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Linhas Críticas

Print version ISSN 1516-4896On-line version ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.28  Brasília Jan./Dec 2022  Epub Sep 02, 2022

https://doi.org/10.26512/lc28202243712 

Artigos

Seleção de diretores em um Ciep: reflexões sobre burocracia de alto escalão

Selección de administradores de un Ciep: reflexiones sobre burocracia de alto nivel

Selection of school principals at a Ciep: reflections on high-level bureaucracy

1Mestra em Letras Vernáculas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2014).

2Mestra em Educação pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (2019).

3Doutora em Educação pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (2022).

4Doutora em Educação pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (2022).

5Doutor em Educação pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (2022).


Resumo

O estudo analisou os mecanismos de seleção de diretores em uma cidade da região metropolitana do Estado do Rio de Janeiro por meio das demandas que ancoraram a escolha dos gestores em um Centro Integrado de Educação Pública (Ciep), no período de 2013 a 2018. De cunho qualitativo, a investigação utilizou legislações para a coleta de dados e os resultados mostraram que, embora os instrumentos normativos apontem a escolha do gestor por consulta pública pela comunidade escolar, prevalece a indicação político-partidária como principal ferramenta para elencar diretores escolares, legitimada por ato discricionário do burocrata do alto escalão.

Palavras-chave Seleção de diretores escolares; Educação em tempo integral; Burocracia

Resumen

El estudio analizó los mecanismos de selección de en una ciudad em Rio de Janeiro a través de las demandas que posibilitaron la elección de administradores en um Centro Integrado de Educación Pública (Ciep), de 2013 a 2018. De naturaleza cualitativa, la investigación utilizó leyes y resoluciones de la ciudad para la recopilación de datos. Los resultados mostraron que, aunque los instrumentos normativos apuntan a la elección del administrador a través de la consulta pública de la comunidad escolar, la indicación del partido político prevalece como la principal herramienta para listar directores escolares, legitimado por un acto discrecional de un alto burócrata.

Palabras clave Selección de directores de escuela; Educación a tiempo completo; Burocracia

Abstract

The study analyzed the selection mechanisms for principals in a city in the metropolitan region of Rio de Janeiro State through the requirements that underpin the choice of managers at an Integrated Center for Public Education (Ciep), in the period from 2013 to 2018. Being qualitative in nature, the research used legislation for data collection and the results showed that although policy tools determine the choice of managers by public consultation in the school community, political and party-related determination prevails as the main tool to select school principals, legitimized by discretionary acts of high-ranking bureaucrats.

Keywords Selection of school principals; Full-time education; Bureaucracy

Introdução

A gestão democrática configurada em uma legislação não aponta, necessariamente, sua materialidade enquanto princípio. Segundo Esquinsani (2016), é necessário identificar os mecanismos que acionam essa gestão, assim como os suportes que a garantem. A escolha de diretores pode ser um mecanismo de gestão democrática, conforme discute Lima (2001), tornando-se importante instrumento de investigação por revelar escalas nas quais tal gestão pode ser compreendida. Nesse cenário, o objetivo deste trabalho foi analisar os mecanismos de seleção de gestores escolares em uma escola pública municipal da região metropolitana do estado do Rio de Janeiro, doravante nomeada escola X [6] , por meio das demandas que ancoraram a escolha desses atores em um Centro Integrado de Educação Pública (Ciep) municipal. Para tanto, observamos a participação da comunidade escolar e, no contexto da prática, interessamo-nos pelos alinhamentos ou desacordos relacionados à regulamentação das políticas públicas municipais, seguindo a determinação da meta 19, no que tange à gestão democrática, no art. 9 da Lei n.º 13.005/14 (Brasil, 2014), que institui o Plano Nacional de Educação (PNE) 2014-2024.

Em 2014, o PNE, com 14 artigos e 20 metas, orienta que os entes federados aprovem seus instrumentos normativos capazes de regulamentar a gestão democrática da Educação Pública nos seus sistemas de ensino, em um período de dois anos, conforme determinação da meta 19:

Assegurar condições, no prazo de 2 (dois) anos, para a efetivação da gestão democrática da educação, associada a critérios técnicos de mérito e desempenho e à consulta pública à comunidade escolar, no âmbito das escolas públicas, prevendo recursos e apoio técnico da União para tanto. (Brasil, 2014, s. p.)

Estabelece, também, estratégias para evitar práticas patrimonialistas na escolha de gestores escolares ao que tange a sua nomeação, podendo aplicar sanções financeiras perante o não exercício dos critérios formulados:

Priorizar o repasse de transferências voluntárias da União na área da educação para os entes federados que tenham aprovado legislação específica que regulamente a matéria na área de sua abrangência, respeitando-se a legislação nacional, e que considere, conjuntamente, para a nomeação dos diretores e diretoras de escola, critérios técnicos de mérito e desempenho, bem como a participação da comunidade escolar. (Brasil, 2014, s. p.)

Todavia, isso não significa dizer que as regulamentações locais estão alinhadas aos pressupostos macros. As particularidades e os contextos peculiares do momento vivenciado desenham as políticas tão logo os atores se apropriem do texto. Não obstante, sem o monitoramento das ações das unidades federadas, práticas político-partidárias e com insípida participação da comunidade podem persistir.

Desse modo, a pesquisa é relevante ao colaborar com o debate sobre as formas de acesso dos diretores escolares, contribuindo na tessitura de um panorama a respeito do que ocorre nos municípios fluminenses relacionado à gestão democrática. Percebemos, portanto, o município por nós intitulado W, como ente federado que escreve seus caminhos pelos processos de gestão, no âmbito de se refletir acerca da “participação de todos os envolvidos na escola pública” (Amaral, 2015, p. 29).

Para tanto, realizamos uma pesquisa exploratória em documentos municipais de domínio público. No Diário Oficial, no qual se apresentaram as exonerações e nomeações indicadas neste estudo, observamos todo o processo que culminou na nomeação de uma das docentes indicadas por uma lista tríplice (a ser comentada mais à frente), iniciado pela exoneração de todos os diretores das escolas públicas municipais em janeiro de 2017. Na ata produzida durante o encontro dos representantes da comunidade escolar com o secretário J, encontramos os detalhes de tal reunião, em que o chefe da pasta da educação no município se compromete em atender parte das solicitações do grupo. Esse documento se encontra disponível na secretaria municipal de educação da cidade em voga e há uma cópia no Ciep investigado. Na exploração desses documentos, encetamos um estudo interpretativista dos dados, observando a atuação dos atores diante dos movimentos políticos para o acesso ao cargo de diretor no município, como observado ao longo do artigo.

Quanto ao seu desenho, o artigo desenvolve-se em cinco momentos, além desta parte introdutória: a tessitura da gestão democrática como princípio, o percurso da municipalização e resistências pelo tempo integral, as encenações políticas no município W, seguidas de questões relacionadas ao burocrata da secretaria municipal de educação, considerado, aqui, como um transeunte entre as burocracias de alto escalão e de nível de rua, e, por fim, as nossas considerações.

A gestão democrática como princípio

A gestão democrática surge como princípio brasileiro na Constituição Federal do Brasil (Brasil, 1988), expressa no artigo 206, ofertada na forma da lei e construída em regime de colaboração. Essa abrangência normativa foi atenuada pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), Lei nº 9.394/96 (Brasil, 1996), ao apoiar o pressuposto de que no seu artigo 3º, inciso VIII, “a gestão democrática do ensino público [ocorrerá] na forma desta lei e da legislação dos sistemas de ensino”. Logo, implica a autonomia das entidades federativas e, teoricamente, ratifica a ideia de que os sujeitos interessados participarão do processo. Entretanto, a Carta Magna traz em seu escopo as ideias de democracia representativa, no art. 1º, e de uma participação outorgada, no art. 14, reverberando um contrassenso: na representação, o povo, como determina o parágrafo único do art. 1º da Constituinte, é possuidor de “todo o poder” (Brasil, 1988, s.p.) e o concede aos seus representantes para cumpri-lo em seu nome, enquanto, na participação, os representantes optam por determinados poderes que serão cedidos ao povo. Para nós, a ideia de uma democracia representativa, na qual a conexão entre representantes e representados se atém tão somente à eleição, enfraquece a ideia de gestão democrática aqui defendida. A participação limitada ao cunho eleitoral pode acarretar ações ilegítimas e negligenciamento de direitos pelas entidades legislativa e executiva e uma robustez de domínio dirigido aos representantes.

Não rechaçamos a democracia representativa e expomos a defesa de a eleição dos diretores pelos destinatários da política como meio de representatividade da comunidade escolar; não obstante, deve haver uma complementaridade por meio de uma democracia que compreendemos como participativa. A respeito do predicativo “participativo”, Gugliano (2006, p. 272) o articula como “elemento central que nos permite compreender que tipo de democracia é esta, como ela se desenvolve e porque se diferencia frente a outras experiências semelhantes”. Nessa senda, destacamos a participação na democracia, evidenciando outra que se diferencie da representativa, porém, sem eliminá-la, complementando-a.

Santos e Avritzer (2002) indicam que a conjugação entre a democracia representativa e a participativa ocorre pela coexistência e complementariedade. A coexistência “implica uma convivência, em níveis diversos, das diferentes formas de procedimentalismo, organização administrativa e variação de desenho institucional” (Santos & Avritzer, 2002, pp. 75-76), logo, a democracia representativa nacional coexiste com a democracia participativa local. Conforme Bobbio (2000), para além de uma democracia representativa, ao ponderarmos sobre o processo de democratização, é basilar atentar para aquilo que o autor denomina como expansão do poder ascendente (do povo) e sua substituição regular, garantindo que minorias possam ocupar cargos de decisão. Trata-se de uma contraposição à exigência populista do monopólio moral da representação. A escola é um desses espaços de representatividade e pensando em uma gestão democrática, reiteramos a ideia de Lima (2018) de que as práticas democráticas e participativas nos processos de tomada das decisões são uma maneira de aprender a democracia. Portanto, para a gestão ser democrática, a participação deve ser inerente ao processo, implicando a tomada de decisão pelos destinatários da política, sendo:

[…] um processo político no qual as pessoas que atuam na/sobre a escola identificam problemas, discutem, deliberam e planejam, encaminham, acompanham, controlam e avaliam o conjunto das ações voltadas ao desenvolvimento da própria escola na busca da solução daqueles problemas. Esse processo, sustentado no diálogo, na alteridade e no reconhecimento às especificidades técnicas das diversas funções presentes na escola, tem como base a participação efetiva de todos os segmentos da comunidade escolar, o respeito às normas coletivamente construídas para os processos de tomada de decisões e a garantia de amplo acesso às informações aos sujeitos da escola. (Souza, 2009, pp. 124-125)

Sob o prisma democrático, a ideia a movida nesta seção é orientada pela epistemologia teórica de Lima (2014), de que a eleição pode rasurar as estruturas de poder autoritário que circulam as relações sociais e as práticas educativas e legitimar as deliberações, exercendo o poder decisório de forma coletiva. Mais coesa – embora abarcada por uma multiplicidade de fatores, com maior ou menor intensidade democrática, tais como os critérios de elegibilidade, de definição de eleitor, dos processos eleitorais, da duração dos mandatos, das competências a exercer – é dimensão pensada para e pela democracia, mesmo considerando que conhecimento e competência técnica podem ser mais formalizados por meio de concurso e que a nomeação em cargos comissionados, em regimes democráticos, é frequente. Mesmo assim, o autor defende a eleição e sua forma democraticamente superior e, de resto, mais favorável à possível combinação entre práticas de democracia direta e práticas de democracia representativa nas escolas.

A eleição talvez não seja sinônimo de escola democrática, mas promove a expectativa para tal. Ela, tal como os dispositivos legais, por si, não efetiva a gestão democrática, no entanto, de acordo com Lima (2014), somada a outras instâncias como a participação na decisão e a colegialidade – dimensão essa visualizada por meio dos conselhos escolares, exemplificando um mecanismo que descentraliza o poder de decisão da figura do diretor-geral, amplia a intensidade do processo. Dessarte, o modelo de democracia representativa em que a comunidade escolar é convocada apenas para elencar o seu representante, como já mencionado, afasta-se do que acastelamos por gestão democrática, restringindo-a. Os representantes devem abrolhar visibilidade pública de suas ações para que eles concebam as determinações da comunidade, constituindo uma democracia na qual a participação é complemento à sua representação (Santos & Avritzer, 2002).

Partilhamos também da proposta de Romão e Padilha (1997), que visualizam a eleição para a direção escolar escorada em três fases: elegibilidade, processo seletivo e eleição propriamente dita e, nas quais, a comunidade deve participar de todas as etapas. Concordamos com o posicionamento das pesquisadoras e aderimos à ideia de o processo seletivo ser uma maneira de contemplar os critérios de mérito e desempenho que aparecem na meta 19 do PNE, desde que estabelecidos pelos seus usuários e não os inibindo.

Não obstante, é necessário entender que a gestão democrática na prática se diferencia do que está legalmente constituído. Em cenários que abrangem uma pseudoparticipação, cunhada por práticas de participação passiva, absenteísmos e cerceamento patrimonialista, a eleição do representante escolar perde significado democrático e a colegialidade pode não possuir o poder deliberativo de gestão, pois a real participação exige mais do que o acesso à informação e o direito de ser informado.

Em relação ao nosso objeto de estudo, o processo de seleção de diretores e a gestão democrática do município W, percebemos que suas lideranças políticas já se aproveitavam das brechas legais da LDBEN em torno das não definições a respeito da forma de escolha de diretores escolares, fazendo com que a interferência política permitisse “que o clientelismo político tivesse, na escola, um campo fértil para seu crescimento” (Mendonça, 2001, p. 88).

Portanto, os mecanismos de seleção da função de diretor escolar são reveladores das concepções de gestão democrática adotadas pelo sistema de ensino, como aponta Mendonça (2001). Por meio de indicações políticas, é realizada a escolha dos gestores do município em análise e “o gestor patrimonialista dificilmente tomará decisões com base na objetividade da organização e gestão da unidade educativa, pois está comprometido com as relações tecidas com os seus apoiadores e consequentes eleitores” (Esquinsani, 2013, p. 110). Ou seja, tal prática é meramente subjetiva, sem regulamentação para admissão e com marcas de favorecimento político.

Entretanto, o cenário pode se reconfigurar conforme o movimento político orquestrado e, veremos, em recorte temporal, de 2013 a 2018, focalizando o Ciep da cidade W, que a manifestação da comunidade escolar fará com que ela se coloque em cena, enquanto protagonista, e rasure o que estava posto na agenda municipal, gerando “espasmos democráticos” (Mendonça, 2001, p. 84), por intermédio de políticas de pertencimento, percebidas desde a resistência da comunidade pela permanência do tempo integral ao percurso da seleção de dirigentes da escola observada.

A seguir, conheceremos alguns movimentos do chão da escola que trazem indícios de espasmos democráticos, sobretudo quando discutimos sobre algumas políticas articuladas, principalmente, as que tratam do tempo integral.

O percurso da municipalização e resistências pelo tempo integral

Ao definirmos o campo de nossa pesquisa em uma escola de tempo integral, é necessário o esclarecimento das concepções de escola de tempo integral e educação integral. No entanto, cabe registrar que uma dessas terminologias não apresenta uma definição fechada e estanque. Baseados nos estudos de Ana Cavaliere (2007), podemos inferir que Educação Integral ainda é um termo em construção.

Isso ocorre porque não seria profícuo mensurar e definir esse termo, tendo em vista a Educação Integral como a formação mais completa possível dos sujeitos conforme define Coelho (2009). Daí resulta a dificuldade em se definir esse campo de conhecimento, pois dizer o que forma integralmente os sujeitos ainda é um movimento difícil. Como padronizar os saberes que atravessam, por exemplo, os sujeitos que vivem no Sul e no Norte do nosso país e dizer que isto ou aquilo os forma integralmente?

Nesse sentido, Cavaliere (2007) sinaliza que o tempo constituiria uma estratégia para a oferta e consecução de uma Educação Integral, não obstante, tempo não é a garantia de que isso aconteça, haja vista a possibilidade de se oferecer, num horário ampliado, “mais do mesmo”, indicado por Coelho (2009). Para Maurício (2009), isso vai de encontro ao acesso de oportunidades educativas diferenciadas em um horário ampliado. Destarte, se nesse contar de horas a mais os estudantes não vivenciarem processos significativos e relevantes de formação ou, ainda, tiverem contato com as mesmas propostas que não promovem avanços num horário parcial, é possível que não haja, mesmo como tempo integral, contribuições para uma Educação Integral.

É importante destacar que o tempo integral é mensurado e necessita, segundo o PNE 2014-2024 (Brasil, 2014), ser de 7 horas ou mais. Ou seja, para que se configure tempo integral, o estudante precisa contar com 7 horas diárias ou mais em contato com práticas socioeducativas na escola ou em parceria com outras instituições. Tal movimento provoca-nos à reflexão acerca de um estudo relevante sobre as visões que se tem sobre o tempo integral. Seriam quatro, a saber:

Visão Assistencialista - vê a escola de tempo integral como uma escola para desprivilegiados, que deve suprir deficiências gerais da formação dos alunos. Visão Autoritária - a escola de tempo integral é uma espécie de instituição de prevenção do crime. Visão Democrática - o tempo integral seria um meio de proporcionar uma educação mais efetiva do ponto de vista cultural, com o aprofundamento dos conheci- mentos, do espírito crítico e das vivências democráticas. Visão Multissetorial - a educação pode e deve se fazer fora da escola. O tempo integral não precisa estar centralizado a uma instituição. (Cavaliere, 2007, pp. 1028-1029)

Seria impossível pensar nesses processos e nessas práticas socioeducativas sem abordar a gestão desses espaços. Como a gestão favorece o diálogo entre esses processos e parcerias? Bordenave (1994) nos ajuda a pensar sobre a representação e a participação dos usuários da política na escola, sendo eles os principais sujeitos do processo político e, como tais, não podem ter suas vozes negligenciadas na gestão escolar. A participação não deve se restringir, por exemplo, à escolha do gestor escolar, não impedindo que o gestor transite entre o patrimonialismo, o gerencialista e o burocrático (Silva & Bernado, 2017).

A respeito do Ciep, mote desta investigação: ele faz parte de um conjunto de 506 escolas que foram criadas pelo Programa Especial de Educação (PEE), conforme Bomeny (2008), para funcionarem em Horário Integral [7] . O programa iniciou em 1983, sob a direção do vice-governador do Estado do Rio de Janeiro e Secretário de Ciência, Cultura e Tecnologia, o professor Darcy Ribeiro. Foi interrompido em 1987, reiniciado no segundo Governo de Leonel Brizola, em 1991, e extinto em 1994.

Estudantes, professores e outros profissionais permaneciam nesses espaços em tempo integral. Esta dinâmica nos remete ao estudo desenvolvido por Cavaliere (2009) sobre Escola em tempo integral e Alunos em tempo integral. No caso do Ciep, a escola funcionava em tempo integral; em contrapartida, já estudamos, nesta contemporaneidade, políticas públicas que entraram em cena trazendo a proposta de alunos em tempo integral, uma vez que permanecem em contato com oportunidades educativas durante 7 horas diárias em espaços escolares e não escolares. A escola, neste caso, não funciona em tempo integral. O Programa Mais Educação (Brasil, 2007) foi um exemplo desse funcionamento multissetorial em que parcerias, com outros espaços não escolares, estiveram presentes.

Embora o PEE tenha sido extinto na década de 1990, a comunidade escolar do Ciep analisado percebeu que o tempo integral atendia a algumas demandas daquele território e iniciou o seu primeiro movimento transgressor, em 2013, ao reivindicar e traçar estratégias para que o desmonte do PEE não se efetivasse naquele contexto, favorecendo a continuidade do tempo integral até o presente momento. Inicialmente, a secretaria municipal de educação da cidade W implementaria o turno parcial, findando o tempo integral da unidade. A comunidade escolar, entretanto, exige a permanência da ampliação da jornada e, após um encontro entre a secretaria municipal de educação e responsáveis de alunos do Ciep, a reivindicação é consolidada.

Ademais, a educação em tempo integral pode ser uma tentativa de intensificar a gestão democrática tendo em vista que o tempo de permanência maior de alunos e de professores no Ciep poderia aumentar a participação desses atores nas decisões escolares, maximizando o poder decisório dos usuários da política como uma ferramenta a viabilizar uma gestão escolar compartilhada.

Pensando na ampliação do tempo no sentido de permanência dos discentes e docentes na escola, o aumento de tempo diário tende a ser uma forma de as instituições escolares poderem contribuir na formação crítica e para a democracia (Cavaliere, 2007) dos seus destinatários, podendo a escola ser um espaço de participação em sociedade pautada em uma perspectiva de educação integral, cuja semântica seja atrelada à promoção da cidadania e dos direitos humanos do aluno. Assim, mesmo diante de um cenário verticalizado, com políticas chegando à escola sem, por vezes, a consulta daqueles que a vivenciam, a participação da comunidade escolar pode ressemantizar arranjos, catalisar decisões e fazer com que políticas permeadas pelo patrimonialismo sejam reconstruídas no contexto da prática. Acreditamos que a participação é a ferramenta a viabilizar uma gestão escolar que se deseje democrática, conforme pontua a meta 19 do PNE, e que a ampliação de tempo, indicada na meta 6 do respectivo plano, corrobora com a participação dos sujeitos nas deliberações, conforme seja o período de permanência desses agentes na escola.

Desse modo, ocorre ilação de uma partilha de poder, na qual uma democracia itinerante é proporcionada à luz do maior tempo de permanência dos indivíduos no Ciep. Nesse cenário, acreditamos que a política educacional de tempo integral, apesar de não avalizar a gestão democrática, pois o contexto da prática depende da atuação dos seus atores, é uma proposta a induzir a gestão democrática, possibilitando um número maior de vezes para os destinatários poderem participar das deliberações escolares, aumentando as chances de os seus destinatários perceberem a participação como poder e não como obrigação normativa.

Município W: o campo da ação do burocrata de alto escalão

No final de 2012, na cidade W, inicia-se o processo de municipalização do Ciep e, no ano seguinte, a ação é materializada em uma trajetória que se insere nas perspectivas do regime de colaboração entre os entes federados, numa ação já sinalizada pela Constituição Federal (Brasil, 1988) e pela LDBEN (Brasil, 1996). Anteriormente ao processo de municipalização, conforme sinalizamos, o Ciep já atendia em tempo integral e tal oferta se manteve perante a resistência da comunidade escolar em 2013.

De 2013 a 2017, a unidade foi dirigida pela gestora A, cujo acesso à função adveio da indicação política, uma vez que em tal município persiste a prática patrimonialista, perante ação do legislativo, que demarca o município em áreas, das quais os vereadores se apropriam, como espaços eleitorais. No caso da gestora A, sua indicação coube ao vereador Y, antigo no “comando” do bairro onde se localiza a escola.

Em janeiro de 2017, por meio de publicação no Diário Oficial e em função na mudança da Administração Municipal, todos os diretores das escolas públicas municipais foram exonerados. O novo secretário de educação, que aqui chamaremos de D, retornou alguns deles às suas funções, mas não foi o caso da gestora A, que foi substituída pelo gestor Z. No entanto, em outubro de 2018, muito em função da substituição do secretário de educação D pelo secretário J, o diretor Z foi exonerado e mais uma vez a gestora A foi nomeada para a direção do Ciep, por intervenção do vereador Y. Contudo, dessa vez, a comunidade escolar protestou e exigiu a saída da referida gestora, reivindicando ainda o retorno do gestor Z. Tal protesto gerou manifestações na porta da escola, abaixo-assinados e solicitação de reunião com o secretário de educação J.

No fim de 2018, o secretário J recebeu representantes de pais, responsáveis, alunos, professores e funcionários da escola e, após ouvir suas reivindicações e reclamações, deliberou sobre a impossibilidade do retorno do diretor Z. No entanto, acolheu a solicitação de afastamento da diretora X, garantindo sua exoneração logo que possível. Sinalizou ainda a possibilidade de consulta à comunidade – consulta com semântica restrita, pois só participaram os presentes naquela reunião – que deveria, naquele exato momento, elaborar uma lista tríplice de candidatos à direção da Unidade Escolar. E assim foi feito: três professoras foram “indicadas” e, na mesma semana, a diretora X foi exonerada. O vereador Y convocou uma reunião com uma das professoras da lista tríplice e comunicou que providenciaria sua nomeação, a acontecer dias depois. Nos contextos desses episódios, caberiam várias reflexões, no entanto, no espaço que nos cabe, optamos pelo debate sobre os limites participativos da comunidade escolar dentro de um sistema patrimonial de seleção para diretores e sobre a discricionariedade do burocrata, diante a entrega da política ao seu destinatário. Nesse cenário, a eleição poderia ser um caminho para o aumento de participação dos usuários por:

[…] ser um dos métodos que incita a um maior comprometimento do eleito relativamente àqueles que o elegeram e, em última instância, e no que à escola diz respeito, pode ser entendida como um instrumento de luta contra o clientelismo e o autoritarismo. (Carvalho, 2012, p. 155)

Embora a eleição não seja garantia de gestão democrática, é uma variável para além do participacionismo (Tragtenberg, 1989), cabendo aos sujeitos que fazem parte dela participarem de fato, com poder decisório e de ação, considerando:

[…] uma dimensão central da gestão democrática das escolas, não apenas pelos fenómenos de participação ativa que são típicos dos processos de organização e mobilização democráticas, mas também porque a participação verdadeira exige muito mais do que o acesso à informação e o direito a ser informado, a publicidade democrática dos atos, as propostas e sugestões, as auscultações e outros processos eventualmente despojados de poder de decisão, que Maurício Tragtenberg (1989) designou de “participacionismo”. Pelo contrário, só o poder de decidir confere pleno sentido às práticas de governo democrático das escolas, rompendo com encenações participativas, com rituais, processos e métodos formalmente democráticos, mas a que falta substantividade democrática. (Lima, 2014, p. 1072)

Por outro lado, a eleição para gestores escolares não estaria atendendo à letra da lei, já que o diretor é um cargo de confiança, como exposto no art. 37, inciso V da Carta Magna (Brasil, 1988), ou seja, de livre nomeação e exoneração do executivo. Desse modo, concordamos com Souza e Pires (2018, p. 77), pois “As eleições dos diretores estão articuladas a uma luta que remonta aos anos 1980, mas não só a legislação nacional as referencia, como, ao contrário, há posicionamento legal contrário a elas”. Essas lacunas permitem que, de forma antagônica, haja resquícios democráticos advindos do incômodo da comunidade e uma permanência da prática político-partidária emanada pelas infidelidades normativas (Lima, 1998) dos burocratas.

Ratificamos que a eleição seja a melhor forma de escolha do diretor escolar, ainda que deva ser aprimorada para que o princípio democrático se materialize no que tange à perpetuação da gestão escolar diante de um número infinito de reeleições e reconduções e a influência patrimonialista dentro das unidades escolares. Ainda que o patrimonialismo circunde o processo, e, por vezes, oriente a indicação dos gestores, os destinatários da política, seguindo seus valores subjetivos, podem eleger os gestores das unidades educacionais, uma vez que a participação deles seja legalmente respeitada, alargando o trabalho coletivo da comunidade escolar. A eleição não é livre de clientelismo, contudo, é um caminho para atenuá-lo, tendo em vista a participação da comunidade no poder decisório como uma forma de minimização da prática patrimonialista. As “formas de escolha de direção escolar que associem garantia de competência, compromisso com a proposta pedagógica emanada dos conselhos escolares, representatividade e liderança” (Gomes, 2015, pp. 143-144) podem ser um mecanismo que materializaria ações educacionais mais democráticas e um recurso capaz de evitar práticas patrimonialistas, ao que concerne à nomeação dos gestores.

O burocrata da secretaria de educação: um transeunte entre as burocracias de alto escalão e de nível de rua

O cargo de secretário de educação é ocupado pelo que Loureiro e Abrucio (1999) denominam de Burocrata de Alto Escalão (BAE). Tal burocrata compreende cargos de alto nível na estrutura organizacional de uma instituição, ocupando cargos de confiança gratificados, sendo considerado como policymaker, ou seja, aquele que tem responsabilidade sobre a política e decide acerca dela, acomodados no vértice de onde fluem os desenhos da política em uma perspectiva top-down. Ademais, os BAEs devem apresentar-se com responsabilidade técnica e política, influenciando o sistema burocrático de forma significativa, pois são aqueles que decidem as prioridades da agenda governamental, exercendo uma importante influência em sua formulação, não se restringindo à formulação das políticas, mas exercendo controle sobre elas. Seu papel desencadeia uma série de eventos que culminarão na política implementada, nem sempre de acordo com seu desenho inicial.

São, portanto, agentes que no topo hierárquico da escala burocrática se expõem tanto para a apreciação dos políticos que os nomearam, quanto para a sociedade que deles cobra e exige. O BAE deve possuir saber técnico para a formulação da política, além de estabelecer a articulação de ideias e interesses em sua implementação, pois os burocratas:

[…] quando ocupam funções do alto escalão, precisam atuar politicamente no sentido de escolher prioridades e levar em conta interesses e valores, sejam eles referentes à lógica interna do sistema político, sejam vinculados a determinadas orientações técnicas com maior aceitação na sociedade. (Loureiro & Abrucio, 1999, p. 70)

Esses autores nos falam da linha tênue que separa a ação do burocrata enquanto político e enquanto administrador. Eles garantem que ocorre um hibridismo na ação desses agentes, ocasionando a “burocratização da política e a politização da burocracia” (Loureiro & Abrucio, 1999, p. 19). Ou seja, o sujeito, enquanto desempenha seu papel político, norteia o seu fazer pela técnica do burocrata; para logo depois, na figura do burocrata, pontuar sua ação visando a interesses particulares ou clientelistas.

Desse modo, é possível perceber que o exercício do poder conferido ao BAE não se assenta apenas no seu conhecimento técnico, uma vez que, na prática, político e burocrata não se dissociam, mitigando quaisquer formas de polarização, mediante à complexidade da função desses agentes.

Tal complexidade também diz respeito à atuação do burocrata, na tomada de decisão, execução da política e na entrega da política ao seu destinatário. Trata-se do ato discricionário no contexto burocrático. A discricionariedade é descrita por Lotta (2010) enquanto espaço em que os agentes atuam com certa autonomia decisória, no contato direto com o beneficiário da política, sendo considerados, então, policymakers. Refere-se, portanto, à liberdade da qual desfrutam os burocratas, que resulta na ação discricionária. Nesse sentido, a discricionariedade opera na atuação dos agentes da burocracia quando encenam as políticas públicas, a partir do controle que lhes é imputado, acerca das políticas que circulam na esfera administrativa. Os burocratas ocupam uma posição de decisão, a partir do modo como interpretam normas, políticas e regras. Lotta (2010, p. 38) esclarece que:

A discricionariedade desses agentes está em determinar a natureza, a quantidade e a qualidade dos benefícios, além das sanções fornecidas por sua agência. Assim, mesmo que dimensões políticas oficiais moldem alguns padrões de decisão e normas comunitárias e administrativas, esses agentes ainda conseguem ter autonomia para decidir como aplicá-las e inseri-las nas práticas da implementação.

No processo burocrático, a discricionariedade se refere ao julgamento que os burocratas fazem ao interpretar normas e regras impostas pela política, mediante a margem de autonomia da qual dispõem para tomar decisões. Algumas vezes, a discricionariedade é atravessada por certo grau de arbitrariedade ou de individualidade, podendo estender as regras de acordo com uma percepção muito particular da política.

Quanto a este processo, Weber (2004) assinala que a burocracia se constitui em uma hierarquia organizada monocraticamente, dentro de uma ordem de legalidade, treinamento, formalidade e submissão, em busca da eficiência no serviço público. Nesse quadro, os cargos são organizados e os funcionários devem executar suas funções com eficiência, exercendo sua autoridade legal. Além disso, ele destaca, como atributos da burocracia: a agilidade, a precisão, o conhecimento e a impessoalidade, dentro de um caráter racional, na esfera do êxito dos processos administrativos. Ou seja, aponta a burocracia em um quadro administrativo que apresenta a dominação legal como um modelo de organização da administração pública.

Tal perspectiva weberiana de burocracia diz respeito a uma organização sistematizada em prescrições e funções, racionalmente concebidas e executadas por indivíduos, na busca pela máxima eficiência na realização do serviço público administrativo, é formal e de natureza hierárquica, apresentando uma pirâmide bem definida de controle. Esse modelo se configura como perspectiva funcionalista e tecnicista, além de centralizar o controle da implementação em um órgão catalisador, no qual a tomada de decisão está separada das ações que visam à implementação, distanciando a esfera política da esfera administrativa.

Entretanto, na realidade por nós estudada, observamos as fragilidades da burocracia weberiana, porque a figura do dirigente técnico e neutro é suplantada pela indissociabilidade do ser social e político, culturalmente situado, que mobiliza e combina competências técnicas e políticas, em um hibridismo de concepções decorrentes das ações apreendidas na gestão macro, na normatização dos sistemas de ensino, nas disputas na sociedade e nas relações sociais vigentes, evidenciando a face técnico-política, característica de uma administração político-burocrática.

Ao retomarmos os fatos que culminaram na indicação da professora B para assumir a gestão da escola aqui analisada, deparamo-nos com a ação do BAE, na figura do secretário de educação J, que diante da pressão de uma parcela da comunidade escolar e ciente da cultura clientelista que perdura no município para a seleção de diretores, entre as exigências feitas pelos agentes escolares e a posição política patrimonialista exercida pelo legislativo, decide solicitar aos presentes uma lista tríplice, da qual um nome seria escolhido e nomeado por decisão do legislativo.

O que observamos foi que o BAE se apropriou de um espaço de poder, em que possui certa liberdade para a ação, atuando em uma margem de autonomia para tomar decisões, tendo em vista normas e regras, em deliberações atravessadas por interpretações e interesses particulares. O burocrata, assim, flexibiliza a política, ressignificando-a, de acordo com as tensões que se colocam e a fim de responder a reivindicações postas. Sua decisão ordinária, na ponta do processo, é o exercício da discricionariedade que se dá nas entrelinhas da política. Portanto, a lista tríplice dá, por um lado, uma satisfação à parcela da comunidade escolar que reivindica influenciar na escolha do seu gestor e, por outro lado, não tira completamente das mãos do legislador a decisão final. O burocrata aqui se imiscui com o político, pois sua ação, de caráter operacional, atuando na solução de um problema, demanda um posicionamento político em relação ao jogo que se estabelece na seleção de diretores do município. O resultado da ação discricionária do BAE, que se apropria de uma ação da burocracia de nível de rua, é um contentamento dos reivindicadores que se satisfazem com uma trôpega participação e uma indicação política mascarada de consulta pública à comunidade. A gestão democrática não se estabelece: fatores como transparência e impessoalidade voltadas para um processo de decisão baseado na participação e na deliberação pública são ausentes no processo de escolha de gestor no Ciep analisado. Empreendemos que se não houver fiscalização pela sociedade e ocupação dela nos espaços formais de elaboração legislativa, os escolhidos por ela podem se desvincular dos interesses coletivos preferindo os seus individuais ou privilegiando apenas um grupo.

É importante destacar que o ato discricionário no caso específico aqui descrito se aproxima da ação do Burocrata de Nível de Rua (BNR), por sua interação diretamente com os destinatários da política. Desse modo, constatamos que o burocrata pode não se fixar apenas no exercício de uma burocracia, mas transitar por ela, conforme a situação que a ele se apresenta. Lipsky (1980) define esse profissional como o agente da ponta do serviço que, na rotina de seu trabalho, estabelece critérios nas brechas deixadas pelas diretrizes das políticas, agindo de acordo com sua perspectiva. Guimarães et al. (2022, p. 5) afirmam que “os burocratas de nível de rua, na interação com os cidadãos, reestruturam a política, fazendo adaptações e ajustes que consideram necessários”. Sua intervenção na política se traduz na ação que se estabelece na prática, na rotina, na execução das estratégias traçadas. Esse desempenho é fundamental para a eficácia da política pública, uma vez que o BNR detém a responsabilidade de colocar em cena a política em sua execução final, numa ação direta com o seu público-alvo e desse modo, molda as políticas, refaz seus contornos e restabelece o desenho inicial. Seu papel é, portanto, eminentemente, político.

Um processo de tomada de decisão organizacional não se restringe à utilização da racionalidade e envolve também uma dimensão política, que interfere nas escolhas e nos processos subjacentes, informando o processo deliberativo. O burocrata de alto escalão, aqui compreendido como um agente político, utiliza o poder político para a tomada de decisão. Isso significa que, apesar de poder ser compreendido, em tese, no contexto da burocracia racional, sua ação acontece na esfera e na arena de disputas políticas. Estabelece-se, assim, uma tensão entre o caráter técnico, advindo da burocracia racional-legal weberiana, e a encarnação do governo como parte de poder político, no qual protagoniza a tomada de decisão, constrangido mais pelo contexto político do que por normas e regras. Nesse sentido, Lipsky (1980) discute a burocracia de nível de rua, instância da qual, o Secretário J se aproxima, pois, de acordo com o autor, é em tal burocracia que a política é implementada a partir de ideologias, valores, contextos e posições sociais dos agentes. A contradição que se coloca se materializa na perspectiva de que o burocrata de alto escalão ignora a impessoalidade e a tradição racional-legal para incorporar ao seu comportamento negociações que visam a um resultado político, sendo essa tomada de decisão um processo no âmbito de um jogo de interesses a fissurar o princípio democrático em torno da participação dos alocutários da política.

Compreendemos esse movimento político em articulação com os aspectos técnicos, o que nos conduz a considerar uma proximidade do burocrata formulador de políticas do processo de implementação. Ou seja, o burocrata de alto escalão se apresenta como a face do estado para o público-alvo, na tomada de decisão, porque a burocracia de nível de rua, da qual o agente do estado se utiliza para responder ao grupo reivindicador, é um espaço político, imbricado de subjetividades.

Podemos refletir que a ação do burocrata de alto escalão não é apenas um instrumento a serviço do governo, pois ele é um agente com iniciativa, ação e subjetividade na implementação da política. De certo modo, esse movimento, refletido na ação do Secretário J, implica a observância de benefícios ou sanções, além de estabelecer a regulação do comportamento social, a expressão e manutenção dos valores públicos, ampliando ou fragilizando processos mais equânimes na implementação das políticas educacionais.

Lipsky (1980) esclarece que os burocratas do nível da rua são aqueles que atuam na ponta do processo, agindo no cotidiano da encenação política e, em seu contato com os destinatários, recriam regras e procedimentos, de acordo com suas percepções e valores. Por isso, o secretário de educação aqui retratado, ao assumir posicionamentos junto aos receptores da política, transita entre o alto escalão e o nível de rua. Há um hibridismo em sua atuação ao prestar o serviço àqueles que vão usufruir da política e ao mesmo tempo, ele mantém como o responsável por, em âmbito macro, dialogar com demais atores, no caso o legislativo e o executivo, a fim de produzir o texto da política que culminou na exoneração de um gestor e na nomeação de outro. Sua circulação por esses contextos da burocracia revela que esses espaços não estão assim tão bem demarcados e as burocracias estabelecem interseções quando o jogo político assim o requer.

Considerações finais

A gestão democrática do ensino público é um quesito constante nas legislações nacionais e demais entidades federativas e o Plano Nacional de Educação de 2014 ratifica esse preceito legal. Dentre os mecanismos de gestão democrática, a escolha de diretores ganhou destaque no cenário da escola investigada, pois apesar de a legislação macro esboçar estratégias a fim de abranger a participação da comunidade escolar, ela é aproveitada como subterfúgio de interesses individuais e clientelistas. Sob esta ótica, a forma de eleger o gestor nas escolas, mesmo com o estandarte do princípio constitucional da gestão democrática, baliza-se por dúvidas.

Embora realizemos uma discussão do modo como a gestão democrática é esvaziada no município, a pesquisa apresenta uma limitação importante devido ao fato de se relacionar a uma realidade local. Trata-se, portanto, de um estudo que ilustra uma das inúmeras formas de perecibilidade da gestão democrática e pode suscitar outras pesquisas que evidenciem realidades locais, a fim de que um panorama complexo seja desenvolvido a partir de contextos micros.

O caso estudado aqui, envolvendo uma escola do município W, a possuir oferta do tempo integral, possibilita vislumbrar algumas questões que se estendem a outros municípios, como a interferência dos agentes representantes do legislativo e do executivo para a escolha dos gestores. Nessa análise, percebemos a atuação do burocrata de alto escalão e o seu trânsito pelas burocracias como promotoras de uma consulta pública pulverizada, na qual uma pequena parcela da comunidade participa e cujo patrimonialismo se insere.

Entretanto, salientamos o movimento social da comunidade escolar que resiste às intempéries e não julga procedente a troca de gestores do Ciep municipal, provocando a rearticulação de um roteiro pré-estabelecido. Concluímos, portanto, que mesmo de maneira latente e diante da egocentricidade dos burocratas de alto escalão, agendas patrimonialistas podem ser ressemantizadas pelos destinatários da política, cuja atuação promove educação integral e pertencimento à escola.

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[6]Os nomes da unidade de ensino, da cidade em análise, bem como dos gestores envolvidos, serão intitulados por letras devido a questões de confidencialidade, a fim de não expor a condicionamentos específicos ou à influência de autoridades legislativa ou executiva municipais, os participantes e pesquisadores em questão, de modo que não haja possível coação patrimonialista.

[7]Os estudos e legislação recentes usam o termo Tempo Integral.

Recebido: 22 de Junho de 2022; Aceito: 30 de Agosto de 2022

Contribuição na elaboração do texto

Os autores contribuíram igualmente na elaboração do manuscrito.

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