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Linhas Críticas

Print version ISSN 1516-4896On-line version ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.27  Brasília  2021  Epub July 09, 2021

https://doi.org/10.26512/lc27202136531 

Dossiê: As dimensões educativas da luta: saberes e aprendizados da e na militância política

Pela via dos afetos: experiência universitária na trajetória política de jovens liberais

Por la vía de los afectos: experiencia universitaria en la trayectoria política de jóvenes liberales

Through affections: university experience in the political trajectory of young liberals

1Doutora em Sociologia pela Universidade Federal da Paraíba (2020). Membro do grupo de pesquisa Saúde, Sociedade e Cultura.

2Doutora em Antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2008). Professora associada do departamento de ciências sociais da Universidade Federal da Paraíba. Líder do grupo de pesquisa Saúde, Sociedade e Cultura. Membro do MARC (Medical Anthropology Research Center).


Resumo

Este artigo aborda o impacto da vivência universitária na trajetória de adesão de jovens estudantes até o liberalismo político, econômico e social. A importância que esta experiência assume em suas trajetórias está diretamente relacionada à dimensão afetiva que interconecta relações de amizade e construção de afinidades políticas. Os resultados aqui discutidos baseiam-se em dois anos e meio de pesquisa etnográfica e entrevistas em profundidade junto a jovens liberais em Campina Grande, Paraíba, que compõem o coletivo Luis Gama, e mostram como a chegada à universidade permitiu aos jovens interlocutores negociarem saberes, disposições e preferências políticas em um contexto sócio-político de transição entre esquerda e extrema direita (2016-2018).

Palavras-chave Juventude; Socialização política; Liberalismo

Resumen

Este artículo discute el impacto de la vivencia universitaria en la trayectoria de identificación de jóvenes estudiantes al liberalismo político, económico y social. La importancia de esta experiencia en sus trayectorias se relaciona a la dimensión afectiva que interconecta relaciones de amistad y construcción de afinidades políticas. Los resultados son parte de una investigación etnográfica de dos años y medio de duración, y de entrevistas en profundidad a jóvenes liberales de Campina Grande, Paraíba, Brasil, que conforman el colectivo Luis Gama, y muestran como la llegada a la universidad les permitió negociar saberes, disposiciones y preferencias políticas, en un contexto socio-político de transición entre izquierda y extrema derecha (2016-2018).

Palabras clave Juventud; Socialización política; Liberalismo

Abstract

This paper deals with the impact of college experience regarding the identification of young students with political, economic, and social liberalism. The relevance of this experience in their paths is directly related to the affective dimension that links friendships to the construction of political affinities. The results we present here are part of an ethnographic investigation of two and a half years, and in-depth interviews with young liberals from Campina Grande, Paraíba, Brazil, that formed the Luís Gama Collective and showed how the arrival at the university allowed these young group of people to negotiate knowledge, dispositions and political preferences in a socio-political context of transition between the left-wing and extreme right-wing (2016-2018).

Keywords Youth; Political socialization; Liberalism

Keywords Youth; Political socialization; Liberalism

Abstract

This paper deals with the impact of college experience regarding the identification of young students with political, economic, and social liberalism. The relevance of this experience in their paths is directly related to the affective dimension that links friendships to the construction of political affinities. The results we present here are part of an ethnographic investigation of two and a half years, and in-depth interviews with young liberals from Campina Grande, Paraíba, Brazil, that formed the Luís Gama Collective and showed how the arrival at the university allowed these young group of people to negotiate knowledge, dispositions and political preferences in a socio-political context of transition between the left-wing and extreme right-wing (2016-2018).

Keywords Youth; Political socialization; Liberalism

Keywords Youth; Political socialization; Liberalism

A participação dos afetos na socialização política

A pluralidade cultural e política presente hoje nas universidades brasileiras reforça a percepção de Abramo (2005), para quem o campo de experiências juvenil, por se caracterizar como um espaço livre para expressão dos jovens, estimula a articulação desses agentes, criando assim ações coletivas que podem vir a desencadear processos de mobilização política (Abramo, 2005). Além disso, as juventudes têm, nos dias atuais, outros tipos de recursos em comparação às gerações passadas, pois, com a ampliação de acesso ao ensino superior e com a possibilidade de acesso à internet, um volume crescente de jovens pode ter contato com diferentes ideologias, autores e influenciadores, além de poder editar conteúdos e compartilhá-los com outros jovens dentro e fora da sala de aula. Tudo isso configura, sem dúvida, um momento sem precedentes no Brasil e que necessita de muito esforço por parte daqueles que se propõem a analisá-lo, no empenho de se apreender a heterogeneidade que existe atualmente nas instituições de ensino superior do país e seu possível impacto nas identificações e práticas políticas juvenis.

Neste artigo nossa perspectiva analítica se centra nos processos de socialização política, privilegiando, dentro deles, o lugar das relações cotidianas na constituição das identificações políticas. Partimos do pressuposto de que a política define um espaço de troca e de alteridade, em razão de que as posições políticas afetam as relações pessoais, fazendo com que as pessoas não desenvolvam suas atitudes políticas a partir somente de análises racionais, mas em grande medida por motivações emocionais, pois suas convicções políticas são capazes de defini-las “profundamente” (Muxel, 2014). Portanto, as relações sociais desenvolvidas ao longo da trajetória de cada indivíduo influenciam na concepção e no caráter de suas posições e identidades políticas, mas também nos sentimentos que projetam em relação à política. Este processo socializador se inicia na infância e acompanha os indivíduos durante toda sua trajetória de vida, sendo indissociável dos relacionamentos sociais ao longo de suas trajetórias. Entendemos que é, sobretudo, no trato da vida social, ou seja, nas relações dos indivíduos com familiares e/ou amigos, que as identidades políticas, os valores e as crenças tomam forma, em razão de que é nesses espaços que "a essência e os contornos da politização do indivíduo são encarnados e negociados” (Muxel, 2014, p. 2).

Se, ao longo da infância, a família tem um peso central na socialização política dos indivíduos, pois é nela que ocorre a transmissão sutil de valores políticos pelas emoções e afetos despertados pelos pais nas crianças (Muxel, 2014), a juventude é uma época da vida que pode ser particularmente marcada pela tensão entre uma herança política familiar e a influência de novos contatos adquiridos pelos jovens, seja em espaços como igrejas, colégios, universidade ou internet. Nesse sentido, a juventude consistiria num “tempo de negociação” de antigos valores (Tomizaki & Daniliauskas, 2018), adquiridos em suas infâncias e adolescências, e novos, com os quais os jovens têm contato a partir de relações estabelecidas em espaços como a universidade.

O conceito de socialização política que aqui adotamos se afasta de suas raízes funcionalistas, que tendem a reduzir a vida política juvenil a uma preparação para o futuro (Castro, 2009), em favor de um conceito mais dinâmico, que considera a prática política dos jovens no tempo presente, e que leva em consideração as múltiplas entradas a partir das quais os jovens são politicamente informados e afetados. Compartilhamos com Giddens (2002) a perspectiva de que, atualmente, os indivíduos têm um potencial reflexivo sem precedentes na história da humanidade e assim eles passam a (re)orientar as suas condutas refletindo sobre a realidade em que vivem, construindo-a e experimentando-a, a partir de novos parâmetros que não são mais apenas locais, mas advindos de experiências e realidades de contextos sociais muitas vezes distantes deles. Pensando o processo de socialização contemporâneo, Setton (2005) ressalta que os jovens têm à disposição um universo cultural “diversificado e plural” que, inevitavelmente, influencia as tradicionais instâncias de socialização, dando novos arranjos à sociabilidade nas escolas e famílias. Com efeito, tanto o acesso a conteúdo informacional na internet, como a intensidade de interação nas mídias sociais, configuram novas dinâmicas de socialização juvenil (Setton, 2005; Novaes 2006) e, portanto, de influência na construção de suas identidades políticas. Esses recursos e possibilidades tornam a experiência política dos jovens bastante significativa, tanto para eles, como para aqueles que estudam as juventudes e suas variadas formas de manifestação política.

As informações que aqui serão expostas foram adquiridas por meio de pesquisa para tese de doutorado (Salles, 2020), desenvolvida em Campina Grande, Paraíba, de junho de 2016 a dezembro de 2018. O período de realização do estudo situa-se entre dois marcos importantes na história democrática brasileira recente: o afastamento da esquerda do poder executivo, como consequência do impeachment da presidente Dilma Rousseff, e as eleições presidenciais, em 2018, que elegeram a extrema direita com Jair Bolsonaro. Esse período, marcado por uma efervescência emocional no debate político nacional, coincide com a passagem pela graduação da maioria dos jovens participantes da pesquisa, sendo a ambiência em que eles passam a se identificar com o liberalismo. Foucault (2008), em suas incursões sobre o tema, descreveu que o liberalismo se caracteriza como um sistema político, econômico, mas acima de tudo cultural, com enraizamentos à esquerda e à direita, e de perspectiva global e multiforme e ambígua. Esta definição pode nos ajudar a entender a diversidade da chamada "nova geração de liberais brasileiros", surgida, sobretudo, a partir dos anos 2005 e que se caracteriza, entre outros aspectos, pelo seu modo de organização descentralizado, pelo uso intensivo de mídias e recursos oferecidos pela internet, bem como pela utilização de formas de engajamento próximas aos movimentos sociais de esquerda (Rocha, 2017). Embora surgindo no bojo desse movimento, e compartilhando algumas de suas características, o liberalismo defendido pelos jovens interlocutores desta pesquisa se diferencia de boa parte dessas tendências contemporâneas, nomeadamente daquelas que têm se tornado mais visíveis, e também se afasta do liberalismo conservador, que pode ser visto com mais frequência na história política do Brasil. Os jovens interlocutores de que trataremos aqui vinculam o liberalismo às liberdades política, econômica e social, logo o liberalismo é, para eles, uma prática política que tem como finalidade a ampliação/proteção da liberdade de se expressar, de se filiar, de agir, de consumir e de comprar ou vender sem a intervenção, que consideram excessiva, da sociedade através do estado. Ao longo do artigo, outros aspectos sobre seu posicionamento político ficarão claros, assim como a relação deles com a conjuntura histórica e com a vivência universitária.

Sobre a metodologia da pesquisa

Para levantamento dos dados, foi desenvolvida uma pesquisa de cunho etnográfico, pela qual a primeira autora se integrou a um grupo de jovens liberais paraibanos que posteriormente viria se chamar Coletivo Luís Gama. Nos meses de junho de 2016 até dezembro de 2018, a primeira autora acompanhou os eventos presenciais desenvolvidos pelo Coletivo, bem como participou ativamente das interlocuções do grupo via aplicativo de mensagens WhatsApp. Além da etnografia, foram realizadas entrevistas em profundidade com nove jovens; foram três sessões de entrevista com cada participante, totalizando 36 sessões de entrevista em profundidade, cada uma com pouco mais de uma hora de duração, gerando mais de 40 horas de gravação, além dos registros em diário de campo. Nas sessões de entrevistas foram abordados assuntos pertinentes às socializações políticas dos jovens, investigando aspectos religiosos e políticos de suas famílias, bem como suas passagens pelas escolas e colégios, até chegar no momento presente, quando no ingresso à universidade, finalizando com sua identificação política e suas perspectivas de futuro. Todos os jovens liberais tiveram acesso às mesmas questões de pesquisa, uma vez que interessava encontrar padrões de socialização política que poderiam ter sido importantes para a formação do coletivo já na universidade, o que de fato se concretizou, uma vez que todos traziam consigo um background de ideias progressistas, adquiridas ainda em suas famílias ou escolas e colégios. Disso resultou neles a percepção de que a política também é o espaço das trocas, de repassar e adquirir conhecimento político, com isso em mente, eles criam o coletivo Luis Gama, para que, dentre outras atribuições, ele seja o lugar para que se converse sobre política de maneira "respeitosa". Aqui neste artigo o leitor terá acesso a uma pequena parte deste conteúdo, para uma compreensão mais ampla e detalhada, recomendamos a leitura da pesquisa completa realizada por Salles (2020).

Os interlocutores deste estudo foram nove jovens estudantes universitários que se autoidentificam como "liberais", sendo três do sexo feminino e seis do sexo masculino. Dentre estes jovens havia um grupo de seis estudantes do curso de direito da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), um jovem do curso de história da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), uma jovem estudante de direito na Universidade Maurício de Nassau e, por fim, uma estudante do Instituto Federal da Paraíba (IFPB). Destacamos que a universidade não foi o ponto de partida desta pesquisa, nem o elo em comum dos jovens, que foram acessados pela técnica de bola-de-neve a partir da indicação de um primeiro jovem vinculado a um coletivo liberal (Salles, 2020). Porém, o espaço universitário adquiriu uma visível importância na trajetória política de identificação dos jovens com o liberalismo, permitindo o entrecruzamento das relações de amizade e construção de afinidades políticas. Consideramos, deste modo, que a construção das percepções e convicções da identidade política liberal dos jovens interlocutores foi fortemente impactada pelos afetos e as relações pessoais que se desenvolveram dentro da universidade; todavia, tal acontecimento só foi possível devido ao convívio quase diário, que proporcionou a esses jovens a construção de um espaço-tempo afetivo e político, no qual podiam tanto analisar o momento histórico de transição entre a esquerda e a extrema direita, como dar sentido às suas convicções políticas, constantemente confrontadas pelo cenário político que, em suas percepções, estava cada vez menos liberal e mais conservador (Salles, 2020). Enfocamos, ademais, a passagem pela universidade como uma experiência de ampliação de horizontes sociais e políticos, vinculada a uma identidade juvenil que, embora não limitada a esse espaço institucional, encontra na identidade do estudante universitário um importante referencial, o que é também referenciado pela literatura sobre o assunto (Foracchi, 1965; Groppo, 2016). Por fim, destacamos o papel da universidade como local de legitimação da autonomia dos estudantes e de construção de pensamento crítico, conforme resultados da pesquisa que aqui em parte serão aqui apresentados.

Universidade e socialização política: apontamentos iniciais

A socialização política dentro das universidades brasileiras tem sido ao longo dos anos um interessante laboratório de análise social sobre a construção de identidades políticas e o engajamento político de jovens, de modo que a passagem pela universidade, em certo sentido, tem se mostrado como uma fase significativa na vida dos indivíduos que dentro dela apreendem e expõem suas convicções políticas (Groppo, 2016; Sposito & Tarábola, 2016; Salles, 2020). Sem dúvidas, a universidade é meio e instrumento do exercício de uma cidadania para aqueles que decidem adquirir conhecimento político e social, tão presente nela, por se configurar como um espaço público e diverso. Em algum nível, um reflexo da sociedade onde esses jovens estão inseridos.

É indispensável mencionar o pioneiro estudo de Foracchi (1965) que analisa o papel que os estudantes universitários jogavam na transformação da sociedade brasileira, numa época em que a condição estudantil sobrepunha-se à definição de juventude, estando restrita às classes sociais privilegiadas. Mais recentemente, estudo histórico realizado por Cunha (2007) mostra que os estudantes universitários se engajaram em diversos momentos da história política nacional e ajudaram a pensar o ensino superior no Brasil e a promover reformas dentro dele. Nos dias de hoje, a universidade se mostra ainda como cenário de aspirações sociais e políticas de jovens, embora a condição juvenil não seja mais apanágio dos jovens estudantes. Desde os anos 1980 diversas análises têm apontado para expansão e diversificação do que podemos considerar uma identidade juvenil e para a multiplicidade, igualmente, de formas de engajamento político, com progressivo desinvestimento em políticas representativas e institucionalizadas (entre as quais figura o próprio movimento estudantil universitário), tendência que Anne Muxel (1997) classificou, em relação aos jovens franceses dos anos noventa, como a busca de uma “política sem rótulos” – expressão que foi igualmente considerada adequada para entender as atitudes juvenis em relação à política nesse mesmo período no Brasil. Ganham relevância, nesse cenário, novas formas de fazer política e novas definições do político, que incluem lutas identitárias, movimentos culturais, intelectuais, e também novas formas organizativas que penetram, também, no espaço universitário.

Estudando a dinâmica entre a política e os jovens universitários de uma instituição federal no interior de Minas Gerais, Groppo (2016) observou que havia processos educativos informais estimulando o cultivo de valores e ideais nos estudantes, caracterizando para ele uma “vibrante cultura juvenil estudantil”, na qual é possível perceber novas tendências de participação política e cultural. Nesse sentido, a universidade é percebida pelo autor como um espaço que pode contribuir para a (auto) formação política dos jovens (Groppo, 2016). Em outro estudo realizado com vinte jovens universitários de São Paulo, Sposito e Tarábola (2016) perceberam que a relação com a esfera pública, a atuação coletiva e as atitudes políticas foram apontadas espontaneamente pelos entrevistados, sendo percebido pelos autores “diversos tipos de engajamentos” como associações, coletivos, movimentos e “outras formas de ação coletivas”. Os autores acrescentam ainda que o engajamento pessoal do jovem ocorre quando é resguardada a sua autonomia e identidade. Ainda de acordo com a pesquisa de Sposito e Tarábola (2016), os jovens encontram nessas experiências políticas dentro da universidade uma maneira de expor e afirmar disposições identitárias que podem ter sido evitadas ou dificultadas no espaço de suas famílias ou vizinhanças, elas apontam que essas experiências apareceram tanto na fala de jovens das camadas populares, como das classes médias. Ressalta-se disso o caráter da universidade de ser um espaço onde os jovens são incitados a desenvolverem opiniões e convicções políticas de maneira autônoma, distante das suas famílias e comunidades de origem, ou ainda de iniciar uma conduta política que antes era algo muito raro, devido ao controle de seus familiares ou comunidades religiosas, por exemplo. No caso que nos ocupa, de jovens paraibanos que se identificam com o liberalismo, a passagem pela universidade é fundamental no que diz respeito às suas trajetórias políticas individuais. É o que mostraremos a seguir.

O Coletivo Luis Gama e “as ideias da liberdade” na universidade

Em meados de 2016, nos corredores da faculdade de direito da UEPB, surge o coletivo Luis Gama, no ano em que Dilma Rousseff é afastada do cargo da presidência, o que pavimenta o caminho para a posterior chegada da extrema direita ao poder. Naquele momento, novos atores políticos identificados com a direita haviam tomado as ruas, o que, de certo modo, pegou de surpresa os cientistas sociais (Fernandes & Messenberg, 2018). Contudo, é relevante destacar que um fenômeno emergente se mostra sempre gelatinoso, por isso suas avaliações constantemente têm caráter de provisoriedade, pois há um processo não concluído em andamento (Marcon et al., 2020). Nesse contexto, os jovens liberais foram frequentemente identificados com os movimentos da “nova direita”, e assimilados a tendências abertamente conservadoras e reacionárias, o que foi favorecido pela atuação política de atores nacionais como o Movimento Brasil Livre (MBL). Para os jovens desta pesquisa, que se reivindicam como “liberais de alma” ou “liberais por inteiro”, diferenciar-se dos movimentos conservadores se torna não apenas um desafio como uma oportunidade de falar sobre o que eles acreditam e defendem enquanto liberais (Salles, 2020), lhes permitindo ocupar um espaço, mesmo que minoritário, no espectro de identificações políticas: defensores da "liberdade econômica", o que os conecta à agenda da direita (desregulamentação do mercado, estado mínimo e privatização das empresas estatais), e defensores da liberdade individual e política, o que os alinha com bandeiras de esquerda, como a descriminalização do aborto e do uso de drogas. O período em que isto ocorre é bastante significativo, pois ascendia politicamente um grupo com discursos de fundo conservador e ao mesmo tempo liberal. Para esses jovens, momento ideal para que viesse à tona o “verdadeiro liberalismo”, aquele em que esses acreditavam e que em nada ou muito pouco se parecia com o que despontava. Então, a criação do coletivo Luis Gama tinha o propósito principal de dizer às pessoas que aquele projeto político que ascendia e que iria substituir a esquerda, não era liberal, pelo menos na percepção deles.

Na rede social facebook, o coletivo é apresentado como um “grupo de estudos campinense que tem como objetivo o debate das ideias da liberdade e leva em homenagem o nome do abolicionista Luis Gama”. Na percepção de Woodward (2014), aquilo que pode parecer apenas um argumento sobre o passado e a reafirmação de uma suposta “verdade” histórica, na realidade denota uma nova “posição-de-sujeito", que afirma um sentimento de distinção de sua identidade no presente e não no passado. Nesse sentido, a escolha de uma figura histórica do século 19 como ícone do grupo cumpre um papel duplamente estratégico. Por um lado, busca reescrever a história do liberalismo no Brasil, que em tantos momentos esteve atrelado ao autoritarismo e/ou ao conservadorismo, a partir de uma ideia de “liberdade” acima de qualquer suspeita, posto que ancorada nas lutas pelo fim da escravidão. Por outro lado, o fato de se tratar de um antepassado “liberal radical, abolicionista, autodidata, rábula e negro” se presta para a superação de uma visão plutocrática do liberalismo, associada a uma elite econômica branca. Nesse sentido, a principal atuação política do coletivo era intelectual, pois na prática se tratava de um grupo de estudos para discutir as ideias do liberalismo, em salas cedidas pela universidade, em horário oposto às aulas. Eles atuavam para descaracterizar o liberalismo de Paulo Guedes e Jair Bolsonaro (Salles, 2020), atuavam para mostrar que, na percepção deles, liberalismo foi o que Luis Gama fez, defendendo o povo escravizado e atuando para que a liberdade prevalecesse. É importante perceber que, na ausência de líderes liberais no seu presente, esses jovens viajaram no passado e encontraram no advogado Luis Gama um indicador daquilo que eles, enquanto jovens e liberais, acreditavam.

A universidade, certamente, foi o espaço onde os jovens da pesquisa puderam exercer uma autonomia, apreendendo novos conteúdos e incorporando ideias e convicções. Entretanto, essa aprendizagem não ocorreu no modelo de socialização clássico – vertical, de professores a estudantes – e sim através das relações sociais estabelecidas entre pares, num modelo de (auto)formação, próximo ao que Groppo (2016) também identificou. De fato, a universidade é um espaço clássico de socialização política e no caso específico deste grupo de jovens, ela adquire importância relevante, devido ao caráter de atuação do grupo, mais restrito e intelectualizado, portanto, divergente de outros movimentos políticos que têm atuação pública focada em uma agenda ou pelo menos uma pauta de reivindicações. Então, para o coletivo Luis Gama, de certo modo a universidade continuou sendo o principal veículo socializador, apesar das possibilidades de agência trazidas pela contemporaneidade, como a internet, por exemplo, que não era o principal meio de articulação do grupo. Todavia, as conversas, os encontros, aconteciam em salas cedidas ou nos corredores da universidade, de maneira horizontalizada e informal. Inclusive, em relação a outros grupos liberais, este permanece, para muitas pessoas, desconhecido, disso resulta a necessidade de se destacar a natureza circunscrita de suas atuações e de seus posicionamentos liberais. Logo, a universidade se confirma como um espaço favorável à (auto) formação política desses jovens, nela, cotidianamente, havia oportunidades de aprendizado e de troca de saberes políticos, cada vez que se encontravam, crescia a identificação com o liberalismo (político, econômico e social) e aumentava também a afinidade intelectual e política que havia entre eles. Todos os interlocutores são unânimes em atribuir à universidade a viabilidade de eles se tornarem liberais, e este conteúdo apreendido não foi repassado por professores, mas sim em situações onde o jovem é o agente, em horário livre. Ou seja, os próprios jovens eram os responsáveis por suas capacitações políticas e eles próprios decidiam qual linha seguir, qual coletivo ou grupo iriam se conectar, o que sugere a participação das afinidades, da atração e da empatia.

É por isso que propomos pensar a formação do coletivo Luis Gama pela via dos afetos, de modo a evidenciar o entrecruzamento entre relações de amizade e afinidades políticas. Muxel (2014) destaca o papel que os afetos e as afinidades irão exercer na socialização política dos indivíduos, apontando que, tanto na esfera pública como na privada, maneiras de se experimentar a democracia podem se renovar pelo dever que alguns indivíduos sentem de coexistir com o diferente e de, em alguns momentos, unirem-se a ele. Logo, a constatação da diferença e a autonomia do indivíduo são importantes para uma socialização política, em razão de que uma conformidade política ou um desacordo com os amigos e familiares é uma equação própria da vida moderna. O desafio é dar sentido a esse controle político que se dá dentro do indivíduo e que monitora tanto o desejo de semelhança e a demanda por diferença, como o sonho de harmonia e o respeito pelas alteridades (Muxel, 2014). Contudo, é importante destacar que o conhecimento que os jovens adquirem nesse espaço também está interconectado com outras formas de socialização e, podemos dizer, de recrutamento político, pelas mídias sociais, configurando um bom exemplo de “socialização contemporânea” (Setton, 2005), na qual convergem diferentes agências socializadoras, com papéis que podem se misturar ou se sobrepor, conforme apontamos acima. De maneira descritiva, Salles (2020) apresenta como essas ideias circularam e se concretizaram no cotidiano do coletivo, apresentando assim os protagonistas desta trama e seu lugar nesta rede liberal que se apresenta como contraposição a um liberalismo associado ao conservadorismo.

Neste artigo apresentamos, brevemente, alguns pontos desta narrativa, visando ressaltar a universidade como espaço de autonomia e legitimação da socialização política dos jovens, sendo uma passagem significativa na trajetória de suas vidas, caso em que se aplica aos jovens liberais de Campina Grande.

Fazendo amigos se faz política e vice-versa

Os jovens liberais de Campina Grande ingressaram na universidade a partir de 2015, coincidindo com o fortalecimento da operação lavajato perante a opinião pública e com crescentes ataques à presidente Dilma Rousseff e ao Partido dos Trabalhadores (PT). Além de ser um clima de “caça às bruxas”, era também um momento de ebulição política, com novos enunciados políticos e disputa de narrativas, que passaram a fazer parte do cotidiano desses jovens no momento em que adentraram na universidade. Logo, os jovens liberais são herdeiros deste momento, entretanto, o tipo de posicionamento político que apresentam é minoritário e acabou se tornando, para eles, motivo de se dedicar à exaltação da diferença, uma vez que não se viam na direita, mas eram constantemente associados a ela.

É importante destacar que todos os interlocutores desta pesquisa chegaram à universidade com algum tipo de conhecimento político. Contudo, dos nove entrevistados, apenas dois se declaravam “liberais” desde o começo, os demais sete interlocutores entram na vida universitária se declarando “de esquerda”. A chegada à universidade proporcionou meios de esses jovens se identificarem com uma vertente política, ora reafirmando sua anterior ideologia, ora migrando para o liberalismo. Em seus relatos, destacam a “liberdade” que a universidade tem, quando comparada às instituições de ensino escolar de onde vieram, onde os mínimos movimentos eram controlados: “Você não podia ir ao banheiro sem pedir ao professor. Aí a pessoa entra na universidade e é um mundo totalmente diferente” (Toni, 21 anos, estudante de direito na UEPB). Essa ausência de controle, tanto dos professores quanto da própria administração, permitiu o encontro quase diário dos jovens interlocutores, tempo em que sua amizade foi surgindo por entre as conversas informais sobre o cenário político nacional nos horários livres ou quando resolviam “matar” aula. O contexto político de efervescência fez com que a política estivesse no centro de muitos dos seus encontros em horário livre. Todavia a necessidade de se enquadrar em uma conduta ideológica nasce, em grande medida, atrelada à disponibilidade de tempo e à maior autonomia da vida universitária: “Se não fosse esse tempo livre eu não teria me identificado (com o liberalismo) dessa forma como foi” (Felipe, 20 anos, estudante de direito da UEPB).

Ainda na perspectiva de Felipe, na universidade há uma “distância” entre o aluno e a administração que acaba por ser benéfica na construção de relações sociais e na aquisição de novos conhecimentos: “Enquanto eu não estava tendo aula, eu estava aqui fora, conversando sobre política, sobre alguma coisa que provavelmente eu não teria acesso dentro da sala de aula” (Felipe, 20 anos, estudante de direito da UEPB). Além do tempo livre e da convivência, a ampliação do universo relacional na universidade apresenta aos jovens um mundo social mais heterogêneo que aquele atrelado à escola. Todos esses fatores, que compõem a experiência histórica desses jovens universitários, convergiram para a construção de uma amizade entre eles, mas, para além dela, de uma identificação política que foi se afiançando com o tempo, a partir de uma prática constante de confrontação de ideias entre eles. Esse ambiente informal de conversas sobre política no espaço da universidade é visto pelos interlocutores como “positivo”, pois consideram que, dessa maneira, os jovens podem ter contato com variadas posições políticas, crenças e visões de mundo. Nanda, disse em entrevista que a universidade seria “muito plural”: "[…] ao mesmo tempo que você tinha jovens afirmando que o impeachment era um golpe, você tinha os que eram a favor dele e também os que não queriam opinar. É muito plural” (Nanda, 20 anos, estudante de direito na UEPB). Essa mesma pluralidade política é percebida por Tiago, ao afirmar que a universidade pública “tem muitos lados” e que isso possibilita o debate e a troca de ideias. Ele ainda afirmou que é “intenso” o fato de os alunos questionarem os professores e a própria instituição. "É um ambiente político em que você tem uma certa liberdade pra formar a sua opinião, acho que poderia ser diferente se fosse uma universidade privada”, (Tiago, 21 anos, estudante de direito da UEPB). A percepção de que o espaço da universidade é público fortalece a ideia de que nele se pode falar abertamente sobre o que quiser, se pode questionar, defender um ponto de vista e até mesmo mudar de opinião. Quando estimulados a refletirem sobre o papel da universidade em suas trajetórias políticas, os jovens liberais argumentam que o ambiente “livre” permitiu que eles se identificassem com uma ideologia. Eles estendem esse entendimento para outros jovens estudantes que, assim como eles, sentiram a necessidade de construir uma opinião própria sobre política e, com isso, assumir uma postura, uma identidade política, não necessariamente liberal, uma vez que há na universidade jovens de esquerda, conservadores e etc. A construção de um ambiente afetivo e não ameaçador no espaço da universidade marca um antes e um depois na vida dos jovens pesquisados. Nesse caminho, há um processo de reconhecimento e também de identificação de uns com os outros, responsável por sedimentar a transformação política.

A importância do grupo, como espaço de trocas e reconhecimentos de uns pelos outros, mostra que as experiências políticas, as convicções e as crenças não estão livres da interferência das afetividades, em razão de que amigos, familiares e professores são capazes de introduzir saberes e, desse modo, causar tanto a aproximação quanto o afastamento de determinadas ideias políticas. Esses elementos são relevantes e fundamentais para compreender a socialização política e a identidade que os jovens liberais construíram, denotando que a identidade política não pode ser descolada dos elementos afetivos que ajudaram a compor essa identificação, bem como o momento histórico que ajudou a sedimentar esse vínculo entre eles. A figura central nessa rede de amizades e afinidades políticas foi Gabriel (22 anos, estudante de direito da UEPB), ele chega à universidade manifestando opiniões de caráter liberal contrárias a de seus amigos, que as consideravam “ideias radicais”. Felipe contou em entrevista que Toni e Gabriel costumavam debater durante os intervalos e nas aulas vagas. “Eu ficava no meio dos dois, mas na época eu também era de esquerda e achava Gabriel ingênuo”, (Felipe, 20 anos, estudante de direito da UEPB). Nanda afirmou em entrevista que chegou à universidade sem se considerar alguém de esquerda ou de direita. “Eu pensava que eu era isentona” (Nanda, 20 anos, estudante de direito na UEPB). Ela também disse que foi nos horários livres, ouvindo as conversas entre Toni e Gabriel, que ela começou a se interessar mais pelo assunto. “Conversando com Gabriel, eu fui vendo que era liberal e não sabia” (Nanda, 20 anos, estudante de direito na UEPB). Felipe e Nanda lembram que as discussões eram sempre “respeitosas”, o que fazia com que eles continuassem a debater sempre que houvesse oportunidade. “Acho que isso contribuiu, foi o principal fator pra que a gente continuasse a andar junto”, (Felipe, 20 anos, estudante de direito da UEPB). O debate era "intenso” na percepção deles, pois tratava sobre questões que naquele momento eram centrais para esses jovens. “(…) Eu acho que a gente ficava junto porque queria aprender sobre aquilo tudo que Gabriel falava, era uma novidade e até mesmo um tabu pra gente” (Toni, 21 anos, estudante de direito na UEPB).

Todavia, além da tolerância e do respeito que eles cultivavam, havia a defesa das liberdades individuais, que era comum entre todos eles. Liberação do consumo de drogas, descriminalização do aborto, livre imigração, eram pautas que, de certo modo, diminuíam as distâncias entre eles e Gabriel, e que pareciam encontrar um ambiente propício para serem expressas na universidade, pela sua associação à “liberdade”. Ou seja, o background progressista que os interlocutores de certo modo já traziam consigo fazia com que eles se identificassem com Gabriel e, de maneira gradativa, fossem cedendo às ideias liberais dele. “Eu virei liberal muito mais pelo lado social do que pelo lado econômico. O lado econômico foi uma decorrência do que eu entendo de valores de uma sociedade” (Felipe, 20 anos, estudante de direito da UEPB).

Quanto a Gabriel, sua aproximação com o liberalismo se deu, fundamentalmente, via mídias sociais, e especificamente a partir de sua inserção na rede liberal Studentsfor Liberty (SFL), onde começou como embaixador voluntário e chegou a ser coordenador local de marketing. É importante esclarecer que a rede SFL não ocupa um papel central na atuação dos jovens liberais de Campina Grande, porque nem todos estão conectados a ela; entretanto ela consegue criar a percepção nesses jovens de que não estão sozinhos em sua empreitada liberal “por inteiro”, já que, localmente, eles constituem um grupo minoritário. Foi constatado na pesquisa que a rede SFL obtém apoio financeiro e logístico da Atlas Network, uma instituição internacional com ramificações em vários países e que, aparentemente, tem o objetivo único de propagar o liberalismo por meio de suas bases espalhadas pelo mundo. A relação entre a Atlas e a SFL não passa por um exame crítico por parte dos jovens liberais, eles se conformam em creditar a Atlas uma participação como financiadora de atividades pontuais, como a aquisição de livros, a realização de intercâmbios entre jovens liberais, além de apoio a eventos produzidos por eles (Salles & Franch, 2019). Ainda na percepção dos jovens liberais, a Atlas teria como interesse central e único promover o liberalismo “de verdade”, desse modo, não há por parte deles um aprofundamento das razões da Atlas e de qual seria a contrapartida dela em termos práticos, no que esta rede global estaria se favorecendo ao promover a “liberdade” no Brasil, quais seriam as consequências dessas atividades e os benefícios para as juventudes que nelas se engajam (Salles & Franch, 2019).

Como dissemos, tanto Nanda, como Felipe, assim como seus colegas de curso, Tiago e Toni, se tornam liberais dentro da universidade, nas conversas e nas trocas de informações com Gabriel sobre política e economia em horário livre. É possível fazer uma leitura desse processo privilegiando o caráter estratégico das universidades para o SFL. Todavia a abordagem etnográfica convida a situar o processo de aproximação desse grupo de jovens ao liberalismo pela via dos afetos, num processo de (auto)socialização contemporâneo. De acordo com a narrativa dos jovens liberais ouvidos na pesquisa, as conversas foram aos poucos sedimentando os laços da amizade. Nisso, a diferença foi um elemento socializador, pois, havia, como aponta Muxel (2014), o sonho da harmonia e o respeito pelas alteridades. Muxel (2014) observa ainda que o debate político entre pessoas que pensam diferente é possível quando, na relação, existem os “ingredientes democráticos”, e a tolerância e o respeito possibilitam a convivência, fazendo com que a discordância política não rompa o laço afetivo. Essa observação pode parecer totalmente descontextualizada diante da chamada “polarização política”. No entanto, os “ingredientes democráticos” foram decisivos no fortalecimento do vínculo entre os jovens e na posterior criação do coletivo. Nessa perspectiva, Muxel (2014) evidencia o papel que os afetos e as afinidades irão exercer na socialização política dos indivíduos, apontando que maneiras de se experimentar a democracia podem se renovar pelo dever que alguns indivíduos sentem de coexistir com o diferente e de, em alguns momentos, unirem-se a ele. Algo parecido ocorreu no contato entre os interlocutores da pesquisa, que acabaram se unindo em torno do liberalismo a partir de pontos de divergência e convergência. Logo, a constatação da diferença e a autonomia do indivíduo são importantes para uma socialização política, em razão de que uma conformidade política ou um desacordo com os amigos e/ou familiares é uma equação própria da vida moderna.

Considerações finais

Neste trabalho, partimos do pressuposto de que a socialização política acontece em primeiro lugar nas relações pessoais, uma vez que é tão somente no espaço da convivência comum e no cotidiano que os indivíduos podem se expressar e agir politicamente, em razão de que a essência da politização está na vida dos agentes, onde as crenças e as escolhas são revisitadas e até mesmo negociadas (Muxel, 2014). As convicções desempenham um papel importante dentro das relações sociais em que há presença de sentimentos, como amizades (Muxel, 2014).

Muxel (2014) observou que a política se relaciona de maneira distinta nos círculos de amizade, ela acredita que, nestes casos, a diferença de opinião pode ser um elemento agregador, podendo, inclusive, levar à harmonia e a uma inevitável atração, por descobrirem a alteridade sem as implicações negativas que podem ser desencadeadas nos laços familiares. Toni e Gabriel, por exemplo, conversavam sobre política e, na percepção deles, de maneira “intensa”, devido às divergências iniciais que havia entre eles. Não obstante essas diferenças, ambos assumiram uma amizade e isso foi indispensável para o que veio depois. Na realidade a amizade é mais capaz de lidar com a discórdia, pois os amigos atuam na direção do laço afetivo, na construção de uma relação na qual eles sentem que podem ser quem eles são de fato, logo, as diferenças de opinião política se tornam o reconhecimento da diversidade e da autonomia do outro (Muxel, 2014). Por outro lado, as afinidades progressistas que ambos tinham abriram caminho para a construção de uma amizade sólida, o mesmo ocorreu com os demais interlocutores da pesquisa. É interessante perceber a importância que tem esse lugar de entendimento para os jovens interlocutores, o coletivo como espaço de troca e alteridade se mostra na pesquisa como um lugar não ameaçador, onde eles podiam se expressar, questionar uns aos outros e desse modo adquirir conhecimento político. Por se sentirem parte de uma minoria, visto que não se assemelhavam a outros grupos liberais, era no coletivo que a política ganhava sentido para todos e o grupo, de certa maneira, os protegia do contexto macro político. A importância do grupo, como espaço de trocas e reconhecimentos de uns pelos outros, mostra que as experiências políticas, as convicções e as crenças não estão livres da interferência das afetividades, em razão de que amigos são capazes de introduzir saberes. Esses elementos se mostraram relevantes e significativos para compreender a socialização política e a identidade que os jovens liberais construíram, denotando que a identidade política deles não pode ser descolada dos elementos afetivos que ajudaram a compor essa identificação. As trajetórias dos jovens pesquisados apontam que as relações pessoais influenciam nas convicções políticas e na maneira de viver as experiências políticas, como foi o caso desses jovens que se transformam em liberais depois da amizade com Gabriel.

No último contato para a pesquisa, em dezembro de 2018, Gabriel confidenciou em entrevista que o temor do grupo era ser “incorporado” pelo governo de Jair Bolsonaro, dito de outra forma, ser incorporado pelo movimento liberal conservador. O jovem também disse que, diferente de liberais “de cérebro”, que sabem o conteúdo dos livros e das ideias escritas por liberais “de verdade”, as pessoas que hoje se identificam com o liberalismo do tipo que eles defendem seriam “liberais de alma”: “Porque se identificaram com as ideias do liberalismo, elas se identificaram com a estética liberal sem nunca ter lido um livro liberal” (Gabriel, 22 anos, estudante de direito da UEPB). Essa associação que Gabriel fez do “liberal de alma” nos remete à discussão promovida por Maffesoli (2014) sobre a estética dos grupos contemporâneos, que ele chama de “tribos”, no sentido de que elas criam um sentimento compartilhado de valores, ideias, lugares, que dão sentido a essas experiências de sociabilidade. Para Maffesoli (2014), é preciso compreender a estética como uma habilidade de sentir e experimentar o mundo a partir de uma experiência compartilhada, logo, estética, na perspectiva trabalhada por este autor, tem a ver com a capacidade de sentir junto, sentir em comum com os outros. Essa estética liberal de que nos fala Gabriel guarda os sentimentos em relação à política e às ideias do grupo, que são compartilhados entre os membros e também com outros coletivos espalhados pelo país, que carregam os mesmos sentimentos progressistas e as mesmas ideias do que significa ser liberal “de verdade” ou “por inteiro” (Salles, 2020). Nesse sentido, o liberalismo “de verdade” funcionaria como uma forma de identificação entre os jovens liberais de Campina Grande, mas também como uma maneira de viverem juntos uma experiência de identidade política, que, em grande medida, cria um sentimento localizado que dá sentido às suas experiências, sentimento que foi traduzido por Gabriel como uma “estética”. Certamente existem outros tipos de estética política, conectando indivíduos de esquerda, direita, ultraliberais ou conservadores, pois cada um desses grupos carrega consigo valores, sentimentos e ideais políticos que têm impacto sobre as mentes e as almas de seus membros de maneira particular.

Por outro lado, parece se confirmar aqui o pressuposto trabalhado neste artigo, o de que a política, seus princípios e convicções, são experimentados e construídos nas relações pessoais desenvolvidas pelos indivíduos nas mais diversas esferas de suas vidas. As identidades políticas tomam forma e significado nas relações pessoais que os indivíduos desenvolvem (Muxel, 2014), então, quando Gabriel associa a sua maneira de sentir o liberalismo e de praticá-lo como um liberalismo de “alma”, ele chama atenção para uma estética entre ele e aqueles que se identificam dessa maneira, logo, ressalta o caráter emotivo da política, o sentimento que os une e que os marca em sua associação com uma ideologia. Em grande medida ele retira este entendimento de sua experiência junto aos seus amigos na universidade, que se transformaram em liberais devido ao convívio diário na faculdade e ao background progressista que todos carregavam consigo, adquiridos em processos de socialização política anteriores, em suas famílias ou colégios, no convívio com outros agentes, de onde retiraram elementos significativos para as suas convicções políticas (Salles, 2020). Por mais que a chegada à universidade tenha proporcionado um outro tipo de engajamento, mais intelectual e restrito, permaneceram os sentimentos projetados em relação à política, que se traduzem como um espaço para a alteridade, para o respeito às diferenças, ou ainda de proteção das liberdades individuais, como defenderam em suas narrativas os jovens, que naquele tempo significativo de suas vidas, registrado em pesquisa, se viam como liberais.

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Recebido: 15 de Fevereiro de 2021; Aceito: 10 de Junho de 2021

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