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Linhas Críticas

Print version ISSN 1516-4896On-line version ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.27  Brasília  2021  Epub Dec 20, 2021

https://doi.org/10.26512/lc27202139241 

Dossiê: Gestão educacional e trabalho pedagógico no contexto de pandemia da covid-19

Desenvolvimento da consciência crítica na formação inicial de professores durante a pandemia

Desarrollo de la conciencia crítica en la formación inicial del profesorado durante la pandemia

Development of critical consciousness in teacher initial education during the pandemic

Maria Helena Damião1 
http://orcid.org/0000-0002-3324-4074

Maria Augusta Nascimento2 
http://orcid.org/0000-0003-4887-1369

1Doutora em Ciências da Educação pela Universidade de Coimbra (2001). Professora associada da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra. Membro integrado do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX (CEIS20).

2Doutora em Ciências da Educação pela Universidade de Coimbra (2003). Professora auxiliar da Faculdade de psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra. Membro colaborador do Centro de Física da Universidade de Coimbra (CFisUC - Ensino e História das Ciências).


Resumo

Apresenta-se um módulo de formação inicial de professores cujo objetivo é desenvolver a consciência crítica como marca da profissionalidade docente. Para tanto, solicita-se aos estudantes uma reflexão sobre concepções vigentes de educação, num exercício que inclui três passos: explicitação, argumentação e comunicação. Devido à pandemia, o módulo sofreu adaptações para poder ser realizado a distância. Ainda que revelando benefícios, já antes identificados, foram notadas limitações que se prenderam, sobretudo, com a falta de dinâmicas de interação direta.

Palavras-chave Consciência crítica; Concepções de educação; Formação inicial docente; Pandemia covid-19

Resumen

Se presenta un módulo de formación inicial del profesorado cuyo objetivo es desarrollar la conciencia crítica como marca de profesionalidad docente. Para ello, se pide a los alumnos una reflexión sobre las concepciones actuales de la educación, en un ejercicio que incluye tres pasos: explicación, argumentación y comunicación. A causa de la pandemia del covid-19, el módulo sufrió adaptaciones para ser realizado a distancia. Con todo, aunque se revelan beneficios, ya identificados anteriormente, se observaron limitaciones, principalmente relacionadas con la falta de dinámicas generadas en la interacción directa.

Palabras clave Conciencia crítica; Concepciones de la educación; Formación inicial del profesorado; Pandemia covid-19

Abstract

We present an initial teacher training module, aiming to develop a critical consciousness as a basis of teacher professionalism. Students are asked to reflect upon the ruling conceptions of education, in an exercise including three steps: explicitation, argumentation and comunication. In a pandemic context, the module has been adapted to be executed remotely. Even though benefits, that had already been identified, limitations were detected, mostly related with the loss of direct interaction dynamics.

Keywords Critical consciousness; Conceptions of education; Pre-service teacher training; Covid-19 pandemic

Introdução

[…] a superação do nível de consciência natural exige um desdobramento desta, em termos de que está consciente da própria consciência e do conteúdo da mesma. (Gaete & Castro, 2012, p. 310)

A crise provocada pela COVID-19 destacou que tanto a formação inicial como a formação contínua de professores precisam de ser reformadas para um melhor treino em novos métodos de ensino. (United Nations, 2020, p. 15)

Um dos maiores reptos que se coloca, em permanência, à formação de professores é a ampliação da capacidade que se pode designar por ´consciência crítica´. Recorrendo a Popper (1992) diremos que se trata de uma estrutura argumentativa de pensamento que permite sustentar a discussão de ideias e práticas, conduzindo a posições escrutinadas. Essas posições serão, assim, suficientemente fiáveis para orientarem a ação autónoma e responsável, que é marca da profissionalidade docente (Estrela, 2015). É preciso destacar que tal capacidade terá de ser ancorada nas finalidades que se imputam à educação, decorrentes do seu ideal, que é o aperfeiçoamento humano (Boavida, 2009). Acontece que essas finalidades tendem a ser subvertidas em virtude da progressiva infiltração nos sistemas educativos da vontade neoliberal, que empurra o ensino para um registo tecnicista e utilitarista (Portilho & Brojato, 2021), com as correspondentes implicações na aprendizagem.

Face a esta realidade, as instituições que têm a incumbência de formar professores, como é o caso das universidades, além de estarem obrigadas a contestar um registo de semelhante natureza, pelo facto de ele desvirtuar a docência, devem robustecer a preparação para o seu exercício, o qual, na dignidade que lhe assiste, é tão estimulante quão exigente sob os pontos de vista teórico e prático. Mesmo com os obstáculos e contradições que as universidades revelam neste particular (Estrela, 2015), o conhecimento científico e pedagógico de que dispõem coloca-as num lugar privilegiado para tanto.

Com base nas razões acima expostas, concebemos o módulo de formação inicial de professores que pretende promover a referida capacidade e que aqui apresentamos. Para tanto, escolhemos como campo de trabalho a nomeada ´narrativa da educação do futuro´ produzida num plano supranacional e de abrangência global, que toca a subversão a que acima aludimos. Na verdade, as conceções que a constituem, ainda que suscitem dificuldades de interpretação, quando analisadas de perto, conduzem-nos a essa conjetura (Palma & Damião, 2018).

Em termos operativos, o módulo incide precisamente nessa análise: num exercício que inclui três passos – explicitação, argumentação e comunicação – os estudantes, futuros professores, são convidados a esclarecer e justificar a sua posição em relação a tais conceções e, de modo complementar, a ponderar implicações que delas podem decorrer.

Devido aos períodos de confinamento letivo exigidos pela pandemia covid-19, a realização do módulo passou do modo presencial para o modo a distância, com as adaptações que se viram necessárias. Apesar de alguns dos benefícios da metodologia se terem mantido, verificaram-se limitações, derivadas sobretudo da dificuldade de se potenciarem as dinâmicas de interação direta que lhe estão agregadas.

Contexto político e institucional

Para melhor se entender a atenção que prestamos ao desenvolvimento da consciência crítica, começamos por apresentar, em traços muito gerais, a política da formação inicial de professores vigente em Portugal.

Neste país, a Lei de Bases do Sistema Educativo (Portugal, 1986) determinou que a qualificação profissional necessária para iniciar a carreira docente teria de ser de nível superior e ajustada aos Perfis Gerais de Competência para a Docência (Portugal, 2001) pretendidos no sistema de ensino, os quais foram reafirmados pelo Estatuto da Carreira Docente (Portugal, 2012) tornando-se sustentáculo do Regime Jurídico de Habilitação para a Docência (Portugal, 2014). Tais documentos constituíram um referencial de formação que se quis compatibilizado com recomendações de entidades de âmbito europeu e mais geral, as quais incluem elementos clássicos como a articulação entre as componentes científica e pedagógico-didática e as dimensões teórica e prática, guiada por princípios de flexibilidade, participação e inovação, capazes de consolidar, nos futuros professores, uma atitude reflexiva e atuante, por referência à realidade educativa (Seixas et al., 2012).

É nesse quadro que as instituições de ensino superior têm organizado os cursos que disponiblizam, atendendo, em paralelo, às suas atribuições em termos de formação. Às universidades é confiada a formação de professores do 3.º Ciclo do Ensino Básico e do Ensino Secundário[1], planificada, como se prevê em letra de lei, do seguinte modo: em cursos de Licenciatura faz-se a preparação disciplinar de base; em cursos de Mestrado faz-se a preparação pedagógica e didática, seguida da prática de ensino supervisionada (Portugal, 2014). Trata-se de um modelo de tipo compartimentado bietápico (Formosinho Simões, 1987) que admite variações, consoante as instituições e os cursos que lhes são afetos[2].

A Universidade de Coimbra – contexto em que nos situamos – não é exceção: o modelo que adotou é esse mesmo, pelo que nos Mestrados em Ensino de Humanidades e de Ciências – nos quais colaboramos de modo mais próximo, como formadoras – prevalece, no primeiro ano, a teoria, lecionada por professores de diversas faculdades e departamentos, e, no segundo ano, a prática, orientada por professores de escolas cooperantes, mantendo-se, contudo, uma ligação à universidade.

Os cursos de mestrado em ensino funcionam por área disciplinar, estando a componente pedagógica – ou, como designada na lei, “área educacional geral” –, atribuída à Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação, enquanto as componentes didáticas e de prática de ensino supervisionada são da responsabilidade das duas Faculdades que asseguram as licenciaturas de base, no caso, a Faculdade de Letras e a Faculdade de Ciências e Tecnologia. Assim, a primeira instituição – à qual estamos vinculadas –, ao reunir, no mesmo espaço e tempo, estudantes das diversas áreas disciplinares, encontra-se numa posição favorecida para potenciar a mencionada atitude reflexiva e atuante, segundo uma abordagem transversal, em detrimento de um tecnicismo orientado para a aplicação, que não desapareceu do horizonte da formação.

Do tecnicismo à consciência crítica do professor

Entre as recomendações de âmbito supranacional sobre o ensino e a formação de professores, a que fizemos alusão no primeiro tópico, destacamos as que têm sido apresentadas pela Organisationfor Economic Co-operation and Development (OECD) a partir do slogan “o professor faz a diferença” (e.g. OECD, 2005). Nelas se vê afirmada a necessidade de se reconcetualizar a formação docente em função do desenvolvimento económico e, mais recentemente, do bem-estar individual e coletivo, que se alia à sustentabilidade (e.g. OECD, 2018). A United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization (UNESCO) vem adotando, no essencial, a mesma linha de recomendações (e.g. UNESCO, 2016). As duas entidades sublinham que o ensino e a formação são a peça-chave para a co-construção do “futuro que queremos”.

A exploração das ditas recomendações evidencia, na sua multiplicidade e diversidade, duas tendências em paralelo. Por um lado, é atribuída relevância e centralidade ao professor, não apenas como sustentáculo da formação, mas também como co-construtor do “futuro que queremos”; por outro lado, o mesmo é descrito como um agente, entre vários, capazes de auxiliar a “navegação” dos alunos no seu percurso de aprendizagem com vista à aquisição de “competências para a ação” (e.g. OECD, 2018)[3].

A crise mundial provocada pela pandemia covid-19 acentuou a dualidade. Proporcionando a “grande oportunidade” para transformar a escolaridade (e.g. OECD, 2020a), nomeadamente por via do redesenho curricular (e.g. OECD, 2020b), permitiu criar um novo “ecossistema” no qual um corpo docente “reduzido, singular e bem treinado, funcionará a par de mentores, tutores, coaches, manuais/guiões, plataformas digitais, softwares e robôs” (OECD, 2020c, p. 43).

O que se afigura estar, mais uma vez, em causa é a alteração da “especificidade do exercício da docência” (Estrela, 1999, p. 14), para a tornar compatível com a modificação, mais ampla, dos sistemas de ensino públicos, agora, num alinhamento pelas regras da atividade económica de matriz neoliberal (Ball, 2014). O mesmo acontece com a formação de professores: declarando-se a relevância do professor, sobretudo no respeitante ao suporte emocional e instrucional dos alunos, elogiando-se a inovação que deve caraterizar a sua ação (e.g. OECD, 2021), coloca-se o enfoque no treino de que deve beneficiar para executar tarefas precisas e que se prevê constituirem o cerne da docência[4].

Dito de outro modo, a formação está pensada para que os professores "se adaptem às lógicas institucionais e às exigências de uma situação educativa capturada pelas leis do mercado” (Gaete, 2015, p. 1). Trata-se de lógicas tecnicistas e instrumentalistas, que pugnam pela aquisição de competências docentes eficazes, definidas a partir de um conceito uniformizado de boa prática. Usando as palavras de Young, se as seguirmos, os candidatos à docência “são formados quase como tecnólogos da educação, são preparados para oferecer conjuntos de instruções” (Young, 2014, como citado em Galian & Louzano, 2014, p. 1.116), esperando-se que se tornem aplicadores acríticos, em vez de sujeitos conscientes da tarefa educativa (Gaete, 2015).

Ora, é função das instituições de formação e dos seus formadores contribuirem para “desnaturalizar” essas lógicas, desafiando os formandos “a analisar o quotidiano a partir de uma nova perspetiva” e fazer “uma releitura crítica da realidade”, suportada no conhecimento e no diálogo (Gaete & Castro, 2012, p. 317), convidando-os, enfim, a “gerar novas possibilidades de pensamento e ação”, num cenário de reflexão capaz de conduzir a uma “teorização individual”, desenvolvida a partir da razão última do seu trabalho: “porquê e para quê ensino?” (Gaete, 2015, pp. 11-13).

Falamos de interpelações que afastarão os futuros professores de uma atitude conformista de aceitação tácita de recomendações e determinações, muitas delas provenientes de organizações com influência política, que se propõem, através da educação, mudar a sociedade e o mundo, em função da forma como os querem. Em alternativa, aproximá-los-ão de uma atitude reflexiva, que inclui a ponderação de como, através da educação, o mundo poderá ser (Gaete & Castro, 2012) uma vez pautado por princípios estimáveis.

O comprometimento com esta atitude foi, em finais dos anos cinquenta do passado século, magistralmente destacado por Arendt (2006) como elemento da nossa tradição humanista, estando fora de causa abdicar dele. Não se nega, pois, a importância de se repensar a formação de professores, mas para a alinhar por essa tradição, não para a desviar dela.

Desenvolver a “consciência crítica” do professor

No trabalho de formação que assumimos, no enquadramento académico que mencionámos ao início, temos em vista a ampliação da “consciência crítica”. Nesse sentido, partimos da referida narrativa da educação do futuro, elaborada no plano supranacional com a contribuição, diz-se, dos mais diversos agentes sociais. Afigurando-se linear, plausível e, portanto, consensual, o seu estudo conduz, no entanto, a ambiguidades preocupantes (Palma & Damião, 2018; Damião, 2019).

Percebendo que os estudantes, futuros professores, tendem a fazer dessa narrativa uma leitura condescendente e superficial, retendo a “visão tecnificada e coisificada” (Gaete & Castro, 2012, p. 309) que a mesma veicula, temos procurado que cheguem a uma outra, tão exigente e aprofundada quanto possível, como forma de orientar o seu pensamento e a ação docente (Yinger, 1986).

Essa outra leitura, que envolve discernimento e esforço, bem como possíveis desalinhamentos de certezas vigentes, pauta-se por três requisitos: não dispensa conhecimento especializado, pelo contrário, sustenta- se nele; não se enforma em opiniões espontâneas, requer averiguação; não pode ser dada como fechada, enquadrando-se no registo crítico. Voltando a Popper (1992) para nos explicarmos melhor: assenta no critério de refutabilidade, mantém independência face a qualquer poder, e não é equiparável à apreciação pessoal ou ao consenso grupal.

O percurso requerido – por regra, demorado – afastará dogmas enraizados em favor de posições que podem ser confirmadas ou infirmadas (D'Allonnes, 2020). Por isso precisa de manter um lugar privilegiado no ensino superior (Dias Sobrinho, 2015; 2019), não sendo dispensável na formação de professores, onde é preciso, como dissemos, evitar a “mera conformidade técnica” (Portilho & Brojato, 2021, p. 16).

Reconhecemos, porém, que este propósito encontra obstáculos no “cenário de profundas transformações sociais que [influenciam] diretamente o modo como as instituições se definem e se comportam diante de exigências diversas” (Rolim de Lima Severo et al., 2020, p. 4). Por isso mesmo, no contexto universitário em que nos situamos, criámos um módulo intitulado Desenvolvimento da consciência crítica, que integrámos num programa mais vasto de investigação-intervenção: Programa de Simulação Pedagógica em Educação e Ensino [5].

O módulo em causa é desenvolvido no primeiro ano dos cursos de Mestrado em Ensino, a partir da ´área educacional geral´. Ao reunir estudantes de áreas disciplinares distintas, prepara a discussão que se espera que aconteça em contexto escolar, em torno de mudanças na educação que tocam todo o professor. O sentido, operacionalização e implicações dessas mudanças precisam, na verdade, de ser escrutinadas por aqueles que as irão implementar, sempre por referência ao conhecimento disponível e às circunstâncias a que se destinam.

Nesta linha, o exercício a realizar incide nas concepções de educação que compõem a narrativa em causa, as quais têm sido integradas na redação de documentos oficiais e oficiosos portugueses[6] e difundidas na sociedade, pelo que não serão estranhas aos nossos estudantes, que delas vão formando juízos ingénuos. Pretende-se, agora, que passem para um registo profissional.

Prevendo-se uma organização pedagógica que mobiliza trabalho em grupo, trabalho individual e apoio tutorial, foram estruturados três passos – explicitação, argumentação e comunicação –, que passamos a expor nos seus traços mais gerais.

A explicitação, concretizada em grande grupo, consiste na exploração, através de leitura e questionamento direto, de um breve texto de caráter normativo-legal que apresenta a mudança curricular em curso. Usando técnicas básicas de análise de conteúdo, cada estudante identifica cinco concepções de educação, selecionando uma. Segue-se o mapeamento da recolha coletiva obtendo-se um sentido amplificado da narrativa. Retomando a conceção por si escolhida, cada estudante, explica, por escrito, a interpretação que dela faz, a posição que a mesma lhe suscita e como a justifica.

A argumentação, concretizada de modo individual com apoio tutorial, consiste no retorno, por parte de cada estudante, à conceção escolhida, interrogando-a sob diversos pontos de vista, mas, agora, apoiando-se em bibliografia de relevo. Em resultado, deve decidir se mantém ou modifica a interpretação, a posição e a justificação que inicialmente explicitou. Deve, ainda, considerar eventuais implicações de ordem prática que dela podem advir. São vários os ensaios que esta fase requer, para construção e reconstrução de argumentos até chegar a um raciocínio seguro, coerente e compreensível, o qual deve ser registado em texto.

A comunicação, concretizada de modo individual em pequenos grupos, consiste na apresentação, sob a forma escrita e oral, de diversos tipos de raciocínios numa simulada reunião de docentes com intentos de co-formação. Para preparar a sua apresentação, cada estudante usa o texto antes produzido como base do discurso. Exigindo-se aqui cuidado na articulação da informação para que a explicitação seja clara, recorre-se a uma estratégia próxima do microensino (Nascimento, 1999) que inclui ensaio e aperfeiçoamento de cada prestação até se conseguir a forma adequada ao pretendido. As várias apresentações apelam a uma postura profissional, que aqui se antecipa, sendo que, ao desencadearem contribuições do grupo, podem levar, ainda, a alterações no texto, que dará conta do raciocínio alcançado.

Devido à pandemia, a mudança súbita da formação para o regime online obrigou a introduzir adaptações no módulo para poder ser realizado a distância, o que aconteceu em dois semestres dos anos letivos de 2019/2020 e de 2020/2021. Essas adaptações incluiram, essencialmente: a construção de um roteiro para que os estudantes pudessem desenvolver o módulo em autogestão; a redução do número e da duração dos momentos tutoriais (que ficaram destinados, sobretudo, a fazer um ponto da situação e a proporcionar orientações para o prosseguimento) e a conferir carácter optativo aos ensaios de microensino.

Pesquisa e resultados

O exercício pedagógico acima descrito implica a recolha e tratamento de dados em contínuo, desde logo como forma de monitorizar e orientar o trabalho individual e coletivo. Dois tipos de instrumentos apoiam este propósito: para registar as prestações escritas e orais dos estudantes, privilegiam-se, nas três fases, grelhas e formas textuais com diversos graus de estruturação; para registar o processo, as formadoras usam o ´diário de bordo´.

Em termos globais, o trabalho – dadas as exigências de atenção e interrogação, de exploração e aprofundamento de informação, de clarificação e apresentação –, é de grande complexidade, pelo que os dados recolhidos constituem um suporte crucial no prosseguimento das etapas inscritas em cada fase, e de uma fase para a outra. Também têm sido fundamentais no aperfeiçoamento do próprio exercício, nomeadamente no que respeita à otimização do tempo de formação por referência ao número alargado de estudantes.

Como se percebe, os dados reunidos nos momentos previstos para tanto, apoiam, antes de mais, uma avaliação do processo com vista à sua regulação no sentido da finalidade estabelecida. Em termos de resultados – considerando os dados que são obtidos no início e no final do processo – vê-se, nas prestações da maioria dos estudantes, a modificação de perspetiva da primeira para a terceira fase, o que se traduz na ampliação da “consciência crítica”, ainda que esta assuma expressões diferenciadas.

Não podemos, no entanto, desvincular esta evolução positiva do objeto escolhido: conceções de educação. Nada sabemos sobre o seu potencial de transferência para outro objeto que possa ser ponderado nem para a prática docente, onde se jogam variáveis distintas das que ocorrem no contexto académico. Esse constitui, pois, um duplo desafio formativo que deverá ser tido em conta no futuro, pois o sentido último do exercício é apoiar a organização de um pensamento argumentativo que permita ao profissional abordar a ampla realidade de ensino.

Importa deixar aqui menção de dificuldades que temos visto reiteradas na laboração dos estudantes: isolar conceções de educação nos textos que firmam a narrativa; encontrar pontos críticos nessas conceções; alinhar o seu debate pela forma solicitada; rever a opinião pessoal face a informação patente na bibliografia; redigir textos de forma compreensível. Estas dificuldades podem ter diversas interpretações: sofisticação retórica da própria narrativa e sua naturalização, o que tende a gerar concordância; prevalência da cultura pós-moderna, que faz prevalecer opiniões pessoais face a posições com valor científico ou filosófico; falta de treino na composição de textos, que se verifica mesmo na universidade.

No regime online as dificuldades que antes registámos agravaram-se e outras surgiram. Entre estas contamse as seguintes: não concretização de algumas tarefas, tendo o microensino sido a mais abandonada; diminuição da qualidade das tarefas realizadas; desistência do módulo por parte de alguns estudantes. Na nossa interpretação, as causas situam-se, sobretudo, na redução do acompanhamento tutorial, que ficou muito circunscrito ao ponto da situação e a proporcionar orientações para prosseguir; na redução dos encontros em pequenos grupos, bem como da partilha e exploração de ideias; e na diminuição do feedback e incentivo atempado.

Entendemos, em suma, que o envolvimento na dinâmica do pensar sobre […] e do pensar com […], gerado em presença e na interação direta, é substancialmente diluído no regime a distância, afetando, de modo muito particular, um exercício que, em grande medida, dele depende.

Síntese

O reconhecimento da “faculdade de nos afastarmos através do pensamento do que nos rodeia” (D'Allonnes, 2020, p. 69) é particularmente relevante na formação de professores, sobretudo na formação inicial, como ponto de partida para constituição de uma atitude reflexiva robusta. Tendo esta formação lugar na universidade, instituição “ligada à busca da verdade e com apreço pela sabedoria e pelo exercício da racionalidade” (Palma, 2019, p. 8), é justificável e desejável que aí se desnaturalize o que se encontra naturalizado e, portanto, à margem da crítica.

Ora, em termos de educação escolar, o que nos rodeia, e que se encontra naturalizado, tem sido construído a partir de uma sofisticada narrativa com origem em instâncias supranacionais, cujo propósito é reorientar o seu rumo. Alegando necessidade e urgência de mudança, apresenta-se num articulado concetual convincente e atraente, que procura impôr-se pela sua evidência tácita, escapando ao questionamento.

Esta é a antítese do que deve ser a preparação para a docência, pautada, em primeiro plano, pelo inconformismo, pela fundamentação, pelo recurso à racionalidade e à razoabilidade. O seu desígnio será, tendo em conta o que referimos, levar os futuros professores a “desenvolver capacidades que lhes permitam perceber falácias ocultas em posturas objetivas” (Palma, 2019, p. 13), interiorizando uma prática argumentativa de pensamento, que sustenta a sua discussão, chegando a posições escrutinadas, suficientemente fiáveis para orientarem a ação autónoma e responsável.

Para desenvolver a “consciência crítica” em contexto de formação inicial, criámos e temos realizado um módulo cujo foco é a exploração de concepções de educação que constam na dita narrativa. Atendendo, quer à multiplicidade e dificuldade de as interrogar, quer ao esforço cognitivo que a sua “consciência intensificada” envolve, a exploração em causa tem de ser direcionada e acompanhada (Brady, 2020, p. 69) de modo próximo, até os formandos conseguirem um grau de autonomia que lhes permita avançar pelos seus próprios meios.

É precisamente essa proximidade, entre formadores e formandos e entre formandos, que o estar online não pode assegurar. O estar em presença física, no mesmo tempo e espaço, faculta um suporte relacional que se percebe crucial para a elaboração intelectual, o que, no caso do módulo em causa, se constitui como nuclear, a par da orientação tutorial, no sentido da autonomização.

Ainda assim, ter-se-á, nestes condicionamentos, ampliado o espetro da abordagem reflexiva dos estudantes que terminaram o módulo, robustecendo, na medida do possível, a profissionalidade docente em fase de pré-profissão (Nascimento, 2005), com ancoragem em finalidades reconhecidamente educativas.

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[1]Estes dois níveis traduzem-se em seis anos de escolaridade: o 3.º Ciclo do Ensino Básico inclui o 7.º, 8.º e 9.º anos, abrangendo alunos entre os 12 e os 15 anos de idade; o Ensino Secundário inclui o 10.º, 11.º e 12.º anos, abrangendo alunos entre os 16 e os 18 anos de idade.

[2]Devemos explicar que não julgamos, à partida, o modelo compartimentado de menor valia em comparação com outros a que tem sido dado mais crédito, como é o caso do modelo integrado. Entendemos que os modos de implementação dos modelos de formação de professores devem ser considerados na sua apreciação.

[3]Num artigo de grande interesse, Silva & Fernandes (2019) explicam o modelo em que esta declaração ganha sentido. Trata-se do Modelo Bússola de Aprendizagem apresentado pela OECD em 2018 (OECD, 2018).

[4]A iniciativa Global Teacher InSights pelas orientações e ferramentas que avança para a observação e aperfeiçoamento do desempenho docente, é disso um forte exemplo (e.g. OECD, 2021).

[5]O acesso online deste programa, em curso na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra, é o seguinte: https://sites.google.com/view/progsimulacaopedagogica/página-inicial

[6]Entendemos aqui por ´concepção´ uma ideia forte sobre educação, capaz de guiar o pensamento e a ação, no caso, dos professores. Entre os muitos exemplos que constam na mencionada narrativa, damos os seguintes: “O aluno é autónomo”; “Mais importante do que memorizar é compreender”; “Os alunos do século XXI são diferentes dos do passado século”.

Recebido: 11 de Agosto de 2021; Aceito: 13 de Dezembro de 2021

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As autoras contribuíram igualmente na elaboração do manuscrito.

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