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Linhas Críticas

Print version ISSN 1516-4896On-line version ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.28  Brasília Jan./Dec 2022  Epub Mar 17, 2022

https://doi.org/10.26512/lc28202241203 

Ensaios

Totalitarismo epistemológico vs saber sensível na escola a partir do filme Druk

Totalitarismo epistemológico vs conocimiento sensible en la escuela desde la película Druk

Epistemological totalitarianism vs sensitive knowledge at school from the film Druk

Thaís Lobosque Aquino1 
http://orcid.org/0000-0002-9767-8509

Keyla Andrea Santiago Oliveira2 
http://orcid.org/0000-0002-0805-106X

1Doutora em educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2016). Professora adjunta da Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal de Goiás.

2Doutora em educação pela Universidade Federal de Goiás (2012). Professora adjunta da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul.


Resumo

Este ensaio busca desenvolver uma discussão estético-crítica acerca do totalitarismo epistemológico da razão instrumental presente em uma escola ficcional representada no filme Druk - Mais uma rodada (Vinterberg, 2020). Enfatizando a falta de saberes sensíveis no âmbito educativo em questão, dedicamo-nos a perscrutar sonora e imageticamente a obra cinematográfica, a partir da metodologia da análise fílmica, tendo como arcabouço teórico autores da Teoria Crítica. Concluímos que, apesar das circunstâncias inaugurais na escola dinamarquesa nos remeterem à construção de saberes aparentemente inovadores, em seu cerne conservavam opacidade e submissão a epistemologias tradicionais e totalitárias.

Palavras-chave Epistemologia; Teoria Crítica; Escola; Cinema

Resumen

Este ensayo busca desarrollar una discusión estético-crítica sobre el totalitarismo epistemológico de la razón instrumental presente en una escuela de ficción representada en la película Druk - Una ronda más (Vinterberg, 2020). Enfatizando la falta de conocimiento sensible en el ámbito educativo en cuestión, nos dedicamos a escudriñar la obra cinematográfica, sus sonidos e imágenes, con base en la metodología del análisis cinematográfico, teniendo como marco teórico los autores de la Teoría Crítica. Concluimos que a pesar de las circunstancias inaugurales en la escuela danesa que nos llevaron a la construcción de saberes aparentemente innovadores, en su núcleo conservaron la opacidad y el sometimiento a epistemologías tradicionales y totalitarias.

Palabras clave Epistemología; Teoría Crítica; Escuela; Cine

Abstract

This essay aims to develop an aesthetical-critical discussion about the epistemological totalitarianism of instrumental reason present in a fictional school represented in the film Druk - Another Round (Vinterberg, 2020). Emphasizing the lack of sensitive knowledge, we dedicated ourselves to scrutinize the cinematographic work soundly and imagetically, using the methodology of film analysis and having as theoretical framework authors of Critical Theory. We conclude that despite the inaugural circumstances in the Danish school leading us to the construction of apparently innovative knowledge, at its core they preserved opacity and submission to traditional and totalitarian epistemologies.

Keywords Epistemology; Critical Theory; School; Cinema

Apontamentos iniciais

O escopo deste ensaio é discutir a relação entre saberes sensíveis e educação por meio de uma análise estético-crítica do filme Druk - Mais uma rodada (Vinterberg, 2020). Inicialmente, será feita uma contextualização da obra fílmica. Em sequência, propomos uma análise estética do filme, em termos imagéticos e sonoros, de forma a desnudar elementos que contribuem para criar o antagonismo entre apatia e excitação nas vidas pessoais e profissionais dos quatro personagens docentes, Tommy, Martin, Nikolaj e Peter. Finalmente, procedemos à análise do saber sensível versus totalitarismo epistemológico nas aulas de cada um deles, evidenciando um contexto escolar dinamarquês específico. Em todas as partes, a discussão se alimenta de autores da Teoria Crítica como Adorno (2008, 2010, 2012), Aquino (2021), Entel (2008), Fraser e Jaeggi (2020), Oliveira (2014), Tiburi (2014) e Türcke (2010, 2012).

Em termos formal-metodológicos, este texto situa-se no âmbito de uma discussão teórica de análise fílmica, voltado a realçar elementos estéticos, imagéticos, musicais e educacionais que, em articulação, compõem uma rede constelatória. Com base em Vanoye e Goliot-Lété (1994, p. 15), realiza-se a reconstrução do filme pela perspectiva das autoras deste artigo. Desenvolve-se uma nova criação que, de alguma maneira, faça “com que o filme exista”. A análise fílmica ora desenvolvida tenciona refletir acerca dos dispositivos estéticos que se articulam na estruturação de uma mise-en-scène com muitas particularidades: na fotografia, no desenho do som, no arco dramático dos seus personagens principais, nos enquadramentos e sua relação com o espaço e o tempo. Esses elementos nos posicionam diante de uma forma de arte particular, que propõe questões ao espectador, enlaçando sua experiência e capacidade de interpretar, que pode ser infinita.

A partir deste entendimento, intentamos realçar as possibilidades de diálogo com a obra cinematográfica fora da ideia de cinema-indústria, compreendendo-a como linguagem imagética, sonora e formativa de riqueza ímpar, capaz de produzir significados os mais diversos, de proporcionar uma experiência estética viva plena de sentidos e nos fazer questionar o status quo pelo intrincado dualismo entre ficção e realidade.

Contextualização do filme Druk - Mais uma rodada

Vencedor do Bafta e do Oscar 2021 na categoria de melhor filme estrangeiro, Druk - Mais uma rodada (Vinterberg, 2020) é dirigido por Thomas Vinterberg, conhecido por produções como A comunidade (Vinterberg, 2016), A caça (Vinterberg, 2012) e Festa de família (Vinterberg, 1998), sendo este último considerado o marco inicial do movimento Dogma 95[3]. O diretor assina o roteiro da produção de 2020 ao lado de Tobias Lindholm, com um elenco de atores que já participaram de filmes anteriores do diretor, como Thomas Bo Larsen, Mads Mikkelsen, Magnus Millang e Lars Ranthe, interpretando, respectivamente, Tommy, Martin, Nikolaj e Peter. A trilha sonora é assinada por Mikkel Maltha e a fotografia é de Sturla Brandth Grøvlen.

O enredo gira em torno de um experimento proposto por Nicolaj – professor de Psicologia da mesma escola dinamarquesa onde os demais docentes: Tommy ensina educação física, Martin, história, e Peter, música. No transcorrer da narrativa fílmica, Nicolaj informa que o experimento citado é fruto de uma teoria criada pelo filósofo e psiquiatra norueguês Finn Skårderud, o qual, segundo Nicolaj, afirma nascer os seres humanos com um teor de álcool no sangue 0,5% abaixo do necessário[4]. Portanto, o desafio acordado pelos professores seria que cada um bebesse até atingir essa porcentagem, que deveria ser mantida constantemente, antes e durante as aulas, nunca depois das 20h, sem qualquer ingestão alcoólica aos finais de semana. Tudo é muito empolgante no início, mas, no decorrer da narrativa, a experimentação se mostra, no mínimo, problemática.

O experimento alcoólico surge como antídoto para o enfado dos quatro professores de meia-idade, cujas vidas pareciam se desenrolar de forma automática, higiênica, organizada, aparentemente segura em termos materiais, porém tediosa. O filme retrata Martin, professor de história e protagonista, como a personificação do abatimento. Tommy parece-nos remeter ao vazio da existência, Nikolaj a um cansaço interminável e Peter à solidão. Para além de suas vidas pessoais, os sentimentos de desânimo, falta de confiança e apatia se espraiam para as aulas de suas disciplinas ministradas na escola retratada pelo filme.

Nos momentos iniciais, a narrativa fílmica parece se estruturar de modo a sugerir a ausência de sentido das vidas dos quatro professores a partir de diversos recursos visuais, sonoros e dramáticos. Este vazio parece encontrar alguma resposta no consumo alcoólico, que, pelo menos em tese, é controlado por um experimento racionalmente concebido e coletivamente estruturado pelos quatro professores. Contudo, a despeito da atmosfera cientificista que permeia o malfadado experimento, todos eles incorrem no vício.

Para Türcke (2012), o vício representa um substituto de sentido apoiado num objeto falso, uma fuga de si próprio, sendo os comportamentos viciados particulares parte de uma dinâmica viciadora sistêmica. O autor, contrariando a máxima de Marx segundo a qual “a religião é o ópio do povo”, arremata que “o aguardente (sic) e o ópio se transformaram na religião do povo” (Türcke, 2012, p. 5). O mote do “culto ao álcool” perpassa todo o filme como algo sintomático de um problema social daquele país. Problema este demonstrado por dados recentes de um survey realizado pela Global Drug Survey (Global Drug Survey, 2020). O estudo foi realizado com uma amostra de mais de 110.000 pessoas de mais de 25 países entre 7 de novembro e 30 de dezembro de 2019. Segundo o survey, os dinamarqueses relataram que ficaram bêbados em, aproximadamente, 31 ocasiões em um período de doze meses. Eles ocuparam a quarta posição, perdendo apenas para Escócia, Inglaterra e Austrália; e tiveram um consumo alcoólico maior que de países como Estados Unidos, França, Brasil, África do Sul, Hungria, Colômbia, dentre outros (Global Drug Survey, 2020, p. 3).

Assim como outras drogas, o vício pelo álcool encontra analogia, na visão de Türcke (2010), no fundamentalismo teológico. Interessante observar que a discussão do filósofo nos auxilia a enxergar a ação dos quatro personagens de Druk como uma busca de apoio, já de início, em “uma crença que se alça sobre a base da descrença” (Türcke, 2010, p. 246). O autor compara o comportamento do viciado ao do religioso dogmático, ambos sustentados em uma aparente confiança, em cuja base jaz, ironicamente, a desconfiança, a falta de firmeza. A ideia de vício, portanto, vem acompanhada de uma ideia de diluição dos efeitos da substância que o causa, a perda da nitidez, a substituição da obstinação inicial por uma variação que pode tornar o viciado irreconhecível com consideráveis consequências sociais.

Outra questão surgida aí diz respeito ao fato de que a ideia de diluição é robusta na condição moderna, podendo o fetiche direcionado às drogas diluídas ser transferido para o consumo de outras substâncias ou ações, como alimentos, jogos, sexo, trabalho, entre outros, um vazio que se espraia para outros setores da vida. Türcke (2010, p. 251) demonstra que comida, trabalho, jogos e sexo, por exemplo, podem se tornar fenômenos potencialmente viciantes, ocupando a função da religião ou mesmo de drogas ilícitas conhecidas.

Nos quatro personagens principais, contemplamos um ensinar contagiado pela ideia de vício. Não há espaço para a real criação da aula ou para a construção de saberes. Há a repetição de fórmulas de sucesso, ideias mirabolantes que a princípio empolgam e parecem eficazes, geram interesse, mas de saída se apresentam como iniciativas ocas, desbotadas, sem real vinculação com a vida e com a reflexão ou a crítica. Pouco se divisa nas aulas uma ideia de problematização; há, no entanto, muitas informações, como será possível inferir adiante, quando nos concentrarmos na ideia de carência do saber sensível.

Antes, porém, será interessante realizar uma breve explanação dos dispositivos estéticos do filme, de forma a compreender como as narrativas imagéticas e sonoras participam da criação de atmosferas de descrença e de euforia, de autoconfiança e de falseamento da realidade. É a partir desta análise que irrompem elementos estético-reflexivos para pensarmos, mais adiante, na categoria do saber sensível e em seu revés, o totalitarismo epistemológico.

Apontamentos estéticos, imagéticos e sonoros da obra fílmica

Apesar de não seguir claramente os aspectos mais restritivos (Voto de Castidade) que o classificariam como um filme inteiramente dentro dos padrões do Dogma 95, percebemos uma influência bastante forte nesse sentido. Não há truques espetaculares de filmagem; o aqui e agora nas cenas é extremamente valorizado, mesmo com uso de cortes repentinos ou planos mais longos; há uso de locações reais, como a escola, o restaurante, as casas de cada personagem, as locações externas, para citar alguns exemplos. Muito do som produzido é o da própria cena, advindo de um aparelho localizado na concretude física da atmosfera diegética[5] ou produzido vocalmente. Há que se ressaltar, no entanto, um elemento bem marcado e que merece ser comentado: a fotografia.

Percebemos claramente o uso da iluminação natural, sem muitas manipulações de uma composição artificial; nas tomadas externas isso é bem evidente. A luz da fogueira ou de uma lanterna, por exemplo, são as únicas fontes de claridade no acampamento feito pela família de Martin em certo momento do filme. A iluminação dos ambientes fechados se consegue por meio de velas, lustres – o que está disposto nos lugares. Isso dá à fotografia um tom muito próprio dos ambientes de filmagem. Na posterior colorização, houve certa dificuldade para não contrariar o que seria próprio do Dogma 95, segundo Emil Erikssom, colorista da película. Comenta ainda o colorista que o diretor “queria que o look fosse honesto, verídico e íntimo, e fomos por esse caminho.” (Erikssom, como citado em Batalha, 2021, s.p.).

Essa verdade buscada pelo diretor impera do início ao fim. A paleta de cores pastéis predomina, variando muito pouco em sua vibração, especialmente antes de o experimento ter início, o que acompanha a trama na sua essência, na vida tediosa, sem grandes acontecimentos. Percebemos uma imagem mais nítida, mais sublinhada durante o experimento, algo muito sutil, mas que empresta ao ritmo das cenas um frêmito menos contido. Portanto, os tons pastéis se tornam um pouco mais vibrantes depois das bebidas; a fala, antes arrastada, cheia de pausas e suspiros, é mais preenchida, ganha mais velocidade.

A sugestão de que o álcool poderia trazer para os sujeitos, na hipótese do psiquiatra norueguês, um espectro de vida mais relaxado, disposto, musical e aberto, direciona os quatro amigos. É possível captar uma mudança no espírito de indiferença deles, que ganha movimento, balanço, dança, ousadia corporal, toques de humor nas frases construídas, diversão. A fotografia acompanha estas mudanças com contrastes mais definidos. Assistimos a cenas mais solares com ambientes abertos sendo enfocados com mais constância.

À medida que nos encaminhamos para o fim do experimento, os recintos mais herméticos voltam a povoar os planos. Consequentemente, o colorido perde escala, o filme altera-se imageticamente, seguindo mais escurecido, pardacento. Na ambiência da casa de Martin, após a briga com a esposa, os cenários recebem um filtro azulado, que continua na escola, em seus corredores, o que é reforçado pelas paredes azuis: vemos brigas, ultimatos, violência, confronto verbal e constrangimento – tudo muito desagradável e difuso novamente.

Atingido o clímax emocional, aproxima-se outra fase: do esgotamento, luto, desfechos. Passamos a encontrar claridades. O branco toma conta das vestimentas, das paredes. Temos luzes, tomadas mais externas. Os contrastes voltam (ênfase em Martin com roupa preta), assim como a bebida, terminando a história numa verdadeira chuva de champagne.

Vemos, assim, implicações dramáticas e psicológicas no uso das cores. O manejo intencional do diretor na coloração que incide sobre a fotografia, sobre os planos escolhidos de filmagem, em ângulos específicos, não garante os efeitos esperados, mas com certeza inspira estados emocionais, acompanhando o enredo arquitetado no roteiro, que, passado à tela, habilita quem o vê a participar mais intimamente da realidade ficcional concebida, a envolver-se com as opções feitas e com o resultado final.

Com relação especificamente à narrativa sonora, conforme mencionado anteriormente, há forte exploração da paisagem sonora dos ambientes, ou seja, do universo que rodeia as personagens. Exploram-se sons naturais, objetais, instrumentais, humanos, tecnológicos, para citar alguns exemplos, que emanam dos espaços frequentados por Martin, Nikolaj, Peter e Tommy. Há, também, uma trilha com composições vocais polifônicas, obras eruditas e pop, canções ufanistas e hinos patrióticos.

Em um fundo de tela completamente preto, a abertura do filme se desenrola ao som de um acorde de Si menor entristecido, e, enquanto cada uma de suas três notas são melodicamente entoadas, surge em letras brancas uma citação de Kierkgaard: “O que é a juventude? Um sonho! O que é o amor? O conteúdo do sonho!” (Vinterberg, 2020). Na sequência, há gritos eufóricos de adolescentes que se divertem em uma competição festiva regada a bebidas alcoólicas. Nesse momento, em contraste com os sons das muitas vozes adolescentes excitadas, há um arranjo vocal mais intimista e arrastado, em andamento lento, da canção tema do filme, What a life, do trio musical dinamarquês Scarlet Pleasure. É essa a tônica do filme: a oscilação entre agitação e letargia realçada pelo consumo desenfreado de álcool.

Para fins analíticos, o filme pode ser dividido em três grandes partes: antes, durante e depois do experimento proposto por Nikolaj, como foi exposto acima sobre seu teor imagético. Na primeira parte, em termos sonoros, há centralidade na exploração da paisagem sonora de cada ambiente, realçando ruídos e silêncios com algumas poucas canções realizadas pelo conjunto de personagens, caso das obras vocais polifônicas: i) I Denmark er jeg fodt de Poul Schierbeck com texto de Hans Christian Andersen, cantada pelos alunos na aula de música de Peter e ii) Fredman’s Epistle n. 30: Drick ur ditt glas, se döden på dig väntar, de Carl Michael Bellman, canção com temática fúnebre entoada à capela por um quarteto masculino (seria uma projeção de Martin, Nikolaj, Peter e Tommy?) que, inesperadamente, se revela no restaurante onde os quatro professores festejam o aniversário de 40 anos de Nikolaj.

Em síntese, antes do início do experimento propriamente dito, o clima de tédio e enfado é comunicado por uma narrativa sonora que privilegia ruídos, silêncios e poucas obras musicais. Estas últimas participam das paisagens sonoras dos professores, não sendo acrescentadas a elas de forma artificial.

No transcorrer do experimento, a trilha sonora vai ganhando centralidade com obras vocais polifônicas, obras eruditas instrumentais, hinos patrióticos, canções pop, entre outras. O despertar dos personagens por meio do álcool se dá de corpo inteiro, o que é evidenciado na cena em que todos dançam embriagados e de forma improvisada a canção Cissy Strut da banda funk norte-americana de Nova Orleans The Meters. Quanto mais agitação, mais entusiasmo e mais euforia, maior é a quantidade de obras musicais que percorrem diferentes estilos e que, sendo frequentemente colocadas pelos próprios personagens em seus aparelhos de som, expõem estados de humor e ambivalências de cada instante vivido.

À medida que o experimento vai demonstrando seus efeitos destrutivos nas vidas sociais e profissionais dos personagens, especialmente devido ao risco do alcoolismo e até mesmo de morte, voltam a prevalecer os silêncios, os ruídos, salpicados por poucas obras musicais que permanecem participando dos ambientes sonoros dos personagens. É o caso de Jeg elsker den brogede verden, de Hans Vilhelm Kaalund, cantada à capela pelos estudantes do ensino médio e que dá à trágica morte de Tommy uma tônica paradoxal de desalento, reverência e esperança.

O grand finale fica a cargo da canção tema What a life durante a celebração dos alunos por ocasião de suas aprovações nos exames finais, momento em que acontece o balé de Martin. A canção somada à performance dançante do professor de história escancara um cenário paradoxal: há entusiasmo, mas há ausências (especialmente a de Tommy); mesmo com todas as adversidades vivenciadas pelas personagens, persiste o consumo de álcool e, com ele, o perigo do vício; Martin enfim dança e parece se sentir vivo, porém sua performance é ovacionada pelos jovens com uma chuva de, nada mais nada menos, champagne. Martin está molhado literalmente de bebida e metaforicamente de vida e, a partir disso, irrompe o questionamento: como bebida e vida se alimentam e podem se destruir mutuamente?

Esses breves apontamentos estéticos sobre o filme Druk funcionam como pano de fundo para a análise daquilo que nos interessa mais diretamente neste ensaio: a experiência do saber sensível na escola onde trabalham Martin, Nikolaj, Peter e Tommy. É justamente sobre a categoria de saber sensível, bem como sobre as possibilidades de sua materialização (ou não) expressas em algumas cenas que acontecem na escola enfatizada na película de Thomas Vinterberg, que nos deteremos a seguir.

O saber sensível nas aulas dos quatro personagens docentes de Druk – Mais uma rodada

As conjunturas da escola na obra cinematográfica mostram-se altamente embebidas em uma epistemologia vinculada a uma razão técnica, administrada, que, pelo seu caráter de univocidade e opressão, denominamos de totalitarismo epistemológico. Nesse sentido, tal epistemologia pouco se liga ao saber sensível, que é dialético e traz possibilidades de reencantar diferentes instâncias da vida, incluindo objetos, imagens, músicas, entre outros, pela crítica ao desencanto da experiência contemporânea.

A escolha pelo termo totalitarismo epistemológico não é aleatória e se justifica pelo fato de que nos contextos escolares ocidentais e, notadamente no contexto específico evidenciado pela obra fílmica, há dominância de um conjunto epistemológico de saberes e de práticas relacionadas a estes saberes que produzem resignação, anulam a oposição ao que está posto e controlam as subjetividades em (semi)formação. É totalitarismo precisamente por ter um viés autoritário extremado, ainda que velado, gerando “subordinação da vida ao processo de produção” (Adorno, 2008, p. 23).

Isso quer dizer que o totalitarismo epistemológico corresponde a uma lógica estruturada, sistêmica e institucionalizada de controle das mentes, das corporeidades, das emoções e dos desejos dos sujeitos escolares, que obstaculiza processos de reflexão e de (auto)crítica não apenas sob uma perspectiva intelectiva, como também em termos éticos, emocionais e corporais. É, portanto, uma lógica unívoca e opressora que permanece ignorando a máxima de Adorno segundo a qual “A exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação” (Adorno, 2012, p. 119). O totalitarismo epistemológico cria possibilidades para que “Auschwitz” se repita, a barbárie se repita, ainda que sob novas roupagens.

O saber sensível é outro modo de conhecer e de produzir saberes. Seu objetivo se encontra na retomada da associação entre aspectos do humano para que não se perca o verdadeiro sentido da formação. Sua essência assinala um teor altamente político, marcado pelo exercício da crítica permanente e pela luta por justiça social: um despertar acerca das conjunturas artística, econômica e cultural da sociedade, buscando criticar uma visão ingênua do mundo e colocando em xeque a representação de totalidade e controle das subjetividades.

Entel (2008) analisa detidamente a cartografia dos modos de elaborar os conhecimentos no mundo ocidental. Segundo a intelectual argentina, a ordem capitalista tem moldado a racionalidade, a sensibilidade e a imaginação por meio da razão instrumental, da qual decorrem experiências mutiladas. A proeminência da razão instrumental e da permanente dissociação entre sensível e inteligível, teoria e prática, razão e emoção, cognição e corporeidade, é parte de uma lógica alienante, que divide e hierarquiza saberes e processos de produção do conhecimento.

É o que chamamos de totalitarismo epistemológico, propulsor de modos de conhecer unívocos, autocentrados, que sufocam o exercício da negatividade, da crítica, da sensibilidade, de elaborações constelatórias e transgressoras do modo de vida contemporâneo, inclusive no interior das escolas. Nesses espaços, é notória a hegemonia de saberes e modos de operar mais vinculados à racionalidade, secundarizando ou mesmo suprimindo aqueles relacionados à sensibilidade em sentido amplo (Entel, 2008, p. 9).

Em face disso, Entel propõe a busca por um pensamento criativo não dissociador do sensível e do inteligível, que Aquino (2021) e Oliveira (2014) vêm denominando de saber sensível. Tratando especificamente do ambiente escolar, Oliveira (2014) afirma que tal saber restitui às aulas, por exemplo, sua integridade, resgata a união entre práxis, conhecimento e arte, possibilita o encontro, “desnuda a repressão, as incertezas e as interrupções, porém favorece profundas mudanças, pois não impede uma corporeidade, uma sensibilidade propensa a alterações e outras perspectivas”. Ainda segundo a autora, referindo-se especificamente à educação,

[…] interessa à manutenção do status quo um sistema educativo que não permita a indissociação entre razão e sensibilidade, na valorização do que é “científico”, do que é considerado no mundo cotidiano a dimensão da construção do saber que por sua vez é alienante, já que instaura dicotomias e não o que desestabiliza, que não é harmônico e que muitas vezes choca. (Oliveira, 2014, p. 115)

Centralizando mais especificamente as epistemologias escolares, Aquino (2021) afirma que práticas pedagógicas lastreadas em saberes sensíveis favorecem modos de operar articuladores, justamente por colocar em uma perspectiva constelatória crítica elementos, em geral, apreendidos e vivenciados de forma dissociada. Para a autora:

O termo “saber sensível” busca integrar, em sua própria estrutura gráfica, o sensível e o inteligível, além de outras tantas dicotomias que vêm cristalizando visões fragmentárias nos processos de pensar e fazer humanos. Dessa forma, configura-se como um saber promotor da articulação crítica entre cognição e emoção, razão e imaginação, intelecto e sensibilidade, bem como da associação de outras unidades dialéticas como teoria e prática, técnica e reflexão, trabalho e prazer, produção e contemplação. (Aquino, 2021, p. 199)

A autora prossegue analisando que o saber sensível, especificamente o saber musical escolar, possui fundamentos éticos, cognitivos, emocionais e corporais, bem como dimensões científicas, artísticas e filosóficas, além de estabelecer diálogos com outras perspectivas humanas, ou seja, outros campos do saber. De forma ampla, modos de conhecer e de produzir conhecimento ancorados na noção de saber sensível são eminentemente tensionadores, dialéticos e articuladores, pois promovem um constante exercício de negatividade frente às sensações de desencantamento, desumanização e de falta de horizontes utópicos emancipatórios suscitadas pelo neoliberalismo, fase mais atual do capitalismo.

A esse respeito, Fraser e Jaeggi (2020, p. 14) aventam a ideia de que o sistema capitalista, que subjuga e determina também o que acontece no sistema de ensino, é “uma ordem social institucionalizada” (nas palavras de Fraser) ou mesmo uma “forma de vida” (consoante Jaeggi). No entendimento das autoras, um contexto de crise ampla e profunda é o pano de fundo desse sistema na contemporaneidade, que se derrama para além de questões essencialmente econômicas, abarcando não apenas como a riqueza é distribuída ou o que é riqueza em sua concepção original ou, ainda, como ela é produzida. Além disso, tal crise alcança uma multidimensionalidade com facetas ecológicas, políticas, sociais e, acrescentemos, educacionais.

Listando alguns tópicos centrais do que figura como destaque na concepção do capitalismo, Fraser e Jaeggi (2020, p. 32) analisam, usando a metáfora do “dançar conforme a música”, que a música tocada incessantemente neste sistema é bastante impositiva e a dança tende a acompanhá-la de maneira muito próxima. Não há desfrute ou diversão: uma palavra corrente é a coação.

Em Druk – Mais uma rodada (Vinterberg, 2020), o capitalismo não é centralizado como assunto de primeiro plano. Mas é ele que estrutura toda a “ordem social institucionalizada” dos múltiplos ambientes frequentados por Martin, Nikolaj, Peter e Tommy, além de permear as mais ínfimas “formas de vida” e os mínimos gestos de cada um dos quatro professores. Com isso se quer dizer que o relevo não recai sobre a justiça social na relação com a distribuição e produção de riqueza; nem mesmo sobre dificuldades de infraestrutura na escola onde atuam; menos ainda sobre questões referentes ao reconhecimento de minorias alijadas dos diversos processos sociais, incluindo as práticas pedagógicas.

No filme, a lógica capitalista de opressão, dominação, separação e hierarquização se faz sentir na organização curricular, nas epistemologias dos saberes escolares e nas estratégias de sala de aula. A submissão ao capitalismo significa, na obra fílmica, incorporar no sistema de ensino as lógicas da competição, da razão técnica, da produtividade, da eficácia: afinal, o objetivo último é garantir que os estudantes do ensino médio sejam aprovados nos exames finais. De todo modo, no transcorrer da narrativa, o experimento etílico parece gerar mudanças nos processos de ensino-aprendizagem escolares, mas compete inquirir: qual a natureza destas mudanças? O experimento contribuiu para que a cartografia dos saberes escolares se aproximasse de uma epistemologia ancorada em saberes sensíveis?

A análise estética do filme, realizada na seção anterior, revelou que, antes do experimento, a combinação entre texto, imagem e som foi exitosa ao criar uma atmosfera de tepidez e esmorecimento. Nesses momentos iniciais, há cenas das aulas de cada um dos quatro professores. Tommy mal se dirige à turma: ele chega ao ginásio, senta e vai ler jornal enquanto sugere que um dos alunos conduza o aquecimento. Na aula de Peter, os alunos entoam de forma mecânica e desinteressada a canção I Denmark er jeg fodt. Nikolaj profere o conceito de psicologia para alunos alheios, cabisbaixos, que se calam diante de seus questionamentos retóricos. Na aula de história, Martin lê maquinalmente o conceito de industrialização e os alunos, sentados e atônitos, mal conseguem acompanhar seu raciocínio difuso.

Martin, a personagem mais focada pelo diretor, chama a atenção do espectador para o apagamento de sua subjetividade. Por meio de várias cenas em que ele aparece em primeiríssimo plano ou plano próximo, acompanhado pela câmera objetiva e por silêncios e/ou parcos sons do ambiente, vemos seu abandono da experiência. O desinteresse que ele encerra na primeira aula de história parece ser fruto desse enredamento no sistema de que nos fala Tiburi (2014, p. 73):

Somos convidados, pelo sistema do poder erigido em instituições, a abandonar algo como nossa experiência todos os dias. Entre nós a experiência é reduzida a curriculum e técnica de trabalho. As tecnologias que providenciam esta falsa experiência são usadas para a humilhação das pessoas em diversos sentidos. Temos que ser experientes, mas não ter experiências. Temos que viver anestesiados. Ao mesmo tempo somos excitados a todo momento, irritados, deprimidos, oprimidos, seduzidos, conduzidos, tudo para o fim de transformar este animal sensível e coletivo que somos em robô, em espantalho do sistema do poder. Desistir da experiência e entrar no faz de conta espetacular torna-se regra em todos os campos da atividade humana.

O filme desnuda uma escola mergulhada nessa lógica de desistência na figura de docentes e discentes absolutamente alheios às experiências educativas. Mesmo que o currículo contemple música – um saber com potencial para promover experiências estético-dialéticas com saberes sensíveis –, a aula inaugural de Peter sugere a mesma apatia suscitada pelos demais componentes curriculares.

Em seu reencontro com os estudantes, Peter quer ver o quão enferrujados eles estão. Cantar I Denmark er jeg fodt poderia parecer uma estratégia interessante para diagnosticar a situação da turma e, assim, preparar uma intervenção pedagógico-musical significativa, centrada nos fundamentos éticos, cognitivos, corporais e emocionais dos saberes musicais. Entretanto, aquela canção participa de uma lógica de totalitarismo epistemológico que enreda os sujeitos escolares, já conformados, desinteressados, apáticos, incapazes de qualquer tentativa minimamente transgressora de se relacionar com o saber musical.

Tanto nas aulas de música quanto nas de história, educação física e psicologia reina o desencanto e o descompromisso em promover experiências prenhes de sentido. Conforme Adorno, cabe à educação preparar os homens para o mundo, tendo ela uma dimensão de adaptação, à qual se imbrica o necessário compromisso com a emancipação (Adorno, 2012, p. 143). Nas quatro ações docentes dos quatro professores, o polo emancipatório está vazio e a adaptação corresponde à preparação de sujeitos entristecidos, conformados, desprovidos de vida para um sistema de dominação desguarnecido de horizontes utópicos transformadores. Em um cenário assim, não parece sequer possível imaginar a possibilidade de epistemologias escolares embebidas em saberes sensíveis.

Após o início do experimento, quando os professores começam a lecionar com doses de álcool no sangue, Martin parece dar aulas diferentes. Em uma delas, ele trata, por exemplo, da temática das eleições com ênfase em aspectos pessoais de personalidades como Roosevelt, Churchill e Hitler, incluindo o gosto que possuem ou não por bebidas alcoólicas. Sua ação docente, mais espetacularizada, desperta o entusiasmo e a participação dos alunos. Todavia, após a excitação inicial, Martin sugere a retomada da leitura do livro didático.

No breve trecho da aula de Nikolaj, ele incrementa a participação de uma aluna solicitando que ela leia em voz alta a citação “Ousar é perder o chão por um momento. Não ousar é perder a si mesmo!” (Vinterberg, 2020) – mais uma de autoria de Kierkegaard. Tommy, por sua vez, se engaja com uma turma de crianças em um jogo de futebol de campo e parece se compadecer do bullying sofrido por um aluno ao pedir que toda a equipe o trate como camarada. Ainda assim, este mesmo aluno permanece sendo chamado por todos, inclusive por Tommy, de “oclinhos”. O bullying permanece cravado nas subjetividades dos sujeitos escolares em sua forma mais elementar: uma alcunha pejorativa que classifica, separa e marginaliza.

Em sua aula, Peter retoma a canção I Denmark er jeg fodt e sugere que os alunos se ouçam uns aos outros. A fim de despertar uma dinâmica mais expressiva, o professor coloca os alunos em pé, no escuro e de mãos dadas para que, em suas palavras, "cantem com os ouvidos, com o coração e com a alma”. Os alunos respondem ao seu pedido instantaneamente com um canto afinado e expressivo, sem que Peter tenha trabalhado qualquer conteúdo musical relacionado à teoria da música, ao exercício de uma corporeidade consciente, ou mesmo às possibilidades de manejo da emoção estética.

A opção de inaugurar em seus próprios corpos o experimento com as bebidas alcóolicas faz com que Martin, Nikolaj, Peter e Tommy se entreguem espetacularmente a aulas visivelmente diferenciadas em sua aparência, mas que, em essência, conservam a dureza dos conteúdos, a memorização, a falta de significado e de conexão real com as vidas dos estudantes. No caso específico da aula de música, acontece algo ainda mais desolador. Os atos de fechar os olhos, dar as mãos e escurecer o ambiente funcionam como elementos mágicos para recuperar o que foi perdido: a afinação, a expressividade, o sentimento de pertença e os sentidos de uma formação musical de qualidade.

Quando os indícios do desventurado experimento se tornam evidentes, causando sérios prejuízos às vidas dos quatro professores, que resolvem interrompê-lo, há os exames finais dos adolescentes. Tommy perde a própria vida; Nikolaj leva a lúgubre notícia a Martin, que está sóbrio, sério e novamente melancólico; Peter aparece como um dos solenes avaliadores dos exames finais. O professor de música tenta auxiliar um de seus pupilos, Sebastian, que teve bloqueios nos exames dos anos anteriores. Antes do momento decisivo, Peter sugere a Sebastian “tomar uma antes dos exames” (Vinterberg, 2020). Na hora do exame propriamente dito, ele entrega ao aluno bebida diluída em uma garrafa de água. Isso faz com que Sebastian consiga falar com desenvoltura sobre o tema que sorteou: a análise da angústia em Kierkegaard. Nas palavras de Sebastian, tal análise demonstra “que ele [o ser humano] é falho. É preciso aceitar a si mesmo como falho para poder amar os outros e a vida” (Vinterberg, 2020).

É interessante perceber que Peter está entre os professores que realizam os exames, embora tais exames não tratem de música. Peter incorre em algo impensável: fornecer bebida alcoólica para um aluno. Impensável em perspectiva, pois mais absurdo que isso é não cumprir o grande desiderato de todo aquele processo formativo: a aprovação nos exames finais. É a lógica de um currículo instrumental voltado à inserção dos alunos no mundo produtivo capitalista que impera, magnânima.

Uma epistemologia pautada por saberes sensíveis – e, como tais, questionadores de uma racionalidade instrumentalizada, do totalitarismo epistemológico – não encontra lugar. Nem mesmo o “álcool”, com toda sua potência, ainda que vã, conseguiria tal feito. A morte dos saberes sensíveis na escola e na vida contrasta com o sucesso e a euforia etílica da comemoração dos estudantes aprovados nos exames finais, que chacoalham como mortos-vivos ao som do hit What a life.

É necessário considerar as costuras feitas por citações de Kierkegaard no decorrer da narrativa fílmica. Adorno (2010) realiza uma análise crítica da concepção kierkegaardiana de interioridade. Para o filósofo alemão, tal concepção caracteriza-se por seu afastamento de questões sociais, tornando-se, assim, uma interioridade sem objeto, fechada em si mesma. À medida que o mundo exterior é negado em sua dimensão objetiva, sem se considerar seu contorno especificamente capitalista, a interioridade perde a dialética com a realidade social refugiando-se numa compreensão mítica, espiritualista e a-histórica. Desse modo, a subjetividade acaba por se fechar em si mesma, absolutizando-se.

É justamente isso que vemos em Druk: uma sombra da lógica capitalista, que está presente nas mais prosaicas atitudes das personagens; as interioridades que se desligam do mundo objetivo, entorpecidas pelo álcool e fechadas em si mesmas; e, finalmente, modos de conhecer/saber instrumentalizados, totalitários, ancorados nas noções de competição, produtividade e espetacularização, que não encontram eco em saberes sensíveis. Esses seriam capazes de colocar em uma tensão constelatória as cisões e os nivelamentos tão presentes nas escolas e nos modos de vida do neoliberalismo contemporâneo.

Epílogo

Na obra de Vinterberg (2020), ficam claros o desenvolvimento e o resultado desastroso do experimento etílico, incapaz de abarcar os desdobramentos emocionais, sentimentais que cercam o humano, nas suas contradições e especificidades. Nenhum experimento que tem em seu cerne uma proposta de generalização e repetição – uma razão administrada – poderia dar conta dos elementos que são da ordem da falha, da falta, do imbricado jogo de inexatidão e profundidade que é próprio da realidade da experiência.

Martin, Peter, Nicolaj e Tommy aspiravam a novas experiências, embaladas por meio de um experimento, à grandiosidade de um plano inconcebível no contexto de uma razão entranhada na alienação, no totalitarismo epistemológico, longe de combinar princípios éticos, estéticos, políticos e sensíveis. Nada poderia restar, a não ser o cansaço, a exaustão, já que o entusiasmo conseguido foi artificialmente induzido. Apesar de todos os percalços enfrentados, o final nos reserva certa esperança. Há comemoração e indício de recomeços. A predominância do branco nos sinaliza dias melhores e a dança, o corpo disponível, liberto, dão indícios de novas possibilidades reais de experiência; aquela calcada na verdade, no mergulho emancipatório. Ainda assim, há que se considerar a ambivalência da trilha sonora, que se dá com um produto característico da indústria cultural.

A obra cinematográfica em questão nos conduz por caminhos tortuosos, criando uma realidade outra, ficcional, da ordem da imaginação, mas que desnuda as contradições presentes numa sociedade capitalista. Também nos coloca questionamentos da vida real com os quais nos deparamos constantemente: como fazer frente a uma ambiência dominada em seus fundamentos mais ínfimos por uma lógica que mina dia a dia a potência dos sujeitos?

Quanto às disciplinas ministradas na instituição educativa, as circunstâncias inaugurais nos remetiam à construção de saberes aparentemente inovadores, com um currículo invejável por contemplar áreas do conhecimento muitas vezes posicionadas fora de centralidade. Porém, em seus cernes, conservava-se a opacidade. Numa visão mais crítica, urdida a partir de transparências, visualizamos o caráter dilacerado nas relações e a construção de um arcabouço de saberes que poderia ter uma dimensão realmente libertadora. Contudo, o contexto trazido pela obra fílmica revela um totalitarismo epistemológico da razão instrumental, que sufoca epistemologias transgressoras ancoradas em saberes sensíveis.

Referências

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[3]Tal movimento foi iniciado em 1995 pelos cineastas dinamarqueses Lars Von Trier e Thomas Vinterberg a partir da publicação do “Manifesto Dogma 95”. Em termos gerais, o objetivo do movimento era contestar a lógica comercial dos grandes filmes hollywoodianos (blockbusters) e defender maior autonomia criativa para diretores-autores (Instituto de Cinema SP, s.d.).

[4]Embora tenha trabalhado como consultor do filme de Vintenberg (2020), Finn Skårderud desmentiu publicamente esta ideia atribuída a ele no transcorrer da obra. O psiquiatra diz que o equívoco surgiu de uma “leitura seletiva” de seu prefácio para a tradução norueguesa do livro Os efeitos psicológicos do vinho, do italiano Edmondo De Amicis (Palmeira, 2021).

[5]Diegese refere-se a acontecimentos da própria narrativa, é a realidade criada na trama com suas particularidades. No filme em questão, o som que toca ou surge na cena faz parte daquela realidade mesma, pois não foi introduzido posteriormente, mecanicamente.

Recebido: 13 de Dezembro de 2021; Aceito: 10 de Março de 2022

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As autoras contribuíram igualmente na elaboração do manuscrito.

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