SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.28Haitian migrants in youth and adult education in BrazilUniversal Design for Learning in the practice of Mathematics teachers in Paraná author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Share


Linhas Críticas

Print version ISSN 1516-4896On-line version ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.28  Brasília Jan./Dec 2022  Epub Dec 12, 2022

https://doi.org/10.26512/lc28202245278 

Artigos

Gêneros e sexualidades: um olhar a partir de planos municipais de educação

Géneros y sexualidades: una mirada desde los planes municipales de educación

Genders and sexualities: a look from municipal education plans

Joanderson de Oliveira Gomes1 
http://orcid.org/0000-0001-9642-0090

Joseval dos Reis Miranda2 
http://orcid.org/0000-0002-0713-0110

1Especialista em Educação e Políticas Públicas pela Universidade Estadual da Paraíba (2020). Mestrando em Educação pela Universidade Federal da Paraíba.

2Doutor em Educação pela Universidade de Brasília (2011). Professor da Universidade Federal da Paraíba.


Resumo

Este artigo tece considerações sobre a temática de gêneros e sexualidades a partir dos Planos Municipais de Educação do Vale do Mamanguape, localizado no estado da Paraíba. Os planos elencados como objeto de estudo desta pesquisa são os Planos Municipais de Educação das cidades de Baía da Traição, Curral de Cima, Itapororoca, Jacaraú, Mamanguape, Marcação, Mataraca e Rio Tinto – cidades que compõem o Vale do Mamanguape. A vigência dos planos data entre 2015 e 2025. Nosso objetivo consiste em analisar como os planos têm veiculado as questões sobre gêneros e sexualidades e possibilitado (ou não) que essa discussão adentre os muros escolares.

Palavras-chave Sexualidades; Gêneros; Educação; Planos de Educação

Resumen

Este artículo considera el tema de género y sexualidades a partir de los Planes Municipales de Educación de Vale do Mamanguape, ubicado en el estado de Paraíba. Los planes enumerados como objeto de estudio de esta investigación son los Planes Municipales de Educación de las ciudades de Baía da Traição, Curral de Cima, Itapororoca, Jacaraú, Mamanguape, Marcação, Mataraca y Rio Tinto – ciudades que componen el Vale do Mamanguape. Los planes tienen una vigencia de 2015 a 2025. Nuestro objetivo es analizar cómo los planes han transportado preguntas sobre género y sexualidades y han permitido (o no) que esta discusión entre en las paredes de la escuela.

Palabras clave Sexualidades; Géneros; Educación; Planes Educativos

Abstract

This article considers the theme of gender and sexualities from the Municipal Education Plans of Vale do Mamanguape, located in the state of Paraíba. The plans listed as the object of study of this research are the Municipal Education Plans of the cities of Baía da Traição, Curral de Cima, Itapororoca, Jacaraú, Mamanguape, Marcação, Mataraca and Rio Tinto – cities that make up the Vale do Mamanguape. The plans are valid from 2015 to 2025. Our objective is to analyze how the plans have conveyed questions about gender and sexualities and enabled (or not) that this discussion enters the school walls.

Keywords Sexualities; Genres; Education; Education Plans

Palavras iniciais

Falar sobre gêneros e sexualidades, no espaço educativo, é entrar em um campo turbulento. Isso porque não são todos/as que aceitam essas temáticas. Assim sendo, resistências frequentes surgem por parte dos/as responsáveis pelo conjunto dos/as discentes ou mesmo pelo grupo de profissionais que compõe a instituição. Ambos, por convicções pessoais, não acham adequado e/ou não concordam que a temática faça parte do ambiente escolar, mesmo que estudos e pesquisas, dentre os quais podemos citar as contribuições de (Junqueira, 2013; Borrillo, 2016; Louro, 2019), evidenciem a sua relevância para a sociedade.

Em pesquisa desenvolvida por Pastorini e Faria (2020), as autoras pontuam a crescente onda do conservadorismo na atualidade e como seus/suas adeptos/as têm lutado por maiores espaços de atuação, dominação e controle, principalmente no cenário político. Com o lema em defesa da família tradicional, da moral e dos bons costumes, esses grupos vêm produzindo resistências no sentido de que as temáticas dos gêneros e das sexualidades não sejam abordadas nas escolas e, portanto, que elas não estejam presentes nos currículos escolares. Argumentam que a inclusão desses temas, no espaço educativo, constitui-se em uma famigerada e falaciosa ideologia de gênero[3] que, conforme argumentado por aqueles/as que fazem uso do termo, visa transformar as crianças em futuros homossexuais, visando com isso a destruição da família tradicional a partir da desconstrução dos papeis comumente atribuídos ao masculino e ao feminino em nossa sociedade.

Como ações de resistência, diversos segmentos dos movimentos das minorias têm se empenhado para que a população que não se enquadra no padrão heterossexual também tenha vez e voz nas discussões nos contextos educacionais. Dessa forma, buscam mostrar que a fala sobre gêneros e sexualidades não consiste em doutrinação, a exemplo do que fazem os religiosos, mas na luta pela manutenção do respeito à diversidade e às diferenças, além da valorização de ambas.

Na esteira desse pensamento, compreendemos o espaço educativo como um ambiente apropriado para que as discussões sobre as diferenças, no campo das sexualidades e dos gêneros, sejam oportunizadas na perspectiva do respeito e da inclusão das políticas educacionais. Observamos que tais discussões estão para além dos muros da escola, porém, compreendemos que elas precisam acontecer primeiro no Plano Nacional de Educação (PNE). Dessa maneira, reverberará nos Planos Estaduais de Educação (PEE) e, por fim, nos Planos Municipais de Educação (PME), sendo estes documentos fundamentais na elaboração e promoção das ações a serem desenvolvidas no âmbito das instituições de ensino, e que darão respaldo para que a atuação docente possa incluir essas questões em seus planejamentos.

Conforme Lima e Hypólito (2019), os ataques às políticas educacionais brasileiras não se configuram como um dado novo, uma vez que são oriundos de grupos conservadores que, a partir de 2010, passam a ganhar mais força e expressão no espaço público e político, sobretudo no tocante às questões educacionais. Consequentemente, essa discussão, promovida pelos grupos fundamentalistas, tem impacto direto nos planos nacionais, estaduais e municipais de educação.

A partir desses elementos, Lima e Hypólito (2019) tecem considerações sobre o neoconservadorismo, que, conforme nos apresentam os autores, atua na defesa do passado como sendo um tempo melhor do que o presente, uma vez que os valores tradicionais eram mantidos e preservados. Desse modo, os adeptos dessa ótica, preocupados principalmente com as questões educativas e como elas têm sido abordadas pelos nossos documentos educativos, posicionam-se de modo contrário a qualquer avanço que não se relacione com seus princípios fundamentalistas e tradicionais.

Nesse sentido, nosso objetivo geral é analisar a forma como os PME do Vale do Mamanguape, localizado no estado da Paraíba, têm veiculado as questões de gêneros e de sexualidades. Como objetivos específicos, pretendemos depreender de que forma as discussões de gêneros e de sexualidades são abordadas nos PME do Vale do Mamanguape e refletir, a partir dos planos, sobre as possibilidades de se trabalhar as questões referentes a gêneros e as sexualidades na escola.

As problematizações aqui tecidas são oriundas da reflexão acerca das vivências dissidentes que não estão inseridas no modelo binário (masculino/feminino) de se pensar os gêneros e as sexualidades. Assim sendo, dizem respeito às/aos marginalizadas/os que, resistentes, lutam para não serem silenciadas/os. Desse modo, nos indagamos se haverá, em nossas escolas, lugar para aqueles/as que não se alinham com a heterossexualidade, mas que sentem desejos outros, igualmente legítimos, e que não podem ser deixados/as à margem.

A atitude de negar o estudo e a ampliação dos conhecimentos sobre gêneros e sexualidades no espaço educativo não impede que os ditos dissidentes cheguem à escola. Eles chegam, mas, muitas vezes, não conseguem permanecer. Para Louro (2019) e Junqueira (2013), a escola tem se tornado, historicamente, um dos espaços mais difíceis para que alguém assuma não ser heterossexual. É na esteira dessa afirmação que ressaltamos a importância da ampliação e efetivação das discussões sobre gêneros e sexualidades dentro (e fora) dos muros escolares. Não devemos esquecer que é um direito constitucional que todos/as sejam respeitados/as em suas singularidades, além de não serem segregados/as por qualquer tipo de preconceito ou discriminação. Dessa forma, nossa luta é por uma educação para o ser humano em toda sua diversidade.

Nesse sentido, tomamos o conceito de gênero a partir de Butler (2019), que o entende como fruto das relações que se estabelecem no âmbito social e que objetivam direcionar os corpos a assumirem posturas específicas que, ao longo do tempo, foram atribuídas aos gêneros masculino e feminino dentro de moldes de vida heterossexuais. A autora nos chama atenção para o fato de que o gênero não está dado ou faz parte intrinsecamente da natureza humana, mas se trata de um ato deliberativo por meio de uma performatividade, sendo esta última entendida pela autora como o conjunto de atos discursivos reiterativos que incidem sobre os corpos, buscando construir modos de ser e existir e levando o/a indivíduo/a a se constituir enquanto sujeito/a.

Nesse sentido, entendemos que o gênero é construído na e por meio das relações de poder, ocorrendo resistências ao longo do processo, tendo em vista a pluralidade e diversidade dos/as sujeitos/as. É sobre esses/as outros/as que lançamos o nosso olhar na reflexão que aqui se desdobra; por eles/as não serem contemplados/as na visão binária de macho/fêmea, homem/mulher, que vem sendo historicamente naturalizada em nosso espaço social.

No que diz respeito à sexualidade, também a entendemos como fruto de uma construção social e histórica que vem sendo utilizada como forma de controle dos corpos e do modo como os/as indivíduos/as se relacionam socialmente. Foucault (2015) nos mostra como esse discurso da sexualidade vai sendo polido ao longo da história até se limitar apenas a fins reprodutivos, como se a sexualidade tivesse apenas essa dimensão, encerrando-a dentro da esfera privada, dos limites conjugais heterossexuais e legitimando uma concepção de que só existe sexualidade no âmbito da procriação – tudo o que fugisse a essa normativa tenderia a ser alijado do espaço social.

É na esteira desses entendimentos que buscamos tensionar as discussões sobre os gêneros e as sexualidades no âmbito dos PME, para que esses/as, considerados/as ilegítimos/as, possam ser contemplados/as nas discussões que adentram os muros escolares e, consequentemente, possam se sentir partícipes do processo: não vistos/as como estanhos/as, mas como pessoas que têm o direito de expressar seus gêneros e sexualidades em toda a sua pluralidade e diversidade.

Metodologia

Este trabalho está configurado como uma pesquisa qualitativa que, conforme nos é apresentada por Minayo (2014, p. 23), “visa a compreender a lógica interna de grupos, instituições e atores quanto a valores culturais e representações sobre sua história e temas específicos […]”. Nesse sentido, trata-se de um estudo de caráter documental, onde a análise se fará a partir dos PME do Vale do Mamanguape.

Os planos elencados como objeto de estudo desta pesquisa são os PME das cidades de Baía da Traição, Curral de Cima, Itapororoca, Jacaraú, Mamanguape, Marcação, Mataraca e Rio Tinto – cidades que compõem o Vale do Mamanguape. O acesso aos documentos foi possível por contato via e-mail com as secretarias de educação de cada município. Os planos foram lidos na íntegra, traçando o que Franco (2021) denomina de leitura flutuante.

No tocante ao caráter documental, Godoy (1995, p. 21) afirma que “os documentos constituem uma rica fonte de dados” que podem nos oportunizar a compreensão acerca de um dado momento histórico. Como procedimento de pesquisa, no propósito de inferir sobre o que nos dizem os planos em foco, adotamos a análise de conteúdo, definida por Franco (2021, p. 22) como sendo “um procedimento de pesquisa que se situa em um delineamento mais amplo da teoria da comunicação e tem como ponto de partida a mensagem”.

Seguindo esse pensamento, Bardin (2016, p. 45) entende o analista como um arqueólogo, pois seu trabalho consiste em análise de vestígios. Conforme afirma a autora, “[…] os vestígios são a manifestação de estados e de fenômenos. Há qualquer coisa para descobrir por e graças a eles”. A observação do conteúdo teve início com a pré-análise (Franco, 2021). Inicialmente, realizamos a leitura flutuante, buscando conhecer os documentos de forma mais ampla e, desse modo, identificar as primeiras menções a respeito do campo dos gêneros e das sexualidades.

Nosso segundo passo foi a busca pelas unidades de registro, entendidas por Franco (2021) como a menor parte do conteúdo, tendo sua presença registrada a partir das categorias elencadas. Em nosso caso, fizemos uso de palavras que se relacionam com gêneros e sexualidades, objetivando ver sua frequência ou ausência nos documentos investigados. Para tanto, usamos um buscador de palavras, disponível no próprio programa do Adobe Reader, para que pudéssemos mapear as seguintes unidades de registro: diversidade, gênero, sexualidade e discriminação. Nossa unidade de contexto se constituiu nos PME de cada município que compõe o Vale do Mamanguape.

Contextualizando a temática

Ressaltamos que, nesse artigo, optamos por grafar os termos gêneros e sexualidades no plural como forma de evidenciar sua diversidade, uma vez que se referem a sujeitos plurais que estão além do binarismo masculino/feminino. Compreendemos que falar sobre gêneros e sexualidades é acentuar o sentido político que os termos carregam em si, ou seja, como forma de defesa, resistência e afirmação das diferenças.

Ser heterossexual, ao longo da história da humanidade, vem se constituindo como um modo de ser considerado normal. Desse modo, tudo que foge a esse padrão tende a ser marginalizado do espaço social; no máximo, tolera-se dentro da esfera privada. Historicamente, a escola vem oportunizando um espaço educativo heteronormativo (Junqueira, 2013; 2022), onde as questões de gêneros e sexualidades são vistas como tabus. Estas, portanto, devem se restringir apenas ao espaço particular de vivências e, quando abordadas pela instituição, seguir o sentido ideal de uma heterossexualidade compulsória (Butler, 2020).

Por isso, é importante ressaltar que este sentido atribuído à sexualidade, em certa medida excluída do espaço educativo, faz parte do cotidiano dos/as discentes e do/as docentes e o perpassa de diversas formas, dialogando com a literatura, as músicas e as relações pessoais, ou seja, faz parte do contexto vivido pela humanidade.

No entanto, existe uma resistência em se considerar a diversidade humana em toda sua riqueza. Grupos mais conservadores limitam os sentidos dos gêneros e das sexualidades à visão binária, compreendida dentro da ótica heterossexual (Pastorini & Faria, 2020). Como resultado, e de diversas formas, as instituições de ensino, lideranças políticas, espaços religiosos, entre tantos outros, têm buscado acentuar as atribuições que são direcionadas a cada gênero.

Para este cenário de discussão, vale trazer a fala da ex-ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos Damares Alves, que, após a assunção do cargo (02/01/2019), fez a seguinte declaração, “é uma nova era no Brasil: menino veste azul e menina veste rosa”, e concluiu: “o Estado é laico, mas esta ministra é terrivelmente cristã” (G1, 2019, s.p.).

A fala da ex-ministra, além de ofensiva, mostra o profundo desconhecimento sobre o assunto, assim como um desrespeito ao Estado que, como bem pontuou, é laico. Infelizmente, a atitude da ministra está longe de ser um dado isolado. Frequentemente, princípios pessoais, embasados em posicionamentos cristãos e/ou fundamentalistas, têm sido colocados como uma oposição às diversas expressões de gêneros e sexualidades. Nesse contexto, a construção da nossa Base Nacional Comum Curricular (BNCC), documento de caráter normativo que objetiva regulamentar as aprendizagens que podem ser trabalhadas nas escolas (Brasil, 2015), é uma prova desses ataques. Esta, em sua primeira versão, disponibilizada em 16 de setembro de 2015, ao abordar questões do âmbito social, político, ético e moral trouxe, de forma explícita, os termos referentes aos gêneros e às sexualidades, tendo isso mudado conforme suas atualizações. Em sua terceira versão, disponibilizada em 20 de dezembro de 2017, não encontramos nenhuma menção ao trabalho com os temas da orientação sexual ou da homofobia. Nela, o termo sexualidade é citado apenas de forma genérica e associado à reprodução. Conforme afirma Trevisan (2018, p. 462), a retirada dos termos ocorreu por pressão de lideranças fundamentalistas e religiosas. Ainda de acordo com o autor, “nos capítulos sobre a pluralidade educacional, todas as menções a ‘identidade de gênero’ e ‘orientação sexual’ foram misteriosamente suprimidas […]”.

Desse modo, podemos inferir que falar sobre a diversidade sexual e de gêneros é, para muitos/as, um atentado ao que comumente se definiu como normalidade. Não estranhamente, a escola tem adiado a discussão do assunto, promovendo apenas uma educação higienista e com fins reprodutivos e tomando a heterossexualidade como normal, uma vez que atende aos fins de procriação, “consequentemente, as outras formas de sexualidade são constituídas como antinaturais, peculiares e anormais” (Louro, 2019, p. 19).

O entendimento que circula em muitos espaços é que falar sobre gêneros e sexualidades nas escolas é atentar contra a família, perverter os/as alunos/as, ou mesmo transformá-los/as em homossexuais. Em sentido oposto, Félix (2015, p. 225) afirma que “os estudos de gênero propõem ampliar os sentidos do conceito de família, disseminar o respeito aos diferentes arranjos familiares para além da noção de família nuclear”.

Nesse contexto, os estudos de gêneros e de sexualidades buscam lutar pelo direito que todos/as têm de viver em sociedade, sem preconceitos e discriminações, além de mostrar que as concepções que temos de masculino e feminino fazem parte de construções culturais que moldam e definem formas aceitas de ser e existir, a saber, a heterossexual.

Insistir, no entanto, com uma definição limitada de ser humano que não consegue dar conta da diversidade que temos em nossa sociedade e negligenciar as questões de gêneros e sexualidades faz com que a escola, enquanto espaço educacional, omita-se de sua função social, não contribuindo para a formação de sujeitos críticos e atuantes socialmente. Sobre essa discussão, Louro (2019, p. 38) elucida que “o lugar do conhecimento mantém-se, […] como o lugar do desconhecimento e da ignorância”, deixando à margem aqueles/as que fogem à normativa da heterossexualidade e, não promovendo a ampliação desse debate dentro de seus muros, ocasionam a manutenção de um discurso que toma a heterossexualidade como um dado natural dos seres humanos.

Compreendemos que falar sobre gêneros é uma ação que está para além de abordar as questões das sexualidades dissidentes; implica também em discutir e em refletir sobre as desigualdades nas relações sociais que se estabelecem entre os indivíduos. Conforme argumenta Félix (2015, p. 224), gênero diz respeito “[…] às relações de poder entre homens e mulheres, mulheres e mulheres, homens e homens”.

Weeks (2019), ao tratar a questão de gênero, fala-nos sobre como ele se traduz em uma divisão social que, perpassada por relações de poder que moldam sujeitos, define regras e normas; delimita o que é permitido aos homens e às mulheres, ligando os papéis sociais ao sexo biológico dos/as sujeitos/as, de modo que desconsidera as demais nuances que compõem as mais diversas subjetividades construídas na e através das relações sociais e culturais.

Na esteira desse pensamento, Figueiredo et al. (2021, p. 16) afirmam que “trabalhar essas questões nos instiga a reconhecer a necessidade de mudança em torno dos estereótipos que são propagados nos diversos espaços sociais, principalmente na escola […] instituição formativa de sujeitos”. Nesse sentido, trabalhar as questões de gêneros e sexualidades, nos PME, é extremamente importante, uma vez que se configura como uma garantia legal de que essas temáticas podem (e devem) ser abordadas no âmbito educacional. É importante notar que a exclusão desses termos em documentos oficiais pode inviabilizar a ação docente ou mesmo permitir que tais assuntos sejam vetados no espaço educativo em seus currículos e planos de aula.

O Plano Municipal de Educação como espaço de garantias para as diversidades

No Art. 211 da Constituição Federal (Brasil, 1988), está definido que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizarão, em regime de colaboração, seus sistemas de ensino. Na afirmação da competência dos municípios, no Art. 11 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) (Brasil, 1996, s.p.), está registrado que cabe aos municípios “baixar normas complementares para o seu sistema de ensino”, podendo o município “integrar-se ao sistema estadual de ensino ou compor com ele um sistema único de educação”. Sobre esta temática, Saviani (1999) compreende os PME como uma ação direcionada, constituída por vários elementos no intento de alcançar os objetivos educacionais elaborados para a população, seu público alvo.

Os PME são instrumentos importantes para direcionar as escolas na obtenção de um propósito comum, nos quais estarão presentes os ideais dos municípios para a educação, assim como suas incumbências e compromissos a serem assumidos com a população à qual são direcionados. Nesse sentido, Saviani (1999, p. 134) afirma que tal documento deverá tratar de “uma política que, [visa] atender efetivamente às necessidades educacionais da população como um todo”. Nesse aspecto, ele se configura como um documento importante na garantia e na promoção do ensino para as diversidades.

Nesse sentido, Reis e Eggert (2017) pontuam como os debates em torno dos planos de educação, inicialmente em nível nacional, sendo este que vai reverberar nos estados e munícipios, têm sofrido fortes ataques, sobretudo de lideranças religiosas, com o objetivo de impedir que discussões mais pontuais sobre gêneros e sexualidades sejam incluídas em seus textos. Fazendo o uso do sintagma ideologia de gênero, esses grupos mais conservadores alegam que incluir as questões da diversidade seria atacar e destruir a dimensão de família e a própria humanidade com uma suposta perversão sexual. O autor e a autora advertem que inserir a discussão/reflexão sobre gêneros e sexualidades não se fundamenta na destruição da família, ou na imposição das sexualidades dissidentes como uma nova normativa a ser seguida por todos/as, mas na ampliação desses termos e na inclusão daqueles/as que historicamente têm sido relegados/as às margens.

Portanto, como prerrogativa de atender a todos/as, as diversas demandas oriundas daqueles/as que não se enquadram nos padrões instituídos de normalidade devem ser inseridas nos textos dos PME. Dessa forma, a inclusão das temáticas de gêneros e sexualidades funcionaria como respaldo legal, contribuindo para que a ação escolar seja encaminhada como um processo de ruptura que dialogue com velhas práticas e demandas sociais que emergem no espaço educativo.

É necessário que o campo da educação contribua efetivamente para exclusão da discriminação e do preconceito no que se refere às formas moralizantes que pretendem moldar sujeitos em padrões sociais que não dão conta da pluralidade que compõe a sociedade. Na direção desse pensamento, Louro (2019) nos adverte que, na alegação de que as questões da sexualidade devem se restringir apenas à esfera privada, negligenciamos sua dimensão política e social. Há urgência no rompimento com esse ideal porque tais atitudes, conforme afirmam Kokudo e Silva (2017, p. 5), acabam por “invisibilizar, silenciar e tornar o ambiente escolar cúmplice de um padrão hegemônico estabelecido previamente”. Assim sendo, nos PME não pode ser omitida a incorporação do respeito aos direitos humanos nem tampouco os direcionamentos que oportunizem a abertura de espaços para a valorização da diversidade de gêneros e sexualidades, em todas as suas possibilidades.

Visitando e refletindo os Planos Municipais de Educação

Localizado no estado da Paraíba, o Vale do Mamanguape é composto por onze cidades: Itapororoca, Cuité de Mamanguape, Curral de Cima, Jacaraú, Pedro Régis, Mataraca, Baía da Traição, Marcação, Mamanguape, Rio Tinto e Capim, anteriormente distritos de Mamanguape (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2017). Nesse contexto, o presente estudo, a partir dos PME dos municípios do Vale do Mamanguape, analisou de que forma a temática de gêneros e sexualidades tem sido inserida neles.

Em nossa busca pelos PME, conseguimos ter acesso a oito deles. São exceções as cidades de Cuité de Mamanguape, Pedro Régis e Capim que, após algumas tentativas de contato, via e-mail e telefone, não enviaram o documento. Alguns municípios acima referidos responderam que a solicitação seria encaminhada às respectivas Secretarias de Educação para apreciação do pedido. As tentativas de obtermos os planos tiveram início no dia 23 de julho de 2021, sem, contudo, obter acesso aos documentos.

Baía da Traição

Com uma área de 102,756 km², sua população está estimada em 9.197 pessoas. A localidade possui 16 estabelecimentos de ensino fundamental e 3 de ensino médio (IBGE, 2020a). O documento a que tivemos acesso com relação ao PME veio incompleto, mostrando-se ineficaz, fato que dificultou nossa análise. O arquivo recebido possuía apenas três páginas e fazia menção à aprovação do plano com duração de dez anos, compreendidos entre 2015 e 2025.

Fonte: Plano Municipal de Educação da Baía da Traição (2015).

Quadro 1 Mapeamento – Baía da Traição 

As palavras registradas no Quadro 1 estão inseridas nas diretrizes do PME da Baía da Traição. A primeira se localiza dentro do contexto do respeito aos direitos humanos e, embora não fale de forma explicita, abre caminhos para possibilidades de atuação que impliquem o respeito à diversidade. Não sabemos se, no plano em sua totalidade, essas questões foram abordadas de forma mais específica e abrangente. Entretanto, nas páginas lidas, não houve menção às questões sobre gêneros e sexualidades.

Curral de Cima

O documento traz, como sua principal prioridade, a garantia tanto de acesso quanto de permanência dos/das discentes aos espaços educativos. O município possui uma área de 86,428 km², sua população está estimada em 5.209 pessoas, com 12 estabelecimentos de ensino fundamental e 1 de ensino médio (IBGE, 2020b).

Fonte: Plano Municipal de Educação de Curral de Cima (2015).

Quadro 2 Mapeamento – Curral de Cima 

Inserida no contexto dos direitos humanos, a primeira ocorrência da palavra diversidade nos remete, conforme afirma o plano, à erradicação de toda forma de preconceito ou discriminação. Tratam-se de apontamentos de possíveis fissuras no sistema, onde talvez possamos trabalhar as questões relacionadas a gêneros e sexualidades. As duas outras ocorrências estão relacionadas à diversidade curricular, articuladas ao ensino de jovens e adultos.

Citando os Parâmetros Curriculares Nacionais, o PME de Curral de Cima faz menção à sexualidade como tema transversal a ser incorporado às disciplinas tradicionais. Todavia, embora apresente uma possibilidade de atuação e alargamento do tema, por não trazer essa discussão de forma mais evidente no decorrer de seu texto, é passível de limitar a sexualidade ao sentido de dimensão reprodutora, ou apenas como referência a um viés heteronormativo, fato que comumente vem acontecendo em muitas escolas (Louro, 2019).

O documento não menciona o termo gênero. A palavra discriminação tem sua inserção no plano com vistas ao combate a situações de preconceito e bullying, apontando para a perspectiva do sucesso escolar. Portanto, embora os termos sejam abordados de forma genérica e não aprofundada no decorrer do texto, ressaltamos a importância de eles terem sido evidenciados. Compreendemos que a escrita elucidativa dos termos configura-se como um instrumento importante, capaz de permitir a criação do respaldo tanto para a ação escolar como para a do/a docente.

Itapororoca

Seu PME traz, como principal intenção, a possibilidade de oportunizar mudanças no espaço educativo e na garantia de acesso e permanência dos/as discentes em suas unidades educativas. O munícipio tem uma área de 145,806 km² e sua população está estimada em 18.978 pessoas. Possui 22 estabelecimentos de ensino fundamental e 4 de ensino médio (IBGE, 2020c).

Fonte: Plano Municipal de Educação de Itapororoca (2015).

Quadro 3 Mapeamento - Itapororoca 

A primeira menção à palavra diversidade ocorre na perspectiva de assegurar espaços lúdicos, levando em consideração a diversidade étnica e de gênero. É nesse mesmo contexto que a palavra gênero surge. Consideramos um diferencial importante, pois nos pareceu ser uma preocupação com a pluralidade que perpassa a diversidade de gênero. Entretanto, nos preocupa o fato de que tal estratégia possa ser entendida como uma orientação a criar espaços lúdicos dentro do binarismo masculino/feminino. Talvez fosse pertinente ter deixado o texto com ideias centrais mais elucidativas, evitando possíveis ambiguidades através do uso de uma escrita mais objetiva.

Nessa direção, Saviani (1999, p. 134) afirma que a feitura de um PME deve corresponder “efetivamente às aspirações e necessidades das pessoas que habitam cada um dos municípios”. Diante dessa prerrogativa, acrescentamos que é necessário que os planos estejam atentos às demandas postas pela diversidade que perpassa a nossa sociedade, no sentido da inclusão de todos/as.

As demais ocorrências da palavra diversidade dizem respeito à pluralidade de métodos e propostas pedagógicas, à diversidade étnico-racial e, por fim, à perspectiva de transformar o sistema no sentido de incluir e contemplar, de forma mais ampla, a diversidade. No documento não encontramos menção ao termo sexualidade. Já quanto à palavra discriminação, em todas as suas ocorrências, está inserida em um contexto que busca evitar quaisquer formas de preconceito ou violência dentro da escola.

Jacaraú

Seu PME objetiva respeitar os princípios de igualdade, liberdade e de colaboração. Jacaraú possui uma área de 256,845 km² com sua população estimada em 14.467 pessoas. Conta com 22 estabelecimentos de ensino fundamental e 2 de ensino médio (IBGE, 2020d).

Fonte: Plano Municipal de Educação Jacaraú (2015).

Quadro 4 Mapeamento - Jacaraú 

No contexto das diretrizes norteadoras que direcionam o PME, a primeira ocorrência da palavra diversidade está situada no contexto dos direitos humanos. A segunda propõe “[…] a criação, implantação e avaliação da proposta curricular para a Educação Infantil que contemple o campo e a diversidade étnico-racial, ambiental e de gênero.” (Jacaraú, 2015, p. 19). Neste item temos, também, a única menção ao termo gênero. Embora seja uma proposta importante, e que dialoga com as questões de gêneros, receamos que o entendimento aí se refira ao binarismo masculino/feminino e não necessariamente à pluralidade que a diversidade de gêneros demanda.

No que se refere às sexualidades, não encontramos nenhuma menção ao termo, embora, em algumas metas, o plano se proponha a fortalecer políticas de combate à violência doméstica e sexual. Assim como o PME de Itapororoca, o de Jacaraú também apresenta como meta a possibilidade de assegurar espaços lúdicos de interatividade para as crianças. No entanto, diferente do PME de Itapororoca, não foi acentuada a questão de gêneros, pretendendo apenas assegurar os espaços de ludicidade nos centros de Educação Infantil.

Uma vez que brinquedos não têm gênero, o que se espera são espaços onde a ludicidade possa ocorrer livremente, sem a demarcação por gênero, como dito no PME de Itapororoca. Se esses ambientes forem definidos a partir de uma ótica binária, corre-se o risco de se ofertar espaços às/aos estudantes que, via de regra, apenas acentuem o que se espera deles/as no âmbito social enquanto meninos e meninas. As meninas brincam de serem mães e donas de casa, os meninos de carro e de bola. Impõe-se assim estereótipos de masculinidades e feminilidades, instituídos socialmente como naturais. Sobre essa temática, Finco (2003, p. 97) nos diz que “as categorizações dos brinquedos são construções criadas por adultos e não têm significado para as crianças nos momentos das brincadeiras”.

Reforçar estereótipos que visam delimitar os papéis sociais de gênero é uma forma de contribuir com a manutenção de um sistema preconceituoso, machista e discriminatório que constantemente separa os/as indivíduos/as entre as funções que lhe são permitidas dentro de uma visão heteronormativa, tendo como objetivo regular e normatizar as formas como os/as indivíduos/as vivem, existem e expressam a sua sexualidade, cabendo assim apenas duas possibilidades: feminino ou masculino (Petry & Meyer, 2011). Desse modo, a heteronormatividade funciona como um padrão adequado de sexualidade, devendo ser seguido por todos/as.

Mamanguape

Seu PME tem como objetivo o enfrentamento às desigualdades, assim como contribuir para uma educação de qualidade. Mamanguape possui uma área de 337,434 km² e sua população está estimada em 45.385 pessoas. Conta com 41 estabelecimentos de ensino fundamental e 7 de ensino médio (IBGE, 2020e).

Fonte: Plano Municipal de Educação de Mamanguape (2015).

Quadro 5 Mapeamento – Mamanguape 

O termo diversidade é citado pela primeira vez, em suas diretrizes, relacionado à promoção do respeito aos direitos humanos. A segunda vez está ligada à diversidade cultural, que, conforme nos diz o plano, deve ser assegurada pelo Sistema Municipal de Ensino. A terceira menção ao tema está no contexto da diversidade de métodos e práticas pedagógicas. Por último, citam-no para mencionar uma educação que atente para a diversidade étnico-racial.

Não foi encontrada no PME nenhuma menção aos termos gênero e sexualidade. Fala-se sobre violência doméstica e sexual, bem como na ampliação de políticas para o combate a essas práticas. Com relação à ocorrência da palavra discriminação, temos três situações nas quais ela aparece. A primeira, nas diretrizes do plano, com a propositura de erradicação de todas as formas de discriminação. A segunda, no contexto de preconceitos e violências na escola. A terceira versa sobre a implantação de políticas de prevenção à evasão, motivadas, entre outras coisas, por processos de discriminação.

Embora percebamos uma preocupação com relação a discriminações e violências na escola, a ausência de uma discussão mais enfática, registrada de forma mais elucidativa pode acomodar os sujeitos para o não fazer, ou para fazê-lo desconsiderando a real pluralidade que perpassa gêneros e sexualidades e que fazem parte do cotidiano escolar. Conforme nos diz Klein (2015), as temáticas de gêneros e sexualidades são constantemente atravessadas por ideais políticos e religiosos que geram impactos para a educação, em muitos momentos inviabilizando avanços que são necessários para a efetivação de um ensino que contemple a todos/as.

Marcação

A população de Marcação está estimada em 8.746 pessoas e o município possui 16 estabelecimentos de ensino fundamental e 4 de ensino médio (IBGE, 2020f). O PME que nos foi fornecido está incompleto. Com apenas três páginas, o documento analisado cita uma vez as palavras diversidade e discriminação. Mencionadas dentro do contexto das diretrizes do plano, elas estão postas na perspectiva da promoção aos princípios dos direitos humanos e na luta pela erradicação de todas as formas de discriminação.

Fonte: Plano Municipal de Educação de Marcação (2015).

Quadro 6 Mapeamento - Marcação 

Embora sejam direcionamentos que corroborem com uma prática inclusiva, na perspectiva da diversidade e dos estudos de gêneros e sexualidades, não podemos afirmar que, em sua totalidade, estas questões sejam abordadas. A forma genérica como são citadas no início apontam caminhos outros a seguir, com a propositura da valorização das diferenças. Entretanto, caso não seja melhor discutida e argumentada como necessária e urgente no texto do plano, poderá se perder entre silêncios que historicamente vêm sendo construídos no âmbito educacional, exatamente o que Louro (2019) chamou de dessexualização do espaço educativo. Ou seja, essa discussão, quando ofertada, tenciona apenas questões reprodutivas e higienistas que, embora importantes, não dão conta de todas as nuances que dizem respeito ao campo das sexualidades e dos gêneros, sendo estes últimos entrelaçados por diversos elementos que se alinham ao campo histórico, cultural e social dos/as indivíduos/as.

Mataraca

O PME tem, como objetivo, contribuir com a formação das gerações presentes e futuras. Com uma área de 182,439 km² e uma população estimada em 8.642 pessoas, Mataraca possui 7 estabelecimentos de ensino fundamental e 1 de ensino médio (IBGE, 2020g).

Fonte: Plano Municipal de Educação de Mataraca (2015)

Quadro 7 Mapeamento - Mataraca 

A ocorrência do termo diversidade acontece em três momentos: o primeiro, quando o PME aborda as Diretrizes Curriculares Nacionais no contexto do respeito à diversidade de manifestações artísticas e culturais; o segundo, no contexto da diversidade humana, etnias, credos e gênero; a última referência diz respeito à diversidade da educação, no tocante as possibilidades do fazer educativo.

O termo gênero, por sua vez, foi abordado em quatro momentos: a primeira ocorrência se dá em função do contexto da diversidade humana, questão por meio da qual o PME apresenta o grande desafio da inclusão dessas temáticas nos sistemas regulares de ensino; a segunda, no contexto de levantamentos estatísticos da educação básica, mostrando a necessidade de observar o gênero dos alunos; a terceira descreve a pretensão de “programar políticas de prevenção à evasão motivada por preconceito e discriminação à orientação sexual ou à identidade de gênero […]” (Mataraca, 2015, p. 46); a quarta refere-se ao contexto da ampliação da oferta de cursos da educação de jovens e adultos.

Causou-nos surpresa encontrar os termos orientação sexual e identidade de gênero em um PME. Vale ressaltar que, dos planos analisados, apenas este abordou a temática de forma mais coesa, sem margens para ambiguidades e apresentando abertura às instituições de ensino para trabalharem as questões da diversidade que perpassam gêneros e sexualidades. O termo sexualidade ocorre apenas uma vez, como direcionamento para ser trabalhado de forma transversal. A ocorrência da palavra discriminação se deu em dois momentos, ambos no contexto da prevenção contra quaisquer tipos de preconceito e/ou discriminação.

Rio Tinto

O PME de Rio Tinto traz informações detalhadas sobre o sistema de ensino proposto para a cidade. Desde o registro de metas e estratégias até a ampliação de programas que se encontram em desenvolvimento nas escolas e são norteadas por este plano. Com uma população estimada em 24.258 pessoas, Rio Tinto conta com 30 estabelecimentos de ensino fundamental e 6 de ensino médio (IBGE, 2020h).

Fonte: Plano Municipal de Educação de Rio Tinto (2015).

Quadro 8 Mapeamento – Rio Tinto 

As seis primeiras ocorrências do termo diversidade estão em um contexto genérico e amplo: sobre diversidade de alunos/as entre os pares e mesmo na escola. Não há, no entanto, qualquer aprofundamento que o especifique de forma nítida. A sétima ocorrência faz referência à diversidade de métodos. A oitava faz menção ao currículo escolar e à forma como deve ser considerada a diversidade, embora não especifique se se trata de étnico-racial ou de gêneros. Limita-se, portanto, a falar genericamente.

A oitava vez em que o termo é citado está no contexto da diversidade cultural brasileira. Na nona referência, o termo é utilizado de forma generalista e, na décima, no tocante à necessidade de se elaborar projetos que contribuam com a observância dos direitos humanos e a diversidade de etnias. Observamos que as nove menções foram apresentadas de forma generalista ou citadas em nomes de secretarias.

A primeira ocorrência do termo gênero dá-se no contexto do trabalho com temas geradores propostos desde a Educação Infantil até o Ensino Médio, ocasião em que deve ser oportunizada uma educação para as relações de gênero e étnico-raciais. Tais relações citadas não são mais aprofundadas no decorrer do texto. Dessa forma, permite-nos projetar uma fissura, dentro do sistema educativo, onde possivelmente poderíamos abordar as questões referentes a gêneros e sexualidades. No entanto, sem um respaldo mais objetivo, muitos podem se eximir de abordar essas temáticas.

A segunda ocorrência do termo gênero é no contexto de alimentos e suas variedades. A terceira diz respeito ao desenvolvimento das crianças, demarcando a necessidade de os/as estudantes encontrarem, na instituição escolar, o acesso a bens culturais, informação, conhecimento, pois é nesses “espaços que as crianças desenvolvem suas identidades pessoal e social, influenciadas pelas questões sociais, culturais, de gênero, etnia […]” (Rio Tinto, 2015, p. 31). A quarta e quinta menção do termo estão no contexto da valorização de etnias e gêneros. Neste caso, a ocorrência da palavra discriminação situa-se no contexto da contribuição para a diminuição do bullying e preconceitos na escola.

Considerações finais

As análises aqui realizadas nos mostraram que há ataques direcionados ao campo dos gêneros e das sexualidades na contemporaneidade, como a exclusão dos termos em documentos norteadores do fazer educativo, a exemplo do entendimento da BNCC, além da presença, ainda muito forte, da religiosidade nas decisões dos conteúdos a serem ensinados, de como ensiná-los e para quem os ensinar.

No entanto, identificamos resistências locais que apontam caminhos possíveis de se trabalhar, no espaço educativo, as temáticas dissidentes, que vêm a ser alvo desta pesquisa. Consideramos que a ação educativa não é neutra, trata-se de uma ação política e, nesse sentido, deve buscar desnaturalizar o preconceito e a discriminação sofridos pela diversidade dos grupos sociais. Assim sendo, alinhar a discussão educativa com as dimensões de gêneros e sexualidades é chamar a atenção para a função social da escola, qual seja, formar e educar na perspectiva da transformação. Portanto, uma educação onde todos/as têm espaço para se educarem com respeito e qualidade.

A partir da análise das unidades de registro, podemos inferir que as temáticas de gêneros e sexualidades, em muitos momentos, são abordadas de modo sucinto. Quase sempre são apresentadas dentro do contexto dos direitos humanos (Baía da Traição, Jacaraú, Itapororoca), com uma argumentação superficial de temáticas que precisam necessariamente de atenção por parte da equipe de profissionais que faz a educação. Observamos que o termo gênero, em alguns planos, sequer foi citado (Curral de Cima, Mamanguape, Marcação); em outros, a menção ao termo estava voltada para o domínio dos gêneros textuais. O termo diversidade, embora frequentemente citado em todos os PME, quase sempre fazia referência a diversidades outras (alunos/as, práticas educativas, métodos). No PME de Rio Tinto, este termo foi citado 18 vezes, mas em nenhuma delas observamos a preocupação em contemplar a diversidade de gêneros e sexualidades.

Tomando como referência as unidades de registros citadas no parágrafo acima, essas foram as inferências possíveis de serem feitas. No entanto, nos PME do Vale do Mamanguape surgem outros termos que se relacionam com gêneros e sexualidades, como, por exemplo, mulheres, violência sexual e família. A supressão do termo gênero, em alguns planos, pode ser fruto do tabu criado em torno da própria palavra, o que lhe conferiu um caráter proibitivo, podendo aqueles/as que fazem uso dessa nomenclatura serem vítimas de críticas e repressões.

Dos oito planos analisados, apenas o da cidade de Mataraca apresentou uma linguagem enfática ao tratar sobre identidades de gêneros e orientação sexual. Embora seja apenas um município, é pertinente reafirmarmos aqui sua importância e possível contribuição para o campo educativo. Os demais PME que, de forma sutil, abordaram a temática da diversidade, por vezes traziam discursos abrangentes, dando margem a interpretações ambíguas: modos de dizer que podem eximir muitas instituições de efetivamente trabalharem com essa temática.

Ressaltamos que, embora a temática de identidades de gêneros e orientação sexual esteja presente no PME de Mataraca, não podemos afirmar que ela esteja sendo trabalhada nas instituições de ensino do município. Nesse sentido, a realidade encontrada poderá ser divergente do proposto pelo plano. A investigação dessas possibilidades poderá servir como objeto de estudo para o desenvolvimento de futuras pesquisas.

Tempos nebulosos vivenciamos atualmente, cada vez mais somos atacados pelas lideranças do nosso país, onde o respeito à diversidade e à democracia estão efetivamente ameaçados. Com o discurso da falácia da ideologia de gênero, é difundida a ideia de que somos os destruidores das famílias e que pretendemos transformar as pessoas em homossexuais.

Destacamos a importância de que a escola trabalhe essas questões para que, no futuro próximo, possamos ter uma geração menos preconceituosa, machista e sexista. Não existe pretensão à destruição da família por parte dos estudos de gêneros e sexualidades. Objetiva-se, isso sim, a ampliação e valorização dos diversos arranjos familiares presentes em nossa sociedade, assim como as subjetividades que as perpassam.

A pesquisa nos mostrou que, apesar de estarmos vivendo um momento de retrocessos, de ataques e de perdas de espaço no que se refere aos estudos de gêneros e de sexualidades, encontramos pequenas resistências no âmbito dos municípios; movimentos que podem contribuir para um ensino que se pretende mais aberto à diversidade e que se preocupe com essas demandas. Embora não seja o ideal, são indícios de caminhos que podemos trilhar para não deixar que a diversidade seja vetada no espaço educativo.

Um dos pontos importantes a ser notado é que não identificamos, nos PME analisados, a proposta de ofertar cursos de formação continuada que habilitem os/as professores/as a trabalhar com as diferenças, já que, em muitos casos, eles/as não sabem como agir, ou mesmo o que fazer, em situações de conflito que demandam sua atenção. Consideramos que embora seja muito importante estabelecermos direcionamentos legais que alinhem o fazer docente na promoção do respeito à diversidade, precisamos lhes oferecer condições de atuar nessa perspectiva.

Por fim, chamamos a atenção dos que fazem o campo da educação para a necessidade da reformulação dos PME por meio do uso de uma escrita mais elucidativa que, de fato, abarque as questões de gêneros e sexualidades, em todas as suas possibilidades, apresentando metas que visem à inclusão das demandas de todos/as nas instituições de ensino.

Referências

Baía da Traição. (2015). Plano Municipal de Educação. Secretaria Municipal de Educação. [ Links ]

Bardin, L. (2016). Análise de conteúdo. Edições 70. [ Links ]

Borrillo, D. (2016). Homofobia: história e crítica de um preconceito. Autêntica. [ Links ]

Brasil. (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Congresso Nacional do Brasil. Assembleia Nacional Constituinte. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htmLinks ]

Brasil. (1996). Lei 9.394 de 20 de dezembro de 1996 (Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional). Presidência da República. Casa Civil. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htmLinks ]

Brasil. (2015). Base Nacional Comum Curricular. Ministério da Educação. http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/relatorios-analiticos/BNCC-APRESENTACAO.pdfLinks ]

Butler, J. (2019). Corpos que importam: os limites discursivos do sexo. Crocodilo. [ Links ]

Butler, J. (2020). Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Civilização Brasileira. [ Links ]

Curral de Cima. (2015). Plano Municipal de Educação. Secretaria Municipal de Educação. [ Links ]

Félix, J. (2015). Gênero e formação docente: reflexões de uma professora. Espaço do Currículo, 8(2), 223-231. https://periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/rec/article/view/rec.2015.v8n2.223231/13923Links ]

Figueiredo, L. R., Lemos, J. R. R., Santos, M. S., Lira, M. M., & Barroso, B. O. (2021). Educação, currículo e desigualdade de gênero: um referencial teórico. Em J. F. Moura. Educação, gênero e sexualidade: perspectiva crítica e decolonial no espaço escolar e não-escolar. Científica Digital. [ Links ]

Finco, D. (2003). Relações de gênero nas brincadeiras de meninos e meninas na educação infantil. Pro-Posições, 14(3). 89-101. https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/proposic/article/view/8643863Links ]

Foucault, M. (2015). História da sexualidade: a vontade de saber. Paz e Terra. [ Links ]

Franco, M. L. P. B. (2021). Análise de conteúdo. Autores Associados. [ Links ]

G1. (2019, janeiro 03). Em vídeo, Damares diz que ‘nova era’ começou: ‘meninos vestem azul e meninas vestem rosa’. G1 notícias. https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/01/03/em-video-damares-alves-diz-que-nova-era-comecou-no-brasil-meninos-vestem-azul-e-meninas-vestem-rosa.ghtmlLinks ]

Godoy, A. S. (1995). Pesquisa qualitativa: tipos fundamentais. Revista de Administração de Empresas, 35(3) 20-29. https://doi.org/10.1590/S0034-75901995000300004Links ]

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). (2017). Cidades. Mamanguape. https://cidades.ibge.gov.br/brasil/pb/mamanguape/historicoLinks ]

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). (2020a). Cidades. Baía da Traição. https://cidades.ibge.gov.br/brasil/pb/baia-da-traicao/panoramaLinks ]

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). (2020b). Cidades. Curral de Cima. https://cidades.ibge.gov.br/brasil/pb/curral-de-cima/panoramaLinks ]

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). (2020c). Cidades. Itapororoca. https://cidades.ibge.gov.br/brasil/pb/itapororoca/panoramaLinks ]

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). (2020d). Cidades. Jacaraú. https://cidades.ibge.gov.br/brasil/pb/jacarau/panoramaLinks ]

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). (2020e). Cidades. Mamanguape. https://cidades.ibge.gov.br/brasil/pb/mamanguape/panoramaLinks ]

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). (2020f). Cidades. Marcação. https://cidades.ibge.gov.br/brasil/pb/marcacao/panoramaLinks ]

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). (2020g). Cidades. Mataraca. https://cidades.ibge.gov.br/brasil/pb/mataraca/panoramaLinks ]

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). (2020h). Cidades. Rio Tinto. https://cidades.ibge.gov.br/brasil/pb/rio-tinto/panoramaLinks ]

Itapororoca. (2015). Plano Municipal de Educação. Secretaria Municipal de Educação. [ Links ]

Jacaraú. (2015). Plano Municipal de Educação. Secretaria Municipal de Educação. [ Links ]

Junqueira, R. D. (2013). Pedagogia do armário: a normatividade em ação. Retratos da Escola, 7(13), 481-498. https://retratosdaescola.emnuvens.com.br/rde/article/view/320/490Links ]

Junqueira, R. D. (2022). A invenção da “ideologia de gênero”: um projeto reacionário de poder. Letras Livres. [ Links ]

Klein, R. (2015). Questões de gênero e sexualidade nos planos de educação. Coisas de Gênero, 1(2), 145-156. http://www.est.com.br/periodicos/index.php/genero/article/view/2633/2471Links ]

Kokudo, C. J., & Silva, T. H. de C. (2017). Gênero, diversidade, sexualidade e o plano municipal de educação em Balneário Camboriú. Anais do III Seminário Internacional História do Tempo Presente. Florianópolis, Santa Catarina, Brasil. http://eventos.udesc.br/ocs/index.php/STPII/IIISIHTP/paper/viewFile/722/458Links ]

Lima, I. G., & Hypólito, A. M. (2019). A expansão do neoconservadorismo na educação brasileira. Educação e Pesquisa, 45. https://doi.org/10.1590/S1678-463420194519091Links ]

Louro, G. L. (2019). Pedagogias da sexualidade. Em Louro, G. L. (Org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Autêntica. [ Links ]

Mamanguape. (2015). Plano Municipal de Educação. Secretaria Municipal de Educação. [ Links ]

Marcação. (2015). Plano Municipal de Educação. Secretaria Municipal de Educação. [ Links ]

Mataraca. (2015). Plano Municipal de Educação. Secretaria Municipal de Educação. [ Links ]

Minayo, M. C. S. (2014). O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. Hucitec. [ Links ]

Pastorini, A., & Faria, G. G. (2020). As políticas públicas e o avanço do conservadorismo no Brasil: protagonistas e estratégias. Plaza Pública, 23(13). https://ojs2.fch.unicen.edu.ar/ojs-3.1.0/index.php/plaza-publica/article/view/843Links ]

Petry, A. R., & Meyer, D. E. (2011). Transexualidade e heteronormatividade: algumas questões para a pesquisa. Textos e contextos, 10(1), 193-198. https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fass/article/view/7375Links ]

Reis, T., Eggert, E. (2017). Ideologia de gênero: uma falácia construída sobre os planos de educação brasileiros. Educação e Sociedade, 38(138), 9-26. https://doi.org/10.1590/ES0101-73302017165522Links ]

Rio Tinto. (2015). Plano Municipal de Educação. Secretaria Municipal de Educação. [ Links ]

Saviani, D. (1999) Sistemas de ensino e planos de educação: o âmbito dos municípios. Revista & Sociedade, 69. https://doi.org/10.1590/S0101-73301999000400006Links ]

Trevisan, J. S. (2018). Devassos no paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. Objetiva. [ Links ]

Weeks, J. (2019). O corpo e a sexualidade. Em G. L. Louro (Org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Autêntica. [ Links ]

[3]A ideologia de gênero é uma invenção católica que teve forte adesão pelos mais diversos setores conservadores, instrumentalizada na perspectiva de persuadir a todos/as sobre os supostos perigos dos estudos dos gêneros e das sexualidades para a vida humana, gerando um certo pânico moral em âmbito social. Sobre ideologia de gênero ver Junqueira (2022).

Recebido: 19 de Setembro de 2022; Aceito: 05 de Dezembro de 2022

Contribuição na elaboração do texto

autor 1 - desenvolvimento da pesquisa, construção e análise dos dados, escrita do texto; autor 2 - orientação da pesquisa e da análise dos dados, redação do resumo.

Creative Commons License Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons CC BY 4.0.