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Linhas Críticas

Print version ISSN 1516-4896On-line version ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.28  Brasília Jan./Dec 2022  Epub Dec 05, 2022

https://doi.org/10.26512/lc28202245347 

Artigos

Narrativas de professoras durante a pandemia: a modernidade/colonialidade no sentir

Narrativas de docentes durante la pandemia: modernidad/colonialidad en el sentir

Teachers' narratives during the pandemic: modernity/coloniality in feeling

Nayara Stefanie Mandarino Silva1 
http://orcid.org/0000-0002-4713-6242

1Especialista em Docência pelo Instituto Federal de Minas Gerais (2022). Mestranda em Letras na Universidade Federal do Paraná.


Resumo

Há pouca reflexão acerca das emoções em estudos realizados sobre educação, aprendizagem e ensino (Zembylas, 2006), uma vez que a modernidade/colonialidade as nega como parte da produção de conhecimento. Neste texto, destaco o período de fechamento das escolas devido à covid-19. Proponho como objetivo analisar narrativas de professoras sobre os desdobramentos da covid-19, com foco nas emoções descritas em diálogo com os estudos decoloniais. Nesta pesquisa narrativa de abordagem qualitativa, as narrativas são analisadas a partir de estratégias de conexão. Por fim, os resultados indicam relações entre as emoções, as noções modernas/coloniais e os efeitos da pandemia.

Palavras-chave Emoções; Professoras; Decolonialidade; Narrativas

Resumen

Hay poca reflexión sobre las emociones en los estudios realizados sobre educación, aprendizaje y enseñanza (Zembylas, 2006), ya que la modernidad/colonialidad las niega como parte de la producción de conocimiento. En este texto, destaco el período de cierre de escuelas debido al Covid-19. Propongo como objetivo analizar las narrativas de los docentes sobre las consecuencias del Covid-19, centrándome en las emociones descritas en diálogo con los estudios decoloniales. En esta investigación narrativa con enfoque cualitativo, se analizan narrativas a partir de estrategias de conexión. Finalmente, los resultados indican relaciones entre las emociones, las nociones modernas/coloniales y los efectos de la pandemia.

Palabras clave Emociones; Maestras; Decolonialidad; Narrativas

Abstract

There is little reflection on emotions in studies carried out in the areas of education, learning, and teaching (Zembylas, 2006), given that modernity/coloniality denies them as part of knowledge construction. In this text, I highlight the period of school closures due to covid-19. I aim to analyze teachers' narratives about the unfolding of Covid-19, focusing on the emotions described in dialogue with decolonial studies. In this narrative research with a qualitative approach, narratives are analyzed based on connection strategies. Finally, the results indicate relationships between emotions, modern/colonial notions, and effects of the pandemic.

Keywords Emotions; Teachers; Decoloniality; Narratives

Início de uma história

De acordo com Grosfoguel (2007; 2016), a construção de conhecimento a partir da filosofia moderna, baseada principalmente nas ideias propostas por René Descartes, está centrada em um indivíduo que, sendo objetivo e neutro, consegue alcançar a verdade. Nesse sentido, Descartes defende o dualismo ontológico, segundo o qual a mente está separada do corpo, sendo independente dele. Além disso, o método do solipsismo poderia revelar o conhecimento supostamente verdadeiro, isto é, o indivíduo, em um monólogo interior, pode alcançar essas certezas que explicam a realidade.

Para Descartes, “a certeza do conhecimento só é possível na medida em que se estabelece um ponto de observação inobservado, anterior à experiência que, devido a sua estrutura matemática, não pode ser colocado sob dúvida” (Castro-Gómez, 2007, p. 82, minha tradução). Com isso, o corpo, a localidade e as emoções foram desconsideradas no processo de construção de conhecimento.

Consequentemente, uma razão descorporificada foi estabelecida como válida e posta numa posição de destaque em uma hierarquia que inferioriza e invisibiliza outras formas de ser/conhecer. Nesse processo, as emoções perderam visibilidade em locais como a universidade e a escola, sendo atribuídas a seres tidos como irracionais, como mulheres e pessoas negras (Arias, 2010).

Ahmed (2014) observa que o modelo Darwiniano coloca as emoções como um resquício do humano primitivo. Mais recentemente, elas são tidas como ferramentas, meios para alcançar objetivos.

Essas noções têm reflexos nos estudos (não) sendo desenvolvidos, que ignoram as emoções ou, no contexto da educação, as abordam com relação a motivação, como obstáculos ou como uma dimensão a ser controlada no processo de ensino-aprendizagem (Barcelos, 2015; Barcelos et al., 2022). bell hooks (1999) ainda lembra que, no contexto educacional, professores e alunos são tidos como mentes descorporificadas. Nesse sentido, os corpos e as emoções vêm sendo ignorados nesses cenários, ainda que sejam uma parte importante dos processos educativos.

Com a emergência da covid-19, a necessidade do afastamento físico e o consequente fechamento das escolas, as emoções dificilmente puderem ser ignoradas, ainda que a maior parte das pesquisas sobre o assunto nas áreas de Educação e Linguística Aplicada não os discuta, conforme um levantamento que discutirei mais a frente neste texto.

Considerando a problemática proposta, delineio como problema a pouca reflexão acerca das emoções em estudos realizados sobre educação, aprendizagem e ensino (Zembylas, 2006), destacando aqui o período de fechamento das escolas. Esse ponto é refletido no pouco número de estudos sobre o assunto e revela a importância de retomar os corpos e suas emoções na produção de conhecimento. Nesse sentido, proponho como objetivo analisar narrativas de professoras sobre os desdobramentos da covid-19, com foco nas emoções descritas em diálogo com os estudos decoloniais. Parto destes estudos porque entendo que a colonialidade constitui a escola e a nossa existência, além de marcar os modos como nos relacionamos uns com os outros e com a natureza, atravessando, portanto, nosso sentir. Além disso, ressalto que não objetivo criar generalizações com relação às emoções de professores; volto-me, na verdade, a casos específicos e situados, em um movimento de trazer corpos e emoções de volta às reflexões sobre/na educação. Acredito que, para pensar uma educação diferente, é necessário que olhemos para nossos corpos e sentimentos.

Emoções, pandemia e colonialidade

Em 1997, Schumann (1997) aborda afeto [2] e cognição a partir da neurobiologia, enfatizando a motivação de aprendizes de línguas. Nesse sentido, as emoções parecem ser aspectos que se relacionam com o sucesso ou fracasso no processo de aprendizagem e, por isso, é necessário entendê-las para despertar emoções favoráveis à motivação dos estudantes. Similarmente, Arnold e Brown (1999, como citado em Arnold, 2011, p. 11, minha tradução) definem afeto como “aspectos da emoção, sentimento, humor ou atitude que condiciona o comportamento”. Novamente, o afeto é entendido como podendo ser positivo ou negativo para o sucesso do aprendizado. Arnold (2011) ainda faz referência à hipótese de Stephen Krashen referente ao “filtro afetivo”, que define as condições emocionais mais favoráveis ao sucesso do aprendiz.

Muitos estudos, assim como os últimos mencionados, trazem à tona as emoções tanto silenciadas em nome da razão perante a lógica moderna/colonial; no entanto, o fazem reproduzindo essa mesma lógica, pautando-se em dualidades (emoções negativas a serem evitadas e positivas a serem encorajadas) e frequentemente centrando aspectos psicológicos individuais [3] – o que associo ao solipsismo comentado por Grosfoguel (2016). Com a modernidade/colonialidade, a mente/intelecto é o elemento mais importante e controla o corpo (e as emoções) para determinados fins, tornando-o “uma coisa instrumental voltada a proporcionar um dia produtivo de trabalho [e/ou estudos]” (Shahjahan, 2014, p. 494, minha tradução).

Além disso, as emoções, enquanto associadas ao primitivismo (oposto ao modernismo), são frequentemente atribuídas ao outro do moderno/colonial, uma vez que a “[…] razão tem lugar, pois era e segue sendo euro-gringo-cêntrica; tem cor (ibid), pois a razão é branca; e tem gênero pois é hegemonicamente masculina” (Arias, 2010, p. 114, minha tradução). Essa noção parece ser refletida nos estudos sobre as emoções, que recorrentemente enfocam o outro - mulheres, imigrantes etc. – (ver o levantamento de Benesch, 2012). No entanto, ao mesmo tempo, estudar as emoções desse outro é necessário, uma vez que elas são construídas – e, portanto, constituídas pela gramática moderna/colonial. Nesse sentido, esse esforço de olhar para as emoções desses corpos pode possibilitar a identificação da lógica moderna/colonial e abrir espaço para contestação e ação política (Oliveira & Oliveira, 2022).

Benesch (2012) aponta também abordagens socioculturais no que diz respeito às emoções, compartilhando alguns estudos cujo foco se volta para docentes. Referindo-se a Ahmed (2014), ela explica que muitas pesquisas nesse grupo estão alinhadas a uma perspectiva outside-in, ou seja, pautando-se na ideia de que as emoções seguem o movimento de fora (social) para dentro (individual).

Ahmed (2014) sugere um caminho não dual (social ou individual). As emoções são entendidas como relacionais e:

[…] criam o próprio efeito das superfícies e fronteiras que nos permitem distinguir um inside [de dentro] e outside [de fora] antes de tudo. Então, emoções não são simplesmente algo que “eu” ou “nós” temos. Em vez disso, é através das emoções, ou como respondemos a objetos e outros, que superfícies ou fronteiras são criadas: o “eu” e o “nós” são moldados pelo, e até assumem a forma do, contato com outros. (Ahmed, 2014, p. 10, minha tradução)

Nesse sentido, emoções não são uma propriedade que o indivíduo ou o coletivo possuem, algo a ser passado. E, embora sejam relacionais, elas não são experienciadas da mesma forma por todas as pessoas, estando sempre em tensão. Ahmed (2014), portanto, discute as emoções em relação a objetos e corpos, sendo que elas movem por e aderem a eles – ela propõe, então, o termo sticky (pegajoso, em uma tradução livre).

Considerando a discussão de Ahmed (2014) e estudos feministas, Benesch (2012, p. 44, minha tradução) ressalta que as “[…] emoções são corporificadas (sensações e sentimentos); elas estão sempre mudando (nós somos movidos), não são estáticas ou monolíticas; e elas são socialmente construídas (nossa interpretação delas podem depender das interpretações prévias de outros), não privadas, internas ou cognitivas.”.

Similarmente, após um levantamento de definições para emoções, Barcelos (2015, pp. 309-310, minha tradução) conclui que elas são “[…] construídas discursivamente e vistas como processos, que são moldados e moldam o contexto sociocultural. Como tal, elas são interativas, dinâmicas e formam uma rede complexa”. Ahmed (2014) propõe ainda que elas são políticas, explicando que a negação das intensidades das emoções no sistema social possibilita a sua existência e as imposições de forma de ser.

Zembylas (2006), também considerando uma perspectiva política, afirma que as relações de poder atravessam a forma como experienciamos emoções, que são disciplinadas por meio de regras emocionais. Estas limitam as possibilidades de ser de docentes por negar possibilidades outras ao disciplinar corpos. No entanto, as emoções podem gerar espaço para resistência política.

Pensando especificamente na educação, “as emoções dos docentes são integradas a cultura, ideologia e relações de poder da escola, por meio das quais certas regras emocionais são produzidas para constituir as emoções e subjetividade dos professores” (Zembylas, 2006, p. 36, minha tradução). Nesse sentido, explorar as emoções de docentes e discentes pode levar à identificação de como a modernidade/colonialidade constituem nosso ser/sentir e como as regras e relações da/na escola perpassam/são perpassadas por esses processos.

A partir de 2020, muitas escolas pararam de funcionar presencialmente devido à covid-19, uma vez que docentes e discentes poderiam ser vetores da doença (Arruda, 2020), no caso da continuidade das atividades presenciais. Diante desse cenário, algumas escolas adotaram o ensino remoto emergencial; outras, porém, seguiram com as atividades interrompidas pelas limitações da desigualdade de acesso a tecnologias digitais (Brasil, 2021).

No decorrer da pandemia, diversos estudos vêm sendo realizados. Porém, poucos deles abordaram as emoções. Em um levantamento realizado no Portal de Periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), com as palavras-chave escola e covid-19, foram encontrados 42 resultados que abordam as implicações da pandemia no ambiente escolar. Os textos foram agrupados por tema em: Letramento midiático (1); Ação e política educacional (3); Cidadania global (1); Currículo (1); Educação Especial e Inclusiva (1); Ensino remoto (4); Formação de professores (4); Funcionamento da escola (4); Gestão escolar (3); Impactos da pandemia (16); Materiais didáticos (1); Uso de tecnologias digitais (3).

Não busquei realizar um levantamento exaustivo, mas brevemente vislumbrar os focos dos estudos. A organização dos grupos se deu pela ênfase da pesquisa, uma vez que os assuntos se entrelaçam. Como indiquei acima, o grupo com mais textos foi Impactos da pandemia. No que concerne às emoções, somente 6 dos 42 textos as abordaram diretamente de alguma forma (Saraiva et al., 2020; Echarri et al., 2021; Gomes & Machado, 2021; Elisondo & Barrera, 2022; Menezes & Gil, 2022; Paes & Fresquet, 2022), apesar de somente um deles (Echarri et al., 2021) discutir emoções como tema principal.

Echarri et al. (2021) compartilham um projeto realizado em um museu; seu propósito foi o de desenvolver nos alunos inteligência emocional, para que pudessem administrar suas próprias emoções durante a pandemia. Nesse sentido, as emoções são abordadas como algo a ser controlado/administrado pela mente (razão), em acordo, portanto, com a separação moderna/colonial.

As pesquisas de Gomes e Machado (2021) e Paes e Fresquet (2022) mencionam emoções, embora elas não sejam exploradas, decorrentes das incertezas da pandemia, como a preocupação, a saudade e a ansiedade, ressaltando a importância da escola como um ambiente acolhedor e amoroso. Similarmente, apesar de não ser o foco do estudo, Elisondo e Barrera (2022) apontam emoções predominantes nos discentes, que se sentiram sobrecarregados, estressados, frustrados, ansiosos, angustiados, desamparados, confusos, desmotivados e isolados.

Saraiva et al. (2020, p. 17) exploram especificamente a exaustão dos professores, chegando à conclusão de que “a docência nos tempos de pandemia é uma docência exausta, ansiosa e preocupada”. As autoras ainda apontam que mecanismos disciplinares vêm sendo reforçados, com a ênfase em conteúdos disciplinares e a vigia constante aos docentes e discentes. Elas destacam também a desigualdade de acesso a tecnologias digitais e os impactos nas relações de professores com o tempo, uma vez que as demandas são de que estejam sempre disponíveis para estar em contato com alunos e familiares.

Com a necessidade de fechar as escolas, houve uma busca por soluções. O uso das tecnologias, então, surgiu como uma forte possibilidade de continuar atividades escolares. No entanto, como afirmam Williamson et al. (2020), há interesses mercadológicos na indústria das tecnologias educacionais, cujos atores veem na crise uma oportunidade de negócios. Em outras palavras, algumas empresas podem ver o ensino remoto “como um protótipo rápido de educação como um serviço privado e uma oportunidade de recentralizar sistemas decentralizados por meio de plataformas” (Williamson et al., 2020, p. 109, minha tradução). O neoliberalismo, nesse sentido, enfatiza o acúmulo de capital, aproveitando-se, inclusive, de momentos de crise. Essa lógica individualista, quantificadora e hierárquica perpassa as relações com/na escola.

O neoliberalismo resulta do capitalismo, cuja existência se deve à colonialidade. Quijano (2000) explica que o capital e o mercado passaram a ser centrais na articulação em volta do trabalho (e da exploração), com a raça sendo a categoria na qual as relações de inferioridade e superioridade se articulam. A divisão do trabalho e distribuição de recursos, portanto, partem desse critério – o que levou à concentração de recursos na Europa. Considerando esse processo histórico, a distribuição de recursos é desigual, podendo ser constatada em comparações internas (dentro de um país) e externas (entrepaíses).

A pandemia evidenciou essa desigualdade de diversas maneiras. No caso da educação, ela foi discutida quando a opção de adotar tecnologias digitais no ensino foi considerada e, em muitos casos, concretizada, tanto com a falta de acesso total quanto com a ausência da possibilidade de acesso de qualidade (Arruda, 2020; Williamson et al., 2020) por muitas pessoas.

Uma série de emoções decorrem desse momento, considerando-se essas questões. Entendo que muitas delas são constituídas pela colonialidade/modernidade. Abordo aqui alguns pontos principais para dar suporte a esse argumento. Apesar de explicar noções coloniais e então apontar emoções que podem emergir, não quero afirmar que as emoções resultam do problema em questão, pois compreendo que os limites entre emoções como causa ou consequência não estão bem definidos. Penso, nesse sentido, que elas são ambos ao mesmo tempo.

A modernidade/colonialidade se pauta na ideia de linearidade, havendo a ideia de um ponto de partida e um ponto de chegada. Essa lógica constitui, inclusive, nossa noção de tempo. A partir da ideia de que existe um passado, primitivo, e um caminho em linha reta a ser seguido em direção ao progresso, a Europa, especialmente, se tornou esse ponto de chegada, simbolizando o desenvolvimento (Mignolo, 2011). Diante disso, o tempo é visto como algo a ser utilizado ou perdido a fim de alcançar o objetivo, a chegada. Na escola, esse ponto se refere à totalidade de conhecimentos que o aluno adquire (de forma linear, progressiva, do mais fácil ao mais difícil), os quais são separados em partes menores (disciplinas, unidades, conteúdos). Em acordo com a noção moderna/colonial de que o todo deve ser dividido em partes e reorganizado a partir de uma lógica matemática para ser compreendido (Castro-Gómez, 2007). Com a pandemia, fica a sensação de que tempo está sendo perdido e o conteúdo que o aluno deveria saber (para progredir) não está sendo ensinado. Portanto, emoções como a ansiedade, a culpa, e a preocupação, em razão da sensação de estar ficando para trás emergem e nos levam a querer manter o sistema em funcionamento e seguir em frente (dentro da linearidade em questão).

Além disso, a modernidade/colonialidade oferece uma série de garantias: você pode ser feliz, alcançar estabilidade e segurança, se seguir as regras do sistema e conquistar tudo isso com seu esforço individual (meritocracia). Nesse sentido, a felicidade fica ligada ao desenvolvimento econômico e a uma série de ações que um indivíduo deve realizar para ser digno de tal sentimento (Ahmed, 2010). A defesa da felicidade, como explica Ahmed (2010), passa a ser uma justificativa para os mais diversos atos e ataques. Eu acrescentaria que isso também se aplica a outras “garantias” da modernidade/colonialidade, como as já mencionadas estabilidade e segurança – as quais vejo como também relacionadas à construção discursiva da felicidade. O outro lado dessas promessas é a exploração da natureza e de outros seres humanos e não humanos, em um processo inerentemente violento (Quijano, 2000; Cajigas-Rotundo, 2007). Considerando especificamente a escola, a promessa é de “um sistema de conhecimento universalmente único e relevante que oferece certeza, previsibilidade, consenso” (Stein & Silva, 2020, p. 552, minha tradução), em um ambiente em que há um determinado grau de controle. A pandemia e seus impactos nesse contexto revelaram (e ampliaram) a instabilidade, as incertezas e a impossibilidade de controle completo, o que também pode desencadear as emoções apontadas nas pesquisas mencionadas (Saraiva et al., 2020; Echarri et al., 2021; Gomes & Machado, 2021; Elisondo & Barrera, 2022; Menezes & Gil, 2022; Paes & Fresquet, 2022).

Nas narrativas discutidas neste texto, serão exploradas as emoções de professoras diante do isolamento físico e decorrente fechamento das escolas, com a adoção do ensino remoto emergencial. Antes de seguir com a análise, porém, apresento os caminhos metodológicos que percorri na realização desta pesquisa.

Caminhos metodológicos

Tendo em vista meu objetivo de analisar narrativas de professoras sobre os desdobramentos da covid-19, com foco nas emoções descritas, esta pesquisa segue uma abordagem qualitativa. Em acordo com Phakiti e Paltridge (2015), com essa abordagem, não há a busca por controlar o contexto da pesquisa, além de o envolvimento da pesquisadora ser compreendido como parte da investigação. Entendo também que as leituras são múltiplas e localizadas (Ferreira et al., 2002); por isso, não busco revelar uma “verdade” por trás do material empírico da pesquisa. Dialogo com as narrativas, compreendendo que minhas interpretações são igualmente locais e, portanto, não são universais ou generalizáveis.

Além disso, trata-se de uma pesquisa narrativa, que, de acordo com Barkhuizen (2016, p. 4, minha tradução), refere-se a “uma maneira de fazer pesquisa que foca nas histórias que contamos sobre nossas vidas. Essas histórias são sobre nossas experiências de vida; o significado que construímos dos eventos que vivemos ou imaginamos em nossas vidas futuras”. Em outras palavras, as narrativas refletem como processamos acontecimentos e as sensações que eles nos despertam. No contexto do ensino e aprendizagem, essas histórias concernem as experiências vividas e imaginadas de professores e alunos (Barkhuizen, 2014). Portanto, considerando meu objetivo de explorar as emoções de professoras no contexto da pandemia, entendo as narrativas como um caminho apropriado a seguir.

A pesquisa narrativa vem sendo usada para pensar a escola, a educação e a formação de professores em diversos estudos brasileiros, entre os quais destaco: Murta et al. (2020), que enfatizam as narrativas como forma de ouvir vozes marginalizadas; Ferreira e Bengezen (2020), Mariani e Monteiro (2016), Nascimento e Henriques (2021), Ponciano e Lima (2021) e Reisdoefer e Lima (2021), que compreendem esse tipo de pesquisa como uma possibilidade para (re)pensar a formação docente e a educação de diferentes perspectivas; além de Lopes et al. (2017), que defendem a pesquisa narrativa como forma de resistência a algumas políticas educativas.

Assim como as pesquisas mencionadas anteriormente, não vejo as narrativas como somente um instrumento de geração de dados a partir dos quais posso encontrar uma verdadeira história – como praticado convencionalmente em muitas pesquisas (Webster & Mertova, 2007). Diferentemente, compreendo que elas ressaltam as múltiplas leituras (e emoções) relacionados a um evento, destacando a situacionalidade de cada experiência. Nesse sentido, abordo as narrativas como intrinsicamente ligadas ao contexto (Barkhuizen, 2014): a covid-19, causando o isolamento físico e o fechamento das escolas, que levou à adoção do ensino remoto emergencial; e a modernidade/colonialidade que nos constitui e perpassa nosso narrar e sentir.

No que diz respeito a geração de material empírico, fiz um levantamento na rede social Instagram, buscando perfis que postassem narrativas de professores dentro do período da pandemia (de 2020 ao momento de escrita deste texto – setembro de 2022). Utilizei, para tanto, as palavras-chave: professores, narrativas, pandemia e covid-19, tanto separadamente quanto combinadas de diferentes maneiras. Uma conta foi selecionada, a qual não revelarei para preservar a identidade das pessoas que escreveram as narrativas, uma vez que, em muitos casos, suas contas estão marcadas nas publicações enquanto em outros foram usados nomes fictícios a pedido dos autores. Essa decisão foi atravessada por conflitos e complexidades, pois considerei que poderia ser cobrado que o perfil fosse revelado como uma garantia de que o material empírico realmente foi encontrado nesse local virtual. Por outro lado, ao expor a conta, eu estaria também expondo as autoras das narrativas cujas contas estavam marcadas nas postagens. Acabei decidindo proteger as identidades das narradoras, apesar de os textos terem sido divulgados de forma aberta ao público.

O objetivo da conta no Instagram era justamente o de disseminar narrativas de professores. O projeto teve início em 2020, mas acabou passando a explorar não somente questões relacionadas a pandemia. Foram selecionados 17 textos de diferentes professoras que evidenciavam emoções de forma explícita; todos eles, coincidentemente, foram escritos por mulheres. Para me referir a cada um deles, uso números de 1 a 17.

Considerando as questões de ética (Celani, 2005), além de optar por não revelar o usuário da conta ou usar os nomes das autoras para preservar suas identidades, pedi autorização para usar as narrativas nesta pesquisa, pois, apesar de serem textos públicos, disponíveis on-line, entendo que eles não foram escritos para fins acadêmicos.

No que diz respeito à análise dos textos, utilizei estratégias de conexão, as quais exploram relações, tendo em vista que foco nas emoções enquanto relacionadas ao contexto pandêmico e à modernidade/colonialidade. Esse tipo de estratégia, com foco em relações de contiguidade, “envolve a justaposição no tempo e espaço, a influência de uma coisa sobre outra ou relações entre partes do texto; sua identificação envolve realmente ver conexões entre as coisas, em vez de similaridades e diferenças” (Maxwell & Miller, 2008, p. 462, minha tradução). Optei, dessa maneira, por destacar, no processo de análise, em diversas cores as partes das narrativas referentes a emoções que se conectavam a um aspecto do contexto e alguma noção moderna/colonial, o que me levou a criação de grupos. Por isso, no tópico seguinte, organizo a análise em tópicos que concernem relações específicas que construí com base nas minhas leituras das narrativas.

Emoções em narrativas

Neste tópico, discuto as narrativas a partir de alguns grupos, pensados a partir das relações com o contexto, com a modernidade/colonialidade e entre partes da história. Explorar essas relações, no entanto, não significa dizer que as emoções estão relacionadas apenas à modernidade/colonialidade. Essa afirmação simplificaria algo que é complexo; minha busca, diferentemente, é por complexificar as emoções. Os sentimentos, na verdade, existem para além dessa modernidade/colonialidade.

Na análise, surgiram os seguintes grupos: em busca do avanço por meio de um caminho linear; preocupação com a volta: dá para recuperar o progresso?; lidando com o inesperado, medo e ausência de controle; todo tempo é útil? todo o trabalho é trabalho?; afetividade e saudade: lembranças da escola; e partilhar as aflições no caminho.

Em busca do avanço por meio de um caminho linear

Em uma das narrativas (Narrativa 6), a autora pensa em como a palavra cair passou a significar algo diferente com o formato remoto. Primeiro, ela destaca que o emocional se tornou mais evidente - o que aparece também em outras narrativas. Como explica Louro (2000), o corpo (e acrescento as emoções) foi desconsiderado na escola por muito tempo, sendo lembrado apenas para fins disciplinares. O foco na mente e o entendimento do corpo como algo a ser disciplinado/controlado reflete a divisão moderna/colonial entre mente e corpo, com ênfase na primeira (Maldonado-Torres, 2007a). Com a covid-19, as emoções passaram a ser uma preocupação, uma vez que se trata de um momento marcado por perdas, mudanças e sentimentos intensos.

Narrativa 6: o que vejo é o físico dando lugar ao emocional […] “Cair da aula” simboliza, de um jeito icônico, a nossa fragilidade diante das limitações dos recursos tecnológicos – ou da total falta deles. A mim, parece demostrar o quanto ainda temos que avançar para ter suporte e redes que não nos deixem “travados”, que não nos deixem “cair”. O cair, no ensino remoto, tem outro tipo de prejuízo e desconforto. Faz perder o fio do raciocínio, desconcentra todo o grupo, desanima, desmotiva. (Excerto da Narrativa 6, parte do conjunto de material empírico, meus destaques)[4]

A autora segue com a ideia de que ficamos frágeis ao precisar das tecnologias e que é necessário que elas avancem para garantir a estabilidade da conexão. Entendo que aqui há a busca pelo progresso (avanço), que levaria ao cumprimento da promessa moderna/colonial de estabilidade – a qual, de acordo com Mignolo (2011), foi inclusive um dos pilares da sociedade europeia, após a Guerra dos Trinta Anos. O não cumprimento dessa promessa pelas tecnologias (que acaba sendo projetado para um futuro imaginado), alinhado à interrupção da linearidade, se relaciona ao desconforto, ao desanimo, à falta de motivação.

Preocupação com a volta: dá para recuperar o progresso?

Em uma outra narrativa, a professora relata a sua preocupação com o retorno das aulas após o período de isolamento físico. Essa preocupação se relaciona com a possibilidade de “rever o que foi mal planejado” (Narrativa 2).

Narrativa 2: Desde o primeiro momento em foi anunciada a possibilidade de um retorno presencial escalonado, preocupei-me em colaborar com o plano da volta às atividades na escola de Educação Infantil da qual faço parte. Esboçar um retorno das crianças aos espaços da Educação Infantil pode ser visto como possibilidade de rever o que foi mal planejado. (Excerto da Narrativa 2, parte do conjunto de material empírico, meus destaques)

É recorrente que a educação remota emergencial seja discutida como diferente da educação à distância, pois não conta com planejamento cuidadoso (Arruda, 2020; Hodges et al., 2020). Nesse sentido, ela acaba dificultando o cumprimento das exigências de conteúdo para o ano letivo. Partes do conhecimento (Castro-Gómez, 2007) não são trabalhadas e é como se os alunos fossem ficar prejudicados porque não somente a linearidade não foi seguida, mas os componentes necessários para a completude do conhecimento não foram ensinadas/aprendidas. Então, a preocupação que fica é a de recuperar o progresso interrompido. Essa emoção pode estar relacionada tanto à sensação de que os discentes estão sendo prejudicados e que algo deve ser feito para mudar a situação quanto às pressões externas (cobranças) que visam ao funcionamento escolar, enquanto instituição moderna/colonial.

Lidando com o inesperado, medo e ausência de controle

Em seis narrativas, emoções como medo (Narrativas 4, 5, 9 e 14), desânimo (Narrativa 8), insegurança (Narrativa 5), ansiedade (Narrativa 11) e culpa (Narrativa 8) aparecem ligadas ao inesperado, à falta de preparação para lidar com o momento (causado pela covid-19) e à sensação de ausência de controle, especialmente no que diz respeito ao que os alunos estão (ou não) fazendo diante das atividades propostas.

A questão do controle (e da possibilidade de prever e se preparar para algo) perpassa nossas relações não somente entre seres humanos, mas com o mundo e outros seres. Como explica Maldonado-Torres (2007b, p. 145, minha tradução):

[…] a partir de Descartes, a dúvida com respeito a humanidade de outros se converte em uma certeza, que se baseia na alegada falta de razão ou pensamento nos colonizados/racializados. Descartes fornece à modernidade os dualismos mente/corpo e mente/matéria, que servem de base para: 1) converter a natureza e o corpo em objetos de conhecimento e controle.

Nesse sentido, a partir do conhecimento verdadeiro do qual tudo que é outro é objeto, seria possível prever, entender e controlar. O sujeito moderno/colonial usando sua mente/razão poderia, portanto, exercer controle em diversos âmbitos, começando por si mesmo: suas emoções, seu corpo, seu tempo. Na escola, especificamente, há a ideia de que é possível ter algum controle sob o processo de aprendizagem por meio do planejamento, da preparação para tudo e da vigilância para que os passos pensados estejam sendo cumpridos. Com a covid-19, a sensação de poder planejar e estar preparado para algo deu lugar à instabilidade, imprevisibilidade e, com isso, o medo e a insegurança.

Devido ao pouco espaço, reproduzo aqui trechos de duas narrativas. A Narrativa 4 evidencia essas questões, com a professora explicando que, em vez das práticas familiares da escola, ela precisa lidar com algo inédito (para o qual não houve preparação), enfrentando seus medos. Não ter retorno com relação às atividades que ela propõe é colocado como uma dificuldade. No entanto, ela aponta que esse retorno acontece, mas de forma diferente do esperado, de modo alinear no decorrer do ano.

Narrativa 4: estou exercendo a formação de forma inédita, como todos os professores, enfrentando medos e, muitas vezes, encarando também a rejeição por parte de algumas famílias, além da ausência dos métodos e propostas próprias da escola, já tão familiares. […] Enfatizo que é uma dificuldade ficar sem retorno das famílias sobre a forma como as propostas estavam sendo realizadas, embora eu tenha perguntado se estavam de fácil compreensão, se estavam dentro de suas possibilidades, tenha tentado explicar com escrita simples, com imagens, colocando vários exemplos, diversos materiais para a mesma proposta. Muitas vezes, ficamos às cegas em relação ao que está sendo de fato realizado em casa. […] No entanto, percebo que o retorno aconteceu de outras maneiras, pois as crianças falaram sobre suas emoções, seus sentimentos, enviaram áudios, e vídeos para mim, não no momento daquela “tarefa”, mas no decorrer do ano letivo. (Excerto da Narrativa 4, parte do conjunto de material empírico, meus destaques)

Similarmente, a Narrativa 14 demonstra o medo emergente da sensação de não poder exercer algum controle sobre o processo de aprendizagem, de não saber se “estão dialogando com aquilo que você deseja” (Excerto da Narrativa 14, parte do conjunto de material empírico).

Todo tempo é útil? Todo o trabalho é trabalho?

Nesse caso, o tempo (em seu entendimento moderno/colonial) se relaciona ao 1) cansaço das docentes e 2) à culpa, ao medo e à preocupação com relação ao estado emocional dos alunos.

De acordo com Shahjahan (2014, p. 492, minha tradução), a noção de tempo moderna/colonial em pauta é “linear, constante e irreversível”, com a possibilidade de desperdício, uma vez que está separado do corpo. Na lógica neoliberal, o tempo se torna uma commodity em escassez, pois deve ser aproveitado completamente para produção, com tarefas úteis.

Em oito narrativas, as relações com o tempo, nos termos da modernidade/colonialidade, revelam a busca por usar esse tempo de forma útil, respondendo às demandas do trabalho, o que leva ao cansaço, já que, diante da escassez de tempo, são sacrificadas as ações voltadas ao nosso corpo – como o descanso e a preguiça (Shahjahan, 2014). Essa relação é ainda mais tensionada no caso das mulheres, como mostra o trecho da Narrativa 17, uma vez que o trabalho doméstico (frequentemente atribuído a nós na sociedade patriarcal, moderna/colonial) não considerado útil é acumulado às demandas recorrentes e urgentes emergentes com o home office.

Narrativa 1: Estamos em 2020, a escola está fechada e as crianças estão em casa. Nós, professores, estamos exaustos. Trabalhamos por horas. Os grupos dos aplicativos fervilham mensagens, a vida parece urgente ao tempo em que fomos obrigados a parar (Excerto da Narrativa 1, parte do conjunto de material empírico, meus destaques).

Narrativa 17: O stress me domina. Acumular funções docentes em “home office” com as demandas da casa em “office home” parece ressaltar minha incompetência como profissional, mãe e mulher. (Excerto da Narrativa 17, parte do conjunto de material empírico, meus destaques)

Narrativa 8: Há dias em que sair da cama é difícil. Realizar as tarefas escolares já não tem o mesmo prazer de antes. Não sou eu a única a estar nessa situação. Colegas “choram” nos grupos de conversa. Falas descompensadas são sentidas nas reuniões remotas. Assim como parece que a carga está muito mais pesada para nós, professores, nossos alunos também estão passando por uma descarga emocional enorme. E, diante dessa sensação, somos o “porto seguro” para eles. […] Escolhi me manter disponível e em contato diário com eles via mensagem ou ligações, muitas vezes até fora do horário de expediente, mas priorizando o contato individual. Temi criar nova fonte de exclusão. (Excerto da Narrativa 8, parte do conjunto de material empírico, meus destaques)

Além do cansaço e do estresse, as narrativas revelam uma preocupação com o emocional dos alunos, um senso de responsabilidade pelas emoções e progresso dos discentes, como evidenciado pela Narrativa 8, considerando tanto o impacto emocional da covid-19 quanto as questões relacionadas a desigualdade de acesso a tecnologias. Com isso, todo o tempo desses professores é mobilizado para que estejam disponíveis para os discentes, tanto tirando dúvidas como ajudando-os a processar suas próprias emoções. Nesse caso, o que Arlie Hochschild denominou emotion work foi intensificado. Emotion work refere-se às demandas emocionais de um emprego, que são socialmente mediadas, com esforços por parte do trabalhador para administrar tanto suas próprias emoções quanto as dos seus colegas/clientes/alunos (Benesch, 2012). Com a covid-19 e a intensificação de emoções, além de precisarem se esforçar mais na tentativa de controlar seus sentimentos, os docentes se viram diante da necessidade de auxiliar os alunos no processo de lidar com suas emoções, sendo seu porto seguro. Como uma parte do trabalho frequentemente não reconhecida, o emotion work contribui com o cansaço dos professores e com ansiedade de não ter tempo suficiente para estar disponível para todos.

Afetividade e saudade: lembranças da escola

Sete narrativas abordam a saudade da escola, caracterizada como local de vínculos e afetos. Apesar de a afetividade ser preterida com a modernidade/colonialidade para dar lugar ao foco completo na mente/razão, as autoras da narrativa lembram como a escola é um lugar em que vínculos se formam e momentos de afeto são compartilhados.

Narrativa 1: só uma coisa não muda: a afetividade que inunda a sala de aula e as lembranças que a escola pode produzir em nossa trajetória e na vida das nossas crianças. […] estou fazendo uma opção nesse momento, por compartilhar boas lembranças – as doces pipocas de aprendizado e afeto […]. Quanta saudade eu tenho de estar com as crianças! (Excerto da Narrativa 1, parte do conjunto de material empírico, meus destaques)

Narrativa 7: O distanciamento me faz supor que nesse momento, depois de tantos dias, de tantas mudanças e muitas incertezas saber que se pode contar com o olhar atento e carinhoso de pessoas que estão fisicamente distantes pode ser mais importante que uma organização de horários de atividades ou a cobrança por lições realizadas. (Excerto da Narrativa 7, parte do conjunto de material empírico, meus destaques)

Embora a maioria das narrativas fale do encontro físico na escola, o qual é lembrado com saudade, dada a interrupção pela covid-19, há os casos em que as autoras falam da manutenção e da criação de vínculos sensíveis e afetuosos, ainda que os corpos estejam distantes fisicamente, como mostra o excerto da Narrativa 7.

Acredito que o movimento de trazer as emoções para a escola e a construção de conhecimentos é importante no processo de transformar esse espaço e abrir caminhos para imaginarmos uma escola otherwise (Escobar, 2007), paradigmas outros, não constituídos pela modernidade/colonialidade.

Partilhar as aflições no caminho

Três narrativas ressaltaram a importância de partilhar com os colegas e de caminhar junto, embora não se saiba para onde. Nesse sentido, para navegar em meio à onda de insegurança, medo e instabilidade trazida à tona pela covid-19, a união com os pares é uma possibilidade.

Narrativa 10: Entre lives e encontros on-line, poder partilhar com outros docentes as angustias e algumas alegres descobertas desse momento nos encoraja a seguir […] Uma das professoras usou a metáfora de estarmos atravessando uma ponte, sem saber o que terá do outro lado. Sabemos, no entento, quem está de mãos dadas, atravessando conosco. E isso importa. (Excerto da Narrativa 10, parte do conjunto de material empírico, meus destaques)

Narrativa 14: o medo estava / está li, mas não pode nos mobilizar. O medo tem que impulsionar cada vez mais novas certezas e, ao partilhar dessa aflição com os meus pares, fomos nos fortalecendo e buscando caminhos, apoiadas nas próprias habilidades e inspirando umas às outras. (Excerto da Narrativa 14, parte do conjunto de material empírico, meus destaques)

Dessa maneira, diante das emoções relacionadas à covid-19 e à modernidade/colonialidade, parece ter sido preciso recuperar a sensibilidade e se afastar dos princípios de hierarquização e competitividade modernos/coloniais para dar lugar a afetividade e colaboração. Com isso, foram sendo abertos “espaços para Corazonar a partir da insurgência da ternura, que permitam colocar o coração como princípio do humano, sem que isso signifique ter que renunciar à razão, pois se trata de dar afetividade à inteligência” (Arias, 2010, p. 116, minha tradução).

Um desfecho para outros começos

Neste artigo, analiso narrativas de professoras, com foco nas emoções e suas relações com a pandemia, causada pela covid-19, e as noções modernas/coloniais. A partir de estratégias de conexão, construí grupos: em busca do avanço por meio de um caminho linear, no qual a instabilidade (de conexão via tecnologias digitais) é associada ao desconforto diante da promessa moderna/colonial de estabilidade; preocupação com a volta: dá para recuperar o progresso?, incluindo a preocupação relacionada a busca pelo desenvolvimento do aluno com base na ideia de progresso linear e total da modernidade/colonialidade; lidando com o inesperado, medo e ausência de controle, nesse caso, emoções como medo e insegurança emergem em um processo que revela a instabilidade e a ausência de controle, contrariando as promessas modernas/coloniais; todo tempo é útil? todo o trabalho é trabalho?, no qual o cansaço é intensificado com a colonialidade do tempo, o qual é mobilizado em tarefas consideradas úteis e entra em conflito com as atividades não reconhecidas, como as da esfera doméstica, havendo também aumento dos esforços relacionados ao emotionwork. afetividade e saudade: lembranças da escola, o qual revela a compreensão da escola como um lugar perpassado por afeto, que gera saudades, mas que continua sendo um espaço de estabelecimento de laços, ainda que virtualmente; e, por fim, partilhar as aflições no caminho, que também ressalta a afetividade e a importância das parcerias para caminhar em direção a um lugar incerto.

Nesse sentido, as emoções de desconforto, ansiedade, medo etc. reportadas em outras pesquisas (Saraiva et al., 2020; Gomes & Machado, 2021; Elisondo & Barrera, 2022; Paes & Fresquet, 2022) também perpassam as narrativas discutidas neste texto, sendo, no entanto, relacionados não somente ao contexto da covid-19, mas também à modernidade/colonialidade. Além disso, são narradas emoções como saudade e admiração, havendo destaque para a importância dos vínculos e parcerias, o que indica a afetividade ou, nos termos de Arias (2010), o corazonar como uma possibilidade de fortalecimento coletivo no caminho em direção ao desconhecido e inimaginável.

Pensar as emoções como relacionadas à modernidade/colonialidade nos possibilita aprender com todas elas, especialmente as mais desconfortáveis. Esse é também um movimento de as trazer de volta à construção de conhecimento e questionar a separação colonial de mente/razão e corpo/emoção.

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[2]Entendo emoção e afeto como intimamente conectados. Em acordo com Ahmed (2010, p. 231, minha tradução), compreendo que “eles são contíguos; eles deslizam um para o outro; eles aderem e entram em coesão, mesmo quando eles estão separados”.

[3]Ahmed (2014), referindo-se a estudos de abordagem cognitiva, denomina esse modelo como “inside-out”, isto é, as emoções partem da mente do indivíduo (inside) e são expressados fora (out).

[4]Os trechos das narrativas foram reproduzidos exatamente como foram escritos pelas autoras.

Recebido: 07 de Outubro de 2022; Aceito: 30 de Novembro de 2022

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