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Linhas Críticas

Print version ISSN 1516-4896On-line version ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.28  Brasília Jan./Dec 2022  Epub Dec 05, 2022

https://doi.org/10.26512/lc28202244846 

Artigos

Migrantes haitianos na educação de jovens e adultos no Brasil

Migrantes haitianos en educación de jóvenes y adultos en Brasil

Haitian migrants in youth and adult education in Brazil

Dominique Antoine1 
http://orcid.org/0000-0003-0008-3865

Wagner Roberto do Amaral2 
http://orcid.org/0000-0002-8555-5915

1Mestre em Serviço Social e Política Social pela Universidade Estadual de Londrina (UEL) (2020). Doutorando em Serviço Social e Política Social pela UEL.

2Doutor em Educação pela Universidade pela Universidade do Paraná (2010) e professor titular do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Política Social da UEL.


Resumo

Trata-se de uma pesquisa qualitativa que tem por objetivo analisar as intenções e expectativas dos migrantes haitianos na modalidade de Educação de Jovens e Adultos (EJA) no Brasil, município de Cambé, Paraná. Os dados evidenciam que as motivações iniciais dos educandos para ingresso na EJA são: a proficiência da língua portuguesa, ter um diploma internacional e estudar numa escola gratuita. Identificam-se dois perfis desses educandos na EJA: os recém-chegados ao Brasil, que buscam a aprendizagem da língua portuguesa, e os que vivem há mais tempo neste país e aspiram a concluir o ensino médio para ingresso na universidade, objetivando uma ascensão social.

Palavras-chave Migração haitiana; Educação de jovens e adultos; Política educacional

Resumen

Se trata de una investigación cualitativa que tiene como objetivo analizar las intenciones y expectativas de los migrantes haitianos en la Educación de los Jóvenes y Adultos (EJA) en Brasil, municipio de Cambé, Paraná. Los datos muestran que las motivaciones iniciales de los estudiantes haitianos para ingresar a EJA son: hablar el portugués, tener un diploma internacional y estudiar en una escuela gratuita. Se identifican dos perfiles de estos educandos: los recién llegados que buscan aprender portugués y aquellos que han vivido en Brasil por más tiempo y aspiran a concluir la escuela secundaria, ingresar en la universidad, con el objetivo de una ascensión social.

Palabras clave Migración haitiana; Educación de jóvenes y adultos; Política educativa

Abstract

This qualitative research aims to analyze the intentions and expectations of Haitian migrants in the Education of Youth and Adult (EJA) in Brazil, municipality of Cambé, Paraná. Data show that the initial motivations of students to attend the EJA program are: to learn Portuguese language, get an international degree, and afford a free tuition study. Two profiles of these students are identified in the EJA: the students who recently arrive in Brazil seeking to learn Portuguese and those who expect to have a longer stay in Brazil while aspiring to complete their high school with the goal to get a college degree allowing them a social ascension.

Keywords Haitian migration; Youth and adult education; Educational policy

Introdução

Trata-se de uma pesquisa realizada a nível de mestrado na Universidade Estadual de Londrina. Tem o seu foco na questão educacional no contexto dos fluxos migratórios, problematizando o direito à educação dos migrantes haitianos na modalidade de Educação de Jovens e Adultos (EJA) no Brasil, particularmente no município de Cambé, interior do estado do Paraná (PR). O estudo pretende desvelar o percurso dos migrantes, desde as suas vivências socioculturais nas escolas do Haiti, passando pelo deslocamento ao Brasil até a sua inserção na educação básica via modalidade da EJA. O objetivo é analisar as intenções e expectativas dos migrantes haitianos na EJA, quando buscam essa modalidade de educação no Brasil.

Nota-se, no caso do Brasil, que o acesso à educação é um direito não somente dos cidadãos brasileiros, mas também dos estrangeiros que passam a viver neste país. O artigo 5º. da Constituição Federal Brasileira de 1988 prevê: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país sua inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade” (Brasil, 1988). Além da Constituição Brasileira, destaca-se que a Lei n.º 13.445, de 24 maio de 2017, garante, no território nacional, o direito de acesso à educação aos migrantes em condição de igualdade com os nacionais (Brasil, 2017).

Desta forma, os migrantes haitianos têm direito à educação de acordo com a legislação brasileira. O aumento da migração haitiana para o Brasil após o terremoto de 12 de janeiro de 2010 não é sem impacto sobre o sistema de educação brasileiro. Dutra (2014), ao realizar uma pesquisa sobre os estrangeiros no mercado de trabalho formal brasileiro, evidencia que o número de haitianos classificados como pessoas não alfabetizadas aumentou 979,1% de 2012 para 2013.

Este dado evidencia que a maioria dos trabalhadores migrantes haitianos no mercado de trabalho formal no Brasil é não qualificada. A respeito disso, entende-se que o direito à educação desses trabalhadores não foi respeitado em seus países de origem. Eles foram excluídos do sistema educacional ou tiveram que se afastar da escola devido a determinantes sociais, econômicos, políticos e culturais. Chegando ao Brasil, esses migrantes desejam recuperar o direito à educação.

Jean Baptiste (2018) aponta que os migrantes haitianos expressam o desejo de ir à escola. A partir desta afirmação, levantam-se várias inquietações, tais como: o que explica esse desejo? Os migrantes haitianos tinham esse desejo em seu país de origem? Como é o acesso à educação escolar em seu país de origem? Qual o acesso à educação escolar nos países em que porventura trabalharam antes de virem ao Brasil? Existe acesso à educação para migrantes haitianos no Brasil? Tendo em vista estas reflexões, define-se, como questão central da nossa pesquisa, a seguinte: Quais são as intenções e expectativas dos migrantes haitianos na Educação de Jovens e Adultos no Brasil?

Os procedimentos metodológicos mobilizados nesta pesquisa foram organizados em três momentos não lineares, sendo: revisão bibliográfica, levantamento documental e pesquisa de campo. A revisão bibliográfica considerou pesquisas relacionadas às temáticas da Educação de Jovens e Adultos e migração por meio de artigos, teses, dissertações, relatórios de pesquisa, livros e periódicos, uma vez que a consideração de estudos já realizados nesses termos é importante para orientar a reflexão deste trabalho.

No levantamento documental, foram considerados os documentos oficiais e legislações brasileiras e haitianas sobre políticas educacionais, mais especificamente sobre a Educação de Jovens e Adultos.

A pesquisa de campo foi realizada em três momentos e por meio de três técnicas: observação não participante, observação participante e entrevistas com roteiro semiestruturado. A observação não participante foi realizada durante duas semanas em duas escolas públicas (uma municipal e uma estadual) localizadas no município do Cambé, sendo uma semana em cada escola. Além disso, realizou-se uma aproximação do campo da pesquisa por meio de participação nas atividades na igreja da comunidade haitiana em Cambé para observar os potenciais sujeitos da pesquisa, buscando impressões dos migrantes quanto à EJA.

As entrevistas com roteiro semiestruturado foram dirigidas a cinco estudantes migrantes haitianos nas etapas do ensino fundamental e médio na EJA no período de julho a novembro de 2019. Os sujeitos foram escolhidos como pessoas destacadas em referência às atividades que realizam na sua comunidade e devido a seu tempo de permanência na EJA. Ressalta-se que, a fim de preservar o anonimato dos sujeitos da pesquisa e facilitar a compreensão do texto, serão substituídos, de forma aleatória, os nomes dos educandos entrevistados por Tijan, Tipapa, Tinono, Tiwil e Tiga. São apelidos fictícios comuns e usados geralmente pela camada popular no Haiti. Importante destacar que esses nomes não têm nenhuma relação com os nomes reais dos entrevistados. Para analisar os dados coletados, foi utilizada a técnica de análise de conteúdo. De fato, essa análise permitiu avaliar a problemática levantada e explicar as intenções e expectativas dos sujeitos de estudo sobre a EJA.

Estruturado em três partes, o trabalho segue o percurso dos migrantes haitianos, sendo que, na primeira parte, evidencia as determinações sócio-históricas da política de educação no Haiti, enfocando ainda a existência da EJA na política de educação do país. Na segunda parte, analisa o fenômeno migratório haitiano, particularizando a história desse fenômeno a partir do Haiti, bem como a migração haitiana para o Brasil. Na terceira parte, são analisados os aspectos da trajetória histórica e legal da Educação de Jovens e Adultos no Brasil, evidenciando as intenções e expectativas dos jovens e adultos haitianos matriculados em cursos da EJA na região de Cambé, Paraná (PR).

Determinações sócio-históricas da política de educação no Haiti.

Como Freire (1987) afirma, a educação é um ato político. Assim, o sistema de educação haitiano é o reflexo da natureza do Estado e vice-versa, no sentido de que o Estado haitiano e seu sistema da educação estão em uma relação dialética constante de produção e reprodução. Entender o sistema educacional haitiano requer uma análise das singularidades materiais e sociais do país através de sua história.

O Haiti nasceu de uma revolução negra em primeiro de janeiro de 1804, sendo o segundo país independente no continente americano (após a independência dos Estados Unidos da América, em 1776), depois da vitória do exército haitiano sobre o exército francês de Napoleão Bonaparte. Contudo, a revolução haitiana foi o pesadelo de todos os proprietários de escravos na América. Teve um significativo impacto no destino colonial da França, pois foi a mais rica colônia francesa na época. Esta revolução favoreceu o surgimento do Estado haitiano, provocando uma ruptura com a ideia colonial europeia (Hector, 2009).

O objetivo fundamental da revolução haitiana era a superação das relações escravistas coloniais, criando um Estado livre (Hector, 2009). Esse ideal foi materializado no projeto de sociedade de Jean-Jacques Dessalines, sendo líder da revolução haitiana que proclamou a independência do país. Esse projeto de sociedade baseou-se no princípio da igualdade e liberdade para todos, sendo como dois elementos consubstanciais e inseparáveis.

Conforme afirma Dorvilier (2012), para estabelecer as bases desta sociedade, Dessalines constituiu a educação como uma prioridade de seu governo, desenvolvendo leis para regulamentar o sistema. Como resultado, a política de Dessalines foi contestada pelos generais do exército e mulatos, que eram pessoas de ascendência francesa e africana, os quais se tornaram a classe privilegiada da sociedade após a independência. Dois anos depois de libertar os negros da escravidão, Dessalines, o primeiro imperador do Haiti, foi assassinado no dia 17 de outubro de 1806 porque queria recompensar, de maneira justa, todos os participantes da guerra de independência.

O assassinato do imperador desencadeou a primeira grande crise política do país. A cena política foi dominada por rivalidades entre as elites políticas e econômicas do país pelo controle do aparelho de Estado. Essas rivalidades levaram à divisão do país em dois Estados: a República do Oeste sob a direção de Alexandre Pétion, um líder dos mulatos, e o reino do norte liderado por Henry Christophe, um general negro que lutou com Jean Jacques Dessalines pela independência do país.

A política educacional de Pétion era elitista, partidária e nepotista. Não pretendia garantir o acesso à educação a toda a população. As poucas infraestruturas escolares construídas sobre o seu governo eram reservadas aos filhos de cidadãos que prestavam serviços eminentes ao país, nomeadamente aos filhos de mulatos e aos oficiais do exército (Pierre, 2012). Porém, no Reino do Norte, Henri Christophe manteve o ideal de independência, garantindo o acesso gratuito, obrigatório e universal à educação, ordenando aos pais que enviassem as crianças para a escola sob pena de punir os refratários. No entanto, com a morte de Christophe, em 1820, suas realizações e seu projeto educacional foram destruídos em favor de uma visão segregacionista da educação.

Jean Pierre Boyer, o sucessor de Pétion na República do Oeste, uniu o país após a morte de Henry Christophe, adotando uma política educacional segregacionista em detrimento do interesse geral. A visão segregacionista da educação tomou forma quando Boyer aceitou pagar à França uma soma de 150 milhões de francos como compensação aos antigos colonos franceses. Para Louis Juste (2007), o pagamento desta indenização da independência constituía um novo mecanismo de exploração da riqueza do país criado pela França e que levava à ruína da economia nacional.

Para pagar essa dívida, o governo promulgou um código rural (Louis Juste, 2007) que proibia os filhos dos camponeses de irem à escola, obrigando-os a trabalhar a terra durante o período de escolarização. A este respeito, Dorvilier (2012) afirma que a extensão do acesso à educação para as massas camponesas teria sido uma ameaça ao desenvolvimento e consolidação da nova classe dirigente. Como a educação exige um tempo de aprendizagem relativamente longo, poderia impedir completamente o trabalho das massas na agricultura, único fator de enriquecimento das elites da época.

Este panorama histórico permite compreender, em relação à base do modelo econômico da época, que o acesso à educação para uma maioria da população não era uma prioridade do Estado. No entanto, a política de exclusão do governo de Boyer provocou fúria da população, motivando o movimento de contestação dos camponeses haitianos que levou à sua queda do poder em 1843.

O movimento popular de 1843, cujas reivindicações incluíam garantir o acesso à educação aos filhos dos camponeses, levou à criação do Ministério da Educação Pública e à construção de escolas públicas nas áreas rurais do país (François, 2009). Além disso, em 1860, o governo de Fabre Nicolas Geffrard assinou um acordo com o Vaticano que confiou em grande parte à Igreja Católica a responsabilidade pela educação. No entanto, esta decisão complicou a situação ao acentuar as desigualdades escolares, uma vez que as escolas fundadas pelos representantes do Vaticano, que eram inicialmente acessíveis aos filhos dos pais pobres, são frequentadas, atualmente, pelos filhos das elites haitianas (François, 2009).

Sob a ditadura de Jean Claude Duvalier, nas décadas de 1970 e 1980, o Haiti tinha um aumento de 3,4% em seu Produto Interno Bruto (PIB). Este crescimento realizava-se num contexto de implantação da política neoliberal que exige uma mão-de-obra mais ou menos qualificada. Naquela época, a baixa taxa de escolarização do país não poderia sustentar esse crescimento econômico. A este respeito, uma reforma das políticas educativas foi considerada um meio essencial para responder às necessidades do mercado (Dorvilier, 2012).

A reforma escolar de 1982 é considerada uma etapa decisiva que visa modernizar o sistema educativo haitiano, separando-se do ensino tradicional instaurado no país desde a independência para se adaptar à nova realidade econômica do país. No entanto, mesmo após a execução desta reforma, as taxas de escolarização, independentemente do nível de ensino, são mais elevadas nas famílias mais ricas. Observa-se que o acesso à educação é marcadamente desigual no país em relação à situação socioeconômica das famílias dos alunos. Dados estatísticos mostram que, nas famílias mais pobres, a taxa de escolarização no ensino fundamental é de 66% enquanto, nas famílias mais ricas, é de 92% (Haiti, 2011).

Entende-se que o sistema educacional haitiano é um produto de uma sociedade profundamente desigual associada às políticas públicas incapazes de garantir o acesso à educação para toda a população. Diante dessa estrutura desigual, que exclui os educandos do sistema educacional e também de outros fatores, parte da população usa a imigração como alternativa como evidencia, atualmente, a presença dos migrantes haitianos na Educação de Jovens e Adultos no Brasil.

Mobilidade haitiana para o Brasil

A história da migração pode ser dividida em três períodos no Haiti. O primeiro grande fluxo migratório haitiano é marcado no contexto da invasão estadunidense, em 1915. O segundo período iniciou-se a partir da ascensão ao poder do ditador Duvalier (1957-1986), reduzindo os espaços de liberdade econômica, política e cultural da maioria dos haitianos. O terceiro momento teve início no final da década de 1980, marcado pela transição política pós 1986 e, também, pela vasta destruição do setor produtivo e da economia nacional, o que conduziu o país ao status de consumidor quase que exclusivo do mercado internacional, atendendo aos interesses do capital.

No caso da mobilidade haitiana para o Brasil, os debates a respeito das causas desta migração são diversos. Algumas hipóteses levantadas destacam razões ligadas ao fechamento cada vez mais incisivo das fronteiras da Guiana Francesa, Bahamas, EUA e Canadá, destinos considerados privilegiados dos haitianos, onde esperam encontrar mais oportunidades de trabalho. De outro lado, destacam-se aspectos como o crescimento econômico do Brasil entre 2003 e 2015, as obras de infraestrutura com vistas à Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016, assim como a construção de hidrelétricas (Fernandes, 2014). Delfim (2017) e Castro (2018) consideram ainda que o terremoto que atingiu o Haiti em janeiro de 2010 é um fator desencadeante da migração desse país para o Brasil. Todas essas hipóteses podem ser compreendidas como causas do fluxo migratório haitiano para o Brasil, no entanto, a reflexão sobre esse fenômeno deve ir além desses pressupostos.

A matriz da migração haitiana para o Brasil está inserida basicamente na constante instabilidade econômica, política e social do país em sua trajetória colonial e histórica. As greves contínuas e protestos populares causam atrasos no currículo e programas das escolas que afetam o desempenho eficiente dos educandos e futuros professores, reproduzindo ciclicamente as mesmas lacunas acadêmicas (Pongnon, 2017). Nessa lógica, o sistema educacional haitiano produz mão de obra não qualificada com baixo custo para o mercado mundial. É nesse contexto que o Brasil, coordenando a Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (MINUSTAH) em 2004, usou o terremoto como pretexto para se apropriar da força de trabalho dos haitianos a fim de promover a expansão do capital brasileiro.

Dessa política de migração em busca de mão de obra barata dos países periféricos para a expansão do capital, Delfim (2017) evidencia que o Brasil recebeu cerca 80 mil haitianos de 2010 a 2015. Segundo dados do Ministério do Trabalho, 45 mil migrantes haitianos têm emprego formal, especialmente no abate de animais em frigoríficos, na construção civil e no setor de serviços.

A pesquisa de campo evidenciou que a mão de obra da diáspora[3] haitiana é, geralmente, não-qualificada e, como resultado, o trabalhador ganha o salário mínimo do mercado de trabalho local. Esse salário permite à diáspora, na maioria dos casos, reproduzir apenas a sua força de trabalho. Como evidencia Handerson (2015), no Brasil, o salário mínimo é mínimo mesmo, comparado com o dos Estados Unidos, Canadá ou França.

Nesse sentido, migrar para os países do hemisfério norte é mais valorizado e prestigioso na percepção haitiana – um sonho que nem sempre é fácil de alcançar, especialmente para migrantes não qualificados no seu processo de escolarização. Como resultado, os países do hemisfério sul permanecem como uma alternativa para os haitianos, sendo o caso da diáspora haitiana no Brasil. A posição da diáspora haitiana na sociedade brasileira, especialmente no mercado de trabalho, não facilita a realização de seu projeto de diáspora e, no entanto, alguns migrantes cursam a Educação de Jovens e Adultos com expectativas de mobilidade social no futuro.

Intenções e expectativas dos educandos haitianos

Ajala (2011) ressalta que as pessoas mais pobres têm mais dificuldade de acesso e permanência na escola, o que gera cada vez mais um aumento de homens e mulheres pobres ingressando na EJA. Passos (2012), por sua vez, analisa o fenômeno sob um ângulo racial. Ele observa que 55% da diferença salarial entre brancos e negros está associada à desigualdade escolar. Aponta que a disparidade entre negros e brancos existe no acesso à educação, permanência na escola e conclusão de rotas escolares. Como resultado, muitos jovens e adultos negros vão à EJA para concluir o ensino médio no intento de superar estruturas sociais desiguais da sociedade brasileira.

De acordo com as Diretrizes Nacionais para a Educação de Jovens e Adultos (Brasil, 2000) no Brasil, esta modalidade da educação básica pode ser vista como uma dívida social a ser reparada para aqueles que não tiveram acesso e/ou domínio da escrita, da leitura e dos conhecimentos científicos como bens sociais, na escola ou fora dela, e que tenham sido reduzidos à força de trabalho empregada na constituição de riquezas e na elevação de obras públicas. Ou seja, a ideia central da dívida social refere-se à noção de inclusão vinculada à função reparadora da EJA. Portanto, a função reparadora da EJA representa a restauração de um direito negado, garantindo não apenas o acesso a uma escola de qualidade, mas também o reconhecimento daquela igualdade ontológica de todos.

Com base nessa premissa, compreendemos que a função reparadora da EJA se apresentou como ideal para uma sociedade historicamente desigual na medida em que as raízes do analfabetismo no Brasil são de ordem histórica, social e econômica. Entretanto, apesar do ideal proposto, o contexto hegemônico atual da política neoliberal opõe-se à noção de universalidade na gestão das políticas públicas. Diante disso, como se poderia pensar uma escola de inclusão e qualidade para todos dentro de um contexto socioeconômico que visava responder unicamente à demanda do mercado?

Por certo, as reformas educacionais, através da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Brasil, 1996) e das Diretrizes Nacionais para a Educação de Jovens e Adultos (Brasil, 2000) foram inseridas no mundo produtivo. Sendo assim, visavam, de certo modo, a inserção dos educandos no mercado por meio do acesso aos conhecimentos produzidos pela chamada sociedade do conhecimento. Com base nisso, salienta-se que a política educacional no Brasil caracteriza, hegemonicamente, os interesses e as marcas das agências multinacionais.

Nessa perspectiva, entende-se que, na legislação e no discurso oficial, a Educação de Jovens e Adultos, que se destacou como instrumento de reparação da dívida social, na prática revelou sua inadequação, pois estava diretamente vinculada às exigências das instituições financeiras internacionais. Tais instituições consideravam a educação como um mecanismo que deveria atender às necessidades do capitalismo mundial ao contrário dos pressupostos apresentados nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação de Jovens e Adultos. Foi neste cenário de contradições que se configuraram as demandas dos migrantes haitianos da Educação de Jovens e Adultos no Brasil, particularmente nas escolas públicas localizadas em Cambé, Paraná, locus da pesquisa que realizamos.

Um ditado popular haitiano considera a educação escolar como a chave do sucesso. No Haiti, uma pessoa que, mesmo tendo sucesso econômico, não concluiu pelo menos o ensino médio tem pouco prestígio social. Assim, a escola tem uma representação simbólica de ascensão na percepção dos haitianos.

Entretanto, quando delimitado o cenário da pesquisa, identificam-se diversos motivos para que os educandos entrevistados busquem a inserção na EJA. O primeiro está ligado ao fato de que esses sujeitos relatam trazer esses sonhos de estudar no Brasil desde o Haiti, conforme identificado no relato de Tijan:

Eu sempre quis ser um filósofo [é aquele que conclui ensino médio] no Haiti. Trabalhava de dia e não consegui encontrar escola à noite no Haiti. Dado que nunca é tarde para aprender, quando cheguei ao Brasil como país estrangeiro, vou à EJA para concluir o ensino médio e ter um diploma internacional. (Tijan)

A dificuldade de Tijan para encontrar uma escola à noite depois do seu trabalho nos permite questionar se de fato existe uma política de Educação de Jovens e Adultos no Haiti. Nos documentos consultados[4], não se encontra nenhum plano ou programa específico da Educação de Jovens e Adultos no Haiti. Mas isso não significa que essas categorias, apesar de suas idades, sejam proibidas de ter acesso à educação no sistema público. De fato, não há uma política claramente definida e que leve em consideração as necessidades pedagógicas, sociais e econômicas dessa categoria de alunos, ocasionando sérios problemas para que possam conciliar o trabalho e o estudo. Talvez seja por isso que Tijan não encontrou uma escola de Jovens e Adultos no Haiti para estudar, apesar de sua vontade de concluir o ensino médio, depois de seu dia de trabalho. Nessa perspectiva, é necessário esclarecer a posição de jovens e adultos dentro do sistema educacional haitiano.

No que diz respeito ao Plano Nacional de Educação e Formação (PNEF), o sistema de educação haitiano tem dois componentes. Primeiro, um aspecto formal que engloba a pré-escola, a educação fundamental com três ciclos, ensino médio, formação profissional e ensino superior. Em seguida, um aspecto não formal, que reúne alfabetização de adultos, formação à distância, centros noturnos, educação especial, isto é, educação para crianças e adolescentes com mobilidade reduzida (Roblin, 2017).

Ao analisar os dois componentes do sistema educacional haitiano, entende-se que o Estado não coloca a ênfase em uma política de Educação de Jovens e Adultos. No entanto, encontram-se jovens e adultos nos dois componentes do sistema educacional. No setor formal da educação, jovens são considerados como surãgés scolaires, sendo alunos com idade superior a quatorze anos no ensino fundamental. Esta categoria é geralmente encontrada em escolas públicas e escolas privadas de baixa qualidade. Essas escolas geralmente funcionam à noite. Os surãgés scolaires são alunos de famílias pobres principalmente do campo ou jovens em situação de empregos domésticos. Entende-se que a presença de surãgés scolaires no ensino fundamental provoca problemas pedagógicos, na medida em que esta categoria de alunos está na mesma sala de aula com as crianças. Desta forma, os resultados do campo evidenciam que os sujeitos da pesquisa se reconheciam como surãgés scolaires em situação de abandono e reprovação no sistema escolar do Haiti.

O relato de Tipapa aponta outros aspectos relativos às suas intenções e expectativas na EJA que evidenciam a natureza da gratuidade da escola no Brasil.

Quando eu estava no Haiti, meus pais não podiam pagar a taxa de escolaridade para mim. Fui para a escola na República Dominicana porque são gratuitas. Quando cheguei ao Brasil, aprendi que a escola também é gratuita. Fui para educação jovens e adultos para terminar o ensino médio. Estou surpreso com a estrutura da escola, os professores são de qualidade e há também cantina gratuita para os alunos. (Tipapa)

A gratuidade da escola é um dos fatores que levou Tipapa a frequentar a EJA no Brasil. No entanto, essa motivação não é um fato isolado: está relacionada com sua trajetória escolar e seu direito à educação negado no Haiti. Em consequência, uma vez chegado ao Brasil, decide recuperar esse direito não atendido no seu país de origem. O relato de Tipapa evidencia a questão da taxa de escolaridade como um obstáculo para estudar no seu país de origem. Isso pode ser explicado porque, de fato, no Haiti, o acesso à educação não é universal, considerando que as escolas públicas têm poucas vagas disponíveis para a população. O não acesso universal à educação no país envolve as famílias a fim de garantir o financiamento dos custos escolares de seus filhos. Assim, Dorvilier (2012) destaca que o pagamento dos custos escolares representa um peso para as famílias pobres, pois as despesas escolares anuais são estimadas em cerca de 40% de sua renda anual.

De acordo com Censo Escolar 2010-2011 (Haiti, 2011), o setor privado representa 85% da oferta escolar no país, sendo que o setor público é responsável por apenas 15% das escolas, o que corresponde a um acolhimento de 22% dos alunos. Ou seja, a oferta escolar no Haiti é, em sua maioria, privada, com uma abrangência de 78% dos alunos. A predominância das escolas particulares destacadas no sistema educativo haitiano acentua as desigualdades sociais e escolares e limita profundamente o acesso à educação para as populações socialmente mais vulneráveis, considerando o caráter mercantil da oferta escolar do setor não público, num país onde o acesso à escola é um privilégio que depende dos capitais social, cultural e econômico dos pais dos alunos.

A predominância da oferta escolar pelo setor privado gera uma diversidade na escolarização do território nacional. A este respeito, Pierre (2021) evidencia que existem, no Haiti, escolas para as elites, escolas para as classes médias, outras escolas para as massas e que não existe escola para a população mais desfavorecida. Convém notar que, devido ao caráter heterogêneo do ensino nas escolas haitianas, coexistem, no sistema educativo, escolas privadas de boa qualidade reservadas às crianças cujos pais possuem um capital econômico, cultural ou social mais elevado; e escolas privadas de má qualidade, frequentadas por crianças de famílias pobres. Entende-se que o sistema educativo haitiano tem uma forma piramidal que caracteriza a topografia da organização da sociedade. Esta formação social desigual reforça e produz a desigualdade escolar, constituindo, em si mesma, um obstáculo à democratização escolar.

Os sujeitos entrevistados não chegaram a passar por nenhuma das escolas consideradas de boa qualidade no Haiti, no entanto, durante a entrevista, Tinono afirmou: “Quando era criança, sempre quis ir à escola congregacionista, mas meus pais não tinham dinheiro”. A escola congregacionista é privada e administrada pela Igreja Católica. Tratam-se de instituições com uma equipe de professores bem formados, estruturas pedagógicas e materiais didáticos apropriados, além de acompanhamento pedagógico regular. Tudo isso se deve ao fato de que, nessas escolas, os pais pagam regularmente as taxas de escolaridade e, consequentemente, os professores são bem renumerados. O desejo de Tinono de frequentar uma escola congregacionista evidencia o prestígio e a representação dessa categoria de escolas na sociedade haitiana. Além da qualidade do ensino, elas representam também o ideário mais ocidentalizado e determinante da posição social e econômica dos alunos que a frequentam na sociedade haitiana.

As entrevistas evidenciam que os sujeitos da pesquisa, ao relatarem as dificuldades para obter aprovação nos exames oficiais[5], frequentaram escolas privadas de má qualidade. Desta forma, Tiwil relata: “Fui duas vezes para os exames oficiais, eu não passei. O problema não era eu pois, na minha sala haviam 30 alunos, apenas dois que tinham aprovados no exame”. Perante a isso, é possível reconhecer que essa categoria de escola é marginalizada na sociedade haitiana e, consequentemente, com menor índice de sucesso nos exames oficiais.

Ao analisar o status dessa categoria de alunos no sistema educacional haitiano, compreende-se que tenham poucas possibilidades de ascender ao ensino superior e de encontrar um emprego melhor no futuro uma vez que a qualidade do ensino não lhes permite ser comparáveis no mercado de trabalho. Tal expressão é reflexo de uma sociedade competitiva em que tudo é mercantilizado, sendo que os que têm melhores possibilidades de êxito são aqueles que possuem um capital social e cultural legitimado pela escola.

A partir das entrevistas, destaca-se que as intenções e expectativas dos migrantes haitianos na modalidade de EJA no Brasil estão vinculadas à duração do seu processo migratório e dos seus projetos de futuro na sociedade Brasileira.

Meu sonho era vir ao Brasil para trabalhar e ir para a universidade. O que pensei do Brasil quando estava no Haiti é diferente. Pensei que com o diploma de ensino médio do Haiti, poderia me matricular na universidade brasileira. Mas, o Estado brasileiro não reconhece o diploma haitiano. Por isso vou à EJA para obter o diploma de ensino médio do Estado brasileiro. (Tinono)

A EJA vai permitir-me ter um diploma internacional que terá muito valor. Eu amo o Brasil porque me permitiu trabalhar e estudar ao mesmo tempo. Espero um dia que o Estado haitiano crie condições para que tudo tenha a possibilidade de ir à escola. Infelizmente, a educação não é a prioridade do governo haitiano. (Tijan)

A partir da análise dos relatos, identifica-se que os primeiros motivos dos educandos haitianos para ingressar na EJA são: falar o português, ser um filósofo (é aquele que conclui ensino médio), ter um diploma internacional, estudar numa escola gratuita pela EJA e concluir o ensino médio para ingressar na universidade. Percebe-se que esses motivos estão relacionados, por um lado, com as experiências de cada sujeito entrevistado e, por outro, com suas esperanças e expectativas na EJA. A partir do universo de sujeitos entrevistados, destacam-se duas categorias de perfis dos educandos haitianos na EJA.

A primeira categoria consiste nos migrantes recém-chegados, que estão, no máximo, há um ano no Brasil e que usam a EJA como uma estratégia pessoal para aprender a língua portuguesa. O acesso a essa aprendizagem do português acontece via escola municipal de EJA do Ensino Fundamental (Fase I ou 1º segmento), em Cambé. Importante destacar que esses educandos não falam o português, geralmente estão desempregados e não têm carteira de trabalho, na maioria dos casos.

Observa-se que, nesta categoria, um fator a ser considerado é a nítida percepção de que esses educandos apresentam-se pouco motivados em sala de aula. Eles frequentemente conversam na língua crioulo durante a aula sobre temas alheios, como as dificuldades para encontrar emprego no Brasil. Neste sentido, demonstram solidariedade entre eles, compartilhando informações sobre empresas que possuem vagas de trabalho. Percebemos que a razão dessa categoria de educandos em procurar a EJA está diretamente associada à aprendizagem da língua portuguesa, como um facilitador para o acesso ao trabalho. Nessa lógica, Tiwil relatou sobre a dificuldade para encontrar trabalho sem falar português.

Se você não fala um pouco de português, é difícil conseguir um emprego no Brasil. No meu caso, não consigo encontrar um emprego porque não falo o português. Não gosto da maneira que a professora dá a aula. Eu não venho aqui para aprender matemática e fazer o desenho. Preciso só falar o português para ir trabalhar. (Tiwil)

Constata-se que esses educandos demonstram desconhecer a natureza do trabalho na modalidade da EJA na escola municipal em Cambé, que é destinada para o desenvolvimento do Ensino Fundamental Fase I, o que faz com que se matriculem acreditando ser uma escola de ensino da língua portuguesa. Igualmente, observa-se que tal percepção é alimentada por membros da Igreja Pentecostal Arca de Deus da comunidade haitiana no Jardim Santo Amaro, Cambé, que orientam os migrantes recém-chegados para irem à EJA aprender o português.

A questão da língua dificulta ainda mais a comunicação entre os alunos e a escola no que se refere ao atendimento específico da EJA. A inexistência de um canal de comunicação acaba por aumentar a incompreensão dos migrantes haitianos sobre a modalidade da EJA nesta escola. Tiwil evidencia, em seu relato, que a aquisição da língua portuguesa é um mecanismo de integração dos migrantes no mercado de trabalho no Brasil. Neste quesito, “aprender a língua do país de acolhimento favorece a inserção sócio-profissional das/os migrantes, pois esse conhecimento produz uma maior igualdade de oportunidades para todos, facilita o exercício da cidadania e potencializa qualificações enriquecedoras para quem chega e para quem acolhe” (Bernardo & Barbosa, 2018, p. 478).

Logo, o desconhecimento do idioma se configura numa das barreiras para inserção dos migrantes haitianos no mercado de trabalho brasileiro, o que se revela dentre as primeiras necessidades quando chegam ao Brasil. Cabe reconhecer que ter um emprego é uma das razões do deslocamento desses sujeitos que intencionam trabalhar para primeiramente saldar dívidas contraídas com empréstimos que custearam a viagem do Haiti para o Brasil. Nesse quesito, Tiga enfatiza: “Para vir no Brasil, emprestei dinheiro. Tenho que trabalhar para enviar esse dinheiro para o Haiti”.

Ressalta-se que a demanda dos migrantes haitianos na EJA é organizada de acordo com as informações compartilhadas nas duas igrejas haitianas em Cambé, territórios onde eles moram, tendo proximidade com as escolas. Com exceção de um educando haitiano que mora no Jardim Santo Amaro, todos os outros frequentam a escola estadual de EJA e residem no Jardim Ana Rosa, ambos os bairros localizados no município de Cambé. Já os educandos haitianos que ingressam na escola municipal em Cambé residem no Jardim Santo Amaro. Além da questão da fé e da religiosidade, entendemos que as duas igrejas haitianas observadas criam um espaço de encontro que provoca solidariedade entre os migrantes.

A segunda categoria consiste nos educandos haitianos que têm pelo menos dois anos no Brasil. Geralmente, esses educandos já trouxeram suas famílias para o Brasil, dominam o português e estão empregados. Consequentemente, em sala de aula, demonstram motivação e compartilham suas experiências com os educadores e educandos não haitianos na escola.

Essa realidade foi identificada na escola estadual de EJA em face das razões apresentadas para o ingresso na instituição: ser um filósofo (é aquele que conclui ensino médio), ter um diploma internacional e conclusão do ensino médio. Também demonstram a intenção de ingressar na universidade ou aprender uma profissão a nível técnico, na expectativa de ter uma ascensão social na sociedade brasileira. São planos construídos desde o Haiti, como, por exemplo, concluir o ensino médio, mas que não foram possíveis de concretização anteriormente. Nesse quesito, Tijan apresenta dois aspectos significativos acerca de seus motivos quando procurou a EJA: “ser um filósofo e ter um diploma internacional”.

O desejo de Tijan de ser filósofo pode ser explicado por vários aspectos vinculados à percepção popular haitiana. O ensino da filosofia, como uma disciplina do último ano do ensino médio, denota a importância da trajetória de quem chega a essa fase da escolaridade. No Haiti, o último ano do ensino médio é comumente chamado “classe de filosofia”. Os educandos dessa classe, quase em todas as escolas, comemoram o Santo Thomas D’Aquin (São Tomas de Aquino), considerado o patrono da filosofia.

Esses educandos são prestigiados e valorizados não apenas pela escola, mas também pela sociedade haitiana. É fácil identificar um educando da “classe de filosofia” em uma escola e na rua, pois tem uma maneira diferente de se vestir em relação aos outros educandos. Eles geralmente vestem camisa com a manga comprida e um laço que sinaliza honra. A aspiração de Tijan, ao relatar querer ser um filósofo, remete a essa percepção popular.

Outro fator relevante a ser percebido nos relatos é a questão da possibilidade de obtenção de diploma via EJA. Há uma nítida percepção positiva do diploma escolar. Ademais, ele enfatiza o aspecto internacional desse diploma como forma de mostrar sua importância. Para esses termos, Tijan evidencia: “Terei um diploma internacional. Quando retornar ao Haiti, este diploma terá muito mais valor do que os alunos concluindo ensino médio no Haiti”.

Identificam-se, nos relatos de Tijan e Tinono, pelo menos dois grandes objetivos com esse ingresso na EJA, os quais estão associados a duas expectativas. A curto prazo, anseiam ter em mãos uma certificação ao nível de ensino médio no Brasil. Porém, as expectativas são ampliadas a médio e longo prazo, quando a conclusão deste nível de ensino pode culminar no ingresso na universidade e, consequentemente, na ascensão social. Desta forma, a segunda categoria dos educandos utiliza a EJA como um espaço que permite ampliar seus conhecimentos para mudar o seu status na sociedade brasileira e haitiana no futuro.

Constata-se, nos relatos de Tijan e Tinono, que a EJA é considerada como o principal meio de ascender socialmente, estabelecendo uma relação entre a mobilidade social de pessoas graduadas, como uma tentativa de atender à demanda por maior qualificação no mercado do trabalho. Porém, observando esses relatos, cabe problematizar até que ponto essas aspirações estão pautadas numa noção de realidade, ou se constituem como uma base ilusória. A conclusão do Ensino Médio pela EJA no Brasil de fato constitui uma ponte até a educação superior para esses migrantes? A exclusão ou a precarização do trabalho para esses educandos necessita unicamente da certificação para ser equacionada?

Nota-se que, apesar de haver um discurso de necessidade de qualificação profissional, há um número significativo de brasileiros mais escolarizados que não consegue obter colocações correspondentes às suas qualificações (Martins & Oliveira, 2017). Além disso, os autores enfatizam que, atualmente, grande parte dos empregos existentes é de curta duração, sem muitas garantias sociais e habitualmente de baixa remuneração. O mercado de trabalho, na maioria dos países, não apresenta iguais possibilidades de ascensão social. Os escassos empregos atingem particularmente os jovens, considerando sua vulnerabilidade no mercado de trabalho em virtude de características como a falta de experiência e a busca por experimentação.

Paralelamente, outra visão apresenta a questão da qualificação profissional como requisito aos que buscam se inserir no mercado de trabalho. Essa perspectiva, que estabelece uma relação entre empregabilidade e qualificação profissional, foi defendida pela teoria do capital humano da década de 1960. O ponto de partida dessa corrente consistiu em valorizar as capacidades e competências individuais para atingir uma melhor posição no mercado de trabalho. Ressalta-se que as perspectivas dos educandos haitianos entrevistados inserem-se na corrente da teoria do capital humano, na medida em que eles consideram a aquisição de escolarização como principal meio que pode garantir o requisito da empregabilidade para ascensão social. Com o objetivo de analisar os desafios e as possibilidades dessa mobilidade social, os educandos entrevistados mostram estar otimistas na luta para alcançar suas expectativas. Entende-se que esses educandos quebraram o que pode ser vivido por outros como uma fatalidade social, colocando-se em uma perspectiva positiva para a ascensão social.

Considerações finais

Essa pesquisa teve como foco refletir sobre as trajetórias de jovens e adultos haitianos que acessam a modalidade Educação de Jovens e Adultos na cidade de Cambé/PR, no contexto dos fluxos migratórios para o Brasil. Dentro desse processo, analisamos as intenções e expectativas dos migrantes haitianos na Educação de Jovens e Adultos, problematizando o direito de acesso à educação por esses sujeitos no Brasil.

A análise sobre a vivência dos educandos haitianos nas escolas no Haiti, evidencia que a desigualdade escolar no país é uma herança histórica que persiste na ainda hoje. Diante dessa desigualdade escolar, o Estado haitiano desempenha um papel de regulador. Em decorrência, destaca-se que os educandos entrevistados foram excluídos do sistema educacional no Haiti, ou tiveram que se afastar da escola devido a determinantes sociais, econômicos e políticos.

A partir da análise dos dados empíricos, ressalta-se que as primeiras motivações dos educandos haitianos para ingressar na EJA são: domínio da língua portuguesa, ser um filósofo, ter um diploma internacional, estudar numa escola gratuita e a conclusão do ensino médio. A partir desses motivos, percebemos dois perfis de educandos haitianos na EJA: a primeira categoria de educandos haitianos são os recém-chegados, que buscam na EJA a aprendizagem da língua portuguesa para que assim consigam trabalhar formalmente. A segunda categoria diz respeito aos educandos que estão há mais tempo no Brasil e que possuem o desejo de concluir o ensino médio e depois ingressar na universidade, buscando uma ascensão social na sociedade brasileira.

O presente estudo revela a importância da EJA nos percursos vivenciados pelos haitianos em diáspora neste país. Indica a necessidade de avançar nestas reflexões para que a escola pública brasileira compreenda melhor as expectativas dos jovens e adultos haitianos, além de ampliar com eles os espaços de diálogo, garantindo o ingresso e uma permanência de qualidade.

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[3]O termo diáspora é utilizado no Haiti para descrever os haitianos fora do Haiti, que volta temporariamente ao país e logo retornam para o país estrangeiro onde eles residem (Handerson, 2015).

[4]Consultamos o Plano da Estratégia Nacional de Ação de Educação para Todos (SNA-EPT) e o Plano Nacional de Educação e Formação (PNEF). Estes dois documentos definem a orientação e a política do Estado haitiano no campo da educação.

[5]Os exames oficiais no Haiti correspondem ao último ano do ensino fundamental e último ano de ensino médio. São exames organizados pelo Estado no território nacional para alunos de todas as escolas, sem distinção, sendo aplicada a mesma prova.

Recebido: 31 de Agosto de 2022; Aceito: 28 de Novembro de 2022

Contribuição na elaboração do texto

autor 1 - aplicação de entrevista, análise de dados, sistematização do texto; autor 2 - orientação da pesquisa, colaboração na análise dos dados e sistematização do texto.

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