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Linhas Críticas

Print version ISSN 1516-4896On-line version ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.28  Brasília Jan./Dec 2022  Epub June 27, 2022

https://doi.org/10.26512/lc28202241650 

Ensaios

Epistemologia da prática no campo educativo: desafios, possibilidades e perspectivas

Epistemología de la práctica en el campo educativo: desafíos, posibilidades y perspectivas

Epistemology of practice in the field of education: challenges, possibilities and perspectives

Luiz Gustavo Bonatto Rufino1 
http://orcid.org/0000-0003-2567-9104

Samuel de Souza Neto2 
http://orcid.org/0000-0002-8991-7039

1Doutor em Ciências da Motricidade pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) (2018). Professor de Educação Básica na Prefeitura Municipal de Paulínia e no Centro Universitário Unieduk em Jaguariúnia e Indaiatuba.

2Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP) (1999). Docente no Departamento de Educação do Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulista em Rio Claro.


Resumo

Este trabalho teve como objetivo analisar algumas das potencialidades, limitações, desafios e perspectivas relacionadas ao conceito de epistemologia da prática no campo educativo. Buscou-se, por meio de um ensaio teórico, fundamentar as compreensões de prática nas ciências sociais de modo geral e as representações ligadas ao conceito de epistemologia da prática, perpassando parte de suas origens, críticas e perspectivas atuais. Conclui-se que é necessário fomentar o desenvolvimento de pesquisas sobre o conceito de epistemologia da prática, cujo paradigma analítico apresenta potenciais de contribuição para o desenvolvimento da prática pedagógica e da produção de saberes no campo educativo.

Palavras-chave Epistemologia; Prática; Profissionalização; Ensino; Epistemologia da Prática

Resumen

Este trabajo tuvo como objetivo analizar algunas de las potencialidades, limitaciones, desafíos y perspectivas relacionadas con el concepto de epistemología de la práctica en el campo educativo. Buscamos, a través de un ensayo teórico, fundamentar la comprensión de la práctica en las ciencias sociales en general y las representaciones vinculadas al concepto de epistemología de la práctica, recorriendo parte de sus orígenes, críticas y perspectivas actuales. Se concluye que es necesario incentivar el desarrollo de investigaciones sobre el concepto de epistemología de la práctica, cuyo paradigma analítico tiene potencialidades para contribuir al desarrollo de la práctica pedagógica y la producción de conocimiento en el campo educativo.

Palabras clave Epistemología; Práctica; Profesionalización; Enseñanza; Epistemología de la práctica

Abstract

This study aimed to analyze some of the potentialities, limitations, challenges and perspectives related to the concept of epistemology of practice in the educational field. We sought, through a theoretical essay, to substantiate the understanding of practice in the social sciences in general and the representations linked to the concept of epistemology of practice, traversing part of its origins, criticisms and current perspectives. It is concluded that it is necessary to encourage the development of research on the concept of epistemology of practice, whose analytical paradigm has potential to contribute to the development of pedagogical practice and the production of knowledge in the educational field.

Keywords Epistemology; Practice; Professionalization; Teaching; Epistemology of Practice

Introdução

Este trabalho fundamenta-se na busca por compreensões acerca do conceito de epistemologia da prática, o qual tem sido empregado em diversos campos, a exemplo do contexto educativo, sobretudo nos últimos anos. Eivado em tradições específicas e fundamentações próprias, uma série de questionamentos incide sobre tal conceito. Analisar esse processo de desenvolvimento do constructo conceitual e das principais ideias que perpassaram as representações pedagógicas sobre a epistemologia da prática é nossa intenção com o estudo.

Com efeito, podemos afirmar que o campo educativo, em linhas gerais, abrange extensa magnitude de conceitos e terminologias que, muitas vezes, acabam sendo utilizadas sem muita atenção aos seus pressupostos teóricos e conceituais. Nesse sentido, expressões como “epistemologia” e, mais especificamente, “epistemologia da prática” acabam sendo usadas em alguns contextos com significados distintos daqueles historicamente construídos e presentes em outros campos, a exemplo da filosofia, sociologia, história, antropologia, entre outros.

O emprego equivocado ou pouco fundamentado de conceitos específicos a outros campos dentro do contexto educativo não é um fenômeno recente e tem sido alvo de análise de uma série de autores e estudos, a exemplo de Tardif e Moscoso (2018). Portanto, tecer análises que busquem elucidar o desenvolvimento e a construção de conceitos dentro do campo educativo possibilita direcionamentos mais articulados com os sentidos semânticos e as conjecturas contextuais que envolvem diferentes conceitos utilizados. Para isso, neste estudo, optamos pelo viés metodológico do ensaio teórico, possibilitando a análise argumentativa e a discussão epistêmica sobre o objeto investigado, em nosso caso, o conceito de epistemologia da prática no campo educativo.

Dada a representatividade do campo educativo e sua importância social, refletir sobre os fundamentos e processos de construção teórico-conceitual pode favorecer dois movimentos: o primeiro relaciona-se com a advertência de usos por vezes equivocados ou parcialmente corretos, que acabam sendo propagados em muitos contextos; o segundo, por sua vez, relaciona-se com a importância de se estabelecer critérios, consensos e estruturas semânticas partilhadas de modo mais ou menos congruente pelos diversos atores envolvidos no campo educativo, a exemplo de professores, gestores, fazedores de políticas públicas, etc.

Sendo assim, embora o conceito de epistemologia da prática tenha ganhado projeção nas últimas décadas, não se têm ainda muitos estudos que procuraram inventariar e analisar as formas com as quais tal constructo tem sido compreendido e nem quais os possíveis encaminhamentos para ele. Dessa forma, a partir desse recorte investigativo, o objetivo do presente estudo, em caráter de ensaio teórico, foi analisar o processo de constituição do constructo teórico da epistemologia da prática, sobretudo a partir de suas relações com o campo educativo. Buscou-se, desse modo, perspectivar as potencialidades e implicações desse conceito, seus desafios atuais e os possíveis direcionamentos, tendo em vista sua consolidação.

Epistemologia e Epistemologia da Prática: os múltiplos conceitos de epistemologia e as implicações do “pantanoso” terreno da prática profissional

Inicialmente, é fundamental compreender, ainda que em linhas gerais, algumas conceituações acerca do termo “epistemologia”, cerne da análise circunscrita. Dentro do transcurso etimológico, o conceito de epistemologia agrega diferentes conotações, cada qual com significações distintas. De acordo com Sánchez Gamboa (2014, pp. 250-251), o conceito de epistemologia costuma ser empregado para se compreender o polo de análise sobre “técnicas, métodos e teorias e que se refere às concepções de ciência, aos critérios de validade e de rigor […] que se identifica, também, com os pressupostos epistemológicos que definem e diferenciam as diversas abordagens teórico-metodológicas utilizadas na pesquisa”. Portanto, a epistemologia congrega forte vinculação com as formas nas quais os conhecimentos científicos foram sendo produzidos, manifestados e validados historicamente.

Japiassu (1991) assevera que o conceito de epistemologia se vincula ao campo da filosofia da ciência, sendo a área dedicada ao estudo sobre a ciência e suas implicações. Segundo o autor, as investigações devem ser estabelecidas a partir de constructos metódicos e reflexivos sobre o saber e suas formas de manifestação, bem como sua organização, formação, desenvolvimento e funcionamento. Nesse sentido, pode-se considerar que há certa ambiguidade no estatuto da epistemologia, uma vez que ela encontra no campo filosófico seus princípios elementares, embora seu objeto esteja vinculado ao campo científico.

Entretanto, segundo Tardif (2012), a visão de epistemologia vinculada à teoria e ao estudo da ciência e do conhecimento científico foi se modificando historicamente, afastando-se da demarcação entre o que é ou não ciência e se aproximando dos estudos relacionados aos conhecimentos comuns oriundos da etnometodologia, do interacionismo simbólico, da sociologia cognitiva, entre outros campos. Para o autor, desde a década de 1960, houve o esfacelamento das concepções mais ortodoxas sobre o conceito de epistemologia, a partir da abertura das compreensões que o relacionavam aos saberes cotidianos, vinculados ao senso comum. Nesse sentido, foi ganhando cada vez mais proeminência a constituição epistemológica dos conhecimentos presentes no interior das atividades profissionais, ou seja, relacionados ao desenvolvimento da prática dos profissionais de diferentes áreas de atuação. É dentro desse paradigma que o conceito de epistemologia da prática se insere.

Portanto, a ideia de se refletir sobre a epistemologia da prática foi sendo sedimentada historicamente à luz do conhecimento profissional e dos processos de profissionalização, sobretudo das profissões mais estudadas e reconhecidas socialmente, a exemplo da medicina, do direito e das engenharias. Partindo-se dessa consideração, nas últimas décadas do século XX houve um interesse cada vez maior em se analisar como os profissionais desenvolvem saberes e práticas no transcurso de suas ações.

Essa reflexão acerca dos profissionais e suas ações laborais está assentada em dois vieses que estruturam a análise sobre epistemologia da prática: o primeiro está relacionado ao interesse pela compreensão sobre como as profissões podem contribuir com o desenvolvimento do mundo, uma vez que seu papel passou a ser cada vez mais questionado, a exemplo do que Tardif (2012) denomina de crise da expertise profissional. O segundo se vale do reconhecimento de que processos formativos não são capazes de suprir um determinado profissional com os recursos cognitivos e os saberes integralmente utilizados no exercício da atividade laboral. Tem-se, nessa configuração, uma das maiores críticas ao paradigma científico cartesiano: até então, concebia-se que um profissional competente era aquele que aplicava conhecimentos e teorias em seu exercício profissional. Um exame mais aprofundado sobre as profissões demonstra uma inversão dessa ideia, isto é, que um profissional não é um aplicador de conhecimentos adquiridos em outros contextos, mas, sobretudo, produtor/construtor/mobilizador de um determinado conjunto de saberes que advêm de sua própria prática.

Esse questionamento foi ampliado por Donal Schön (1983; 1987; 2000), o qual, baseado em diversos autores, a exemplo da corrente do pragmatismo de John Dewey, constatou, por meio da análise crítica sobre o conhecimento científico cartesiano, que as representações sobre as ideias de profissão estavam substancialmente equivocadas por meio de um paradigma arraigado à racionalidade técnica, da qual outra ideia de epistemologia era signatária. Propor outra compreensão de racionalidade e vinculá-la à ideia de epistemologia da prática fez com que outros caminhos, tanto para a pesquisa e produção de conhecimento quanto para o desenvolvimento das ações práticas profissionais, fossem possíveis.

Nesse sentido, Schön (2000), ao analisar a prática profissional, faz uma analogia pertinente: para o autor, trata-se de um “terreno pantanoso”, pois, embora as dificuldades mais superficiais possam apresentar respostas oferecidas pelos conhecimentos de ordem científica, os problemas mais profundos são caóticos e confusos e requerem outras estruturas analíticas para sua resolução, que escapam dos cânones da racionalidade técnico-científica.

Dessa forma, a análise da prática profissional deve ser composta por aquilo que o autor denomina de racionalidade prática, apresentada como um outro paradigma, em oposição à racionalidade técnica. Nessa perspectiva, a prática pode ser compreendida como um complexo contexto de formação, construção e reflexão de saberes, a partir da competência, do talento artístico e da capacidade de reflexão. Inseridas em um processo de certa maneira artístico e intuitivo composto pelo “hábil fazer” do praticante, as compreensões científicas tornam-se muito limitadas quando dentro de instáveis contextos de incerteza, singularidade e conflito de valores (Schön, 2000). Para o autor:

Essas zonas indeterminadas da prática – a incerteza, a singularidade e os conflitos de valores – escapam aos cânones da racionalidade técnica. Quando uma situação problemática é incerta, a solução técnica de problemas depende da construção anterior de um problema bem-delineado, o que não é, em si, uma tarefa técnica. Quando um profissional reconhece uma situação como única não pode lidar com ela apenas aplicando técnicas derivadas de sua bagagem de conhecimento profissional. E, em situações de conflito de valores, não há fins claros que sejam consistentes em si e que possam guiar a seleção técnica dos meios. (Schön, 2000, p. 17)

A partir dessa perspectiva, novos contornos ao conceito de epistemologia podem ser arrolados. Por isso, houve uma ampliação na utilização do conceito de epistemologia da prática nas mais diversas áreas. Tais acepções passaram a ser cada vez mais encontradas, a exemplo dos apontamentos de Lira e Sarmento (2016), as quais consideram que conceitos como de “profissional reflexivo” e de “epistemologia da prática” têm sido cada vez mais empregados. Para as autoras, ao analisarem obras que tangenciam tais conceituações, essas perspectivas não buscam esvaziar ou desprezar o conhecimento teórico, mas atrelá-lo à relação entre teoria e prática e suas inter-relações na produção de saberes (Lira & Sarmento, 2016).

A virada da prática nas ciências sociais e suas implicações ao campo educativo

Como visto anteriormente, em linhas gerais, a ideia de se investigar as práticas profissionais e as condutas de grupos específicos, como é o caso dos professores, não se deu de modo espontâneo ou foi objeto do acaso dentro do campo científico. Apesar de por muito tempo a prática ter seu lugar de pouco destaque e reconhecimento, ela foi paulatinamente galgando importância em diversas correntes teóricas e perspectivas investigativas. Proceder a uma análise sobre isso pode corroborar a elucidação dessa fundamentação, que gestou o nascimento do conceito de epistemologia da prática.

Schatzki et al. (2001), ao tecerem uma análise do ponto de vista sociológico sobre a prática, apontam que é por meio da ação e da interação com as práticas que a mente, a racionalidade e o conhecimento são constituídos e a vida social é organizada, reproduzida e transformada. Apesar disso, para os autores, a teoria da prática esteve oposta aos modelos proeminentes de pensamento, como o individualismo, o intelectualismo, a teoria sistêmica e muitas outras correntes do humanismo e pós-estruturalismo. Em síntese, compreender a prática revestida de especificidades epistêmicas não parece ser uma tendência apresentada pela ciência e, ainda menos, dentro do campo educativo. Ainda mais evidente: a representação da prática como lócus de produção, mobilização e construção de saberes, e não apenas como aplicação de técnicas e teorias, foi, por muito tempo, uma ideia negligenciada e pouco afeita às investigações científicas.

O aumento no interesse em se compreender a prática se deu a partir de um conjunto diversificado de autores e correntes teóricas consolidados ao longo do século XX. Tal influência se deu em diferentes campos sociais, a exemplo da corrente pragmática iniciada por John Dewey, o qual influenciou consideravelmente a gênese do conceito de epistemologia da prática. Todavia, outros autores também objetivaram tal reconhecimento da prática, a exemplo das ideias de Pierre Bourdieu com o conceito de habitus, por exemplo, e todo um conjunto de sociólogos, tais como Norbert Elias. Outros autores merecem destaque, sobretudo com a ideia de cotidiano, que também pode ser arrolada, a exemplo de Michel de Certeau, os conceitos de Marcel Mauss, entre muitos outros.

Podemos denominar tal movimento de valorização da prática como objeto de análise científica, segundo Schatzki et al. (2001, p. 9) de “virada da prática” nas ciências sociais. Esse movimento pode ser resumido pelo aumento da compreensão de que a prática (o que é realizado repetidamente em um dado contexto social) tem um papel causal na vida social, muito mais do que simplesmente ser consequência dos discursos sociais, narrativos ou interpretação voluntária dos agentes.

Apesar de não haver uma única abordagem para se compreender a prática, muitos teóricos a concebem como um arranjo mais ou menos ordenado de atividades. Todavia, as próprias concepções sobre atividade variam consideravelmente. Além disso, alguns definem prática como conjunto de habilidades, ou conhecimentos tácitos e pressuposições que sustentam as atividades. Outros autores, a maior parte filósofos e cientistas sociais, a concebem como arranjos de atividades humanas. Há ainda uma minoria de acadêmicos de corrente pós-humanista que incluem não apenas as atividades humanas, mas também aquelas realizadas por máquinas (Schatzki et al., 2001).

Kemmis e Wilkinson (2002) estabelecem que existem cinco diferentes aspectos relacionados às investigações sobre as práticas: análise dos desempenhos individuais; compreensões sobre as condições e interações sociais e materiais que as constituem; intenções, significados e valores que as compõem; linguagens, discursos e tradições alicerçadas na prática; e pesquisas sobre as mudanças e evoluções das práticas. Para os autores, as análises sobre as práticas e as pesquisas relacionadas devem conceber duas tradições: a primeira vincula-se à prática como comportamento individual a ser estudado objetivamente; a segunda estabelece a prática como comportamento ou ritual de um grupo a ser analisado coletivamente. Uma compreensão crítica sobre a prática pedagógica dos professores deve levar em consideração estas duas características, investigando tanto sua manifestação individual (ligada ao sujeito que a realiza), quanto coletiva (vinculada às ações sociais advindas de um determinado grupo de agentes específicos inseridos dentro de algum campo).

Embora haja inúmeras divergências, Schatzki et al. (2001) destacam que o campo das práticas, no geral, comporta algumas aproximações entre si. Nesse sentido, para os autores, conceitos sociológicos e fenômenos tais como “conhecimento”, “significado”, “atividade humana”, “ciência”, “poder”, “linguagem”, “instituições sociais” e “transformações históricas” ocorrem no interior das práticas e/ou são seus aspectos e principais componentes (Schatzki et al., 2001, p. 9, tradução nossa).

Na análise de Schatzki et al. (2001, p. 11), o “campo das práticas” é então o nexo de interconexão das atividades humanas. Dessa forma, duas compreensões emergem com relação à “abordagem da prática”: a análise de campos de práticas ou algum de seus subdomínios (exemplo: ciência); ou o lugar de estudo da natureza e transformação de seus conteúdos. Em ambas as perspectivas, a noção de “campo de práticas” é o elemento chave da abordagem da prática (Schatzki et al., 2001, p. 11, tradução nossa).

Outro elemento central de convergências entre os pensadores da prática está em concebê-la como conceito de “incorporação”, ou seja, “arranjos de atividades humanas materializadas e mediadas, sendo centralmente organizadas entre compreensões de prática compartilhada” (Schatzki et al., 2001, p. 11, tradução nossa). Portanto, nessa perspectiva, as práticas medeiam os contextos nos quais as propriedades corporais cruciais para a vida social são formadas, não apenas no que se refere às habilidades e atividades, mas às experiências corporais, representações e até mesmo às estruturas físicas.

As práticas não são necessariamente e exclusivamente individuais, mas agregam um conjunto de representações sociais. As esferas micro e macro se subvencionam na análise das práticas. Na perspectiva micro, é possível analisar a prática de um ou mais sujeitos inseridos no mundo social, tais como seus movimentos, ações, representações, enfim, formas de incorporação da cultura que trazem, invariavelmente, aspectos sociais. Na perspectiva macro, por sua vez, a teoria da prática analisa comunidades, sociedades, culturas, assim como governos, corporações (tais como as profissões), bem como suas formas de dominação e coerção instituídas por meio das práticas (Schatzki et al., 2001). É dentro desse quadro analítico que procuramos consolidar a compreensão de epistemologia da prática.

O conceito de epistemologia da prática: estruturando um novo paradigma, suas críticas e potencialidades

Embora não seja possível precisar a gênese do conceito, a fundamentação teórica de epistemologia da prática teve origem com Schön (1983; 1987), que o cunhou ao analisar como profissionais reflexivos apresentam um processo de reflexão durante suas ações, opondo-se à ideia de epistemologia arraigada ao paradigma da racionalidade técnica. O autor buscou oferecer uma abordagem baseada no estudo detalhado sobre o que alguns profissionais realmente fazem quando estão desenvolvendo suas ações, propondo um paradigma alternativo no qual o conhecimento inerente à prática deve ser entendido como um hábil fazer (Schön, 1983).

Dessa forma, em oposição ao paradigma positivista da racionalidade técnica, Schön (1983) propõe uma nova visão de epistemologia da prática, a qual, por sua vez, está implícita no processo artístico e intuitivo no qual alguns profissionais realizam suas ações nas situações de incerteza, instabilidade, singularidade e conflito de valores. Para que isso fosse possível, seria fundamental formar profissionais reflexivos que pudessem analisar suas próprias práticas e refletir antes, durante e depois das ações, tendo em vista transformá-las. O processo de reconhecimento das ações e a reflexão sistemática e periódica foram os meios apresentados pelo autor para que se pudesse desenvolver esse olhar crítico e reflexivo.

Nesse sentido, cabe destaque à intrínseca relação entre os conceitos de “epistemologia da prática” e de “profissional reflexivo” para Schön. De acordo com Schön (1983), o conceito de profissional reflexivo é fundamental dentro de seu quadro analítico, tendo sido inclusive um dos que tomou maior proporção na literatura, ao compreender que um profissional que reflete sobre sua própria prática antes, durante e após suas ações profissionais tende a desenvolver saberes atrelados a ela de modo muito mais consistente do que aquele que, em linguagem metafórica, opera em “piloto automático”. No entanto, essa compreensão de reflexividade, fundamental nas análises de Schön, só é possível porque ela está centrada em uma outra perspectiva epistemológica, justamente a epistemologia da prática. Nesse sentido, podemos compreender que é dentro do paradigma da epistemologia da prática que se tornam possíveis ações reflexivas que levam professores (e demais profissionais) a refletirem sobre o que fazem e a produzirem conhecimentos e saberes a partir disso. As fundamentações que compreendem a ideia de “professor pesquisador”, via de regra, são desenvolvidas dentro dessa mesma perspectiva teórico-conceitual.

Essa proposição de epistemologia da prática apresentou diversas implicações na literatura, tendo mobilizado debates acerca do tema da profissionalização do ensino e da formação profissional, além da própria valorização da prática para o desenvolvimento de profissionais reflexivos. Como em todo campo teórico, uma série de críticas passou a ser feita, tendo em vista analisar suas potencialidades e limitações.

Uma das análises sobre essa concepção é apresentada por Whitehead (2000), que critica a construção da epistemologia da prática baseada na resposta à pergunta “Como eu posso melhorar a minha prática?”. Para o autor, a criação e legitimação da epistemologia da prática deveria ser viabilizada por meio de processos coletivos de interação social, nos quais os questionamentos devem incluir conjuntos de pessoas, ou seja, os professores enquanto grupo social, por exemplo, ao invés de simplesmente responderem ao questionamento de um ou outro indivíduo.

Pimenta (2002) corrobora a crítica ao individualismo presente nessa perspectiva e acrescenta ainda a ausência de critérios que potencializem uma reflexão crítica, a excessiva ênfase nas práticas, as dificuldades no que corresponde às investigações nos espaços escolares à luz dessa perspectiva, entre outras. A autora reconhece, contudo, as contribuições dessa proposição, uma vez que considerou a reflexão no exercício do ensino como valorização da profissão docente e dos saberes dos professores.

Alves (2007) salienta que existe um caráter relativamente recente na introdução de termos como “epistemologia da prática” no âmbito educativo, o que pode constituir um paradigma ainda em desenvolvimento. Para o autor:

O campo da formação de professores ao final do século XX viu chegar novos termos e conceitos referentes aos professores, sua formação e seu trabalho. Expressões como: epistemologia da prática, professor-reflexivo, prática-reflexiva, professor-pesquisador, saberes docentes, conhecimentos e competências passaram a fazer parte do vocabulário corrente da área. (Alves, 2007, p. 265, grifos do autor)

Freitas (2002) é categórica ao estabelecer que as políticas formativas brasileiras apoiadas em conceitos como o de epistemologia da prática buscam retirar a formação de professores da formação científica e acadêmica própria do campo da educação, transferindo-as para esse campo da prática. Do mesmo modo, Duarte (2003) salienta que noções como os conhecimentos tácitos e as abordagens baseadas em autores como Donald Schön favorecem a secundarização do papel da teoria e do saber acadêmico ligado à formação de professores.

Podemos observar, na esteira da problematização apresentada pelos autores supracitados, que no cerne de tais críticas encontra-se o confronto entre duas perspectivas paradigmáticas: de um lado, a valorização da racionalidade técnica e sua tradição na construção do conhecimento científico e implementação na prática profissional a partir da visão aplicacionista e, do outro lado, a busca pela compreensão de um processo alternativo fundamentado e organizado sob a égide da racionalidade prática. Outro conjunto de críticas, por sua vez, culmina na ideia de individualização da perspectiva de epistemologia da prática.

A tradição pedagógica, via de regra, está baseada na concepção da racionalidade técnica com forte caráter científico de aplicação e que, por ser tradição, apresenta-se como perspectiva hegemônica. A proposta de outras formas de abordagem vinculada à racionalidade prática, por sua vez, não encontra o mesmo amparo histórico e respaldo científico e sofre com processos de busca por legitimidade. Apesar do teor das críticas apresentadas e dos limites referentes e inerentes a quaisquer paradigmas, consideramos que seria importante haver maiores proposições de fato vinculadas à racionalidade prática, até para que se pudesse analisar de forma consubstanciada suas potencialidades e limitações. Os dados atuais demonstram uma ampliação no número de investigações e um uso muitas vezes pouco cuidadoso para com o termo “epistemologia da prática”.

Com relação ao individualismo de tal acepção, de fato Schön não deixa claro como desenvolver processos reflexivos em caráter coletivo, até por conta de seu papel de facilitador e mediador de muitos profissionais (muitos dos quais são ilustrados em seus livros). Todavia, é indubitavelmente possível desenvolver processos reflexivos de modo coletivo, inclusive há no Brasil diversas propostas formativas que têm na reflexividade e na partilha coletiva seus fundamentos. Ainda mais importante, a compreensão de epistemologia da prática deve ser entendida como um paradigma de produção de saberes a partir e por meio da atividade profissional, a qual é plenamente possível ser desenvolvida coletivamente. Falta, no entanto, um conjunto de políticas públicas e de processos formativos institucionalizados que de fato estejam galgados na racionalidade prática e que não sejam apenas formas de compreensões formativas assentadas no paradigma da racionalidade técnica.

Outro conjunto de críticas é destacado por Alves (2007), que apresenta a tese de que os estudos orientados pelo conceito de epistemologia da prática são fundados nos pressupostos teóricos apoiados na filosofia pragmática, cujo principal referencial é John Dewey. Dessa forma, tais aportes teóricos herdam as mesmas limitações exaustivamente debatidas acerca do pragmatismo, como, por exemplo, sua desconsideração das diferenças sociais e de classe, a ênfase na formação por meio das experiências, o esvaziamento conceitual, e a reprodução de ações e práticas que tal modelo pode ocasionar, entre outras.

Consideramos, nesse ínterim, que um conjunto importante de críticas à perspectiva da epistemologia da prática apresenta discernimento dentro de pressupostos teóricos de origem crítica. Sem incorrer no risco de negar os importantes avanços que os referenciais críticos propiciaram para o avanço do conhecimento dentro do âmbito educativo, a exemplo da consideração das lutas de classe, problematizamos que essas análises devem ser preconizadas por meio das limitações teóricas e conceituais do paradigma da racionalidade prática proposto e não apenas porque tal perspectiva suprime a citação de autores ou deixa de abordar algum conceito para determinado referencial teórico. Assim, embora consideremos que seja preciso viabilizar análises mais proeminentes acerca do diálogo entre essas diferentes abordagens teóricas, algumas proposições podem ser iniciadas com a análise das relações entre os conceitos de epistemologia da prática e o conceito de ‘práxis’, amplamente debatido pela literatura e por referenciais críticos.

A epistemologia da prática no campo da educação: implicações e apropriações

Tardif e Moscoso (2018, p. 408) apontam que Donald Schön inaugura uma seara de análises nas ciências sociais que pode ser denominada de “giro reflexivo”, uma vez que considera a ideia de reflexão como elemento centralizador do pensar e do agir. Segundo os autores, as ideias de Schön ecoam em diversas correntes da filosofia, da epistemologia e das ciências humanas de modo geral, as quais foram constituídas entre as décadas de 1970 e 1980, apresentando implicações ampliadas e diversificadas em uma série de contextos.

A tese defendida por Tardif e Moscoso (2018) recai no fato de que, em que pese a importância do conceito de reflexividade e “profissional reflexivo” nas ciências humanas e na filosofia, o campo da educação apropriou-se dele, muitas vezes, de forma equivocada ou um tanto quanto superficial. Cabe ressaltar que boa parte da fundamentação do pensamento acerca da epistemologia da prática, sobretudo advinda da fundamentação de Schön e pós-schöniniana, advém de um certo desmembramento conceitual sobre os processos de reflexão (sejam antes, durante ou após o desenvolvimento das ações).

Nesse sentido, podemos considerar que, apesar das críticas sofridas por Schön, suas ideias foram muito frutíferas em termos da construção de novos paradigmas de pesquisas, estabelecendo as bases do desenvolvimento da compreensão da prática como lócus de construção, mobilização e transformação de saberes. Nesse direcionamento, Roldão (2007, p. 102), apesar de estabelecer críticas à “ênfase praticista, que tem dominado a cultura profissional dos professores”, reconhece também “a valia da epistemologia da prática enquanto iluminadora da sustentação nuclear do conhecimento profissional na reflexão antes, sobre, na e após a acção [sic]” (Roldão, 2007, p. 99).

Raelin (2007) afirma ser necessária uma nova epistemologia da prática, que acrescenta a práxis à educação em sala de aula, a fim de ajudar os alunos a desconstruir as estruturas e sistemas que incorporam seus ambientes sociais. Nessa mesma perspectiva, Ferry (1998), ao investigar as ligações entre experiência e prática reflexiva, aponta que a experiência, por si só, não indica que o educador seja um profissional reflexivo.

Beckett e Hager (2000) apontam que a epistemologia da prática apresenta inovações tanto conceituais quanto empíricas, estando alicerçada em cinco características: o contingente (ao invés de estudos exclusivamente formais), a prática (e não exclusivamente o conhecimento teórico), o processo (e não exclusivamente a assimilação dos conteúdos), o particular (ao invés do universal) e a afetividade e os domínios sociais (em vez de somente o domínio cognitivo). Essa orientação analítica contribui para os processos de tomada de decisão relacionados ao trabalho docente.

Tardif e Lessard (1999) contribuem para o desenvolvimento da compreensão de epistemologia da prática ao vinculá-la aos saberes dos professores. Os autores afirmam que esses saberes são, entre outras coisas, forjados no trabalho, estando ligados às tarefas do ensino, sendo interativos, sincréticos, plurais, heterogêneos, complexos, personalizados, existenciais, temporais, sociais, etc. Segundo os autores:

Essas características esboçam uma “epistemologia da prática do ensino” que tem pouco a ver com os modelos dominantes de conhecimento inspirados nas técnicas, na ciência positivista e nas formas dominantes do trabalho material. Esta epistemologia corresponde, acreditamos, àquela que provém de um trabalho que tem o humano como seu objeto e cujo processo de realização é fundamentalmente interativo, que convoca o trabalhador a se apresentar “em pessoa”, com tudo o que ele é, com sua história e sua personalidade, seus recursos e seus limites. (Tardif & Lessard, 1999, p. 403, tradução nossa, grifos nossos)

Tardif et al. (2001, p. 25) afirmam que a compreensão contemporânea vinculada à epistemologia da prática baseia-se no princípio de que a prática profissional se constitui como um lugar autônomo e original de formação. Para os autores, a prática implica certas determinações e tensões específicas que não são encontradas em outros âmbitos e que também não podem se reproduzir de forma “artificial”, seja no contexto da formação na universidade, seja em um laboratório.

Para Tardif (2012), a compreensão de epistemologia da prática deve estar no centro do debate em prol da profissionalização docente. Segundo o autor, no mundo do trabalho, a natureza dos conhecimentos distingue as ocupações, de forma que, no caso da educação, a profissionalização pode ser entendida como uma tentativa de reformulação dos fundamentos epistemológicos do ofício de professor, implicando em profundas alterações no âmbito da formação para o magistério.

Dessa forma, o conceito de epistemologia da prática ganha um salto qualitativo em termos de fundamentação, análise e proposições, a partir das conceituações elaboradas por Tardif (2012). O autor propõe uma definição de pesquisa, a fim de construir e delimitar um objeto de investigação baseado no compromisso com certas posturas teóricas e metodológicas. Nesse sentido, estabelece que essa epistemologia da prática pode ser compreendida pelo “estudo do conjunto dos saberes utilizados realmente pelos profissionais em seu espaço de trabalho cotidiano para desempenhar todas as suas tarefas” (Tardif, 2012, p. 255). Sendo assim, trata-se de uma postura de investigação que busca compreender como se desenvolve o processo de produção, mobilização e transformação dos saberes relacionados às ações profissionais dos professores. Ainda para o autor:

A finalidade de uma epistemologia da prática profissional é revelar esses saberes, compreender como são integrados concretamente nas tarefas dos profissionais e como estes os incorporam, produzem, utilizam, aplicam e transformam em função dos limites e dos recursos inerentes às suas atividades de trabalho. Ela também visa compreender a natureza desses saberes, assim como o papel que desempenham tanto no processo de trabalho docente quanto em relação à identidade profissional dos professores. (Tardif, 2012, p. 256)

A elucidação dos saberes relacionados ao trabalho dos professores apresenta implicações fundamentais em ao menos três âmbitos. São eles: a pesquisa, a formação e a prática profissional. No que corresponde à pesquisa, Tardif (2012) aponta que, em toda atividade profissional, é imprescindível que se leve em consideração o ponto de vista dos práticos, ou seja, de quem efetivamente realiza as ações profissionais. Isso porque são eles quem realmente sedimentam seu próprio trabalho e, por meio de suas experiências tanto pessoais quanto profissionais, constroem seus saberes, assimilando novos conhecimentos e competências, e desenvolvem novas práticas e estratégias de ação. Shulman (1987, p. 11, tradução nossa) é enfático ao afirmar que “uma das tarefas mais importantes da comunidade científica é trabalhar com os praticantes no desenvolvimento de representações codificadas da sabedoria pedagógica da prática dos professores habilidosos”. Sendo assim, os professores devem ser compreendidos como sujeitos do conhecimento, caracterizados por Tardif (2012) como possuidores de saberes específicos atrelados ao seu ofício.

No que corresponde à formação, a crítica ao modelo aplicacionista baseado na racionalidade técnica tem sido o mote da discussão de uma série de propostas de formação profissional alicerçadas na prática, tais como o modelo clínico proposto por Perrenoud (1997), cujo objetivo é a articulação entre teoria e prática, ou o delineamento do practicum adotado por Zeichner (1990), o qual propõe que a formação profissional deva ser baseada nas ações profissionais, formando assim práticos reflexivos, entre inúmeras outras propostas.

Dessa forma, a análise da epistemologia da prática pode contribuir com alterações curriculares nos cursos de formação profissional, de modo a permitir maior compreensão sobre as vicissitudes nas quais as intervenções profissionais estão imersas. Sem incorrer na visão de que a formação de professores seja um “meio miraculoso que permitiria ultrapassar os limites e as contradições do sistema” (Perrenoud, 1997, p. 94), é preciso considerar que, ao longo da prática, os professores levam consigo “toda uma bagagem de saberes provenientes de sua formação profissional, bagagem certamente incompleta, mas cujo peso não se pode desprezar” (Gauthier et al., 2013, pp. 302-303). Essa afirmação indica a necessidade da compreensão dos saberes mobilizados ao longo da prática nos cursos de formação de professores.

Uma das implicações desse processo refere-se a se pensar nos possíveis impactos acerca de uma política curricular alicerçada na perspectiva da epistemologia da prática. Certamente seriam necessárias alterações estruturais nos currículos de formação, para que a lógica disciplinar pudesse dar lugar a visões mais interdisciplinares e muito mais articuladas com o campo profissional. Os estágios curriculares supervisionados, por exemplo, ganhariam espaço de destaque nesse processo, ao longo de todo o curso (e não apenas após a primeira metade, conforme as regulamentações vigentes). Atividades de preceptoria, indução profissional e diálogo em articulação com profissionais já formados estariam muito mais presentes e, possivelmente, o “choque de realidade” destacado por muitos docentes no início de carreira, por exemplo, poderia ser dirimido ou mesmo equacionado em longo prazo. A própria articulação com o campo da pesquisa científica ganharia novos contornos, por meio de investigações mais voltadas a propostas reflexivas e colaborativas (pesquisando com os professores e não sobre eles, por exemplo).

Finalmente, a análise da epistemologia da prática apresenta implicações para a prática pedagógica, uma vez que pode desmistificar e trazer à tona visões ainda obscuras no que corresponde ao trabalho docente. Tal como Tardif (2012, p. 234) considera: “o trabalho dos professores de profissão deve ser considerado como um espaço prático específico de produção, de transformação e de mobilização de saberes e, portanto, de teorias, de conhecimentos e de saber-fazer específicos ao ofício de professor”.

Um dos possíveis desdobramentos se refere à contribuição no desenvolvimento da prática pedagógica, permitindo aos professores ter mais clareza de seu trabalho. Tal fato não deve, no entanto, ser visto de forma desarticulada de outros inúmeros condicionantes atrelados à prática, tais como a valorização profissional, o aumento de salários, uma carga horária de trabalho compatível e adequada, e outras condições de trabalho, entre outras questões.

Ainda com relação às implicações da epistemologia da prática nas ações de intervenção profissional, destacam-se ao menos dois apontamentos. O primeiro está relacionado à contribuição que tal aspecto pode oferecer ao processo de profissionalização do ensino, uma vez que permite a compreensão e definição de saberes que estão na base do repertório de conhecimentos peculiares ao ofício de professor (Gauthier et al., 2013).

O segundo está relacionado à possibilidade de tornar públicos os processos decisórios dos professores, os quais, de acordo com Gauthier et al. (2013), ficam muitas vezes restritos à esfera do julgamento particular. Ou seja, criar uma jurisprudência pedagógica que permita a democratização de ações e decisões cotidianamente realizadas, mas que, de outro modo, ficam confinadas ao âmbito individual, o que pode acontecer por meio da criação de comunidades de aprendizagem de professores (Cochran-Smith & Lytle, 1999).

A defesa da epistemologia da prática não corresponde, necessariamente, ao empobrecimento ou esfacelamento teórico-conceitual no âmbito da formação docente ou da pesquisa em educação, por exemplo, embora esta talvez seja uma das principais críticas a tal perspectiva. Ao criticarem o modelo de formação disciplinar e defenderem uma formação centrada na prática, Tardif et al. (2001) destacam que isso não deve significar a desvalorização dos saberes teóricos e científicos, e sim procurar entender de que forma eles podem ser articulados com a profissão. Para os autores:

Este deslocamento do centro de gravidade da formação inicial não significa que a formação dos professores se torne uma instância de reprodução de práticas existentes, nem que não comporte uma forte componente teórica. Este deslocamento significa mais que a inovação, o espírito crítico, a “teoria” devem ser tomadas em conta com os constrangimentos e as condições reais do exercício da profissão e contribuir para a sua evolução e transformação. Assim, a inovação, o espírito crítico e a “teoria” são ingredientes essenciais para a formação de um praticante “reflexivo”, capaz de analisar situações de ensino, reacções [sic] dos alunos, bem como as suas, e capaz de modificar simultaneamente o seu comportamento e os elementos da situação a fim de atingir os objectivos [sic] e os ideais que se propôs. Num certo sentido, um praticante “reflexivo” agaloado exerce um julgamento pedagógico de alto nível, que elaborou ao longo de toda a sua carreira. (Tardif et al., 2001, pp. 27-28)

A capacidade de realizar julgamentos é crucial na perspectiva da epistemologia da prática, uma vez que somente um arcabouço de teorias e conhecimentos científicos não é capaz, por si, de munir um profissional com competência suficiente para tomar as melhores decisões dentro das condições em que este está inserido. É justamente essa articulação entre os conhecimentos e a capacidade, habilidade e experiência da e na prática que permite ao professor exercer julgamentos que sejam eficientes e eficazes, condizentes com os contextos de atuação.

De forma resumida, consideramos que essa importância tem sido debatida e apoiada pela literatura, a exemplo de Schön (1983; 1987; 2000) e as formas de agir do praticante reflexivo em contextos de singularidade de valores e fortes incertezas. Perrenoud (2002) nos apresenta as competências profissionais que permitem ao professor tomar as melhores decisões em contextos de urgência e incerteza. Gauthier et al. (2013) ilustram essa visão a partir da analogia entre o professor e o juiz no desenvolvimento da prudência e da capacidade de realização de julgamentos. Beckett e Hager (2000) valorizam a centralidade da capacidade de julgar como base do aprendizado no local de trabalho. Finalmente, Tardif (2012) reconhece os vários tipos de juízo nos quais o professor se baseia, resultados que não se limitam a fatos e evidências, mas incluem as experiências e saberes. Esses e outros autores têm buscado valorizar essa perspectiva no campo educativo, embora o debate ainda esteja em processo de ampliação e constituição efetiva.

Considerações finais: epistemologia da prática no campo educativo e suas possibilidades

Por meio de uma análise crítica acerca do processo de pesquisa e produção de conhecimento no campo educativo, identificamos uma problemática latente: embora o conceito de epistemologia da prática tenha ganhado projeção nas últimas décadas, não se têm ainda muitos estudos que procuraram inventariar e analisar as formas com as quais tal constructo tem sido compreendido e nem quais os possíveis encaminhamentos para ele. Nesse sentido, por meio de um ensaio teórico, tivemos como principal objetivo, com este estudo, analisar o processo de constituição do constructo teórico da epistemologia da prática, sobretudo a partir de suas relações com o campo educativo. Buscamos, nesse ínterim, perspectivar as potencialidades e implicações desse conceito, seus desafios atuais e os possíveis direcionamentos, tendo em vista sua consolidação.

Conforme analisado no estudo, ao longo das últimas décadas, houve relativa efervescência no debate e nas proposições vinculadas ao conceito de epistemologia da prática, sobretudo advindas das fundamentações estruturadas inicialmente por Donald Schön e seus interlocutores. Essa ampliação apresenta ao menos duas grandes considerações. A primeira se refere ao fato de tais proposições advirem de um conjunto ampliado de correntes teóricas e filosóficas, nem sempre coerentes com os pressupostos inicialmente arrolados a elas. Dito de outro modo: é relativamente difícil encontrar coerências e consistências teóricas à medida que o uso conceitual de tal termo tem sido de certa forma pulverizado nas pesquisas em educação.

A segunda consideração, na esteira da primeira, se refere não apenas à diversificação de tais pontos de vista, mas também aos usos equivocados do termo “epistemologia da prática”, fato que tem empobrecido o debate e as reflexões acerca de suas potencialidades e limitações. A pulverização de autores e ideias pode ter ajudado na massificação do termo, o qual, atualmente, se insere em um conjunto de usos corriqueiros que precisam ser melhor desenvolvidos do ponto de vista de suas fundamentações e perspectivas. Assim, questionamos: todos que fundamentam suas reflexões a respeito do termo “epistemologia da prática” partem do mesmo ponto e abordam ideias relativamente próximas em termos de concepções paradigmáticas?

Além disso, podemos considerar que é preciso também uma ampliação das análises. Muitos autores têm debatido e criticado ideias vinculadas aos usos dos conceitos de epistemologia da prática e de profissional reflexivo, por exemplo. Todavia, tais críticas precisam ser absorvidas, assimiladas e debatidas pelos autores que investigam o campo, para que possam contribuir com a ressignificação teórico-conceitual crucial para sua reconfiguração epistemológica. É fundamental reconhecer o papel das críticas para que novas perspectivas possam ser adensadas ao arcabouço conceitual vinculado à epistemologia da prática.

Finalmente, considera-se que parte do debate que vem sendo travado no campo educativo e na interlocução com outros campos sociais, a exemplo do campo político, com as políticas públicas atualmente em voga, e também do campo científico, com os processos formativos e de produção de pesquisa, vem reconhecendo e valorizando o conceito de epistemologia da prática. O desenvolvimento de estudos e pesquisas tem se mostrado uma tônica que possivelmente vai ser ampliada nos próximos anos. A influência de tal conceito nas políticas públicas começa a se fazer presente de modo paulatino, assim como o aumento de estudos e pesquisas pode demonstrar maior conjectura analítica para com ele.

Desse modo, em termos de perspectivas, considera-se crucial que haja a continuidade e o desenvolvimento de estudos e pesquisas sobre o conceito de epistemologia da prática, tanto em estudos empíricos quanto em pesquisas com dados advindos de trabalhos de campo. Nessa conjuntura, o campo da formação de professores, por apresentar importância fundamental no processo de articulação entre os campos acadêmico/científico e da prática profissional (educativo), deve ampliar as compreensões conceituais para com o conceito de epistemologia da prática. Ignorar tal perspectiva pode contribuir para com a marginalização de um conceito que tem demonstrado potencial de contribuição com o desenvolvimento da prática pedagógica, da cultura profissional e da produção de saberes no campo educativo.

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Recebido: 24 de Janeiro de 2022; Aceito: 22 de Junho de 2022

Contribuição na elaboração do texto

Os autores contribuíram igualmente na elaboração do manuscrito.

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