilizou seu capital político como liderança de bairro a favor de candidaturas petistas e se orgulha de ter colhido frutos (simbólicos e materiais) em uma vida dedicada à política.

Além disso, Pedro faz parte de um grupo de trabalhadores que enxergou na luta política a possibilidade de ter igualmente as demandas individuais atendidas (Tomizaki et al., 2016). A linearidade em sua trajetória profissional e militante propiciou-lhe melhorias nas condições materiais de existência, devido aos direitos trabalhistas e melhores salários adquiridos aos empregados do setor metalúrgico da região depois das greves. A luta política de Pedro e, posteriormente, de sua esposa lhes proporcionaram também, ganhos materiais capazes de promover mobilidade social em relação à geração de seus pais e manter, até certo ponto, os projetos de futuro desenhados para as filhas, com base nos valores do trabalho, da educação e da luta.

A narrativa de Pedro demonstra a leitura que ele faz sobre a política para a compreensão de sua própria existência. Os aprendizados políticos remetem primeiro à adolescência e são posteriormente mobilizados quando se sindicaliza sozinho no primeiro emprego e, de modo mais intenso, ao se tornar metalúrgico e aderir imediatamente às greves. Neste momento passa por um processo de ressocialização que intensificou radicalmente a relação que mantinha com a política, desde então, parte fundamental de seu cotidiano e que perdura até hoje, ao ponto de ele decorar a casa em função das cores que definem sua preferência política e partidária. As influências da socialização política vivenciada a partir do engajamento nas greves se evidenciam quer na apresentação pública que Pedro faz de si, quer em sua vida privada no ambiente familiar (Abrantes, 2014; Muxel, 2008).

Geraldo Ferreira, a militância interrompida

Porque ser metalúrgico é muito bom, minha filha! O metalúrgico ele é visto, em qualquer lugar ele é visto. Em tudo o que as pessoas olham, a primeira coisa que elas olham é o metalúrgico! [...] O metalúrgico, ele sabe lutar pelos seus direitos! (Geraldo Ferreira, 63 anos, comerciante e ex-metalúrgico)

Geraldo Ferreira tem 63 anos de idade, é casado com Lúcia, sua conterrânea, e os dois têm oito filhos. Também é migrante nordestino, nascido em uma pequena comunidade rural no sertão da Paraíba. Tem uma trajetória de migração entrecortada pelas idas e vindas entre 1978 e 1985. Tal qual Pedro, considera São Bernardo do Campo o seu lugar no mundo. Geraldo também não completou os estudos, foi alfabetizado na Escola Rural, mas não concluiu o equivalente ao Ensino Fundamental II. Ingressou no setor metalúrgico mais tarde, no início dos anos 1980, já não se recorda exatamente das datas, mas alega ter sido entre 1980 e 1982, quando trabalhou na Villares (atual Villares Metals) por um curto período, depois voltou ao setor e, entre idas e vindas em diferentes empresas, permaneceu empregado como metalúrgico até 1997, ano em que foi vitimado pelas demissões alavancadas pela Reestruturação Produtiva. Desde então, nunca mais voltou a atuar como metalúrgico. Participou das greves no início dos anos 1980 e na década de 1990 fez parte da diretoria de base do SMABC. Geraldo vive em Ferrazópolis, em uma área de favela, desde 1986. Atualmente trabalha por conta própria, mantém com muita dificuldade um pequeno comércio nas proximidades de sua residência - uma loja de produtos nordestinos, popularmente conhecida como “Casa do Norte” - enquanto aguarda completar o tempo para dar entrada na aposentadoria. Diferente de Pedro, a família não acompanhava Geraldo nas atividades políticas e de militância, tampouco concordava ou defendia a opção pela militância e a dedicação à política sempre foi motivo de conflitos com a esposa, que discorda radicalmente dele.

Ao narrar sua vida, Geraldo quase não menciona a infância. Permitiu-nos saber que foi uma infância marcada pela pobreza. Sua família vivia em uma comunidade rural no sertão da Paraíba e a memória política que ele menciona ter de infância na cidade natal é difusa e remete ao que chama de “tempo da política”, se referindo à adesão de alguns moradores (e famílias inteiras) a determinados candidatos e partidos, em períodos de campanha eleitoral, o que foi também referido por Pedro.

Já a migração, ato que ele define como “corajoso” e que, apesar das dificuldades, proporcionou-lhe melhores condições de vida, é narrada em maior detalhe.

Eu vim de lá do Norte com 19 anos à procura de uma vida melhor, porque lá era muito ruim, muito difícil! Dos 7 aos 19 anos eu trabalhei na roça, não é? Trabalhei na roça e não consegui fazer nada. Eu vim para São Paulo à procura de uma vida melhor. Nesse meio tempo eu já estava casado, [quando] vim para cá eu não era solteiro. [...] Em 1978 eu vim para cá, cheguei aqui e fui trabalhar na construção civil, não é? Primeiro eu fui trabalhar na construção civil, em 1978. Aí, trabalhei por volta de 11 meses na construção civil voltei para o Norte. Nessa época, a minha esposa tinha ficado lá e estava grávida do menino que nasceu e faleceu. Aí, eu fiquei em torno de 3 meses lá e voltei pra SP de novo, não é? (Geraldo Ferreira, 63 anos, comerciante e ex-metalúrgico)

O percurso de migração realizado foi entrecortado, marcado por experiências difíceis, como migrar sozinho após o casamento e ser surpreendido com a morte de um filho, o que o obrigou a retornar a sua cidade natal antes do que previa. Apesar disso, migrou novamente, voltando para São Bernardo, acompanhado pela esposa. Em 1982 ele ingressou no setor metalúrgico e, apesar da identificação com os movimentos grevistas, não aderiu à luta de imediato. Antes da migração seu contato com política foi quase nulo, era a primeira vez que vivenciava aquele tipo de evento e a lembrança narrada é controversa, mistura a admiração pelo movimento com o medo da adesão imediata, reflete sobre as condições que justificaram a não adesão e demonstra arrependimento (Caetano, 2018). É uma reflexão que faz sobre sua trajetória, mas que também evidencia os processos de socialização política que ele vivenciou desde então, pautados nos valores da união dos trabalhadores para lutar por direitos e melhores condições de trabalho e de vida.

No começo das greves de 82 eu iniciei meu trabalho na Ferro Peças Villares […], quando foi quebrado tudo no ABC, na Arteb, Volkswagen, Ferro Peças que é a Villares, chamava Ferro Peças onde é a Cofap hoje. Aí, naquele tempo foi o tempo que eu comecei a gostar da luta no sindicato, o movimento naquele tempo, nossa! Para mim era tudo, não é?! Mas eu, mesmo assim, eu era recente, eu furava a greve, não era que eu furava, é… eu saía de casa mais cedo para trabalhar, para poder passar. Mas, eu achava o cúmulo aquilo lá. Era ruim para mim... (Geraldo Ferreira, 63 anos, comerciante e ex-metalúrgico)

Em menos de um ano Geraldo foi demitido do trabalho na metalúrgica. Em 1983, retornou para o nordeste, mas não se adaptou novamente. Em 1985, decidiu tentar a vida em São Paulo mais uma vez. A viagem foi feita sem a família, na época, a esposa grávida e quatro filhos. Alugou um barraco em uma favela de São Bernardo e ficou sabendo de uma nova ocupação em Ferrazópolis, quando em 1986 adquiriu um terreno em um loteamento irregular no bairro e construiu um barraco para viver com a família, que, então, migraria em definitivo. Geraldo vive até hoje no mesmo lugar, uma casa que foi construída ao longo do tempo. Passou por diferentes fábricas pela região do ABC e, no início da década de 1990, ingressou em uma fábrica de autopeças, em que alega ter experienciado condições de trabalho degradantes, que o teriam motivado a aderir a militância sindical de modo intenso.

Eu fui eleito cipeiro na época na [Nome da empresa], eu fiquei como vice-presidente da CIPA [Comissão Interna de Prevenção a Acidentes]. Aquilo foi a gota d´água! Aquilo lá foi bom para mim porque eu cresci no movimento, eu comecei a aprender muita coisa que eu não sabia sobre os direitos que o trabalhador tem, sobre a vida dele dentro da empresa, o que ele pode e o que não pode, o que a empresa deve e o que não deve com ele. Aprendi muito sobre isso aí. [...] Eu acho que a luta sindical é uma escola política! Quem quiser ser político é só entrar no sindicato, porque é lá onde você vai aprender a vida política. Eu acredito que um bom político ele tem de nascer do Sindicato dos Metalúrgicos [do ABC], se não for do Sindicato dos Metalúrgicos não é um bom político! Porque lá é aonde ele vai aprender negociar, lá é onde ele vai aprender a sobreviver, da maneira como é lá (risos). Lá é cobra engolindo cobra, não é? Política é assim, não só lá, é em qualquer lugar, é cobra engolindo cobra! Mas é bom, é gostoso! (Geraldo Ferreira, 63 anos, comerciante e ex-metalúrgico)

Além das experiências de migração e ingresso no setor metalúrgico, observamos aqui outro ponto comum nas narrativas de Geraldo e Pedro: o sindicato aparece como local de aprendizagens políticas. Eles mobilizam termos relacionados as aprendizagens para abordar sua experiência no sindicato, como, por exemplo, escola, aprendizado e professores. O sindicato é reconhecido por eles como um local indispensável para o aprendizado político, conhecimento de direitos e, também, sobre dignidade e trabalho. Participar das greves e frequentar o sindicato são as experiências políticas consideradas mais marcantes. De fato, o SMABC foi uma instância de socialização política fundamental para toda a geração de trabalhadores da qual Pedro e Geraldo fazem parte, além do apoio às greves, a instituição se dedicou a realização de programas de estudos políticos, formação de diretores e até hoje realiza cursos e formações para os associados e mantém escolas de formação (Tomizaki, 2007).

Entretanto a vida profissional de Geraldo não foi linear. Ele faz parte do grupo que não conseguiu se manter no setor metalúrgico. No final dos anos 1990 foi demitido da fábrica em que atuou por mais tempo. Quando ocorre a demissão ele já não era mais parte dos quadros do SMABC, foi um, entre muitos trabalhadores de Ferrazópolis (e todo o ABC Paulista), vitimado pelos cortes nos postos de trabalho a partir da modernização fabril mobilizada pela Reestruturação Produtiva nos anos 1990, já tratada anteriormente. Fábricas fecharam, bairros se modificaram e uma enorme massa de trabalhadores pouco qualificados (mais tarde, também os qualificados encontrariam dificuldades de inserção) ficaram desempregados, muitos sem jamais conseguir retornar ao mercado de trabalho no setor metalúrgico, como Geraldo, outros, em pior situação: ausentes de maneira prolongada do mercado de trabalho formal (Pochmann, 2006; Rodrigues & Ramalho, 2007; Silva & Tomizaki, 2016).

Estava difícil arrumar emprego em metalúrgica. Estava difícil e eu estava desistindo, não é que eu estava desistindo da luta, eu queria muito, mas aí eu comecei a pensar que era diferente, não era da maneira que eu pensava. Porque a gente lutou muito, fez muito! Fez curso, eu tive de estudar, saía para fora, ficava semanas e semanas fora de casa, longe da família. Era difícil até ver as crianças e, terminar em nada que nem terminou?! Então, não foi fácil! Então, aí, eu fiquei desapontado, eu não vou negar que eu fiquei desapontado na época. (Geraldo Ferreira, 63 anos, comerciante e ex-trabalhador metalúrgico)

Este trecho de sua narrativa revela desapontamento com o tempo dedicado à luta e à militância sindical. Entretanto esse é um sentimento contraditório, apesar da trajetória entrecortada, Geraldo é enfático ao abordar o lado positivo de sua participação nas greves e no movimento sindical:

Nessa luta toda você tira proveito. O proveito que você tira, é que amanhã ou depois você olha para trás e diz, olha eu participei disso, foi bom, nossa! Isso aqui tem meu dedo, isso aqui tem minha história, tem minha vida. Eu trabalhei, eu lutei junto com os meus colegas. E hoje eu tirei uma conclusão de que isso foi bom, foi maravilhoso! Eu acho que para mim é maravilhoso, e eu ainda vou voltar para luta! Com o Apoio do Sindicato dos Metalúrgicos, junto com esse outro, eu ainda vou voltar! (Geraldo Ferreira, 63 anos, comerciante e ex-trabalhador metalúrgico)

Geraldo sente muito orgulho do passado de metalúrgico e sindicalista, fala com bastante comoção sobre sua participação no movimento sindical e se reconhece como parte da história do Brasil, pois lutou pelos direitos dos trabalhadores. O fato de ter participado das greves e o aprendizado político envolvido nisso parecem exercer mais influência sobre sua forma de lidar com a política, de ver o mundo e perceber seu lugar nele, do que a frustração resultante de uma trajetória profissional e política interrompida, que não lhe rendeu ganhos materiais com o engajamento, mas fez parte da constituição de sua identidade. Segundo Abrantes (2014), as emoções envolvidas em dado evento/situação conferem “importância capital” na formação das identidades e na composição das (auto)biografias dos indivíduos e este é ponto muito relevante para estudos sobre militantes políticos (Tomizaki, 2009). Assim como Geraldo, muitos outros metalúrgicos que entrevistamos ao longo de 10 anos de pesquisas desenvolvidas no ABC, tem como o clímax de suas histórias de vida o momento da adesão política via greves.

Na narrativa de Geraldo, marcada pela pobreza e pela fome na infância, o elemento crucial que o fez aderir de forma intensa à luta sindical para a garantia de direitos aos trabalhadores está relacionado com o modo como os trabalhadores seriam tratados na fábrica. A ausência de alimentação de qualidade e o descaso com refeições servidas aos trabalhadores são os fatores elencados por ele como os gatilhos para a sua revolta, que culminou no início da trajetória política como sindicalista.

As pessoas sofriam. Eu via as pessoas à noite, quando trabalhava à noite. A gente ia jantar à noite e o que acontecia era que a comida estava estragada! Eles serviam a comida que as pessoas comiam de manhã, eles serviam o que sobrava para o turno da noite e essas comidas eram estragadas. Aí a gente ia jantar e a comida estava estragada, eu me revoltei com aquilo lá! Eu tinha três meses de empresa aí, me candidatei pra CIPA de livre e espontânea vontade. (Geraldo Ferreira, 63 anos, comerciante e ex-metalúrgico)

Segundo Boughaba et al. (2018), um dos possíveis resultados da socialização política é a politização, processo específico ligado à aquisição de competência política. A politização pode ser entendida como a compreensão e capacidade de operar termos e ideias que são próprios da política o que, por sua vez, se desenvolve em três diferentes níveis, sendo (i) a compreensão do funcionamento dos sistemas de governo, do Estado e das instituições; (ii) a capacidade de se enquadrar em um eixo ideológico e (iii) a aquisição de saberes específicos inerentes ao universo político que podem incidir sobre o modo de se comportar, falar, vestir, entre outros (Gaxie, 1987; Lagroye, 2003). Assim, a politização não se resume a elementos de ordem político institucional e engloba também uma dimensão individual, ligada a preocupações mais concretas, da ordem do cotidiano, da dignidade das condições de existência, com finalidades sociais legítimas. Desse modo, um indicador de politização é demonstrado quando o reconhecimento destas insatisfações pessoais se torna vetor para aspirações coletivas (Tomizaki et al., 2016). No caso de Geraldo, todas as experiências de humilhação e privação pelas quais passou, principalmente a fome, foram os vetores para o seu engajamento e não podiam ser aceitas também no ambiente de trabalho, nem para ele e nem para os outros.

Para os trabalhadores da indústria metalúrgica que participaram das movimentações grevistas, causas como a dignidade no ambiente de trabalho - melhores condições de exercício de suas tarefas, diminuição de abusos por parte das chefias e melhores salários, bem como a constatação de que sim, os trabalhadores deveriam também ter maior dignidade em relação às condições materiais de existência e poder oferecer isto ao restante da família por meio de seu trabalho - eclodiram em reivindicações coletivas, materializadas nas greves. Neste momento, os trabalhadores viram a política sindical e, depois partidária, como meio possível para terem suas aspirações (individuais e coletivas) colocadas em pautas e até mesmo, atendidas. Os relatos dos trabalhadores demonstram que é neste momento que se reconheceram como metalúrgicos do ABC, o que constitui suas identidades e é motivo de orgulho até hoje. Mesmo não integrando mais o setor produtivo, denominam-se como metalúrgicos e o SMABC foi para eles um local de aprendizagem política que reverberou em outras esferas da vida (Abramo, 1999; Tomizaki, 2007).

Considerações finais

O olhar para os processos de socialização política por meio da análise das histórias de vida apresentadas demonstra o desenvolvimento complexo da formação dos comportamentos, modos de perceber e reagir a questões de natureza política, que envolvem aprendizados gerais, políticos e também emoções (Abrantes, 2014; Carvalho-Silva, 2018; Muxel, 2008). Observamos que esses indivíduos desenvolveram um modo de operar politicamente que preserva elementos ético-políticos próprios àqueles que fizeram parte da categoria metalúrgica (a luta pela dignidade do trabalhador e por melhores condições de vida e de trabalho, que passariam necessariamente por uma participação política ativa), o que é visível na fala dos entrevistados. Esta é uma característica da categoria metalúrgica, que, no entanto, não surgiu apenas em 1978, é fruto de pequenas lutas cotidianas por diferentes frentes, pessoas e instituições, é da Igreja Católica e de algumas evangélicas, de moradores de bairros sem estrutura e de trabalhadores, de modo que o ano de 1978 e as greves deflagradas a partir de então representam um marco e o auge do reconhecimento da categoria metalúrgica pelos próprios trabalhadores e pela sociedade brasileira como um todo (Kowarick & Bonduki, 1988; Tomizaki, 2007).

As duas trajetórias aqui apresentadas demonstram ainda que a importância do movimento grevista no ABC para a história do país, a valorização da categoria metalúrgica a partir das movimentações grevistas, o crescimento do PT e de Lula - um metalúrgico que chegou a presidência da República – são fatores que possibilitaram o reconhecimento das experiências adquiridas por estes trabalhadores enquanto parte do movimento grevista. São experiências valorizadas social, regional e individualmente, que refletem no modo como eles contam suas vidas e descrevem a relação com a política, marcada pela participação intrinsecamente ligada ao SMABC e forjada em lutas cotidianas a partir dos desafios impostos pela realidade, na busca por condições dignas de existência para os trabalhadores e pobres (Tomizaki, 2007).

Finalmente, procuramos demonstrar que dentro da categoria de trabalhadores da indústria metalúrgica não há apenas homogeneidade. Os indivíduos pertencentes à geração dos “peões do ABC” partilham experiências comuns, como a origem rural, a pobreza, a migração, a inserção no mercado de trabalho industrial pós-migração e a participação nas greves, mas têm experiências individuais, tais quais as origens sociais e familiar, o período e as condições para a migração, o momento de ingresso no setor metalúrgico e o porte da fábrica, o momento de adesão às greves e a linearidade da trajetória profissional no setor. Tais experiências balizaram a maneira como a participação no movimento se desdobrou em suas trajetórias de vida e exerceram impactos sobre as disposições para o engajamento, as reflexões que fazem dessa experiência e os modos como se relacionam com a política.

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[1]A discussão apresentada aqui é desdobramento de pesquisas desenvolvidas pela autora, a dissertação de mestrado financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) 2009/12810-1 (Silva, 2012). E a tese de doutorado financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico (CNPq) 159607/2014-0 (Silva, 2017).

[2]Apesar de se tratar de um movimento difuso, o antipetismo vem se consolidando nos últimos anos, está presente em diversos setores da sociedade e exerce forte influência nos debates políticos (online e offline) e nos resultados de eleições (Singer & Loureiro, 2016).

[3]Os nomes aqui apresentados são fictícios para garantir a preservação das identidades e proteção de informações pessoais dos entrevistados.

Recebido: 17 de Fevereiro de 2021; Aceito: 21 de Junho de 2021

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