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Linhas Críticas

Print version ISSN 1516-4896On-line version ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.28  Brasília Jan./Dec 2022  Epub Feb 23, 2022

https://doi.org/10.26512/lc28202240200 

Artigos

Quando a queixa é Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade

Cuando la queja es Trastorno por Déficit de Atención e Hiperactividad

When the complaint is Attention Deficit Hyperactivity Disorder

Maria Lidia Sica Szymanski1 
http://orcid.org/0000-0003-1641-8527

Andrise Teixeira2 
http://orcid.org/0000-0001-6135-453X

1Pós-Doutora em Psicologia, Desenvolvimento Humano e Educação pela Universidade Estadual de Campinas (2000). Docente do Programa Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual do Oeste do Paraná.

2Mestra em Educação pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE) (2021). Docente da Secretaria do Estado da Educação do Paraná e da Secretaria Municipal de Educação de Cascavel, PR.


Resumo

O Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) emerge como justificativa para problemas na escolarização, sendo muitas vezes resultado de uma avaliação rápida e superficial. Diante disso, neste estudo, investigou-se a variação no número de laudos de TDAH, entre 2015 e 2020, em escolas públicas, constatando-se um aumento de 594%. Questiona-se a concepção biologizante do TDAH, cuja consequência é a medicalização. Propõe-se o desenvolvimento da atenção e do controle voluntário do comportamento no conjunto das funções psicológicas. Aponta-se a importância de um planejamento fundamentado na concepção histórico-cultural e a premência de investimento público na qualificação docente.

Palavras-chave Processos de ensino e de aprendizagem; Medicalização; Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade; Educação Especial

Resumen

El Trastorno por Déficit de Atención con Hiperactividad (TDAH) surge como justificación de los problemas en la escolarización, siendo muchas veces el resultado de una evaluación rápida y superficial. Se investigó la variación en el número de reportes de TDAH, entre 2015 y 2020, en escuelas públicas, observándose un aumento del 594%. Se cuestiona la concepción biológica del TDAH, cuya consecuencia es la medicalización. Se propone el desarrollo de la atención y el control voluntario de la conducta en el conjunto de funciones psicológicas. Se destaca la importancia de la planificación basada en la teoría histórico-cultural, así como la urgencia de la inversión pública en la formación docente.

Palabras clave Procesos de enseñanza y aprendizaje; Medicalización; Trastorno por Déficit de Atención e Hiperactividad; Educación especial

Abstract

The Attention Deficit Hyperactivity Disorder (ADHD) emerges as a justification for problems in schooling, often resulting from a quick and superficial evaluation. The variation in the number of ADHD reports between 2015 and 2020 in public schools was investigated, showing an increase of 594%. The biologizing conception of ADHD is questioned, the consequence of which is medicalization. It proposes the development of attention and voluntary control of behavior in the set of psychological functions. The importance of planning based on the cultural-historical conception is pointed out, as well as the urgency of public investment in teacher qualification.

Keywords Teaching and learning processes; Medicalization; Attention Deficit Hyperactivity Disorder; Special Education

Introdução

As constantes queixas dos professores com relação à atenção e à indisciplina no Ensino Fundamental e no Ensino Médio revelam que é comum os docentes encaminharem alunos ao serviço médico, descrevendo comportamentos tais como agitação em demasia, incapacidade de manter a atenção e dificuldade de autorregulação. Desses encaminhamentos resultam, na maioria dos casos, os laudos de Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH).

Tal diagnóstico, contudo, tem sido realizado e descrito sem levar em conta as barreiras culturais e sociais que permeiam a regulação da atenção, além de desconsiderar o desenvolvimento do indivíduo e de suas funções psicológicas superiores (FPS), em sua totalidade (Caliman, 2008). Aquilo que, até a última década do século XX, era, salvo raras exceções, considerado como uma desordem passageira e infantil, agora é classificado como Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), transtorno psiquiátrico que pode constituir-se em um rótulo por toda a vida (Caliman & Domitrovic, 2013).

Há controvérsias na análise dessa questão, as quais se fundamentam na concepção de homem, de mundo e de sociedade. Destaca-se, portanto, a importância de reflexões e de pesquisas sobre esse tema, o qual, além de suas consequências pedagógicas, tem impactos sociais e econômicos.

A educação da pessoa com deficiência no Brasil foi marcada, até o século XX, pela negação do acesso a qualquer forma de ensino escolar sistematizado e, posteriormente, pelo atendimento assistencialista em serviços segregados, organizados de forma substitutiva ao ensino comum (Capellini & Mendes, 2007). A superação desse processo de escolarização excludente, que feria os preceitos constitucionais, ocorreu a partir da luta contra concepções hegemônicas tradicionais, pautadas na compreensão do desenvolvimento psíquico com ênfase no aspecto biológico.

A partir da década de noventa do século passado, acompanhando o movimento internacional da inclusão, que “[…] tem como preceitos o direito de todos frequentarem a escola regular e a valorização da diversidade” (Alves & Guareschi, 2012, p. 33), começou a tomar corpo no Brasil a preocupação com práticas inclusivas (Mendes et al., 2011). Paralelamente a isso, a interpretação neurológica do transtorno tornou-se amplamente aceita e o mundo presenciou uma explosão publicitária sobre o TDAH e sua medicalização (Eidt & Tuleski, 2010), bem como a exacerbação desse tipo de queixa docente.

Na contramão dessa perspectiva, estudos fundamentados na Teoria Histórico-Cultural buscaram questionar a perspectiva neurobiológica, ancorados na compreensão de que as leis sócio-históricas são mais determinantes no desenvolvimento humano do que as leis biológicas, dada a plasticidade do sistema neurológico e a forma como ocorre o processo de aprendizagem, o qual determina esse desenvolvimento (Leontiev, 1978).

No limiar da terceira década do século XXI, cerca de quatro décadas se passaram desde a explosão publicitária do TDAH. Muitas pesquisas foram desenvolvidas, ora defendendo a perspectiva neurobiológica, ora criticando-a e propondo uma compreensão prioritariamente pedagógica da questão [3] .

Do ponto de vista legal, as Diretrizes Operacionais para o Atendimento Educacional Especializado (AEE) em âmbito nacional foram regulamentadas pela Resolução n.º 04/2009 (Brasil, 2009, p. 1), a qual lhe atribui como finalidade “[…] complementar ou suplementar a formação do aluno por meio da disponibilização de serviços, recursos de acessibilidade e estratégias que eliminem as barreiras para sua plena participação na sociedade e desenvolvimento de sua aprendizagem”.

Ressalta-se que o Art. 4º da Resolução n.º 04/2009 (Brasil, 2009) exclui os alunos diagnosticados com transtornos funcionais específicos, dentre eles o TDAH e outros, anteriormente considerados pela Resolução n.º 02/2001 (Brasil, 2001) como sujeitos de direito ao AEE. Contudo, no Estado do Paraná, a Deliberação n.º 02/2016 (Paraná, 2016) e a Instrução n.º 09/2018 (Paraná, 2018a) fixaram normas ao atendimento a estudantes público da Educação Especial, incluindo os alunos diagnosticados com TDAH, em Salas de Recursos Multifuncionais (SRM).

A “[…] literatura aponta que cabe ao professor a função de ser um auxiliador para o diagnóstico de possíveis transtornos que interferem na aprendizagem, sendo um deles o TDAH” (Santos, 2019, p. 9). Como hipótese, supõe-se que, se o professor encaminha os alunos para avaliação com suspeita de TDAH, é porque ele espera uma ajuda clínica para lidar com essa situação, na maioria das vezes medicamentosa, haja vista a explosão na venda de medicamentos tendo como componente básico o metilfenidato. O levantamento realizado em drogarias no Brasil, no período de 2007 a 2012, “[…] comprovou que o crescimento foi de 50% nas vendas em quatro anos, entre setembro de 2007 e outubro de 2008 foram vendidas 1.238.064 caixas, e entre setembro de 2011 e outubro de 2012 1.853.930 caixas” (Andrade et al., 2018, p. 109).

Por outro lado, se a ênfase é colocada no aspecto clínico, significa que não se está atribuindo a necessária importância ao aspecto pedagógico no trato com essa questão. Dessa forma, justifica-se esta pesquisa, que busca refletir sobre as alternativas atuais para a compreensão desse dito transtorno. Dois são os objetivos centrais deste estudo: (i) quantificar a variação no número de matrículas de alunos diagnosticados com TDAH, na rede pública estadual de ensino, no período de 2015 a 2020, por meio da análise dos dados Sistema de Registro Escolar (SERE-PR); (ii) investigar em qual material o professor da Educação Especial se apoia para planejar e organizar seu trabalho com o estudante com indicativo de TDAH.

Nesse sentido, inicialmente, apresenta-se brevemente a concepção biologizante, a qual muitas vezes fundamenta a queixa de TDAH para, em seguida, questioná-la com base na Teoria Histórico-Cultural.

A seguir, destacam-se os dados de uma pesquisa de campo, objetivando verificar em que medida a queixa docente referente ao TDAH ainda subsiste e como tem evoluído a matrícula de alunos com esse indicativo nos últimos cinco anos.

Posteriormente, a partir da avaliação individual e da orientação elaborada pela equipe pedagógica especializada que atua no Núcleo Regional de Ensino de Cascavel (PR), relativa aos alunos indicados pelo professor com suspeita de TDAH, investiga-se como essa avaliação tem sido acolhida pelos professores da rede pública estadual e em que medida o professor a utiliza para organizar seu planejamento e consequentemente o trabalho pedagógico.

Por fim, à luz dos resultados da pesquisa de campo, são tecidas reflexões sobre as consequências pedagógicas das noções analisadas, retomando-se a problematização inicial, ou seja, qual das duas concepções que circulam na escola e na academia tem fundamentado a atividade de ensino do professor.

Divergências teóricas: a concepção naturalizante

Na concepção naturalizante, o TDAH, assim como outros distúrbios, é compreendido como um transtorno mental cujas causas teriam origem biológica e se manifestaria logo na Educação Infantil e perduraria por toda a vida, requerendo uma abordagem psiquiátrica. Conforme o Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais - DSM-5 - (American Psychiatric Association, 2014, p. 32, grifos nossos):

O TDAH é um transtorno do neurodesenvolvimento definido por níveis prejudiciais de desatenção, desorganização e/ou hiperatividade-impulsividade. Desatenção e desorganização envolvem incapacidade de permanecer em uma tarefa, aparência de não ouvir e perda de materiais em níveis inconsistentes com a idade ou o nível de desenvolvimento. Hiperatividade-impulsividade implicam atividade excessiva, inquietação, incapacidade de permanecer sentado, intromissão em atividades de outros e incapacidade de aguardar – sintomas que são excessivos para a idade ou o nível de desenvolvimento. Na infância, o TDAH frequentemente se sobrepõe a transtornos em geral considerados “de externalização”, tais como o transtorno de oposição desafiante e o transtorno da conduta. O TDAH costuma persistir na vida adulta, resultando em prejuízos no funcionamento social, acadêmico e profissional.

Verifica-se que essa definição apresenta uma descrição de sintomas observáveis, citando, várias vezes, o termo. O dicionário eletrônico da Língua Portuguesa define como sinônimos de capacidade as palavras propensão, predisposição, tendência, inclinação, aptidão e vocação, termos que sugerem algo a priori, de nascença (Dicionário Online de Português, 2022).

De acordo com essa concepção, a criança que apresenta comportamentos indesejados, tais como acentuada agitação e/ou desatenção, estaria com um distúrbio uma vez que o normal seria que ela, na escola, seguisse as orientações docentes. Assim, a queixa envolvendo esses distúrbios justificaria o encaminhamento a centros especializados de psicologia e neurologia pediátrica.

É interessante verificar, ainda, a orientação do DSM-5 referente ao “diagnóstico” (American Psychiatric Association, 2014, p. 22, grifos nossos):

Um transtorno mental é uma síndrome caracterizada por perturbação clinicamente significativa na cognição, na regulação emocional ou no comportamento de um indivíduo que reflete uma disfunção nos processos psicológicos, biológicos ou de desenvolvimento subjacentes ao funcionamento mental. Transtornos mentais estão frequentemente associados a sofrimento ou incapacidade significativos que afetam atividades sociais, profissionais ou outras atividades importantes. Uma resposta esperada ou aprovada culturalmente a um estressor ou perda comum, como a morte de um ente querido, não constitui transtorno mental. Desvios sociais de comportamento (p. ex., de natureza política, religiosa ou sexual) e conflitos que são basicamente referentes ao indivíduo e à sociedade não são transtornos mentais a menos que o desvio ou conflito seja o resultado de uma disfunção no indivíduo, conforme descrito.

A definição de transtorno, na perspectiva médica, de acordo com a orientação do DSM-5, deixa claro que os “conflitos que são basicamente referentes ao indivíduo e à sociedade não são considerados transtornos mentais”. Portanto, só são assim considerados aqueles comportamentos cuja causa é biológica.

Entende-se essa perspectiva como idealista, uma vez que envolve uma compreensão abstrata do psiquismo humano, à margem de determinações sociais e econômicas. Nessa premissa, o que foge à norma ou à concepção hegemônica de normalidade é visto como disfunção individual, decorrente do mau funcionamento orgânico. Em outras palavras, desvia-se a atenção dos problemas de ordem histórico-sociais que interferem no processo de escolarização e, como consequência, passa-se a acreditar que os fármacos podem dirimi-los.

Na concepção inatista, o desenvolvimento humano é entendido como amadurecimento orgânico que ocorre “[…] independentemente do contexto, do meio social e das relações em que a criança está inserida, [o que] opõe-se radicalmente à concepção de desenvolvimento e aprendizagem na abordagem da Psicologia Histórico-Cultural” (Eidt & Tuleski, 2010, p. 139).

No contexto escolar, o TDAH vem sendo utilizado como justificativa para problemas como repetência e fracasso escolar, os quais, na verdade, revelam dificuldades na apropriação dos conceitos científicos por inúmeras possíveis causas. O indivíduo é, desse modo estigmatizado como anormal, e, por meio de justificativas que desconsideram o social, tenta-se afirmar a patologia, o que, como consequência, acarreta a medicalização.

Moysés e Collares (2010) introduzem o termo patologização como um neologismo derivado de pathos, ou seja, doença, que transforma em doença física/biológica algo que tem origem social. Assim, como “doente”, o aluno precisa ser medicado, pois a medicalização é o recurso clínico para uma pretensa remissão do sintoma.

A grande maioria dos profissionais da saúde que medicam desconhece o contexto escolar e não tem a compreensão do quanto o fracasso e/ou o sucesso no processo de aprendizagem são determinados por mecanismos institucionais, políticos, e pode-se acrescentar até por questões que envolvem o próprio relacionamento professor-aluno-classe (Eidt & Tuleski, 2010).

As concepções de infância, de desenvolvimento do psiquismo e de aprendizagem, com ênfase no aspecto biológico e inato, levam os professores a recorrerem aos serviços de saúde para buscar diagnósticos médicos e medicamentos que controlam o comportamento discente por meio de remédios, mas sem tentar compreender “[…] as tramas sociais que corrompem e desumanizam a infância” (Luengo, 2010, p. 58).

A concepção histórico-cultural: atenção e regulação do comportamento como funções psicológicas superiores

A Teoria Histórico-Cultural, que tem como seus principais representantes Lev Semionovitch Vigotski (1896-1934), Alexander Romanovich Luria (1902-1977) e Alexei Leontiev (1903-1979), em oposição à concepção inatista, compreende que o homem se constitui em suas relações sociais, logo, não nasce humano.

O processo de produção desse homem não ocorre genética ou hereditariamente, embora se apoie em uma base biológica. Trata-se de uma relação dialética que passa pela apropriação do conhecimento que possibilita ao ser humano, ao se apropriar da cultura, ser por ela produzido e produzir a sua própria história. Constitui-se em um processo que depende fundamentalmente de outro humano que o ensine e das possibilidades decorrentes das relações sociais:

O psiquismo é determinado pela vida real das pessoas, ou seja, por sua atividade no interior de uma determinada classe social, em um tempo histórico específico. As relações sociais se estruturam, se organizam e se mantêm sobre a base das relações de produção e reprodução das condições materiais da existência. (Eidt & Tuleski, 2010, p. 131)

Em outras palavras, de acordo com as condições e as relações sociais vivenciadas, cada homem apropria-se das formas de utilizar os instrumentos materiais que circulam em seu contexto, na medida em que executa as atividades necessárias que constituem a sua vida. Ainda, nesse processo, cada homem apodera-se gradativamente dos conceitos e das palavras que medeiam esses procedimentos. Tais signos, denominados instrumentos psicológicos, compõem o seu vocabulário e lhe permitem, não apenas expressar suas ideias, mas também se comunicar, pensar sobre objetos e situações distantes, no tempo e no espaço (Vigotski, 1995), e, consequentemente, autorregular seu comportamento.

Assim, as possibilidades infantis de representação do mundo no pensamento dependem dos conceitos - signos e significados – apropriados pela criança. E nesse processo, ao dominar os conhecimentos e técnicas que a humanidade vem produzindo historicamente, a criança vai se humanizando e internalizando as formas materiais de desenvolver as atividades que circulam em seu contexto, regulando sua conduta. Conforme alguém lhe ensina, aprende como fazer as atividades de seu grupo social.

Ao passo que esses mediadores - os signos - são internalizados, adquirindo um significado para a criança, a linguagem é desenvolvida e o pensamento vai se constituindo, auxiliando diretamente na formação das Funções Psicológicas Superiores (FPSs) eminentemente humanas. A linguagem, nesse sentido, atuará como mediadora na relação do homem com os objetos e com as outras pessoas, permitindo à criança maior consciência e ampliando suas possibilidades de se planejar e de se autorregular.

Nesse entendimento, é importante compreender que a criança internaliza aquilo circula ao seu redor, pois é na relação social, no coletivo, que se constitui sua subjetividade, ou seja, as FPSs só se tornam intrapsíquicas a partir de relações interpsíquicas. No que e como prestar atenção é, desse modo, um processo aprendido, não de forma isolada, mas articulado ao que o ser percebe do mundo, o que memoriza, o que e como se expressa, e o que pensa, com base nas informações e nos conceitos que se apropriou em suas relações. Dessa forma, essa criança, nas interações sociais, apodera-se da cultura e humaniza-se gradativamente.

A autorregulação da atenção é uma função psíquica que decorre do desenvolvimento da consciência, a qual corresponde à verificação do resultado das ações e das operações que a atividade envolve, em função de suas necessidades, de seus objetivos e da produção das correções e desvios necessários. Para Silva e Loos-Sant’Ana (2017, p. 476), a função psicológica:

[…] passa por um longo e irregular processo de transformação, em que estruturas externas (culturais/simbólicas) de apoio se convertem em estruturas internas e do funcionamento psicológico; a linguagem (conjunto de signos construído cultural e socialmente) adquire papel central no desenvolvimento das capacidades autorreguladoras; as mudanças dependem de um processo de desenvolvimento profundamente enraizado nas relações entre história individual e história social.

Por ser resultado de um complexo processo histórico-social, orientado pela interação com o outro, em diferentes atividades, o desenvolvimento da autorregulação exige a importante contribuição do processo de escolarização, o qual organiza pedagogicamente a aprendizagem e promove o desenvolvimento infantil, uma vez que a criança, ao aprender, está se desenvolvendo.

Nessa perspectiva, o professor tem um papel fundamental na apropriação discente de comportamentos culturais e dos conceitos científicos ensinados no âmbito escolar. Essa compreensão é crucial, pois possibilita o enfrentamento das concepções naturalísticas e biologizantes, as quais, diante de problemas ou dificuldades na aprendizagem de conteúdos escolares, enfatizam os comportamentos em aspectos neuronais e propõem soluções que legitimam a patologização e a medicalização na escola.

Para a Teoria Histórico-Cultural, que se contrapõe à concepção idealista de desenvolvimento humano, as FPSs, das quais faz parte o controle voluntário do comportamento e da atenção, não são processos endógenos que acontecem internamente e de forma espontânea, mas sim dependem fundamentalmente da apropriação dos signos da cultura, possibilitada pela constante mediação de outros homens.

Dessa maneira, quando se entende que o processo de humanização ocorre na relação partícipe da criança em seu contexto histórico e cultural, mediante a apropriação das objetivações produzidas historicamente pela humanidade (instrumentos e signos), e que depende mais dessas do que da própria herança genética para se desenvolver, é necessário ressignificar a concepção de atenção. Consequentemente, o fenômeno do TDAH, na atualidade, precisa ser reconfigurado, requerendo novos estudos, análises e compreensões.

Como Eidt e Tuleski (2010) alertam, é preciso compreender o fenômeno do TDAH, não a partir das funções psicológicas elementares, comuns aos homens e animais, mas sim a partir das FPSs, que se desenvolvem pela apropriação da cultura humana. Nesse ponto, o professor tem papel fundamental, pois é principalmente a partir dele e de sua atuação como agente mediador que ocorre essa apropriação.

Há, desse modo, divergências conceituais entre as duas posturas apresentadas: a concepção biologizante e a concepção proposta pela Teoria Histórico-Cultural. E o número de crianças diagnosticadas e consequentemente medicalizadas depende de qual das duas concepções orienta o trabalho docente.

A disseminação dos diagnósticos de TDAH

Mesmo diante de tantas discordâncias em torno do tema, Eidt e Ferracioli (2007, p. 95) afirmavam, em 2007, que “[…] as pesquisas demonstram o crescimento desenfreado do número de supostos portadores do quadro em questão […]”, e três anos depois, Eidt e Tuleski (2010, p. 130) apontavam que os diagnósticos de TDAH vinham atingindo “proporções epidêmicas”.

Passada mais uma década, nesta pesquisa, objetiva-se refletir sobre os impactos gerados pelos avanços das discussões acadêmicas fundamentadas na concepção histórico-cultural sobre as fragilidades no conceito de TDAH, a partir da investigação acerca da variação no número de alunos com laudo de TDAH e do procedimento do docente da SRM para o planejamento de seu trabalho.

Para responder a essas questões, desenvolveu-se uma pesquisa de campo, tomando-se como base o município de Cascavel (PR), com a compreensão de que, ao se analisar o que ocorre em uma dada cidade, os dados podem representar uma parte significativa do todo da realidade paranaense e quiçá brasileira.

Metodologia

A pesquisa de campo foi submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (CEP) da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), sendo aprovada pelo parecer 3.359.602. Trata-se de um estudo qualitativo e exploratório centrado em dois objetivos: (i) quantificar a variação no número de matrículas de alunos diagnosticados com TDAH, na rede pública estadual de ensino, no período de 2015 a 2020, por meio da análise dos dados Sistema de Registro Escolar (SERE-PR); (ii) investigar em qual material o professor da Educação Especial se apoia para planejar e organizar seu trabalho com o estudante com indicativo de TDAH.

Inicialmente, por meio de consulta on-line no SERE-PR, identificaram-se os alunos matriculados na SEM, no ano de 2020, em cada instituição de ensino do Núcleo Regional de Cascavel (PR), que abrange 18 municípios. Entretanto, esse relatório não especificava qual a queixa relativa a cada aluno. Assim, foi necessária uma segunda consulta ao histórico individual de matrícula do estudante, na qual se considerou como sujeitos aqueles cujo histórico constavam indicativos de TDAH, além de se identificar a partir de qual ano o estudante passou a frequentar o atendimento na SRM. Os dados coletados foram tabulados, quantificando-se o número de matrículas nos anos de 2015 a 2020.

Os demais dados foram colhidos por meio de entrevistas semiestruturadas, com gravação em áudio e posterior transcrição do conteúdo, envolvendo 27% das escolas do município de Cascavel (PR) da rede pública estadual, com professores de Educação Especial atuando nas SRM. Foram selecionadas 10 escolas estaduais, duas de cada região do referido município, sendo a com maior e a com menor nota no Índice de Desenvolvimento de Educação Básica (IDEB).

O roteiro para a entrevista semiestruturada envolveu questões iniciais voltadas à formação docente, tempo de atuação e experiência profissional em outros níveis de ensino, além de indagações voltadas ao processo pedagógico envolvendo os estudantes com TDAH. A pergunta selecionada para a produção deste artigo referia-se ao procedimento docente para planejar, solicitando-se aos professores que descrevessem como conduziam o trabalho com esses alunos.

Com relação à formação dos 11 professores de Educação Especial que participaram deste estudo, constatou-se que: 55% são graduados em Pedagogia e os demais graduaram-se em Letras (9%), em História (9%), em Matemática (9%) e em Ciências Biológicas (18%), e realizaram cursos de pós-graduação em áreas específicas da Educação Especial (Brasil, 2001). Quanto ao tempo de atuação, observa-se que eram professores experientes, pois 90,7% contavam com mais de cinco anos de atuação docente.

Resultados

O Gráfico 1 sintetiza os dados encontrados:

Fonte: Elaborado a partir dos dados coletados pelas autoras.

Gráfico 1 Número de alunos matriculados no AEE na rede estadual de Cascavel (PR) com laudo de TDAH entre os anos de 2015 e 2020 na rede estadual ou no Núcleo Regional de Ensino 

Pode-se considerar que, em 2016, a partir da publicação da Deliberação n.º 02/2016 (Paraná, 2016), houve um aumento de 75% no número de matrículas de estudantes com laudo de TDAH em relação a 2015. A curva manteve-se ascendente e em crescimento até o ano de 2019, quando, em uma comparação a 2016, constatou-se uma diferença no número dessas matrículas de 594%. Até a data da coleta de dados, cinco alunos que frequentaram o atendimento na Sala de Recursos, no ano de 2019, ainda não tinham suas matrículas efetivadas em 2020 para esse atendimento, e, em decorrência da pandemia da covid-19, as matrículas foram suspensas.

Os dados coletados evidenciam que o caminho da patologização escolar é ainda muito utilizado para justificar os problemas na aprendizagem de conteúdos escolares, o que é comprovado pelo aumento expressivo no número de estudantes matriculados na SRM com diagnóstico de TDAH. Mediante o aumento exacerbado no número de matrículas constatado, questionou-se a forma como os professores de Educação Especial que participaram do estudo conduziam o trabalho pedagógico com os estudantes na SRM.

Desde o ano de 2003, o Núcleo Regional de Educação, que coordena as ações pedagógicas das escolas públicas da rede estadual no Paraná, em uma área geográfica envolvendo 18 municípios, mantém um setor responsável pelo acolhimento das queixas docentes relacionadas ao TDAH, entre outras, denominado Centro Regional de Apoio Pedagógico Especializado (CRAPE).

No início, o CRAPE avaliava os alunos com problemas no processo de escolarização, classificando-os conforme seu funcionamento psicológico e pedagógico, com fundamento no modelo clínico (Pelizzetti & Carvalho, 2007). Não obstante a isso, ao longo de sua história, esse processo avaliativo sofreu significativas transformações. Atualmente, inicia-se no contexto escolar, etapa indispensável ao papel do CRAPE, que tem como uma das funções a complementação do processo de avaliação no contexto escolar com a participação de uma equipe multiprofissional composta por professoras especialistas em Educação Especial e Psicólogas.

Ao término dessa avaliação, a equipe a envia aos docentes que atuam nas escolas e haviam encaminhado seus alunos, juntamente com orientações para a elaboração dos Planos de Atendimento Educacional Especializado (PAEE) de cada aluno.

Para analisar como os professores de Educação Especial que participaram do estudo conduzem o trabalho pedagógico com os estudantes na SRM, tomou-se como base o procedimento por eles utilizado para encaminhar o processo de ensino, a partir da devolutiva da avaliação psicoeducacional realizada pelo CRAPE, uma vez que a intencionalidade no processo pedagógico é considerada de fundamental importância na perspectiva da Teoria Histórico-Cultural. Os resultados expressam-se no Gráfico 2, a seguir:

Fonte: Elaborado a partir dos dados coletados pelas autoras.

Gráfico 2 Estratégias metodológicas adotadas no trabalho com estudantes com TDAH 

Constatou-se que 40% dos professores apoiam-se no PAEE para encaminhamento do processo de ensino, por eles elaborado, a partir das informações que dispõem sobre o aluno e das fornecidas pelo CRAPE, envolvendo as ações e os recursos necessários ao processo de aprendizagem dos estudantes com TDAH.

Muitos professores de Educação Especial (40%) afirmaram planejar seu trabalho a partir das defasagens e das dificuldades de aprendizagem de conteúdos escolares que são recorrentes nos alunos de modo genérico. Trata-se de uma abordagem mais voltada a cumprir a tarefa de trabalhar os conteúdos, uma vez que esses professores não estão levando em conta o trabalho diagnóstico empregado na avaliação no contexto escolar.

Verificou-se, ainda, que 20% dos professores apoiam o processo pedagógico em recursos diferenciados, como jogos e atividades para colorir. Suas respostas, descoladas dos aspectos pedagógicos e dos objetivos do trabalho docente, parecem revelar um descompromisso com a função básica da escola, que seria a transmissão dos conhecimentos científicos.

Análise e discussão dos resultados

Os professores (40%) que relataram desenvolver suas atividades docentes a partir do PAEE elencam nesse documento os encaminhamentos metodológicos que possibilitam o desenvolvimento da atenção, os quais decorrem basicamente desse processo de avaliação pedagógica, no qual se evidenciam as necessidades dos estudantes, elementos essenciais à elaboração PAEE, orientando a eficiência do trabalho a ser realizado na SRM.

Entende-se, à luz da Teoria Histórico-Cultural, que a atenção é uma função psicológica decorrente do processo de desenvolvimento humano, assim, depende circunstancialmente da qualidade do processo educativo e do planejamento de tarefas específicas direcionadas a esse fim. Nessa perspectiva, entende-se a relevância do PAEE como instrumento orientador do trabalho docente com os estudantes com TDAH.

É imperioso considerar que à escola e aos professores cabe possibilitar condições para que os estudantes possam desenvolver “[…] cada vez mais a consciência e o controle do seu próprio comportamento, de tal forma que possam se propor, de modo intencional e deliberado, a focalizarem a atenção no processo de apropriação dos conteúdos escolares” (Meira, 2019, p. 230).

Nesse sentido, em entrevista, uma das professoras pontuou: “[…] quando nós recebemos a devolutiva que ele necessita de Sala de Recursos, nós primeiramente vamos avaliar esse aluno, conhecer e fazer o plano de atendimento individual, onde nós temos que verificar quais as defasagens no conteúdo, o que precisa” (PSRM-01 [4] ).

Essa ideia é reforçada em outros depoimentos de profissionais especialistas que atuam na SRM: “[…] nesse plano de atendimento eu sempre abordo […] os conteúdos a serem trabalhados durante o ano letivo de acordo com o relatório pedagógico da avaliação do aluno e de acordo com a análise que a gente faz” (PSRM-02); “[…] primeiro é conhecer a parte documental, ir até a secretaria conhecer o que tem de documento do aluno, avaliações, pareceres médicos, para assim poder montar o plano de atendimento dele […]” (PSRM-05).

A elaboração do PAEE constitui uma das atribuições inerentes à função de professor de Educação Especial e norteia a sua atuação conforme a Instrução n.º 09/2018 (Paraná, 2018a), pressupondo a participação de todos envolvidos com o estudante: professores do ensino comum e Educação Especial, equipe pedagógica escolar e profissionais clínicos. Nele constam informações sobre o estudante, especificam-se suas necessidades de flexibilização curricular e organiza-se o trabalho colaborativo.

A avaliação e o trabalho colaborativo entre os profissionais são os elementos essenciais que possibilitam planejar e replanejar as ações pedagógicas (Paraná, 2018a; 2018b). Nesse sentido, as professoras especialistas comentam: “[…] a gente faz todo um trabalho baseado nesse plano de trabalho, que ao longo do tempo e do ano a gente vai reorganizando conforme a necessidade” (SPSRM-02); “tudo nesse plano vai modificando conforme o ano, de repente esse aluno vai superando nós vamos avançando ou de repente tem que retomar” (SPSRM-01).

Nos Conselhos de Classe, os professores de Educação Especial apresentam os resultados obtidos com relação aos objetivos propostos no PAEE, e, a partir das sugestões apresentadas, replanejam-se as ações necessárias para o próximo período letivo (Paraná, 2018a; 2018b).

Na pesquisa, constatou-se que há professores de Educação Especial (40%) que planejam seu trabalho a partir das defasagens e dificuldades de aprendizagem de conteúdos escolares que observam no aluno; contudo, eles não discutem o planejamento sistematizado das atividades que seriam desenvolvidas na SRM com os outros professores que atendem o estudante. Considera-se indispensável a articulação entre os profissionais de ensino que trabalham com o estudante com deficiência/NEE na SRM (Honnef, 2018; Szymanski & Teixeira, 2021), pois é somente nesse coletivo que ocorre o fortalecimento do trabalho voltado ao desenvolvimento psicointelectual desse discente.

Outra vertente detectada no trabalho com os alunos que têm indicativos de TDAH apoia-se em recursos diferenciados, tais como jogos e atividades para colorir (20%), conforme pontua uma das professoras: “a gente joga algum jogo, […] quaisquer jogos que ajuda eles eu faço. Eu dou duas atividades, cruzadinhas, tudo coisas diferentes [sic] da sala de aula, […] eu os faço pintar desenhos” (PSRM-06).

As atividades desenvolvidas por aqueles que pensam como PSRM-06 revelam fragilidades no trabalho educativo que dificultam o desenvolvimento das FPS dos estudantes “diagnosticados” clinicamente com TDAH. O ato educativo requer intencionalidade, planejamento, sistematização, verificação das necessidades reais apresentadas pelos estudantes, bem como a fusão com os conhecimentos científicos que estão sendo trabalhados no ensino comum. No relato desse grupo de professores, não ficou evidente que os encaminhamentos adotados são planejados com antecedência e descritos no PAEE dos estudantes. O discurso docente parece revelar que esses encaminhamentos são improvisados, propostos no momento da aula.

Ainda com relação à análise dos dados, observou-se que 60% dos professores entrevistados não fizeram alusão ao PAEE como parte formal do processo de atendimento aos alunos que frequentam as SRM. Nesse caso, questiona-se: Será que o PAEE tem se materializado nessas escolas como ferramenta indispensável ao trabalho com os estudantes com deficiência ou com TDAH?

Considerando que a escolarização é imprescindível ao desenvolvimento das FPS – inclusive da atenção e da vontade, às quais se volta o presente artigo – e que é o processo de aprendizagem dos conceitos científicos que promove esse desenvolvimento, pressupõe-se que o professor planeje intencionalmente suas ações com esse objetivo. Essas práticas, mediadas por instrumentos e signos, potencializam o desenvolvimento das funções humanas, ativando todo um grupo de processos que não poderiam se desenvolver sem a aprendizagem dos conteúdos escolares. Entretanto, sem um planejamento que o respalde, o processo pedagógico fica à deriva, assim como seu resultado.

Conclusões

Alguns autores e especialistas consideram o TDAH um transtorno mental crônico que se manifesta logo na Educação Infantil e evolui ao longo da vida, sendo o motivo pelo qual cada vez mais crianças são encaminhadas a Centros de Neurologia Pediátrica e Psicologia. Nesse viés, muitos alunos são diagnosticados por profissionais da área da saúde, ou rotulados por seus educadores, como portadores desse transtorno, mas sem que seja realizada uma avaliação mais criteriosa.

É necessário ressaltar que nem toda criança agitada deve ser considerada como hiperativa. Embora as primeiras evidências da hiperatividade, segundo alguns autores, possam ser observadas já no lactente e sejam mais salientes em crianças na fase pré-escolar ou escolar, a desatenção e a agitação são características que fazem parte do comportamento infantil. A agitação excessiva pode decorrer de diversas situações da vida da criança, assim como outros problemas de comportamento.

Entretanto, percebe-se que, no contexto escolar, o TDAH ainda vem sendo utilizado como justificativa docente para problemas na escolarização dos alunos, haja vista a constatação de um aumento de 594% no número de alunos matriculados com laudo de TDAH, nos últimos cinco anos no município pesquisado. Ao não estabelecer diferença entre o TDAH e a necessidade de regulação do comportamento, os encaminhamentos de crianças aos serviços de saúde, direcionados pelos professores, continuam sendo cada vez mais frequentes, atribuindo-se a elas a responsabilidade por não aprender e isentando de análise os contextos escolar e social.

Na contramão desse procedimento, entende-se que a investigação psicoeducacional deve partir da análise do processo de escolarização discente, de forma explicativa, voltada aos aspectos pedagógicos, entendendo que o autocontrole da atenção e do comportamento são e só poderão ser aprendidos se forem ensinados.

Na perspectiva da Teoria Histórico-Cultural, à medida em que a criança vai se apropriando da cultura e dos conceitos científicos que a cercam, desenvolve as suas FPS e a sua consciência, ampliando a capacidade de se autorregular, aprendendo a canalizar sua agitação e sua atenção para as atividades de aprendizagem que desenvolve na escola.

Nesse sentido, de acordo com os documentos legais e orientadores, o PAEE é ferramenta fundamental para nortear a prática de atuação dos professores no trabalho na SRM. No estado do Paraná, a produção do PAEE é regulamentada em conformidade com a legislação nacional e com documentos elaborados pela Secretaria Estadual de Educação e pelo Departamento de Educação Especial (Paraná, 2018a; 2018b). Reitera-se que os documentos legais e orientadores, tanto na esfera nacional quanto estadual, destacam a elaboração do PAEE como uma das atribuições inerentes à função do professor de Educação Especial, que atua na SRM.

Há que se considerar, ainda, que a constante avaliação psicoeducacional no contexto escolar deve privilegiar a qualidade das mediações ofertadas, os diferentes recursos utilizados e a diversidade metodológica docente. Entretanto, para que a avaliação possa desempenhar esse papel, é necessária a sua contínua articulação com o planejamento do trabalho docente.

Pautada nesses preceitos, a avaliação torna-se elemento essencial ao PAEE, uma vez que orienta a organização intencional do processo pedagógico e é fundamental para a possível superação dos problemas de escolarização de todos os alunos. Certamente, intervenções aleatórias, que não partem das necessidades educacionais dos alunos e que não são pautadas em uma organização da atividade de ensino que seja fruto de reflexão e sistematização na perspectiva da práxis pedagógica, dificilmente alcançarão os resultados esperados.

Considerar que a atenção voluntária se constitui ao longo do processo de desenvolvimento do indivíduo, conforme o aluno se apropria do conhecimento científico e desenvolve suas funções psicológicas como um feixe integrado, exige cautela na constatação superficial de comportamentos tidos como desatentos. É preciso deixar de atrelá-los a problemas neurológicos como princípio, uma vez que tais comportamentos podem ocorrer com mais frequência pela qualidade das mediações às quais o indivíduo teve acesso do que por disfunções cerebrais. Ressalta-se, portanto, a importância de se considerar as mediações das quais participa esse aluno, dentro e fora da escola.

O desenvolvimento dessas funções não ocorre espontaneamente só porque a criança está crescendo do ponto de vista cronológico. Trata-se de um processo de aprendizagem decorrente de um trabalho colaborativo - intencionalmente planejado diante da hiperatividade, da distração ou de outras dificuldades no processo de aprendizagem dos conteúdos escolares - o qual promove, pela apropriação dos conceitos científicos, artísticos e técnicos que constituem os conhecimentos historicamente elaborados pelos homens, o desenvolvimento do feixe das funções próprias do gênero humano, entre elas, a autorregulação infantil.

Quando a escola não cumpre a sua função social de transmitir os conteúdos científicos necessários à aprendizagem e ao desenvolvimento humano, criam-se demandas (problemas), as quais passam a ser tomadas como sendo dos serviços de saúde (Meira, 2019), resultando na busca por diagnósticos e soluções médicas para explicar esses problemas que são de ordem social.

Constatou-se, com auxílio de outros estudos e desta pesquisa, que, no espaço escolar, a medicalização tem, muitas vezes, substituído os processos de ensino e de aprendizagem, consolidando a ideia de que os problemas no processo de escolarização (dificuldades de aprendizagem) e de comportamento estão ligados a transtornos ou a deficiências que os estudantes possam ter. Essa concepção biologizante resulta no encaminhamento desse público, que apresenta comportamento inadequado de acordo com a escola, aos serviços de saúde, para diagnóstico e tratamento, caracterizando, assim, a medicalização da e na educação.

Recomendam-se, portanto, políticas públicas que promovam um processo estatal de formação continuada docente, que compreenda o homem como um ser que se constitui nas relações sociais, de forma que o professor possa, gradativamente, apropriar-se da compreensão da atenção como uma função que necessita ser desenvolvida no processo pedagógico.

A pesquisa evidenciou que compreender o TDAH na concepção biológica, tal como proposto no DSM-5, acarreta um limite no trabalho pedagógico. Na medida em que se entende o TDAH como um transtorno, como uma incapacidade biológica, desloca-se a ênfase da solução dos problemas que o aluno está enfrentando para o remédio, para a medicalização, ao invés de rever o processo pedagógico em seus diferentes aspectos. Com isso, inibe-se o desenvolvimento da autorregulação do aluno, já que a solução estaria no remédio.

Finaliza-se este texto ressaltando-se o compromisso da Educação com o desenvolvimento cultural das pessoas com ou sem necessidades educacionais especiais. Ao ampliar as possibilidades de maior consciência, permite-se o desvelar do aparente e se favorece uma inserção social que contribui para a humanização, de forma que cada aluno possa apreender o mundo e nele intervir na direção de maior justiça social.

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[3]Santos (2019), com os termos TDAH e hiperatividade, localizou entre 1992 e 2017 na Biblioteca Digital de Teses e Dissertações 1.234 teses e dissertações brasileiras, sendo 82 na área da Educação.

[4]Atribuiu-se a sigla PSRM (Professor da Sala de Recurso Multifuncional), seguida dos números 1, 2…, aos professores de Educação Especial participantes do estudo, para assegurar o anonimato.

Recebido: 30 de Setembro de 2021; Aceito: 17 de Fevereiro de 2022

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As autoras contribuíram igualmente na elaboração do manuscrito.

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