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Linhas Críticas

Print version ISSN 1516-4896On-line version ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.28  Brasília Jan./Dec 2022  Epub Aug 15, 2022

https://doi.org/10.26512/lc28202242031 

Artigos

Saberes mobilizados pelas gestoras da educação infantil no município de Jaguarão-RS

Conocimiento movilizado por gestores de educación infantil en el municipio de Jaguarão-RS

Knowledge mobilized by early childhood education managers in the city of Jaguarão, RS

Janaina Sosa Ribeiro1 
http://orcid.org/0000-0003-0005-8379

Juliana Brandão Machado2 
http://orcid.org/0000-0003-0181-317X

1Especialista em Gestão da Educação Básica pela Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA) (2020). Discente na Pós-graduação em Educação da UNIPAMPA.

2Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2013). Professora Adjunta III da Universidade Federal do Pampa, Campus Jaguarão.


Resumo

A pesquisa teve como objetivo geral analisar os saberes que as gestoras mobilizam para desenvolver suas ações na gestão da Educação Infantil no município de Jaguarão-RS. Discute a Educação Infantil, a gestão escolar e os saberes da gestão escolar. Como instrumento metodológico, foram utilizados o grupo focal e a entrevista semiestruturada com as gestoras. Na análise, destacam-se a ausência dos espaços de diálogos e a necessidade destes na realização do trabalho de gestão. Nas considerações finais, aponta-se que em todos os momentos as gestoras descrevem nas suas ações os saberes do conhecimento, os saberes experienciais e os saberes que são produzidos na prática e na reflexão sobre ela.

Palavras-chave Educação infantil; Gestão escolar; Saberes da gestão escolar

Resumen

La investigación tuvo como objetivo general analizar los saberes que los gestores movilizan para desarrollar sus acciones en la gestión de la Educación Infantil en el municipio de Jaguarão-RS. Discute la Educación Infantil, la gestión escolar y los conocimientos de gestión escolar. Como instrumento metodológico se utilizó el grupo focal y la entrevista semiestructurada a los directivos. En el análisis se destaca la ausencia de espacios de diálogo y la necesidad de los mismos en la realización del trabajo de gestión. En las consideraciones finales, se señala que en todo momento los gestores describen en su accionar el saber del saber, el saber vivencial y el saber que se produce en la práctica y en la reflexión sobre ella.

Palabras clave Educación infantil; Gestión escolar; Conocimiento de la gestión escolar

Abstract

This paper aims to analyze the knowledge managers mobilize to develop their actions in the Early Childhood Education management in the city of Jaguarão, Brazil. It discusses Early Childhood Education, school management, and school management knowledge. The methodology used focus groups and a semi-structured interview with school managers. Our analysis highlights the absence of room for dialogue and the need of it in carrying out management work. We found that managers describe, through the interviews, epistemological knowledge, experiential knowledge, and knowledge produced in practice and reflection along with their actions.

Keywords Early childhood education; School management; School management knowledge

Introdução

A Educação Infantil vem se fortalecendo nos últimos anos no campo pedagógico como etapa de ensino organizada e estruturada para o desenvolvimento das crianças, oportunizando situações de ensino-aprendizagem. Neste contexto, dada a relação com a gestão escolar e a necessidade de rever o processo de atuação dos profissionais que atuam nesta etapa educacional, optamos por pesquisar sobre os saberes que as gestoras mobilizam diante de suas práticas.

Anterior a esta pesquisa já havíamos realizado outra investigação intitulada “Saberes e formação docente na construção da identidade profissional” voltada aos saberes docentes com base em leituras de Tardif (2011) e Pimenta (1996). A discussão girou em torno dos professores da Educação Infantil e do Ensino Fundamental do município de Jaguarão, na época cinco professores da rede municipal participaram da pesquisa. Como resultado daquela pesquisa, percebemos que os professores não se reconhecem como produtores de saberes, mas os mobilizam diante de suas práticas pedagógicas. Para dar continuidade a esta discussão em torno dos saberes da docência, direcionamos para a Educação Infantil, etapa da Educação Básica que necessita de um olhar mais cuidadoso em razão dos avanços mais recentes. Reconhecemos a necessidade de discussão sobre a Educação Infantil em contextos como o do município de Jaguarão, que se caracteriza por uma região fronteiriça e distante dos centros urbanos, em que se percebe fortes assimetrias no desenvolvimento das políticas educacionais. Neste sentido, o enfoque dado à pesquisa no âmbito da gestão, indica a necessidade de aprofundar a relação com a organização da escola, o trabalho pedagógico do professor e a aprendizagem dos alunos. Também evidenciamos a necessidade, já apontada na literatura, de ampliar a discussão que envolve a relação entre a Educação Infantil e a gestão educacional. Conforme Fernandes e Campos (2015), a produção sobre a gestão e a Educação Infantil é incipiente, sem aprofundamento nas especificidades desta etapa de ensino, tomando como referência as demais etapas da Educação Básica para a discussão.

A Educação Infantil ainda é vista com certa inferioridade em relação ao Ensino Fundamental. Isto se concretiza na fala dos pais, quando dizem que “meu filho está entrando no primeiro ano, agora a coisa ficou séria, você vai ter que estudar, vai aprender”, como se a Educação Infantil só servisse de “depósito”, uma recreação para as crianças. Segundo Kuhlmann Jr. (2004), em relação ao atendimento às crianças nas creches, houve uma influência do assistencialismo nos séculos XIX e XX. Isto acontece porque tais práticas foram destinadas às crianças e famílias para tirá-las da rua. Ainda é possível, diz o autor, encontrar políticas públicas educacionais com uma visão assistencialista. Romper com isto requer rever concepções sobre a infância, o papel das crianças na sociedade e qual escola pretendemos ter para recebê-las.

Em Jaguarão, município gaúcho situado na fronteira com o Uruguai, local onde a pesquisa foi realizada, o cargo de diretor nas escolas públicas de Educação Infantil é designado por indicação da Secretaria de Educação, e não por eleição. Com isto, configura-se uma ação não democrática, não há processo de escolha que envolva a comunidade escolar. Neste caso, a participação de todos, que é um passo relevante para uma gestão democrática, é omitida. Outro ponto de destaque é que nesta etapa não há uma equipe diretiva e, sim, somente uma pessoa exercendo o cargo de gestor na escola. Na Educação Infantil, a nomenclatura dada ao cargo de gestor é o de coordenador pedagógico, tendo em vista que não tem uma equipe na gestão desta etapa da Educação Básica, sendo o coordenador responsável pela organização da escola, que perpassa desde assuntos financeiros, administrativos até o pedagógico. Diante disto, o gestor exerce o papel de diretor, orientador e coordenador pedagógico nas Escolas Municipais de Educação Infantil do município (EMEIS).

O projeto político-pedagógico (PPP), um dos pontos relevantes no exercício de uma gestão escolar democrática, foi exigido nas escolas de Educação Infantil de Jaguarão há pouco tempo, se comparado com o período em que as escolas de Ensino Fundamental já tinham construído o seu. A obrigatoriedade do documento se deu em 2016. Conforme a Resolução n.º 01/2016, do Conselho Municipal de Educação de Jaguarão, no Art. 11, “o regimento da instituição é o documento que define a organização e funcionamento da mesma e deve expressar a proposta pedagógica, sendo ambas as peças integrantes do processo de credenciamento e do ato de autorização” (Jaguarão, 2016, p. 3).

Compreendemos a organização escolar como uma construção social através das interações entre professores, alunos, pais, funcionários e demais segmentos relacionados no processo educacional (Libâneo, 2001). Temos aqui um ponto inicial para oferecer uma escola adequada e com qualidade aos alunos, professores e demais profissionais envolvidos.

A ideia de uma escola com qualidade para os alunos vai ao encontro do que Veiga (2009) discute sobre educação de qualidade, como algo dinâmico, sendo reconstruída continuamente através das interações vividas entre os diferentes segmentos escolares, que tem autonomia para exercer uma reflexão acerca do trabalho, intervindo de forma a contribuir para a melhoria de ensino.

Neste sentido, a pesquisa indaga, como questão central, quais saberes são mobilizados pelas gestoras da Educação Infantil no município de Jaguarão? A questão central será desdobrada, neste texto, em busca da discussão que aponte para o reconhecimento da produção de saberes pelas gestoras, no sentido de atualizar os estudos sobre saberes da docência para a discussão sobre a gestão educacional. O objetivo geral da pesquisa foi analisar os saberes que as gestoras mobilizam para desenvolver suas ações na gestão da Educação Infantil em Jaguarão-RS.

Na sequência, abordamos como foi construída a metodologia de pesquisa. Em seguida, apresentamos a fundamentação teórica, subdividida em três eixos: a Educação Infantil, caracterizando o que permeia esta etapa da Educação Básica; a gestão escolar, discutindo a organização da escola, especialmente na sua perspectiva democrática; e os saberes da gestão escolar mobilizados diante do trabalho das gestoras. A análise dos dados foi realizada a partir de um grupo focal e entrevistas com duas gestoras da Educação Infantil de Jaguarão. Por fim, trazemos as considerações finais e referências bibliográficas.

Objetivos

O objetivo geral da pesquisa foi analisar os saberes que as gestoras mobilizam para desenvolver suas ações na gestão da Educação Infantil no município de Jaguarão. Como objetivos específicos, buscamos identificar os saberes que influenciam as ações dos gestores ou gestoras no cotidiano escolar e investigar como estas pessoas utilizam os seus saberes para organizar a escola.

Os saberes discutidos ao longo do artigo são compreendidos como habilidades, competências e conhecimentos construídos ao longo da trajetória profissional. Estes saberes são construídos a partir das experiências vivenciadas por parte destes profissionais, relacionados a crenças, valores, personalidade, características pessoais; saberes construídos nas formações iniciais e processos formativos; e saberes construídos a partir de experiências de suas práticas e na reflexão sobre elas (Tardif, 2011).

Metodologia

Este trabalho foi construído a partir de pesquisas bibliográficas e pesquisa de campo. Segundo Severino (2016, p. 122), na pesquisa bibliográfica “os textos tornam-se fontes dos temas a serem pesquisados. O pesquisador trabalha a partir das contribuições dos autores analíticos constantes dos textos”. Para a pesquisa, realizamos uma leitura prévia dos textos que vão ao encontro das discussões suscitadas no artigo, relacionadas à gestão escolar, aos saberes e à Educação Infantil; uma leitura para sistematizar os conceitos que se relacionam com o objetivo da pesquisa; e uma leitura reflexiva para compreender as afirmações dos autores e relacioná-las com a pesquisa.

A pesquisa de campo foi dividida em duas etapas. Inicialmente, como técnica de coleta de dados, utilizamos o grupo focal, que consiste em um pequeno grupo de 6 a 12 pessoas reunidas para avaliar conceitos ou identificar problemas. Foram convidadas todas as gestoras que estavam atuando nas escolas públicas de Educação Infantil de Jaguarão, totalizando 7 gestoras. O principal objetivo de um grupo focal é identificar as atitudes dos participantes a respeito de uma determinada atividade — no caso, como as gestoras mobilizam os saberes para organizar a escola. Isto vai ao encontro do que Dias (2000, p. 7) traz sobre esta abordagem de pesquisa: “o grupo focal, por dar oportunidade aos participantes de exporem aberta e detalhadamente seus pontos de vista, é capaz de trazer à tona respostas mais completas, permitindo ao pesquisador conhecer melhor e mais profundamente o grupo pesquisado”.

Em junho de 2020, marcamos um encontro na Secretaria Municipal de Educação com a coordenadora das escolas de Educação Infantil, em que explicamos o tema da pesquisa e a metodologia que tínhamos a intenção de aplicar. A coordenadora passou os números de contato das gestoras das Escolas Municipais de Educação Infantil (EMEIs), e autorizou para criarmos um grupo no WhatsApp com todas, inclusive ela.

Com a criação do grupo, explicamos o tema da pesquisa, os objetivos e a metodologia. O convite foi feito a todas para participarem do grupo focal, que seria um encontro on-line, via Google Meet, devido às restrições coletivas decorrentes da pandemia de Covid-19. Conversamos e entramos em acordo quanto a disponibilidade do melhor dia e melhor horário para todas que aceitaram participar. Em 6 de julho de 2020, realizamos o nosso debate. O encontro foi gravado e as participantes autorizaram o uso das imagens e falas para fins acadêmicos, mediante assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

Das setes gestoras que atuam nas sete escolas de Educação Infantil de Jaguarão, o grupo focal foi realizado com quatro destas profissionais e a gestora que atua na Secretaria de Educação, coordenadora das EMEIs. Inicialmente, cada gestora foi convidada a se apresentar para as demais presentes. Individualmente, disseram o nome, tempo de profissão e se neste tempo de experiência já trabalharam na Educação Infantil e/ou no Ensino Fundamental. Destacaram também como chegaram ao cargo de gestora e há quanto tempo exercem a função.

Para o grupo focal, num primeiro momento utilizamos duas caixas, uma com o nome das participantes e outra com as perguntas, conforme o Quadro 1. As questões foram construídas por nós, autoras da pesquisa, com base nos objetivos que buscamos responder com esta investigação. As indagações vão ao encontro de descrever e analisar como os sujeitos da pesquisa vivenciam o seu trabalho na coordenação das EMEIS, e ao mesmo tempo estão interligadas à mobilização dos saberes das gestoras.

Fonte: as autoras.

Quadro 1 Perguntas para o grupo focal 

A dinâmica consistiu em sortear uma pergunta e o nome da participante que responderia à pergunta. Após a pessoa sorteada responder, em alguns momentos as demais participantes também comentaram sobre o que tinha sido perguntado e discutido.

Num segundo momento, lançamos temas para serem discutidos, dando o espaço para quem quisesse falar. A estratégia para as participantes não falarem ao mesmo tempo foi solicitar que a pessoa que quisesse debater acenasse com a mão. Os temas discutidos foram: expansão de vagas na Educação Infantil, formação para gestores, PPP, gestão democrática. Para finalizar, foi proposto que as gestoras sintetizassem, em um breve comentário, aquele momento. O tempo de duração do grupo focal foi de duas horas e vinte minutos.

A outra abordagem que utilizamos na pesquisa foi a entrevista. Realizamos a entrevista com duas das gestoras que coordenam as escolas de Educação Infantil de Jaguarão, escolhidas a partir do grupo focal. O critério de escolha foi pelo fato de uma delas ter uma experiência vasta como gestora na Educação Infantil, e a outra por atuar numa escola com precariedades e que se situa em uma comunidade carente. Gil (2008, p. 109) conceitua a entrevista nos seguintes termos:

A técnica em que o investigador se apresenta frente ao investigado e lhe formula perguntas, com o objetivo de obtenção dos dados que interessam à investigação. A entrevista é, portanto, uma forma de interação social. Mais especificamente, é uma forma de diálogo assimétrico, em que uma das partes busca coletar dados e a outra se apresenta como fonte de informação.

A entrevista seguiu o roteiro de perguntas dispostas no Quadro 2. As perguntas foram produzidas por nós, autoras da pesquisa, focando mais diretamente os saberes, delimitando o objetivo desta investigação. As questões nos trazem mais especificamente a descrição detalhada dos saberes mobilizados pelas gestoras.

Fonte: as autoras.

Quadro 2 Perguntas realizadas na entrevista 

As entrevistas foram realizadas em 3 de agosto de 2020, uma delas com duração de 47 minutos e outra com duração de uma hora. Primeiramente realizamos a transcrição das entrevistas, depois selecionamos as falas que teriam relevância de acordo com os objetivos da pesquisa. A análise foi realizada diante das falas das gestoras, através dos questionamentos e situações relatadas por elas, discutidas a partir dos elementos elencados na fundamentação teórica da pesquisa. Conforme os períodos de coleta de dados mencionados, o grupo focal e as entrevistas foram realizados no primeiro ano de pandemia de COVID-19 no Brasil. Embora este não tenha sido o foco da investigação, desenhada enquanto projeto no ano anterior, incorporamos no grupo focal a discussão com as gestoras a respeito deste contexto inédito, que atravessou diretamente diversas esferas da sociedade. No entanto, para não perder o enfoque da pesquisa proposta, as entrevistas foram direcionadas aos objetivos previamente estabelecidos.

Fundamentação teórica

Nesta seção, apontamos os principais referenciais teóricos que embasam nossa pesquisa. Iniciamos discutindo a Educação Infantil a partir das leituras da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) (Brasil, 1996), das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI) (Brasil, 2010), e do Documento Orientador Municipal Território Jaguarão (DOM) para a Educação Infantil (Jaguarão, 2020). Em seguida, aprofundamos o conceito de gestão escolar na perspectiva de Libâneo (2007), Paro (2007) e Veiga (2009). Por fim, abordamos a discussão dos saberes com base em Tardif (2011), Pimenta (1996) e Charlot (2000).

Educação infantil

A Educação Infantil é uma etapa da Educação Básica de suma importância na formação e desenvolvimento da criança e que, nos últimos anos, vem caminhando para um cenário de maior destaque no âmbito educacional. Na prática, temos percebido avanços, ainda que tardios se comparado às demais etapas da Educação Básica, como a construção do PPP e a exigência de professores com formação pedagógica atuando em sala de aula. Apesar disto, são avanços lentos se comparados ao tempo em que já temos documentos legais assegurando o reconhecimento da Educação Infantil como um direito que estabelece o vínculo entre o atendimento às crianças de zero a cinco anos e a educação. Para Craidy e Kaercher (2001, p. 16):

A educação da criança pequena envolve simultaneamente dois processos complementares e indissociáveis: educar e cuidar. As crianças desta faixa etária, como sabemos, têm necessidades de atenção, carinho, segurança, sem as quais elas dificilmente poderiam sobreviver. Simultaneamente, nesta etapa, as crianças tomam contato com o mundo que as cerca, através das experiências diretas com as pessoas e as coisas deste mundo e com as formas de expressão que nele ocorrem. Esta inserção das crianças no mundo não seria possível sem que atividades voltadas simultaneamente para cuidar e educar estivessem presentes.

Os documentos oficiais como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (Brasil, 1990), a LDBEN (Brasil, 1996), as DCNEI (Brasil, 2010), a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) (Brasil, 2017), o Referencial Curricular Gaúcho (RCG) (Rio Grande do Sul, 2018) e o DOM de Jaguarão-RS (Jaguarão, 2020) garantem o direito à educação e o dever de educar.

Pontuamos primeiramente a LDBEN, Lei n.º 9394 (Brasil, 1996), que traz a concepção de Educação Infantil no art. 29, que diz que a Educação Infantil, primeira etapa da Educação Básica, tem como finalidade o desenvolvimento integral da criança de até 5 anos, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade (Brasil, 1996). Entretanto, por muitos anos a Educação Infantil foi vista como assistencial, um espaço somente para cuidar, e não como uma concepção de escola, um lugar de ensino e aprendizagem. Segundo as DCNEI (Brasil, 2010, p. 18):

A proposta pedagógica das instituições de Educação Infantil deve ter como objetivo garantir à criança acesso a processos de apropriação, renovação e articulação de conhecimentos e aprendizagens de diferentes linguagens, assim como o direito à proteção, à saúde, à liberdade, à confiança, ao respeito, à dignidade, à brincadeira, à convivência e à interação com outras crianças.

Ou seja, a escola de Educação Infantil tem o dever de oportunizar à criança um desenvolvimento integral, oferecer situações de aprendizagens, de cuidados, de brincadeiras, de interação. São situações em que as crianças construam saberes que envolvam a realidade social e cultural. O que vai ao encontro do que Craidy e Kaercher (2001, p. 19) dizem sobre quem são estas crianças que se encontram nestes espaços:

É preciso destacar que a criança neste período se torna cada vez mais capaz do domínio das operações com o próprio corpo, um sujeito que faz coisas, que desenvolve habilidades, destrezas, que se expressa de variadas formas, que se manifesta como um ser ativo e criativo.

Entre março e novembro de 2019, a Secretaria Municipal de Educação e Desporto de Jaguarão, juntamente com docentes, escolas, comunidades representadas por pais e alunos, além da Universidade Federal do Pampa (Unipampa) e do Conselho Municipal de Educação, construiu o DOM (Jaguarão, 2020), em consonância com a BNCC (Brasil, 2017) e com o RCG (Rio Grande do Sul, 2018), documento aprovado em julho de 2020. Sua proposta é orientar a Educação Infantil no município, tendo em conta as especificidades locais. Seu texto visa também:

[…] a diversidade e o pluralismo de ideias, considerando os saberes e as práticas próprias dos sujeitos, considera as concepções acerca da infância e da educação, compreendidas como direitos fundamentais à construção da cidadania e em favor do respeito à infância e às suas especificidades. (Jaguarão, 2020, p. 22)

De acordo com o DOM (Jaguarão, 2020), esta etapa da Educação Básica deve contemplar a brincadeira, a participação da criança como sujeito ativo no referente à socialização e interação com o mundo, construindo saberes, novas experiências, criando a percepção do outro e de si. Compreende também a Educação Infantil como um espaço para a criança desenvolver a autonomia, colocando-a no centro do processo de aprendizagem.

O currículo da educação infantil constitui-se de um conjunto de práticas que tem por objetivo unir as experiências e saberes já adquiridos pelas crianças com os conhecimentos que integram a cultural local, o conhecimento ambiental, científico, social e psicológico, ou seja, a criança como um ser integral. (Jaguarão, 2020, p. 32)

Neste sentido, a gestão escolar precisa estar preparada para atender às crianças e oportunizar o seu desenvolvimento integral. Este é desafio para os gestores de Educação Infantil, o que iremos discutir na próxima seção.

Gestão escolar

A forma como acontece a gestão escolar é o ponto inicial que define como a escola irá se estruturar e se organizar. Libâneo (2007) conceitua gestão escolar como uma organização que agrega pessoas com as suas ações e interações, que são construídas entre elas e aquele contexto, em que os diálogos e decisões se dão coletivamente. O gestor exerce um papel determinante na qualidade do trabalho desenvolvido na instituição escolar. O papel de líder, que organiza o grupo, detém autonomia para criar vínculos com diferentes segmentos da escola, transitando entre as relações humanas, o administrativo, o pedagógico e o social. De acordo com Paro (2007, p. 102), o gestor é um “[…] profissional com sua liderança que agrega ao grupo motivação, comprometimento, participação. É capaz de organizar os espaços de convivência e as atividades propostas de forma que os sujeitos que por ali passam fiquem marcados com os sinais de convívio democrático”.

Oliveira e Vasques-Menezes (2021) conceituam gestão escolar como compartilhamento de ideias, a participação efetiva de todos envolvidos com o ambiente escolar. Para Lück et al. (2012), a gestão é como um espaço autônomo, de participação na tomada conjunta de decisões e efetivação de resultados. É partindo destes conceitos que iremos discutir a gestão.

Assim, o trabalho da gestão escolar só se faz no coletivo. Quando a escola almeja caminhar para uma educação de qualidade, cada componente — professores, gestão, funcionários, alunos, pais — é essencial no desenvolvimento de ações que promovam a escola como um espaço democrático. Cada sujeito tem um papel fundamental para que a escola funcione e caminhe para uma educação de qualidade. Todos têm algo a contribuir e devem participar. Esta ideia vai ao encontro do que Veiga (2009, p. 5) diz sobre participação, que “requer o sentido da construção de algo que envolve todos os interessados e que tem a ver com educação de qualidade. Ela é condição para a gestão democrática e uma não é possível sem a outra”.

Os saberes construídos pelos profissionais que atuam nas escolas vão ao encontro desta discussão em torno do trabalho da gestão escolar. É o que iremos discutir na seção seguinte.

Os saberes da gestão escolar

A relevância de discutir os saberes que são mobilizados pelos profissionais da educação se dá principalmente pela ideia de os sujeitos se perceberem como produtores de saberes, e que estes saberes são produzidos, reelaborados e mobilizados pelos educadores diariamente no seu trabalho. Esta ideia vem ao encontro do que Tardif (2011, p. 257) escreve sobre os saberes docentes: “o trabalho não é primeiro objeto que se olha, mas uma atividade que se faz, e é realizando-a que os saberes são mobilizados e são construídos”. Reconhecemos, conforme Barros et al. (2020), estudos sobre saberes por diversos autores, que se complementam e atualizam-se na perspectiva de apontar uma discussão profícua ao campo. A opção neste estudo, para aproximar os saberes à gestão escolar, seguirá em torno dos apontamentos de Tardif (2011) e Pimenta (1996), que oportunizam a discussão dos saberes de forma a sistematizar a análise categorial a ser desenvolvida posteriormente.

Desta forma, compreendemos que a prática dos gestores integra diferentes saberes oriundos de sua experiência como aluno, de como via o professor e a escola, saberes comportamentais, conhecimentos construídos na universidade, nas especializações, cursos de formação continuada, confrontados e reelaborados na experiência profissional e da reflexão sobre suas ações. Nesta perspectiva, Pimenta (1996) pontua uma articulação entre os saberes da docência. Assim, os saberes construídos na formação inicial necessitam ser concebidos a partir da prática existente como referência para a formação e refletir sobre ela, constituindo o seu saber-fazer a partir de seu próprio fazer.

Assumimos, portanto, a ideia de que os saberes são plurais. Neste sentido, Tardif (2011, p. 36) discute que a relação dos profissionais com os saberes:

[…] não se reduz a uma função de transmissão dos conhecimentos já constituídos. Sua prática integra diferentes saberes com os quais o corpo docente mantém diferentes relações. Pode-se definir o saber docente como um saber plural, formado pelo amálgama mais ou menos coerente de saberes oriundos da formação profissional e de saberes disciplinares, curriculares e experienciais.

Os profissionais da educação têm o papel de formar pessoas e reconhecem que têm competência para ensinar. Entretanto, não se reconhecem como profissionais que produzem saberes e que possuem autonomia para mobilizá-los. Quando o profissional não enxerga as suas ações como criativas e transformadoras, dificilmente vai assumir que produz saberes. Para Tardif (2011), a prática profissional se transforma em um espaço de produção de saberes e de relativa autonomia para práticas educativas inovadoras.

Assim, quando assume que o seu cargo está ao mesmo tempo mobilizando os seus saberes para compreender, planejar, avaliar, motivar, organizar a escola, buscar o diálogo com toda a comunidade escolar, o gestor tem a oportunidade de criar espaços para trabalhar coletivamente e produzir os seus saberes neste contexto de interação. Para Charlot (2000), qualquer relação com o saber é também uma relação consigo próprio e com o outro.

Tendo presente este diálogo com os autores citados, passamos aos resultados obtidos através dos dados coletados.

Discussão dos resultados

Os dados coletados em relação ao grupo focal e as entrevistas, as duas etapas da pesquisa de campo, foram organizados a partir de uma síntese das falas das gestoras, relacionando-as com as categorias dos saberes que são discutidos no artigo. São três: os saberes experienciais, os saberes do conhecimento e os saberes oriundos da prática e da reflexão sobre ela. Com base nas leituras de Tardif (2011, p. 10) sobre os saberes, compreendemos que cada um deles:

[…] constitui um esforço de síntese não só de pesquisas empíricas realizadas junto a professores de profissão, mas também de questões teóricas sobre a natureza dos saberes (conhecimentos, saber-fazer, competências, habilidades, etc.) que são efetivamente mobilizados e utilizados pelos professores em seu trabalho diário, tanto na sala de aula quanto na escola.

Para a discussão dos dados desta pesquisa, categorizamos os saberes em: saberes experienciais, definidos como os saberes que os profissionais trazem a partir da sua trajetória de vida, como as características pessoais, comportamentais, crenças, valores; das experiências que tiveram como aluno, de como viam a escola e os professores; saberes do conhecimento oriundos da universidade, das especializações, de cursos e formações continuadas; e os saberes construídos através da prática e das reflexões sobre ela. De acordo com Tardif (2011, p. 29):

A formação passa sempre pela mobilização de vários tipos de saberes: saberes de uma prática reflexiva, saberes de uma teoria especializada, saberes de uma militância pedagógica. O que coloca os elementos para produzir a profissão docente, dotando-a de saberes específicos que não são únicos, no sentido de que não compõem um corpo acabado de conhecimentos, pois os problemas da prática profissional docente não são meramente instrumentais, mas comportam situações problemáticas que requerem decisões num terreno de grande complexidade, incerteza, singularidade e de conflito de valores.

A análise foi realizada a partir do debate com as gestoras, diante das falas em relação às temáticas que envolvem a Educação Infantil e o trabalho na gestão. Nas entrevistas, as perguntas foram focadas nos saberes das gestoras, questionando-as sobre formação, atitudes comportamentais diante das situações que lidavam diariamente, os relatos em relação às práticas e suas reflexões.

Fonte: as autoras.

Quadro 3 Caracterização das participantesgestorasNotas: (1) Para preservar a identidade das gestoras, estas foram denominadas por letras do alfabeto, em sequência: gestoras A, B, C, D e E. (2) Para manter o sigilo das escolas em que atuam as gestoras, elas foram denominadas por números em sequência: escolas 1, 2, 3, 4, 5. 

As gestoras que participaram da pesquisa ingressaram na gestão nas escolas de Educação Infantil por convite realizado pela Secretaria de Educação em 2017, período de início do mandato do atual prefeito. No momento da inserção, elas não tinham um curso ou especialização em gestão, que não era pré-requisito para o seu ingresso na área. As gestoras A, C e D já tinham atuado como supervisora ou orientadora educacional em outras escolas, e as demais tinham a experiência como docente. Ao longo de suas atuações como gestoras, as profissionais realizaram uma especialização em gestão. Segundo elas, isto ocorreu devido às demandas que o trabalho exigia.

Problematizando os saberes a partir da pesquisa de campo

Para realizar a análise dos dados do grupo focal, organizamos os elementos em categorias, cada agrupamento representando unidades semelhantes para serem analisadas. Indo ao encontro de Moraes (2003, p. 197), que discute o processo de categorização: “no seu conjunto, as categorias constituem os elementos de organização do metatexto que a análise pretende escrever. É a partir delas que se produzirão as descrições e interpretações que comporão o exercício de expressar as novas compreensões possibilitadas pela análise”. Como categorias, destacamos os saberes experienciais, os saberes do conhecimento, e os saberes construídos através da prática e da reflexão sobre ela.

Iniciamos com a primeira categoria que emergiu das falas das gestoras, referente aos saberes experienciais:

Foi um processo de conquista, que eu não poderia naquele momento iniciar somente como uma gestora, impondo algumas coisas, com limites. Eu tive que partir pela conquista, sendo mais aquela amiga, aquela companheira. só que à medida que o tempo foi passando, fui me dando conta que essa coisa de formar um vínculo de amizade entre as famílias e a escola, entre os professores, estavam ficando a meu favor. (Gestora B)

Eu procuro sempre enxergar no grupo o todo como um todo. Como vou te explicar? Cada integrante ali é uma parte fundamental para a escola andar, eu não acho que ninguém é mais importante que ninguém ali, que cada um tem seu papel que é fundamental para que a escola ande. (Gestora A)

As gestoras relataram que trouxeram características pessoais para incorporar no seu trabalho nesse momento, como ser parceira, amiga, de saber parar e escutar o outro, ser flexível, responsável e paciente. Essas características que adotaram nas suas práticas as ajudam diariamente a lidar com as situações. Ao perceber os relatos das gestoras, situamos a ideia de Tardif (2011, p. 50) ao descrever que o trabalho docente se realiza a partir das interações com outras pessoas:

A atividade docente não é exercida sobre um objeto, sobre um fenômeno a ser conhecido ou uma obra a ser produzida. Ela é realizada concretamente numa rede de interações com outras pessoas, num contexto onde o elemento humano é determinante e dominante e onde estão presentes símbolos, valores, sentimentos, atitudes, que são passíveis de interpretação.

Destacamos que as características comportamentais das gestoras auxiliaram na sua inserção na escola e no convívio com os demais sujeitos que ali estão. As gestoras utilizaram os saberes que já tinham e os incorporaram à gestão. Trouxeram os seus saberes experienciais para lidar com os conflitos e dificuldades enfrentadas na gestão.

A segunda categoria analítica se refere aos saberes do conhecimento. Segundo as falas das gestoras, os saberes do conhecimento contribuíram e contribuem muito no seu trabalho, tanto os conhecimentos construídos no magistério, no curso de Pedagogia, como os saberes através da especialização em gestão.

O curso do magistério é uma base para quem quer atuar na pedagogia, principalmente na sala de aula… Acho que ele me deu uma base muito boa, em função de plano de aula, de como compreender aluno, de materiais didáticos, de como chegar no aluno, de fazer um projeto… A pedagogia me deu muita teoria de possibilidades. Sendo assim, a criança em determinada idade ela age dessa forma, precisamos observar tais coisas, determinados materiais para trabalhar em determinada idade. Aí já vem outro pensador que já pensa diferente de trabalhar a função de não trabalhar isolado, mas como um todo. Tu vê muita teoria, olhares diferentes para cada faixa etária, é mais ou menos isso aí. Já na especialização te dá um início a que eu tive aquela empurrada, aquela noção de como vai ser o trabalho. (Gestora A)

Tudo está caminhando tão rápido e tu precisa ter novidades, aprender coisas novas, tu precisa melhorar, precisa estar aprendendo, nada é como: comecei assim vou assim desse jeito até o final. Não. Você está em constante mudança, precisa ter bases fortes. (Gestora B)

A partir das falas das gestoras, retomamos a definição de Tardif (2011, p. 38) para os saberes do conhecimento como “[…] saberes que correspondem aos diversos campos do conhecimento, aos saberes de que dispõem a nossa sociedade, tais como se encontram hoje integrados nas universidades, sob a forma de disciplinas, no interior de faculdades e cursos distintos”.

A terceira categoria de análise trata dos saberes construídos através da prática e da reflexão sobre ela. Destacamos excertos nos quais as gestoras trazem o seu olhar reflexivo para a sua experiência profissional:

Enxergar a escola como tu tivesse enxergando de cima, não num nível superior, é como se tu tivesse uma maquete ali, tu consegue observar melhor, de todas as áreas, departamentos da escola, o que é importante, o que não é. A visão que eu tinha como professora de sala de aula, hoje eu tenho bem diferente. (Gestora A)

Quando tu passas por vários segmentos, é legal tu ser professora, depois gestora de uma escola e depois estar na Secretaria de Educação, tu consegue ver todos os lados. Entendo às vezes as gurias, quando dizem tem coisas que querem resolver, que não conseguem, é ruim. (Gestora D)

Essa pandemia veio nos mostrar que a gente tem condições de se reinventar, a maneira como se dá aula, como trata os alunos e as famílias, também como recebem essas aulas. A gente já conversou lá na escola, de seguir com isso, mesmo depois da pandemia, continuar com essas aulinhas on-line, e penso que de repente é uma aula, pode se ceder aquele dia específico, a criança vai ter aula a distância, os professores vão ter a sua reunião pedagógica. (Gestora B)

Nesta perspectiva, observamos que a gestora A traz uma reflexão sobre suas diferentes visões como profissional, nos diversos segmentos pelos quais passou em sua trajetória na educação. Ela relata que como docente tem a preocupação com a sua turma, com o contexto da sala de aula. Acrescentou que quando está na supervisão escolar, sua atenção se volta a documentos, notas, atender todos os professores. Quando o sujeito ocupa um cargo de gestão, em que precisa administrar tudo, ela consegue enxergar a escola como um todo. A gestora A diz que quando retornar para a sala de aula, ela terá um olhar diferente para o seu trabalho, e isto ocorre através da prática da gestora nestes segmentos, e diante da sua reflexão perante a tudo isto. Este saber foi construído por ela, através do exercício de sua prática.

A experiência provoca, assim, um efeito de retomada crítica (retroalimentação) dos saberes adquiridos antes ou fora da prática profissional. Ela filtra e seleciona os outros saberes, permitindo assim aos professores reverem seus saberes, julgá-los e avaliá-los e, portanto, objetivar um saber formado de todos os saberes retraduzidos e submetidos ao processo de validação constituído pela prática cotidiana. (Tardif, 2011, p. 53)

Outro exemplo de reflexão sobre a prática em que surgem saberes novos, é o relato da gestora B, que traz o momento que vivemos, a pandemia de Covid-19, como uma ressignificação da profissão. Os saberes construídos na prática e na reflexão sobre ela se encontram em diversas falas das gestoras. O grande desafio é se reconhecer como profissionais que produzem e são capazes de controlar estes saberes. As gestoras realizam seu trabalho a partir de interações com outros sujeitos que ali estão e, diante disto, diversos saberes são produzidos. A legitimação destes saberes por parte das gestoras resultaria no reconhecimento, como profissional, da importância que sua prática tem no contexto escolar e educacional.

O não reconhecimento como produtoras de saberes está nas falas das gestoras quando questionadas sobre quais saberes mobilizavam diariamente na gestão. A gestora A disse que não se põe a pensar quais são. Aqui mostra a falta de reconhecimento e legitimação dos saberes por parte dos profissionais da educação e a falta do espaço de reflexão sobre a própria prática. Entretanto, através dos relatos da gestora, percebemos a mobilização de diferentes saberes na sua prática. Como exemplo, quando ela menciona que se você tem uma experiência maior na área de gestão e consegue refletir sobre situações que vivenciou anteriormente, pode compartilhar esta experiência com as colegas.

A gestora B, quando questionada sobre quais saberes mobilizava na prática, também não soube responder diretamente. Aqui novamente percebemos a dificuldade que o profissional tem de identificar os saberes que utiliza diariamente na sua prática. Entretanto, a partir da fala da gestora, nota-se que ela compreende os saberes que construiu ao longo de sua trajetória:

Também eu aprendi muito, abrir exceções e cada caso é um caso, tu não pode rotular aqui na escola vai ser assim, tu não pode fazer isso. Tipo o ano passado foi desse jeito, ano passado foi, esse ano tem outras famílias, outras crianças. E isso também me modifiquei bastante nesse sentido… Às vezes tu tá numa reunião e tu escuta de um colega de um problema que ele está passando e na minha cabeça eu penso assim, é tão simples, porque eu já tive naquela situação que o meu colega gestor tá vivendo. Hoje consigo ver situações que no início não, mas foi gradativo. Foi o meu tempo de experiência lá que me fez chegar no ponto que estou hoje. (Gestora B)

Questionamos as gestoras se elas realizavam reuniões pedagógicas e se conseguiam refletir juntas sobre o seu trabalho. Elas responderam que as reuniões são muito difíceis de acontecerem, porque surgem vários empecilhos, como um horário que seja disponível para todos, a ausência de período específico para reuniões no período de trabalho. Estes e outros fatores acarretam que no período destinado não poderá haver alunos na escola, portanto não terá aula. As gestoras relatam também o cansaço dos profissionais pela carga horária de trabalho.

Através destes encontros podem surgir vários outros saberes, que se dão a partir da interação com os colegas, a troca de experiências, as reflexões que trazem destes momentos. Para Tardif (2011), a prática profissional não é vista somente como um espaço para aplicar teorias elaboradas em universidades ou laboratórios. Ela é também um lugar para aprender e produzir saberes.

Às vezes, uma reunião pedagógica, metade da reunião é um desabafo, as pessoas têm carências, e nós da educação infantil, as escolas, as estruturas têm que serem reformuladas, nós não temos nem um lugar e pessoal suficiente para que tu possas ter um tempo com aquele profissional para conversar, saber o que está acontecendo. Se te disser uma coisa que sinto falta, é isso, um espaço para os professores, ter uma reunião pedagógica real. (Gestora B)

Por falta de tempo e espaço na escola para dialogarem, falarem dos seus anseios, dos problemas, das dúvidas e experiências, os profissionais se sentem frustrados. Se a concepção de gestão democrática é a organização que agrega pessoas, que interagem, trabalham coletivamente, estes momentos são fundamentais para a prática profissional. As escolhas e decisões se dão coletivamente, e se não tiver este espaço de diálogo, a realização de uma gestão democrática na escola se torna inviável.

Através destes encontros, da interação construída a partir das reuniões, os saberes vão sendo elaborados pelos sujeitos que ali estão. Para dar continuidade ao fato de que os encontros entre os profissionais da educação são de suma importância e refletem no seu trabalho, destacamos a fala da gestora D, quando faz um comentário para finalizar o debate que realizamos no grupo focal:

A gente tá acostumado a ser tão mecânico, que aquilo é tudo correndo, correndo, eu ultimamente tenho sido assim e acaba que não paro para escutar o que as gurias têm. Agora, na verdade, estava pensando aqui depois que terminou, fiquei pensando, acho que agora tem que fazer uma reunião para escutar o que essas gurias têm a falar, porque até pelo momento em que a gente vem vivendo. (Gestora D)

A fala da gestora D traz a importância do debate, deste encontro como algo a ser pensado e inserido por elas em suas práticas. Consideramos, também, que a pesquisa suscitou a reflexão sobre os saberes docentes em relação ao contexto atual da profissão e oportunizou o diálogo entre as gestoras da Educação Infantil do município de Jaguarão.

A partir do grupo focal e das entrevistas, percebemos que as gestoras mobilizam os seus saberes diariamente no seu trabalho e que estes vão sendo confrontados, adaptados, reinventados e construídos através de suas práticas. A todo o momento elas descrevem os saberes nas suas ações e atitudes, tanto os oriundos do conhecimento como os saberes experienciais que estão ali presentes no seu trabalho, e, a partir destes, novos saberes são construídos na prática cotidiana e na reflexão sobre ela.

É fundamental destacar ainda que há uma ausência, por parte dos profissionais da educação, de se reconhecerem como produtores de saberes, e perceberem que conseguem ter autonomia para refletir sobre suas práticas e transformá-las. Neste sentido, Freire (1991, p. 126) complementa:

Você, eu, um sem-número de educadores sabemos todos que a educação não é a chave das transformações do mundo, mas sabemos também que as mudanças do mundo são um quefazer educativo em si mesmas. Sabemos que a educação não pode tudo, mas pode alguma coisa. Sua força reside exatamente na sua fraqueza. Cabe a nós pôr sua força a serviço de nossos sonhos.

Cabe a nós, profissionais, compreender que o nosso papel é desafiador, que estamos em constante processo formativo, sempre buscando aprender. A legitimação dos saberes é um ponto relevante no que se refere à valorização da educação, e para que a gestão consiga criar condições para que todos os envolvidos no contexto escolar tenham condições de desenvolver seu trabalho de modo satisfatório e com qualidade.

Considerações finais

Este estudo buscou analisar os saberes que as gestoras mobilizam para desenvolver suas ações na gestão da Educação Infantil no município de Jaguarão. Como objetivos específicos, ele procurou identificar os saberes que influenciam as ações dos gestores e gestoras no cotidiano escolar e investigar a forma como estes utilizam os seus saberes para organizar a escola. Com a pesquisa, pretendemos suscitar uma discussão acerca dos saberes mobilizados pelas gestoras no exercício de sua gestão. A discussão dos saberes oportuniza às gestoras reconhecerem que não somente reproduzem saberes, mas os produzem nas suas práticas, o reconhecimento destes saberes possibilita um caminho de autonomia, qualidade e valorização profissional.

As entrevistadas destacam saberes em todos os momentos de suas falas, quando fazem relatos sobre o trabalho e na forma como lidam com as situações enfrentadas diariamente na prática profissional. Os saberes experienciais estão ali descritos por elas em vários momentos, os saberes pessoais e culturais influenciam as suas ações profissionais. Também os saberes do conhecimento destacados por elas como importantes para sustentar as suas práticas. E em vários relatos os saberes da reflexão sobre a prática estiveram presentes.

A partir da fala das gestoras no grupo focal e nas entrevistas, ficou compreendido que elas já passaram por importantes mudanças no tocante às propostas pedagógicas, as concepções de escola, de infância e dos documentos em torno da Educação Infantil. Vimos que elas têm grandes desafios a serem enfrentados pelo caminho.

Uma das mudanças foi a transição de creche com visão assistencialista para se tornar uma escola. Este desafio relatado por algumas das gestoras mostra os saberes mobilizados na prática para enfrentá-lo. As gestoras precisaram de características pessoais para lidar com as pessoas, os conhecimentos oriundos de suas formações para trazer argumentos sólidos que sustentassem as suas intervenções em relação a mudar os olhares dos sujeitos envolvidos neste processo e dos saberes construídos a partir de suas reflexões sobre o seu trabalho.

Um dos problemas trazidos pelas gestoras foi o fato de não existirem atualmente as reuniões pedagógicas, um espaço para dialogarem e que esta ausência implica nas condições de realização do seu trabalho. E os conceitos de gestão democrática trazidos por elas são consequências desta ausência de diálogo. Resgatar este espaço também vai ao encontro da discussão dos saberes, pois, os encontros entre os profissionais são locais de confronto e produção de saberes. Considerar um processo de formação, em que os saberes já construídos são confrontados com a prática cotidiana e produzidos a partir da reflexão na e sobre a prática, torna-se um caminho mais viável para a formação dos profissionais da educação.

Defendemos, por fim, que os profissionais que atuam na Educação Infantil precisam discutir sobre os novos documentos que trazem esta etapa da Educação Básica, como essencial no desenvolvimento da criança. A gestão precisa estar organizada para o novo contexto que a Educação Infantil se apresenta no cenário educacional, e a formação continuada vai ao encontro desta construção, em que os diferentes saberes vão sendo elaborados, confrontados e produzidos pelos profissionais que ali estão. E que estes momentos de diálogos e reflexões resultem no reconhecimento e legitimação dos saberes por parte dos profissionais da educação, para que não ocorra uma fragmentação de saberes por parte dos profissionais, desarticulando-os em suas práticas, provocando uma desconexão com a contextualização dos espaços de desenvolvimento e aprendizagem em que estão os principais sujeitos da Educação Infantil, as crianças. A mobilização e reconhecimento destes saberes por parte dos gestores vão ao encontro da construção dos saberes dos profissionais docentes e que estão interligados diretamente a oportunizar autonomia na construção de aprendizagens das crianças.

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Recebido: 19 de Fevereiro de 2022; Aceito: 08 de Agosto de 2022

Contribuição na elaboração do texto

autora 1: revisão da literatura, elaboração do texto, aquisição e análise dos dados, consolidação do manuscrito; autora 2: concepção do estudo, análise da coleta de dados, revisão e consolidação do texto. Orientadora da pesquisa.

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