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Linhas Críticas

Print version ISSN 1516-4896On-line version ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.28  Brasília Jan./Dec 2022  Epub Oct 03, 2022

https://doi.org/10.26512/lc28202243037 

Artigos

Autismo e práticas de cuidados durante a pandemia de Covid 19

Autismo y prácticas de cuidado durante la pandemia de Covid-19

Autism and care practices during the Covid-19 pandemic

Joyce Carolina de Freitas1 
http://orcid.org/0000-0003-0659-6485

Ana Paula Boff2 
http://orcid.org/0000-0002-6568-0006

1Mestre em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) (2021). Doutoranda em Educação pela PUCPR.

2Mestre em Educação pela Fundação Universidade Regional de Blumenau (2012). Doutoranda em Educação Científica e Tecnológica pela Universidade Federal de Santa Catarina.


Resumo

O objetivo deste estudo é analisar a efetividade dos laços familiares desenvolvidos durante a pandemia de covid-19 por parte de famílias com pessoas com Transtorno do Espectro Autista, considerando as relações de cuidado destinadas a esse público. Por meio de uma pesquisa qualitativa, foram aplicados dois instrumentos de coleta de dados aos familiares participantes. Os dados apontam para uma sobrecarga materna, a dificuldade de lidar com a pessoa com autismo em casa sem apoio e a interrupção e/ou oferta precária de tratamentos, acompanhamento psicológico e atendimento médico no contexto pandêmico. Evidenciou-se, assim, a necessidade de ações governamentais de suporte e apoio a essas famílias.

Palavras-chave Práticas de cuidado; Pandemia de covid-19; Transtorno do Espectro Autista

Resumen

Este estudio tiene como objetivo analizar la efectividad de los lazos familiares desarrollados durante la pandemia de covid-19 por familias de personas con Trastorno del Espectro Autista, considerando las relaciones de cuidado dirigidas a este público. A través de una investigación cualitativa, se aplicaron dos instrumentos de recolección de datos a estos familiares. Los datos apuntan a la sobrecarga materna, la dificultad de lidiar con la persona con autismo en casa sin apoyo y la interrupción y/o oferta precaria de tratamientos, seguimiento psicológico y médico en el contexto de la pandemia. Así, se evidenció la necesidad de acciones gubernamentales para apoyar a estas familias.

Palabras clave Prácticas de cuidado; Pandemia de covid-19; Trastorno del Espectro Autista

Abstract

This study aims to analyze the effectiveness of family ties developed during the covid-19 pandemic by families with individuals with Autism Spectrum Disorder, considering the care aimed at this public. Through qualitative research, we applied two data collection instruments to the family members. The data point to maternal overload, difficulty of dealing with the autistic person at home without support, and interruption and/or precarious offer of treatments and psychological and medical follow-up in the pandemic context. Thus, it is clear that government actions to support these families are necessary.

Keywords Care practices; Covid-19 pandemic; Autism Spectrum Disorder

Introdução

A partir da publicação do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais em 2013, do original em inglês Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM-5) (American Psychiatric Association [APA], 2014), o Transtorno do Espectro Autista (TEA) foi reconhecido como um transtorno do neurodesenvolvimento caracterizado por déficits persistentes na capacidade de interação social recíproca e comunicação, além de uma série de padrões de comportamento, interesses ou atividades restritos, repetitivos e inflexíveis que são claramente atípicos ou excessivos para o indivíduo em idade e contexto sociocultural.

O transtorno se inicia na primeira infância, mas as características citadas podem se manifestar tardiamente (Who-Fic Foundation, s.d.). Ademais, pessoas que se inserem ao longo do espectro exibem funcionamento intelectual e habilidades de linguagem muito diversas, podendo apresentar a necessidade de três níveis de suporte: autismo nível 1 de suporte (exige apoio), autismo nível 2 de suporte (exige apoio substancial) e autismo nível 3 de suporte (exige apoio muito substancial) (APA, 2014). Assim, observa-se uma correlação entre o diagnóstico de TEA e o contexto social no qual esse indivíduo está inserido, pressupondo que é a sociedade/comunidade que deverá subsidiar maior ou menor suportes médico, educacional e psicossocial, dependendo das características apresentadas por ele.

Nessa perspectiva, embora a pessoa com TEA possa manifestar comportamentos que são propensos ao isolamento social, interesses por temas específicos, dificuldades na área de linguagem, especificidades no processamento de informações sensoriais, dentre outros, cada ser humano é único e desenvolve a sua subjetividade a partir dos contextos sociocultural, familiar, econômico em que está inserido. Dessa forma, a sua singularidade ultrapassa os limites de um diagnóstico médico (Orrú, 2020). Por isso, os acompanhamentos familiar, educacional e terapêutico desde a tenra idade e direcionados às potencialidades e dificuldades de cada indivíduo, torna-se uma demanda social e uma questão de dignidade humana. Ou seja, a família e o poder público têm responsabilidade no que tange à atenção integral às necessidades da pessoa com TEA (Brasil, 2012).

A partir da Lei n. 12.764, de 27 de dezembro de 2012, que institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista, indivíduos com TEA foram considerados pessoas com deficiência para todos os efeitos legais (Brasil, 2012). Buscando compreender o TEA sob a perspectiva do modelo social de deficiência, Silva et al. (2019, p. 194) explicitam que “[…] a diferença neurológica é caracterizada como lesão e as condições normocêntricas que colocam a pessoa com autismo socialmente em desvantagem são caracterizadas como produtoras da experiência de deficiência”. Nesse sentido, não se desconsideram as singularidades advindas do transtorno, mas entende-se que assim como outras deficiências, o autismo é produzido socialmente em sociedades balizadas por um ideal dominante de normalidade (Silva et al., 2019). Isso implica conceber que o TEA não é um problema, mas sim uma constituição humana diversa que demanda recursos sociais e médicos específicos. Isto é, ele pressupõe:

[…] a oferta de recursos sociais e de saúde em prol da promoção da qualidade de vida não apenas do ponto de vista biomédico, mas também em relação às mudanças ambientais necessárias para garantir a convivência e a inclusão plena das pessoas com autismo. (Silva et al., 2019, p. 196)

Além da oferta de recursos sociais e de saúde, dependendo das singularidades de cada indivíduo, podem ser necessários cuidados ao longo da vida, como auxílio para atividades da vida diária (higiene, alimentação, locomoção). Essa demanda evidencia a premência de se entender o cuidado e as relações de interdependência humanas como uma questão de direitos humanos (Kittay, 2011).

Há ainda outra manifestação que ocorre no cotidiano de pessoas com essa condição, especialmente para aquelas que requerem nível de suporte 2 ou 3, trata-se do alto nível de estresse. Nesse caso, tendem a se automutilar, externar colapsos nervosos, desconforto físico ou emocional em decorrência da sobrecarga sensorial (Orrú, 2020). Esses comportamentos se tornam notórios quando decorrem alterações inesperadas na rotina diária, tais como as que foram impelidas pela pandemia de covid-19. Com a iminência desta pandemia, sabe-se que a rotina de milhões de pessoas foi alterada em nível global e os impactos do contexto pandêmico ainda repercutem nos diversos âmbitos sociais — na economia nacional e internacional, no baixo rendimento escolar dos estudantes, dentre outros. No caso específico do autismo, torna-se necessário ampliar a compreensão dos desdobramentos desse contexto nas práticas de cuidado direcionadas a esse público.

A covid-19 é uma doença infecciosa causada pela síndrome respiratória aguda grave do coronavírus 2, do original em inglês Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavírus 2 (SARS-CoV-2). Os primeiros casos da infecção foram notificados em Wuhan, na República Popular da China em dezembro de 2019, em poucos meses atingindo uma escala global e acarretando na pandemia de covid-19, que perdura até o ano de 2022 (Organização Pan-Americana da Saúde [OPAS], 2020). A pandemia alterou de forma drástica a vida de famílias no mundo todo, sobretudo a partir do ano de 2020, quando houve o fechamento das escolas e os estudantes passaram a assistir aulas no formato assíncrono, sem poderem se deslocar de suas casas. Para garantir a saúde coletiva, uma série de medidas como isolamento social, uso de máscaras e higienização das mãos com álcool em gel foram requeridas à população (OPAS, 2020).

Com base no exposto, as pesquisas que versam sobre as implicações desse período na vida de pessoas com TEA possuem temáticas diversificadas. Algumas dessas investigações, por exemplo, se referem à rotina de crianças com TEA e suas famílias durante a pandemia de covid-19 (Cardoso et al., 2021), aos impactos gerados e às possibilidades de cuidado relativas à Atenção Psicossocial junto a essa população e suas famílias (Fernandes et al., 2021). Ainda, os estudos endereçam os efeitos do isolamento social no comportamento de crianças e adolescentes com autismo (Givigi et al., 2021) e à saúde mental e/ou qualidade de vida de pais de pessoas com TEA durante a pandemia (Medrado et al., 2021).

Para Fernandes et al. (2021, p. 3), crianças e adolescentes com TEA apresentam maior vulnerabilidade em relação à covid-19 não por serem mais suscetíveis ao vírus, mas “[…] devido às características próprias do quadro clínico que fragilizam a compreensão do cenário pandêmico, assim como as medidas de controle e proteção, expondo-os a maiores riscos de contaminação”.

Nesse sentido, atentando-se às especificidades desse público e o baixo número de pesquisas sobre o tema, este artigo tem como objetivo analisar a efetividade dos laços familiares desenvolvidos no contexto do isolamento social causado pela pandemia de covid-19, por famílias de pessoas com TEA, considerando as relações de cuidado destinadas a esse público.

Este trabalho se justifica pela importância de se aprofundar a compreensão sobre as práticas de cuidado às pessoas com TEA, traçando um paralelo entre a ética do cuidado e as relações de interdependência (Kittay, 2011; Fietz & Mello, 2018) entretecidas entre esses sujeitos e suas famílias, no período compreendido entre março de 2020 a agosto de 2021.

Referencial teórico

No Brasil, há um discurso dominante em relação às pessoas com deficiência/autismo que se aproxima da caridade e da compaixão, ocasionando a segregação social e a invisibilidade das demandas e necessidades desse público (Fietz & Mello, 2018). Em muitas ocasiões, o desdobramento dessa realidade é a sobrecarga das famílias, especialmente das mães, que se veem isoladas (Fávero-Nunes & Santos, 2010; Zanatta et al., 2014; Lima & Couto, 2020; Cardoso et al., 2021) e desamparadas das políticas públicas que deveriam resguardar os direitos desse segmento (Orrú, 2020). E esse é um cenário possível, pois o processo de regulamentação e aplicação das leis brasileiras ocorre de forma lenta ou burocrática. Outrossim, mesmo diante de legislações que estão alinhadas aos preceitos dos direitos humanos, como a Lei Brasileira de Inclusão (Brasil, 2015), observa-se que as posturas sociais de enfrentamento contra o preconceito e a opressão sofrida por pessoas com autismo, nem sempre acompanham a promulgação das leis (Lima et al., 2020).

A sobrecarga e o isolamento social dos familiares de pessoas com TEA precede a pandemia de covid-19 (Lima & Couto, 2020). Nesse sentido, o estudo de Lima e Couto (2020) apresenta que os sentimentos de solidão, desgaste e de busca incansável dessas famílias por serviços de acompanhamento psicossocial aos filhos já eram demandas focalizadas na literatura antes do contexto pandêmico (Fávero-Nunes & Santos, 2010; Zanatta et al., 2014). Contudo, dentre os anos de 2020 e 2022, o confinamento em casa e, de forma associada, a adoção de medidas restritivas que alteraram a dinâmica dos atendimentos presenciais nas áreas da educação, saúde e assistência social acentuaram os sintomas do TEA (Givigi et al., 2021). Esse cenário representou para muitos desses indivíduos um agravamento em seus quadros de saúde mental, relacionados à frustração e ansiedade, assim como problemas comportamentais (Givigi et al., 2021).

Lima e Couto (2020) discutem, ainda, que há certo consenso entre os estudos brasileiros sobre os fatores que incidem na experiência da sobrecarga. Dentre eles, citam-se a destinação quase exclusiva da mãe (figura feminina) como responsável pela prática do cuidado e a ausência de suportes familiar e social.

De modo análogo, Fernandes et al. (2021) discorrem sobre os impactos gerados pela pandemia de covid-19 para crianças e adolescentes com TEA, expondo possibilidades de cuidado fundamentadas na Atenção Psicossocial junto a essa população e suas famílias. Além do cuidado propriamente dito ao público com TEA, os autores salientam a necessidade do cuidado aos familiares dessa população, considerando que “[…] lidar cotidianamente com as dificuldades advindas do TEA pode estar gerando um sofrimento intenso a quem cuida” (Fernandes et al., 2021, p. 9). Similarmente, para Medrado et al. (2021), algumas pessoas com TEA requerem cuidados em tempo integral, o que causa impactos psicológicos negativos em seus genitores, somando-se às rotinas diárias de cuidado, o home office, a necessidade de acompanhar as aulas remotas dos filhos em idade escolar, as tarefas domésticas, dentre outras demandas cotidianas.

Por sua vez, a partir de uma pesquisa de revisão sistemática, Cardoso et al. (2021) investigaram sobre a rotina de crianças com TEA e suas famílias durante a pandemia de covid-19. As autoras focalizam que o isolamento social resultou tanto em impactos negativos quanto positivos para essas crianças. Os negativos dizem respeito à alteração de comportamento e nas rotinas preestabelecidas antes do período pandêmico, acarretando em ansiedade e estresse para os envolvidos. Os impactos positivos se referem à proximidade entre essas crianças e suas famílias, que passaram a ter mais contato durante a pandemia.

Nesse ínterim, a categoria do cuidado é central na teoria feminista da deficiência, estudada por autoras como Kittay (2011) e Fietz e Mello (2018). O cuidado nessa perspectiva é entendido como uma prática social, emocional e uma categoria moral.

Kittay (2011) concebe o cuidado como uma questão de justiça social que está para além das dimensões individual e familiar. O cuidado é “[…] um princípio ético e moral da própria condição humana, com base na premissa da interdependência que rege as relações humanas” (Fietz & Mello, 2018, p. 116). Assim, destaca-se que não são apenas as pessoas com TEA que demandam cuidado, uma vez que :

[…] toda pessoa compartilha a necessidade de ser cuidada da mesma forma que se constitui como cuidadora em vários momentos da vida. Ocorre que o cuidado constitui-se de várias formas, assumindo muitas versões e, por conseguinte, pode incorrer em efeitos diversos tanto para quem cuida quanto para quem é cuidado. (Fietz & Mello, 2018, p. 117)

Contudo, isso não significa desconsiderar a necessidade do cuidado e da garantia do bem-estar físico, mental e emocional, das/para pessoas com TEA nível 3 de suporte, por exemplo, que demonstram divergências expressivas nas habilidades de comunicação social verbal e não verbal e dificuldade em lidar com a mudança ou outros comportamentos restritos e/ou repetitivos (APA, 2014). Pessoas com autismo, sobretudo as que apresentam condições mais severas, demandam cuidados ao longo da vida, portanto, “[…] presumir a vulnerabilidade das pessoas com deficiência e não incluí-las enquanto parte ativa das relações de cuidado, está intrinsecamente ligado a situações de abuso ou distorções que venham a ocorrer” (Fietz & Mello, 2018, p. 134).

Para Kittay (2011), na maioria das teorias hegemônicas de justiça, a dignidade está associada à capacidade de ter autonomia. Assim, a necessidade de cuidado em nossa sociedade se relaciona erroneamente a um estigma ou uma condição de inferioridade daquele que ‘precisa ser cuidado’, pois se pressupõe a independência como uma norma (Kittay, 2011; Fietz & Mello, 2018). A autora afirma que “na medida em que a deficiência requer um cuidador para a pessoa com deficiência viver sua vida, o cuidado (e o cuidador) é estigmatizado por dependência” (Kittay, 2011, p. 51).

O termo ‘cuidado’ pode representar um trabalho, uma atitude ou uma virtude, conforme assevera Kittay (2011, p. 52), como trabalho visa “[…] manter os outros e a nós mesmos quando estamos em estado de necessidade”; como atitude “[…] denota um vínculo afetivo positivo e investimento no bem-estar do outro” (Kittay, 2011, p. 52). Como virtude, “[…] o cuidado é uma disposição manifestada no comportamento de cuidar (o trabalho e atitude) […] relações de afeto facilitam o atendimento, mas a disposição pode ser direcionada tanto a estranhos quanto à íntimos” (Kittay, 2011, pp. 52-53).

Igualmente, Fietz e Mello (2018) expõem que o trabalho de cuidar, especialmente quando realizado pela mãe ou por alguma outra figura feminina, é desvalorizado e invisibilizado. Assim, o cuidado como narrativa ética não pode ser desassociado de uma perspectiva de gênero.

Tendo como referência que a prática do cuidado, especialmente de pessoas com TEA, é realizada por mães e/ou outras pessoas do sexo feminino (Cardoso et al., 2021; Givigi et al., 2021), Givigi et al. (2021) salientam que essas mães participam de forma mais expressiva até mesmo de pesquisas e estudos acadêmicos sobre o autismo comparadamente ao número de pais (homens). Esse dado ratifica que, historicamente, há pressupostos sociais baseados em crenças religiosas e acordos morais que associam o cuidado e os assuntos relacionados ao TEA à figura feminina, desresponsabilizando pais e demais figuras masculinas de assumirem a co-responsabilidade nesses processos.

O conceito de interdependência se encontra relacionado ao de cuidado, visto que o ideal de independência cada vez mais exaltado em sociedades neoliberais é uma ficção para pessoas com e sem deficiência (Kittay, 2011). Nessa perspectiva, Kittay (2011) expõe que todas as pessoas estão sujeitas naturalmente a períodos de dependência, seja na primeira infância, no envelhecimento e/ou em situações atreladas ao contexto de vida. Ela defende a interdependência como inerente ao ser humano e traz à tona o conceito da ética do cuidado. Nessa direção, “reconhecer a dependência como constituinte da condição humana e desestigmatizar a necessidade de cuidado deve ser crucial para garantir o bem-estar e a dignidade das pessoas com deficiência e seus(suas) cuidadores(as)” (Fietz & Mello, 2018, p. 135).

Kittay (2011) defende ainda uma ética pública do cuidado, ou seja, que ele se estende para além das relações íntimas e familiares, sendo uma obrigação e responsabilidade da sociedade em geral. No que tange às ações de cuidado às pessoas com TEA e suas famílias, Fernandes et al. (2021) apontam algumas possibilidades para o contexto de isolamento social, tais como: profissionais da saúde viabilizarem espaços de escuta e acolhimento remotos para as famílias, por meio de atendimentos individuais, coletivos, por aplicativos de mensagem, dentre outros.

Ademais, é indispensável a confecção de materiais informacionais ao público em geral, destacando as implicações da pandemia de covid-19 na vida de pessoas com TEA. Esses materiais também versam sobre “[…] a importância das redes de solidariedade e de apoio a essas famílias, ressaltam as particularidades das pessoas com TEA, visando o respeito e a garantia dos seus direitos” (Fernandes et al., 2021, p. 4). Em razão disso, evidencia-se a urgência de ações governamentais de suporte e apoio a essas famílias.

Por fim, entende-se que o acesso aos serviços psicossociais para usuários com TEA e as práticas de cuidado perspectivadas como ações intersetoriais a esse público são fatores imprescindíveis para atenuar a sobrecarga das famílias, promovendo qualidade de vida para todos os envolvidos (Lima & Couto, 2020).

Metodologia

O levantamento de dados envolveu doze famílias com um ou mais integrantes com TEA, residentes no município de Curitiba, Paraná (PR). Essas famílias frequentavam o atendimento psicopedagógico clínico privado e social no “Centro de Especialidades Emiliano Perneta”, localizado no centro de Curitiba-PR, no qual um dos autores deste artigo atua.

O contato com os participantes para participar deste estudo ocorreu por meio de e-mail convite enviado individualmente para cada família, no período de dezembro de 2021 a janeiro de 2022. Após o aceite e a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, os partícipes receberam um formulário via Google Forms, contendo doze questões. Tais questões buscaram identificar como se desenvolveram os laços afetivos durante os 24 meses de convivência na pandemia da covid-19. As informações advindas dos questionários foram nomeadas como etapa 1.

Após o levantamento inicial de dados, sentiu-se falta de questões relativas à realidade de cada grupo familiar. Nesse sentido, observou-se que eram necessárias maiores evidências, dessa maneira, duas das doze famílias foram convidadas para uma nova etapa da pesquisa, que compreendeu a realização de uma entrevista presencial, contendo cinco questões abertas e cinco questões dicotômicas. O critério utilizado para essa seleção foi ter mais de uma pessoa com TEA no grupo familiar.

Algumas das perguntas da entrevista foram: “Como foi que essa família se organizou diante do impedimento de seguir a sua rotina diária em consequência da medida de urgência em saúde”, ainda “Como foi dar esse suporte psicoeducacional e manter os laços afetivos”? Para fins de análise dos dados, identificou-se a entrevista com as duas famílias como etapa 2.

O questionário, segundo Gil (1999, p. 128), pode ser definido “como a técnica de investigação composta por um número mais ou menos elevado de questões apresentadas por escrito às pessoas, tendo por objetivo o conhecimento de opiniões, crenças, sentimentos, interesses, expectativas, situações vivenciadas etc.”

Foi necessário gravar as entrevistas e, posteriormente, degravá-las para não perder a essência dos relatos. Contudo, ainda assim, foi preciso tirar algumas dúvidas com os participantes. Destaca-se que as famílias leram o que foi escrito e autorizaram a divulgação das informações. A fim de manter os preceitos éticos em pesquisa, os participantes não foram identificados.

Para dar respaldo às análises, as respostas foram agrupadas de acordo com as aproximações e interpretadas de acordo com o método hermenêutico, que foi utilizado, em particular, nas categorias de contextualização, apreensão e interpretação, citadas por Gadamer (1998). Para Ferrarotti (1983 como citado em Goldenberg, 2005, p. 36), cada indivíduo singulariza em seus atos a universalidade de uma estrutura social, sendo possível “ler uma sociedade através de uma biografia conhecer o social partindo-se da especificidade irredutível de uma vida individual”.

Ainda, Minayo (1996 como citado em Szymanski, 2002, p. 65) define a hermenêutica como “a busca de compreensão de sentido que se dá na comunicação entre os seres humanos”.

Na etapa 2, as famílias foram identificadas como X e Y. Nos Quadros 1 e 2, apresentam-se as caracterizações dos participantes envolvidos na etapa 2:

Fonte: os autores.

Quadro 1 Caracterização da família X 

Fonte: os autores.

Quadro 2 Caracterização da família Y  

No Quadro 3, são apresentadas as etapas executadas:

Fonte: os autores.

Quadro 3 Etapas da análise do conteúdo a partir do questionário e das entrevistas presenciais 

Para analisar os dados coletados nas entrevistas, a pesquisa contou com o método de análise de conteúdo proposto por Bardin (2011, p. 15), que “[…] é um conjunto de instrumentos de cunho metodológico em constante aperfeiçoamento, que se aplica a discursos (conteúdos e continentes) extremamente diversificados”. Bardin (2011) destaca três fases fundamentais para realizar essa análise, quais sejam: pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados. Destaca-se que as falas dos entrevistados foram transcritas na íntegra.

As respostas dos questionários (etapa 1) foram analisadas e categorizadas. Essa análise originou quatro categorias e quatro subcategorias, as quais possibilitam compreender os laços familiares desenvolvidos durante o contexto pandêmico. A seguir, exibem-se os dados da pesquisa e as análises correspondentes.

Resultados e Análises

O perfil sociodemográfico das famílias participantes demonstra que os questionários foram respondidos pelas mães sem exceção, essa informação constava na identificação do formulário. Esse dado se coaduna com as pesquisas de Lima e Couto (2020) e Givigi et al. (2021). O perfil das crianças autistas foi predominantemente masculino, sendo onze meninos e uma menina, o que também é corroborado pela literatura (Orrú, 2020; Givigi et al., 2021).

No que tange às atividades laborais, em três das famílias, os pais estavam desempregados, enquanto a mãe era a chefe da casa em duas. As seguintes profissões foram informadas: empresários, árbitro de futebol, gerente de banco, marceneiro, faxineira, dentista. Uma das famílias recebe o Benefício de Prestação Continuada (BPC), que é pago pela previdência social, visando garantir um salário mínimo mensal para pessoas que não possuem meios de prover à própria subsistência ou de tê-la provida por sua família.

No Quadro 4, apresentam-se as respostas obtidas no questionário online e as suas respectivas incidências de acordo com cada categoria analítica.

Fonte: os autores

Quadro 4 Categorias de análise e respostas dos participantes referentes à etapa 1  

A fim de focalizar o que foi contemplado em cada categoria, expõe-se abaixo uma síntese dos principais apontamentos realizados pelos participantes. Na sequência, exibem-se os trechos selecionados nas respostas abertas do questionário.

a. Famílias que se isolaram totalmente durante o isolamento previsto em decreto. Observou-se que mesmo com as orientações dos órgãos de saúde salientando a necessidade de distanciamento social, as famílias agiram de formas muito diferentes uma das outras, sendo o fator econômico preponderante nos comportamentos adotados por elas. A exemplo: pais que puderam contar com a continuidade dos serviços de saúde em casa por meio de assistência e aulas online.

b. Famílias que se isolaram com rede de apoio. Novamente, evidenciou-se uma discrepância no aspecto socioeconômico. Famílias que tinham plano de saúde foram assistidas com sessões de psicologia cognitiva comportamental, fonoaudiologia e terapia ocupacional voltadas às Atividades de Vida Diária, garantindo a continuidade dos tratamentos das pessoas com TEA. Isso possibilitou uma melhor saúde mental para seus familiares que se mantiveram ativos e sob orientação dos especialistas. Já os que não tinham, ficaram quase dezenove meses sem nenhum tipo de rede de apoio, o que gerou nessas famílias desgastes e desmotivação para outras necessidades emergenciais. Há relatos de familiares que precisaram de fármacos para conseguir melhor atendê-los.

c. Famílias que precisaram de ajuda. Essa foi a mais apontada, pois das famílias participantes só um indivíduo com TEA é maior de idade e não necessitava de cuidado familiar, os demais são assistidos por suas famílias em todas as áreas. Nesse aspecto, sete famílias precisaram de auxílio do município para que os seus filhos tivessem acesso ao ensino remoto, assistissem às videoaulas e participassem das atividades complementares. Duas precisaram de auxílio da rede estadual e as que estavam matriculadas na escola privada foram assistidas dia a dia por aulas síncronas, alterando apenas a configuração geográfica da escola.

d. Famílias que precisaram de ajuda externa com intervenção do Estado. Há relatos de que as farmácias do estado do PR realizaram a entrega do medicamento em casa, que os laboratórios coletaram sangue em casa e que, em caso de extrema emergência, as Unidades de Pronto Atendimento (UPAS) atenderam prioritariamente as pessoas com deficiência.

e. Famílias que não puderam se isolar por fatores diversos. Associação às atividades laborais dos pais.

A partir dessas informações, constatou-se que o fator socioeconômico influenciou as práticas de cuidado destinadas às pessoas com TEA, dentre elas, a manutenção dos atendimentos especializados por parte das famílias que puderam custear financeiramente esses atendimentos. Esse fato favoreceu a qualidade de vida desses sujeitos e dos familiares envolvidos.

Outrossim, evidenciou-se que das doze famílias, as pessoas com TEA foram cuidadas especificamente pela mulher da casa, a “mãe”, em outros poucos com ajuda do pai e em quatro casos com auxílio remoto de especialistas em saúde. Os dados corroboram a literatura no sentido de que, culturalmente, o cuidado é encarado como tarefa materna (Fávero-Nunes & Santos, 2010; Zanatta et al., 2014; Lima & Couto, 2020; Cardoso et al., 2021).

Nessa linha de reflexão, Fietz e Mello (2018, p. 120) apontam que :

[…] o tipo de cuidado empregado por estas mães são aqueles que ministraram durante toda a vida de seus filhos, durante as quais foram sempre as principais responsáveis, contando com quase nenhum suporte estatal ou até mesmo de uma rede familiar mais presente.

Em razão disso, o tom das narrativas foi de solidão, frustração e falta de suporte familiar e social, demonstrando a rotina desgastante e de sobrecarga dessas mulheres que passaram a atender, cuidar, banhar e ensinar seus filhos. Lima e Couto (2020, p. 223) explicitam que o tema da sobrecarga é complexo, envolvendo fatores como “dificuldades em lidar com as manifestações sintomáticas dos filhos, solidão na tomada de responsabilidade pelos cuidados diários, precariedade de acesso aos serviços de saúde, dentre outros”.

Essa questão pode ser observada no relato a seguir:

Teve dias que eu precisava tomar remédio, tipo um ansiolítico para aguentar, um dia [nome da criança] gritou tanto, tanto que minha vontade era sair correndo e nunca mais voltar. Na outra vez, ele se desorganizou e me mordeu nos braços quando eu tentava conter, depois de passado quase uma hora desse episódio ele dormiu eu me olhava no espelho e a marcas não me doíam tanto, quanto saber que eu não pude fazer nada para ajudá-lo, é desesperador, usei muito remédio nesse período. (P1)

No excerto acima, destaca-se, ainda, a necessidade de medicação da mãe. É notório que isso decorre de uma total solidão materna no cuidado diário. Conforme Lima e Couto (2020), situações como essa convocam a rede psicossocial a construir respostas efetivas às necessidades de cada família, desenvolvendo redes locais intra e intersetoriais que contribuam com a qualidade de vida dos envolvidos. Convém destacar que é direito da pessoa com TEA “o acesso a ações e serviços de saúde, com vistas à atenção integral às suas necessidades de saúde, incluindo […] o atendimento multiprofissional” (Brasil, 2012, s.p.).

A seguir, a participante P2 faz menção à escolarização do filho com TEA, sinalizando a dificuldade que ele apresenta em relação à alteração da rotina:

Nesse momento dei graças a Deus de meu filho não ir mais a escola, pois ele é muito resistente a quebra da rotina para nós teria sido um inferno essas mudanças todas, mas sabe um dia [nome da criança] que nunca foi agressivo, do nada puxou a toalha da mesa, a mãe ficou nervosa, eu não sabia quem socorrer primeiro, a mãe ficou sem ar e ele gritava me ajuda […] me deu um desespero de pensar como vai ser quando eu não estiver mais, aí me bateu um choro que não conseguia mais parar. É muito triste essa doença. (P2)

Givigi et al. (2021) ponderam que antes da pandemia, as famílias passavam muitas horas sem obrigações diretas com seus filhos, as alterações bruscas no período pandêmico causaram sofrimento à pessoa com autismo e sobrecarga aos pais. Ademais, o processo educacional das pessoas com TEA nesse período apresentou expressivos desafios às famílias. A fragilidade — e a ausência em alguns casos — do acompanhamento pedagógico realizado pela escola, fez com que as famílias acumulassem mais essa função: ficarem responsáveis pela mediação escolar. Cabe destacar que para muitos núcleos familiares, a escola proporciona, em alguma medida, a divisão de tarefas e a atenção aos estudantes com TEA.

Além disso, realizar o acompanhamento pedagógico e terapêutico de forma remota requer boas plataformas online e recursos tecnológicos, tais como computador e internet, o que foi um obstáculo para muitas famílias. Associado a isso, os profissionais e os usuários precisaram aprender a interagir por meios desses recursos (Givigi et al., 2021).

Ainda, no trecho acima, a mãe relaciona o TEA a uma doença, o que é inadequado, pois ele se refere a um transtorno do neurodesenvolvimento (APA, 2014). Silva et al. (2019) asseveram que associar o autismo a uma doença decorre do modelo médico da deficiência, no qual as diferenças humanas são tratadas como déficits, desvios da natureza. Esse modelo acarreta a patologização dessas diferenças, pressupondo uma cura ou lhes impondo uma pretensa normalidade.

Na sequência, a participante P5 expressa que precisou conciliar o cuidado aos filhos, com o trabalho autônomo e as aulas assíncronas:

Nós não paramos aqui, meu filho mais velho tinha as aulas pela manhã eu saía com [nome da criança] fazer as entregas, minhas clientes foram muito importante na minha vida nesse período, pois elas, sabiam que era meu ganha pão, tinha dia que eu estava tão exausta que entrava no chuveiro e não tinha força para sair. Eu fazia as encomendas a noite quando eles estavam dormindo e durante a aula do menino se não ela não deixava ele em paz. (P5)

A partir dos dados supracitados, apresenta-se a seguir a análise da etapa 2. Para tanto, mediante a entrevista com as duas famílias participantes, os seguintes dois eixos interpretativos foram elencados: ausência do Estado e falta de rede apoio, laços de cuidado que ultrapassam a dimensão afetiva.

Ausência do Estado e falta de rede de apoio

Uma das famílias entrevistada é composta pela mãe, a cuidadora principal, a filha com TEA de 14 anos e o irmão de 15 anos. A fonte de renda da família é a venda de enxoval de cama fabricado por seu irmão, antes da pandemia de covid-19, a filha ia um período para a escola especial e a mãe entregava e fazia as cobranças. A partir do contexto pandêmico, a mãe relata que:

Vivemos o inferno na Terra: um dia tínhamos só o dinheiro para as compras básicas eu estava péssima, porque eles em casa comiam o triplo do normal, saímos na rua de casa para que ela tomasse um ar e ela não quis entrar chorava e gritava sem motivos aparentes, e ela entrou em crise quebrou o vidro do carro, as ruas estavam vazias e eu não tinha força para colocá-la para dentro, ela pegou nos meus cabelos e eu caí, tive vontade de não me levantar mais, ficamos ali por uns 30 minutos, ela correndo de um lado para o outro até autorregular-se, e ninguém, ninguém para ajudar, é desesperador. (Mãe, família X, 2022)

Com base nessa fala, observa-se que o isolamento/desamparo familiar, social e estatal que muitas famílias de pessoas com TEA vivenciam cotidianamente se acentuou com a pandemia. Especificamente no contexto pandêmico, identificou-se que uma das proximidades no percurso dessas famílias foi o abandono do Estado velado de autocuidado com a população em geral.

Destarte, a forma como o isolamento social foi realizado no Brasil, sem um planejamento estratégico e convergente entre as instâncias federais, estaduais e municipais, acarretou prejuízos ao desenvolvimento das pessoas com TEA que precisaram interromper atendimentos especializados. Isto é, sem rede de apoio, essas famílias ficaram em situação de fragilidade (Givigi et al., 2021), visto que ao não se implementarem políticas públicas para acolhimento das necessidades dos indivíduos com autismo e de seus familiares, o exercício dos seus direitos e das liberdades fundamentais foi negligenciado, contrapondo-se ao que garante a Lei Brasileira de Inclusão (Brasil, 2015).

A seguir, a mãe da família X evoca o quanto se sentiu sozinha. Outrossim, a cada relato, os participantes expressavam a dor e o abandono que sentiram durante esse período:

Quando eu era jovem, sonhava em ter filhos queria jantares com os amigos ser aquela mãe parceira, aqui na minha casa hoje, não posso ir ao banheiro sozinha, tudo depende de nós, o telefone toca e eu perco a respiração, queria poder participar de um grupo de apoio, sair sozinha nem que fosse para ir ao mercado. Como nós as mães dos especiais somos sozinhas. (Mãe, família X, 2022)

Os dizeres da participante se coadunam com o exposto por Lima e Couto (2020), que salientam que o afastamento ou o rompimento de laços sociais e familiares tendem a acentuar a experiência de solidão e, em contrapartida, de sobrecarga. A participante, ainda, se refere ao filho como especial, destaca-se que essa expressão não é mais utilizada para se referir às pessoas com TEA ou outras deficiências.

Na sequência, o pai (família Y) aborda o que, nas palavras dele, foi o pior dia de sua vida:

Um dia depois de meu filho ter um surto em que ele quebrou tudo que pode, eu e minha esposa tivemos que subir em cima dele para medicar, ele com as mãozinhas toda machucada, com de sangue (choro)abri a porta do quarto e quis que ele não existisse para passar por tudo aquilo. Daí pergunto quem se importa conosco, ninguém, quem quer saber como me sinto, o importante é fingir que está tudo bem. (Pai, família Y, 2022)

Corroborando com Fernandes et al. (2021), entende-se que a rotina é um elemento protetivo para as pessoas com TEA, como a rotina estabelecida foi radicalmente alterada com o isolamento social, tanto essas pessoas quanto os seus familiares vivenciaram situações de sofrimento, estresse e ansiedade. Os autores asseveram que países como França e Espanha, que adotaram lockdown, garantiram a partir de medidas legais que famílias de pessoas com TEA pudessem sair de casa, recorrendo a ambientes abertos e sem aglomeração, uma medida de cuidado para amenizar e prevenir o sofrimento desse público. Com relação ao exposto, entende-se que

[…] para além das estratégias de cuidado que envolvem ações diretas às crianças e adolescentes com TEA e suas famílias, é importante refletir de forma mais ampliada sobre o papel do governo e políticas públicas nesse momento, visando a garantia dos direitos das pessoas com TEA em tempos de pandemia, de modo a amenizar as dificuldades das crianças e adolescentes que vivenciam esta condição e suas famílias frente ao atual cenário. (Fernandes et al., 2021, p. 7)

Outrossim, Medrado et al. (2021, p. 519) destacam que a diversidade de fatores que perpassa o TEA requer ações multifatoriais, ou seja, “[…] não apenas profissionais da saúde e pesquisadores da área devem agir e se adaptar, como também entidades públicas, instituições de ensino, grupos de apoio e a sociedade com um todo devem ser mobilizados”.

Compreende-se que cada família enfrentou como pôde o quadro pandêmico. Contudo, a ausência de ações governamentais intersetoriais gerou impactos negativos às famílias e ao desenvolvimento das crianças e adolescentes com TEA, sobretudo considerando os aspectos sociais e educacionais que foram diretamente afetados pela pandemia de covid-19.

Laços de cuidado que ultrapassam a dimensão afetiva

As famílias participantes estruturaram pilares de cuidado primário, diferenciando-se pela base da luta por garantias de direito aos seus filhos. Nesse sentido, este estudo entende que os laços de afeto dizem respeito à experiência de sentimento, das emoções e das consequências desses sentimentos, que os pais trazem à tona quando o assunto é o ato de cuidar das pessoas com TEA. Aqui, cabe ressaltar que por mais negação que as famílias possam demonstrar, esse sentimento de revolta interna, de se sentirem desamparados, não altera o sentimento afetuoso como pais cuidadores.

Todavia, observam-se a notória vulnerabilidade e o desgaste nas narrativas, pois as práticas de cuidado não podem estar circunscritas apenas no âmbito individual/familiar. Tendo como referência as teóricas feministas da deficiência (Kittay, 2011; Fietz & Mello, 2018), a ética do cuidado envolve uma dimensão pública/social, além de se constituir como uma ação familiar/individual, portanto, não necessariamente precisa haver afeto para haver cuidado.

Em outras palavras, as práticas de cuidado não derivam (ou não deveriam derivar) apenas do contexto familiar. Nesse processo, independentemente do vínculo entre cuidador e pessoa cuidada, é premente reconhecer a interdependência como uma condição humana, desestigmatizando as noções de cuidado como algo que inferioriza o ser humano (Fietz & Mello, 2018).

Ainda, discorrendo sobre o TEA, o pai comenta:

Eu penso que todo mundo já pensou em querer ter filho e/ou quis ter, não escolhemos o autismo, e quando ele vem perdemos tudo, até a própria vida. (Pai, família Y, 2022)

A partir dessa fala, entende-se que as práticas de cuidado destinadas ao público com autismo ultrapassam as dimensões afetivas e partem para o contexto mais amplo em que as percepções sobre esse transtorno enfatizam os desafios do convívio cotidiano e/ou as idiossincrasias que distinguem autistas de não autistas (Lima & Couto, 2020). Infere-se que havendo uma rede de apoio consolidada a partir de políticas públicas efetivas, as percepções sociais sobre o TEA poderiam ser diferentes, menos estigmatizantes e excludentes. Afinal, como assinala o participante “não escolhemos o autismo”, mas ele faz parte da variação humana, pressupondo que cabe à sociedade como um todo construir relações humanas fundamentadas no acolhimento das diferenças e no respeito às diversas formas de aprender e estar no mundo (Silva et al., 2019).

Por fim, depreende-se que mesmo nas adversidades vividas por essas famílias, os laços não se desfizeram, pois o cuidado é inerente às relações humanas. O cuidado pressupõe levar o bem-estar ao outro, portanto, não basta haver uma intenção de cuidar, na perspectiva da ética do cuidado, o foco precisa estar nos efeitos que essas práticas produzem (Fietz & Mello, 2018). Ou seja, possibilitar atenção, bem-estar e participação efetiva entre aquele que cuida e a pessoa que recebe o cuidado.

Considerações finais

Os resultados da pesquisa apontam para os seguintes aspectos: a) as crianças e os adolescentes com TEA participantes deste estudo necessitam de acompanhamentos terapêutico e psicopedagógico constantes, por isso, a interrupção e/ou a oferta precária dos serviços durante o isolamento social acentuou crises de ansiedade e episódios agressivos desses sujeitos, b) o fator socioeconômico influenciou as práticas de cuidado destinadas às pessoas com TEA, dentre elas, a manutenção ou não desses atendimentos, c) a ausência e/ou fragilidade das políticas públicas para atenção ao público com autismo e suas famílias ampliou a sobrecarga materna. Convém esclarecer que esse dado não é resultado direto do contexto pandêmico, pois a literatura já evidencia que as mães, mulheres, são historicamente responsáveis por essas práticas de cuidado (Fávero-Nunes & Santos, 2010; Zanatta et al., 2014; Lima & Couto, 2020; Cardoso et al., 2021), contudo, durante o contexto pandêmico essa sobrecarga foi intensificada, d) por fim, evidencia-se a necessidade de ações governamentais por meio de políticas públicas que garantam suporte e apoio a essas famílias.

Em suma, os dados aqui apresentados indicam que os laços familiares estão associados às discussões sobre interdependência e à ética do cuidado (Kittay, 2011; Fietz & Mello, 2018). Nesse sentido, embora modelos ideais não existam, é necessário dar visibilidade a essas cuidadoras por meio de políticas públicas efetivas que garantam a qualidade de vida das cuidadoras, bem como daqueles que estão aos seus cuidados.

Nesse contexto, o reflexo dessas garantias precisa ser experienciado na família, que é parte da vida das pessoas com TEA, mas não deveria ser a totalidade. Sendo assim, depreende-se que é mister estruturar serviços intersetoriais públicos e gratuitos que assegurem dignidade humana às pessoas com TEA e a seus familiares.

Dentre as limitações deste estudo estão questões como: a dificuldade de estabelecer contato inicialmente com as famílias, o desconhecimento e/ou uso paulatino dos recursos tecnológicos por parte de alguns partícipes, a possibilidade de incompreensão por parte de algumas famílias sobre as perguntas presentes no questionário e tempo disponível para responder ao questionário e participar da entrevista. Apesar dessas limitações, buscou-se conduzir o estudo explicando as etapas e tirando as dúvidas dos participantes, assim como agendar a entrevista de acordo com a disponibilidade de cada grupo familiar.

Por fim, esta investigação abre uma possibilidade para que pesquisas futuras investiguem as implicações do isolamento social decorrente da pandemia de covid-19 no desenvolvimento cognitivo e emocional de crianças, adolescentes e adultos com TEA, nos diferentes contextos em que estes sujeitos estão inseridos, como a escola e os serviços terapêuticos. Outrossim, sugerem-se temas que ampliem a compreensão da comunidade acadêmica e de famílias de pessoas com TEA sobre as práticas de cuidado, tendo como pressupostos a ética do cuidado e as relações de interdependência (Kittay, 2011; Fietz & Mello, 2018).

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Recebido: 26 de Abril de 2022; Aceito: 21 de Setembro de 2022

Contribuição na elaboração do texto

As autoras contribuíram igualmente na elaboração do manuscrito.

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