SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.28Epistemology of practice in the field of education: challenges, possibilities and perspectivesChallenges of Portuguese language teaching in mainland China author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Share


Linhas Críticas

Print version ISSN 1516-4896On-line version ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.28  Brasília Jan./Dec 2022  Epub July 22, 2022

https://doi.org/10.26512/lc28202241214 

Ensaios

O currículo em espaços escolares e não-escolares: genealogia de uma pesquisa

Plan de estudios en espacios escolares y no escolares: una investigación genealógica

The curriculum in school and non-school settings: the genealogy of a research

Angélica Vier Munhoz1 
http://orcid.org/0000-0002-2644-043X

Morgana Domênica Hattge2 
http://orcid.org/0000-0002-4716-0410

Suzana Feldens Schwertner3 
http://orcid.org/0000-0003-2206-776X

Mariane Inês Ohweiler4 
http://orcid.org/0000-0001-6788-4902

1Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2009).

2Doutora em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (2014).

3Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2010).

4Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2014).


Resumo

O presente ensaio busca traçar uma genealogia, no sentido atribuído por Foucault, do percurso realizado pelo Grupo de Pesquisa Currículo, Espaço, Movimento (CEM), desde sua criação, em 2013, até 2021. Não se trata de narrar uma trajetória linear, mas destacar e demorar-se em algumas linhas emaranhadas, em alguns pontos de disruptura, em meio aos quais, o referido grupo vem construindo suas investigações e estudos. Além disso, propõe-se uma discussão teórica, apresentando os processos de compreensão e de apropriação de alguns conceitos. Desse modo, perpassam-se os estudos já desenvolvidos pelo grupo, bem como procura-se dar visibilidade a alguns dados que têm sido produzidos nos seus oito anos de trabalho.

Palavras-chave Genealogia; Currículo; Pesquisa

Resumen

El presente ensayo busca trazar una genealogía, en el sentido atribuido por Foucault, del recorrido realizado por el Grupo de Investigación Currículo, Espacio, Movimiento (CEM), desde su creación, en 2013, hasta 2021. No se trata de narrar un trayecto lineal, sino de destacar y demorarse en algunas líneas enredadas, en algunos puntos de ruptura, en medio de los cuales el referido grupo viene construyendo sus investigaciones y estudios. Además de eso, se propone una discusión teórica, presentando los procesos de comprensión y apropiación de algunos conceptos. De esta manera, traspasan los estudios ya desarrollados por el grupo, así como se busca dar visibilidad a algunos datos que se han producido durante sus ocho años de trabajo.

Palabras clave Genealogía; Plan de estudio; Investigación

Abstract

This essay aims to delineate a genealogy, in the sense attributed by Foucault, of the path traveled by Curriculum, Space, Movement Research Group since its creation, in 2013, to 2021. Rather than reporting a linear path, it highlights and lingers on some entangled lines, in some points of disrupture, in the middle of which the group has carrying out its investigations and studies. Furthermore, it proposes q theoretical discussion, presenting the processes of comprehension and appropriation of some concepts. Thus, the studies carried out by the group and some data produced along eight years of work are presented.

Keywords Genealogy; Curriculum; Research

Introdução

O presente ensaio objetiva apresentar a trajetória de um grupo de pesquisa que se dedica a estudar e a investigar o currículo em espaços escolares e não-escolares. Atuando desde 2013, o Grupo de Pesquisa Currículo, Espaço e Movimento (CEM), por meio de aberturas e disrupturas, vem promovendo a produção de conhecimento e o desenrolar de investigações, que envolvem os conceitos de genealogia, aprendizagem, ensino, currículo, aula, espaços escolares e não-escolares. O pensamento da Filosofia da Diferença, a partir dos autores Nietzsche (1998; 2005), Deleuze (2003; 2006), Deleuze e Guattari (1997) e Foucault (2002; 2005), é tomado como aporte teórico da investigação do Grupo de pesquisa. Por outra via, as discussões curriculares também se tornaram centrais para a construção do plano conceitual da pesquisa, sobretudo, as teorizações curriculares pós-estruturalistas, propostas por pensadores brasileiros, como Corazza (2001; 2012; 2013), Corazza e Tadeu (2003), Silva (2001), Gallo (2011; 2012), entre outros. As aproximações genealógicas com Foucault delinearam o método de pesquisa do Grupo CEM, porém a genealogia tornou-se um conceito importante a ser percorrido nos estudos do grupo. Desse modo, o objetivo do presente texto é tomar a genealogia enquanto procedimento teórico-metodológico para dar visibilidade ao que o Grupo CEM já produziu nesses oito anos de existência, na mesma medida em que tensionamos os fluxos e descontinuidades desse processo.

As questões centrais que têm mobilizado as pesquisas do grupo perpassam o entrelaçamento entre o aprender e o ensinar, processos de arte e de criação, presentes tanto em espaços escolares quanto nos não-escolares. Para além do viés genealógico da pesquisa, o grupo utilizou até o momento as seguintes ferramentas metodológicas: observações dos espaços institucionais conveniados ao grupo; entrevistas; diários de campo; narrativas e produções visuais.

Na sequência, na primeira seção, apresentamos um mergulho conceitual na genealogia enquanto metodologia de pesquisa, buscando mostrar de que forma o grupo operou com o método genealógico em seus estudos. Na segunda seção, procedemos à construção de um percurso genealógico para, ao final, tecermos algumas proposições acerca do pesquisar por entre espaços e movimentos.

Genealogia

Empreender um estudo de cunho genealógico numa perspectiva foucaultiana implica ressignificar a forma como tradicionalmente se constrói uma história em particular; requer um olhar atento para as relações de poder que se estabelecem em determinado campo de saber e exige sensibilidade o bastante para que se perceba a sutileza dos processos que instituem verdades e as tornam inquestionáveis. Desnaturalizar a forma como nos apropriamos dessas verdades, entendendo-as como parte de um contexto histórico e social mais amplo é uma das contribuições que um estudo genealógico pode nos legar: “A pesquisa genealógica parte do pressuposto de que as coisas, os discursos ou as verdades de uma época não têm origem, nem essência; sua constituição é marcada pela discórdia, pela dispersão” (Klaus et al., 2015, p. 669).

Para repensar o próprio conceito de origem e fundamentar o que compreendemos por genealogia, nos aproximamos de Michel Foucault (2005) e de parte dos escritos iniciais de Friedrich Nietzsche (1998; 2005), em especial, das obras Genealogia da Moral e Além do Bem e do Mal. O próprio jogo de mudanças e as possíveis rupturas pelas quais a linguagem passa constantemente aparecem nas ironias e nos diversos usos do termo origem, em suas diferentes versões na língua alemã, no estudo realizado por Nietzsche (1998; 2005). Ou seja, nas referidas obras, é possível ter uma noção do quanto estes termos não seguem uma construção linear. Em certa medida, poderíamos até considerar que, para fundamentar a crítica sobre a maneira como se fez e ainda se faz história, Foucault (2005) fez uma genealogia do trabalho de Nietzsche, ao buscar no uso dos termos que denotam a palavra origem, as suas diferentes significações e usos que perpassaram as obras do filósofo alemão.

Em Genealogia da Moral, Nietzsche (1998) utiliza a palavra Ursprung, que, inicialmente, poderia ser traduzida como origem, porém, em alternância com os termos abaixo, cujas traduções trouxemos para auxiliar: Abkunft: origem (de doença por exemplo); Entstehung: nascimento, formação, origem; Geburt: nascimento; Herkunft: proveniência, origem. Para Foucault, em Nietzsche, os termos Entstehung e Herkunft indicam o objeto próprio da genealogia. Embora frequentemente traduzidas por origem, ambas têm usos próprios. Herkunft encontra na proveniência sua utilização própria. Este termo designava, a princípio, “[…] a antiga pertinência a um grupo – o do sangue, da tradição, o que liga aqueles da mesma altura ou da mesma baixeza” (Foucault, 2005, p. 265), mas, na genealogia:

[…] longe de ser uma categoria da semelhança, tal origem permite ordenar, para colocá-las à parte, todas as marcas diferentes […], permite reencontrar, sob o aspecto único de uma característica ou de um conceito, a proliferação dos acontecimentos através dos quais (ou graças aos quais, contra os quais) eles se formaram (Foucault, 2005, p. 265).

Nietzsche também relacionou a palavra Erbschaft (herança) com o termo Herkunft, estabelecendo assim uma relação com a construção da história, como algo que não é dado ou está pronto em sua essência, sua origem única e resguardada. Assim também o corpo, denominado por Foucault (2005, p. 267) como uma […] “superfície de inscrição dos acontecimentos […], lugar de dissociação do Eu […] volume em perpétua pulverização […]”, é um objeto construído e/ou em construção, constituído de vasta herança.

O termo Entstehung, embora no dicionário conste como – nascimento, formação, designa antes a emergência, o ponto de surgimento. “A emergência é, portanto, a entrada em cena das forças; é sua irrupção, o salto pelo qual elas passam dos bastidores ao palco, cada uma com o vigor e a jovialidade que lhe é própria” (Foucault, 2005, p. 269). Pensar na emergência dos acontecimentos implica pensar as relações de poder que mobilizam determinados discursos e práticas em vez de outros. Assim, “[…] a análise da Entstehung deve mostrar seu jogo, o modo pelo qual elas [as forças] lutam umas contra as outras, ou o combate que travam diante de circunstâncias adversas” (Foucault, 2005, p. 268). Numa tentativa de diferenciação, Foucault define a proveniência como “[…] a qualidade de um instinto, sua intensidade ou seu desfalecimento e a marca que ela deixa em um corpo”, enquanto a emergência “[…] designa um lugar de confrontação” (Foucault, 2005, p. 269).

O problema inicial de Nietzsche transformou-se em outro. Neste ponto, podemos perceber uma relação profunda com a maneira como Foucault faz pesquisa, quando o autor lança a seguinte questão: “Sob que condições o homem inventou para si os juízos de valor ‘bom’ e ‘mau’? Qual o valor que eles têm?” (Nietzsche, 1998, p. 9). Aqui ressaltamos a expressão “sob que condições”, bem como a importância desta pergunta para nós pesquisadores, no sentido de questionar as condições de possibilidade que propiciam que emerjam determinados discursos e práticas.

É preciso deixar claro que Nietzsche, embora tenha proposto, primeiramente, ocupar-se com o problema da origem dos preconceitos morais, opunha-se à pesquisa da origem. Seu interesse concentrava-se em investigar como os conceitos de bom e mau (que em suas obras são intercalados também pelas expressões bem e mal) passaram a ter a conotação dada a elas, pela sociedade do seu tempo (conotação que perdura em determinadas instâncias até hoje). Ou seja, sua busca não foi a procura da essência pura e primeira do bem e do mal.

Pensar a genealogia através da ótica foucaultiana é assumir, portanto, que não existe a “[…] essência exata da coisa, sua mais pura possibilidade, sua identidade cuidadosamente guardada em si mesma, sua forma imóvel e anterior a tudo o que é externo, acidental e sucessivo” (Foucault, 2005, p. 262). Para muitos autores e pensadores, a origem seria o lugar da verdade. Contudo, posto que a verdade também foi inventada, vemos que esta ideia perde a sua validade. Ao fazer genealogia, é preciso “[…] deter-se nas meticulosidades, nos acasos dos começos” (Foucault, 2005, p. 264).

Para Foucault (2002, p. 171), um dos princípios da genealogia é “[…] ativar saberes locais, descontínuos, desqualificados, não legitimados, contra a instância teórica unitária que pretenderia depurá-los, hierarquizá-los, ordená-los, em nome de um conhecimento verdadeiro”. Assim, uma ação necessária entre as atividades desenvolvidas pelo nosso grupo de pesquisa foi a de buscar articular teorizações tradicionais dos estudos de currículo com textos, de certa forma, marginais, longe de serem unanimidade na teorização educacional. Em certo sentido, os autores vinculados a uma vertente pós-estruturalista, na teorização curricular, nos sustentam na problematização de algumas formas mais correntes de compreender o currículo, abrindo espaço para uma criação mais particular do conceito, vinculada aos espaços de pesquisa e às suas conexões locais.

Genealogia do Grupo de Pesquisa Currículo, Espaço, Movimento (CEM)

O Grupo de Pesquisa CEM, vinculado ao Programa de Pós-graduação em Ensino, da Universidade do Vale do Taquari (Univates), foi criado em março de 2013. Financiado por esta instituição, o Grupo CEM desenvolveu três projetos institucionais de pesquisa, dos quais derivaram outros subprojetos. De 2013 a 2016, foi desenvolvido o macroprojeto institucional – O Currículo em Espaços Escolarizados e Não- escolarizados no Brasil e na Colômbia: Diferentes Relações com o Aprender e o Ensinar – o qual consistia em investigar o currículo em espaços escolares e não-escolares e suas relações e cruzamentos com os movimentos escolarizados e não-escolarizados, tomando como campo de investigação três escolas e dois museus. Com apoio do Edital Universal do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), foi desenvolvido o primeiro subprojeto de pesquisa (2013-2016), cujo objetivo foi investigar o currículo em diferentes espaços escolares e não-escolares e seus movimentos escolarizados e não- escolarizados. Alguns resultados dessas investigações podem ser encontrados em Munhoz e Costa (2014), Munhoz e Hattge (2015), Schwertner et al. (2016), Munhoz et al. (2016a), Schwertner e Munhoz (2017), entre outras produções. Na sequência, exploramos algumas categorias de análise que compõem a trajetória do grupo de pesquisa.

Currículo

O currículo, desde o início, foi uma noção importante a ser estudada e investigada pelo Grupo CEM. Desde logo, situamos a concepção de currículo a que nos reportamos na perspectiva pós-estruturalista. Nessa perspectiva, Corazza e Tadeu (2003) afirmam ser impossível a definição de currículo, bem como as problematizações das escolhas e intenções que circunscrevem um texto curricular. Desse modo, abandona-se a ideia de uma definição de currículo e foca-se na sua intencionalidade, a partir da qual, é possível perceber que se trata sempre de um discurso curricular, que fornece uma maneira, dentre outras, de formular, interpretar e atribuir sentidos ao mundo, corporificando instituições, saberes, normas, prescrições, regulamentos, programas, valores e modos de subjetivação (Corazza, 2001). Na esteira dessas reflexões, é possível perceber que cada concepção curricular é um discurso que constituiu o objeto currículo, emprestando-lhe um sentido próprio; portanto, não há uma definição, uma essência, um modo único de operar com o currículo, ou seja, não é possível responder à questão: o que é afinal um currículo? (Silva, 2001). Com efeito, na perspectiva pós-estruturalista, o currículo passa a ser entendido como um território tensionado por relações de poder e por disputas pela legitimidade dos processos de significação que produzem sujeitos, verdades e realidades.

As aproximações com a genealogia também constituíram, desde o início, o aporte teórico-metodológico do Grupo CEM. Acredita-se que pensar genealogicamente as relações acerca do currículo significa, antes de qualquer outra coisa, abrir mão de qualquer hipótese transcendental que viria a justificar e tornar absoluto o caráter de determinados valores, sejam eles quais forem. Conforme Coutinho et al. (2016, p.22), a genealogia desloca o olhar para “[…] as rupturas, os impasses, as reconfigurações que nos permitem reconhecer as práticas pelas quais determinados saberes emergem na cultura e no espaço”. No caso da nossa investigação, espaços escolares e não-escolares tornaram-se o campo empírico do Grupo CEM desde o início, incluindo escolas, museus e organizações não-governamentais (ONGs). A educação não formal, praticada em espaços não escolares, é compreendida por Gohn (2020, p. 13) como:

[…] um conjunto de práticas socioculturais de aprendizagem e de produção de saberes, que envolve organizações/instituições, atividades, meios e formas variadas, assim como uma multiplicidade de programas e projetos sociais”. Nessa medida, ela não substitui a escola, “não é mero coadjuvante para simplesmente ocupar os alunos fora do período escolar. A educação não formal tem seu próprio espaço – formar em qualquer idade, classe socioeconômica, etnia, sexo, nacionalidade, religião etc., para o mundo da vida.

Inicialmente, três foram os espaços escolares – uma escola em Bogotá, Colômbia, uma escola pública na cidade de Lajeado, Rio Grande do Sul (RS) e uma escola Ambiental na cidade de Ilópolis, RS; e dois espaços não-escolares – uma ONG em Lajeado, RS e um museu de arte em Porto Alegre, RS.

Como ressaltam Crizel e Hattge (2015), dividir os espaços em escolares e não-escolares não implica estabelecer configurações fixadas em movimentos que aconteceriam apenas nestes espaços, restritos a eles. Para as autoras:

O espaço escolar refere-se às instituições formais de educação que são dirigidas e organizadas a partir de diretrizes nacionais; já os espaços não-escolares compreendem outras organizações, que não possuem objetivos formais de ensino, podendo este acontecer na rua, em ONGs, em projetos sociais, em teatros, museus, entre outros. Já os movimentos compreendem os modos de ocupar os espaços (Crizel & Hattge, 2015, p. 213).

À medida que os estudos avançavam, foi possível realizar uma mudança conceitual na maneira de pensar os espaços e movimentos curriculares, compreendendo os “espaços” como escolares e não-escolares e os “movimentos” como escolarizados e não-escolarizados. Desse modo, entendemos como movimentos escolarizados e não-escolarizados a maneira de habitar esses espaços. Nessa perspectiva:

Os movimentos escolarizados envolveriam aspectos que estão colados à “forma-escola”, modelo instituído na Modernidade, tais como o controle do tempo, espaço e conteúdos e a relação professor-aluno. Nessa mesma lógica, os movimentos não-escolarizados seriam aqueles que se distanciam desses modos de funcionamento, desviando dos modelos disciplinarizantes (Roos & Munhoz, 2015, p. 199).

Assim, misturar esses espaços e movimentos tinha por finalidade compreender de que modo o currículo pode compor-se e cruzar-se com novas práticas, tecidas por outras relações de saber e por novas experimentações. Como ressaltaram Schwertner et al. (2017), os espaços nem sempre remetem aos movimentos que ali são realizados. Foi possível identificar, por meio dos estudos do grupo, que movimentos escolarizados aconteciam em espaços não-escolares, assim como movimentos não- escolarizados apareciam em espaços escolares.

Em 2014, os estudos teóricos foram retomados e elaborou-se um roteiro de investigação e de entrevistas com o intuito de facilitar a produção de dados acerca das dimensões do currículo nos espaços de investigação. A noção de espaço liso e estriado, de Deleuze e Guattari (1997), passou a ganhar força nos estudos do grupo, além da noção de nomadismo. Para os autores, os espaços lisos e estriados “[…] só existem de fato graças às misturas entre si: o espaço liso não para de ser traduzido, transvertido num espaço estriado; o espaço estriado é constantemente revertido, devolvido a um espaço liso” (Deleuze & Guattari, 1997, p. 180). Passa-se ora do liso ao estriado, ora do estriado ao liso, em movimentos que são inteiramente diferentes, que, no entanto, se encontram e se misturam (Deleuze & Guattari, 1997). Nessa medida, “[…] o currículo pode ser entendido como uma máquina de estado, instauradora de espaços estriados e sedentários, ou uma máquina de guerra, produtora de espaços lisos e nômades” (Munhoz, 2016, p. 42).

Formação estético-artística e cultural

O ano de 2015 iniciou com a necessidade de rearranjar os espaços de investigação da pesquisa. Como a ONG já havia encerrado as atividades, decidimos ocupar-nos apenas com escolas e museus, como espaços escolares e não-escolares, respectivamente. Também encerramos a investigação com a escola da Colômbia e mantivemos as duas escolas, já citadas, do Rio Grande do Sul, além do museu de arte de Porto Alegre, Fundação Iberê Camargo (FIC) e incluímos um novo museu – Museu de Arte do Rio (MAR), Rio de Janeiro (RJ).

Obviamente, a opção por investigar o currículo em espaços não-escolares e, sobretudo, por esses espaços não-escolares, constituídos de duas instituições de arte, não é neutra. Ou seja, acreditamos que, sendo tais espaços atravessados pela arte, são capazes de produzir deslocamentos, recusando-se às fixações, que, de algum modo, estratificam os movimentos do currículo. Desse modo, “[…] talvez possam configurar-se como o local por excelência de tais insultos questionadores, articulados pelo sem-resposta” (Munhoz et al., 2016b, p. 380).

Contudo, de forma alguma, afirmamos que os espaços não-escolares são sinônimos de deslocamentos e de movimentos curriculares mais flexíveis, pois as instituições, de modo geral, são capturadas por movimentos escolarizantes. A aproximação com escolas e museus, enquanto espaços de investigação da pesquisa, nos permitiu problematizar o currículo, seus movimentos pedagógicos, estratificações e rupturas, já que “[…] as fronteiras que definem o escolar e o não-escolar são frequentemente colocadas em questão, ressituadas e ressignificadas por movimentos escolarizados e não-escolarizados, que nos colocam diferentes questões no decorrer da pesquisa” (Munhoz & Hattge, 2015, p. 1778). Assim:

[…] a simples distinção entre escolar e não-escolar não parece ser suficiente para garantir tal problematização, uma vez que carrega consigo a pressuposição de que o escolar, com as normas que o governam, não traz consigo as forças necessárias a possíveis transmutações – e, por via inversa, a crença de que quaisquer esforços práticos de questionamento aos modelos escolares instituídos garantiriam a obtenção de um espaço livre de regulações (Munhoz & Costa, 2014, p. 354).

A reorganização da equipe em dois grupos - Grupo escola e Grupo museu-, a partir de 2016, permitiu que as análises resultantes da pesquisa apontassem para as seguintes percepções: a) o modelo curricular disciplinar e escolarizante que nasceu na Modernidade ainda se faz presente no interior de muitas instituições educativas; b) o que define o quanto um currículo é mais ou menos escolarizado são os seus movimentos e não a forma do espaço, de modo que um museu convencional pode ser mais escolarizado do que uma escola; c) os espaços atravessados pela arte são capazes de produzir deslocamentos, recusando-se às fixações que estratificam os movimentos do currículo.

A partir dessas análises, no final de 2016, o grupo percebeu a necessidade de aprofundar alguns temas relativos à pesquisa, o que resultou na publicação do livro Currículo, Espaço, Movimento: Notas de Pesquisa. Essa obra, além de compilar os resultados produzidos a partir dos dois grupos (escolas e museus), propôs um exercício de escrita criadora, buscando intercessores para pensar o currículo. Diversas matérias artísticas inundaram os estudos realizados pelo grupo de pesquisa e encontros marcantes foram compostos por meio da escrita. A dança (Munhoz, 2016), a música (Costa, 2016; Costa et al., 2016), as artes plásticas (Schwertner, 2016; Costa, 2016) atravessaram as discussões sobre o currículo, propondo articulações entre a arte e a pesquisa.

Articulado à arte, o Grupo CEM criou, em 2016, o projeto Transvisões: Aquarela, Nanquim e Pintura Tridimensional, cujo objetivo foi propor três oficinas com artistas, para os professores de oito escolas da educação básica do município de Lajeado, propiciando-lhes a experiência estética, por meio da articulação entre o campo artístico e educacional, além de instrumentalizá-los a trabalhar com materiais e propostas pedagógicas vivenciados nas oficinas.

Ainda, vinculado ao Grupo de Pesquisa CEM, a partir de 2013, criou-se o Projeto de Extensão Formação Pedagógica e Pensamento Nômade, cujo objetivo consistia em propor atividades de extensão através de uma pedagogia comprometida com a experimentação, com a formação estético-artística e cultural, com o exercício de novas maneiras de aprender e ensinar. Em abril de 2015, o Grupo CEM, em conjunto com o referido projeto de extensão, promoveu o I Seminário Nacional Formação Pedagógica e Pensamento Nômade: Experimentações Curriculares, com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), que reuniu 220 participantes. Em abril de 2017, foi realizada a segunda edição, intitulada II Seminário Nacional e I Seminário Internacional Formação Pedagógica e Pensamento Nômade: Currículo, Criação e Heterotopias, com apoio da CAPES e CNPq, que reuniu aproximadamente 500 participantes. Em novembro de 2020, de modo virtual, foi realizado o II Seminário Internacional e o III Seminário Nacional Formação Pedagógica e Pensamento Nômade: Ensino, Docência e Criação, que contou com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (FAPERGS), com 1001 participantes e 204 trabalhos apresentados nos Grupos de trabalhos.

Além disso, anualmente, o Grupo CEM propõe um seminário regional, aberto aos professores e gestores de escolas da região, estudantes das licenciaturas e estudantes e professores do Programa de Pós-Graduação em Ensino da Univates e aos demais interessados.

Mudanças de foco na pesquisa

Em 2017, iniciou-se uma nova pesquisa institucional, cujo foco foi apostar nos modos como os espaços escolares e não-escolares vêm produzindo práticas curriculares - educativas e artísticas -, em meio aos processos de ensinar e aprender. Os dois espaços de arte (FIC e MAR), cujas parcerias com o Grupo de pesquisa CEM iniciaram em 2014 e 2015, respectivamente, requeriam um olhar mais intensivo para os modos como operam com os processos de aprender e ensinar. Tais modos se efetuam por meio de suas práticas de formação de mediadores/educadores, visitas mediadas, oficinas, desenvolvimento de materiais didáticos.

Por outra via, as escolas envolvidas no campo empírico da pesquisa também mereciam ainda uma atenção mais minuciosa, o que exigia debruçar-se sobre o processo de escolarização e buscar entender os modos de ensino e de aprendizagem que ali se desdobravam. Era um desafio pensar num currículo escolar atravessado por práticas educativas permeadas pela criação e pela experimentação, ou seja, práticas mais artísticas e desafiadoras. Para tanto, os mesmos referenciais teóricos foram mantidos nesse novo desdobramento da pesquisa.

A partir daí foram criadas três linhas de pesquisa: a) Aprendizagem, Diferença e Inclusão; b) Aprendizagem, Pensamento e Criação; c) Processos de Subjetivação em Práticas Educativas e Artísticas. Os estudos e investigações de cada grupo de trabalho produziram estudos, discussões, novos olhares sobre o campo empírico. Nesse ano de 2017, também foi publicado o segundo livro do Grupo CEM, chamado Currículo, Espaço, Movimento: verbetes, ensaios poéticos & outras experimentações. Tal obra proporcionou um espaço para a divulgação dos resultados da pesquisa no ano de 2017, além de ocupar-se de apresentar as experimentações literárias e artísticas dos pesquisadores e bolsistas, incluindo ensaios e poesias produzidos em meio à investigação.

Também houve novas publicações, tais como Schwertner e Munhoz (2017); Schonffeldt e Munhoz (2017); Díaz e Munhoz (2018; 2019); Munhoz et al. (2018); Camargo et al. (2020); Munhoz et al. (2020); Becker et al. (2020); Ribeiro et al. (2020); Fiorin e Munhoz (2020), entre outros. Como o Grupo CEM está vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Ensino, também estão sendo produzidas dissertações e teses, em meio aos estudos e investigações que vêm sendo realizados pelo Grupo.

Vinculados a esta segunda pesquisa institucional, iniciada em 2017, outros cinco subprojetos foram e estão sendo desenvolvidos concomitantemente, quatro deles aprovados por editais externos. Além disso, novas parcerias se desenharam, para além dos estudos e investigações, já em andamento. Abaixo, destacamos os subprojetos.

a) O projeto Aprender e Ensinar em meio a Práticas Curriculares Educativas e Artísticas (2018 - 2021), aprovado pela FAPERGS (2017a), desenvolveu objetivos muito próximos ao projeto Institucional da Universidade do Vale do Taquari (Univates), qual seja, compreender o modo como os referidos espaços escolares e não-escolares vêm articulando os seus currículos, operando com os processos de ensinar e aprender. Em relação aos espaços de investigação, alguns foram mantidos do antigo projeto institucional e outros foram agregados.

b) Com o objetivo de internacionalização da pesquisa, o Grupo CEM firmou um convênio com a Facultad de Ciencias de la Educación de la Universidad de Lleida, a qual investe numa formação de professores que ocorre na intersecção da educação com a arte. Esta parceria serviu de motivação para o encaminhamento do projeto de pesquisa Experimentações Curriculares na Formação de Professores: a Proposta Pedagógica da Universitat de Lleida (UdL), aprovado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (2018). O referido projeto, em execução no período de 2019 a 2022, tem como propósito investigar a experiência que vem sendo realizada por esta instituição no que tange à formação de professores para a educação primária. A proposta, conhecida como Zona Baixa, foi criada em 2009, tendo como características a experimentação como possibilidade de irrupção da educação e a arte contemporânea como habitabilidade pedagógica. Tais premissas consistem em pensar a formação fora dos lugares seguros, da linearidade existente no exercício docente, provocando a experimentação de/em outros lugares, materiais, sentidos (Monclús, 2017). Essas parcerias trazem ar fresco ao CEM e nutrem a vontade de saber, de conhecer, de experimentar, de produzir novos movimentos.

c) Outro projeto, intitulado Inclusão Escolar: um Itinerário de Formação Docente, aprovado pela FAPERGS (2017b), se propôs a voltar o olhar para os professores que atuam na educação básica, analisando de que forma os professores da rede pública de ensino de Lajeado compreendem o processo de inclusão escolar e suas implicações no cotidiano da escola, além de promover formação em serviço para as escolas participantes da pesquisa. Foram realizadas oficinas com produção escrita por parte dos professores e, posteriormente, grupos focais com uma amostragem dos participantes das oficinas. O projeto (2018-2020) buscou oportunizar espaços de manifestação dos professores acerca de suas compreensões sobre a temática da inclusão, analisar os entendimentos dos professores acerca da inclusão e suas implicações no cotidiano da escola a partir de escritas livres produzidas em oficinas de formação e contribuir na construção de um itinerário de formação docente para os desafios que a inclusão escolar impõe diariamente ao cotidiano da escola.

d) O projeto de pesquisa Procedimentos didáticos e a reinvenção de arquivos na docência (2019 - 2022), aprovado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (2018), tem como objetivo analisar como os professores da Educação Básica de uma das escolas parceiras da pesquisa[5] planejam suas aulas na medida em que reinventam procedimentos didáticos, a partir dos arquivos (textos e conteúdos) existentes. Com o desenvolvimento desse projeto, busca-se afirmar o quão potente é o ofício docente, contrariando o discurso de uma prática docente transmissora do texto de partida, ou seja, reprodutora de um saber original. Tal reversão implica a problematização do texto como imutável, estável e, sobretudo, imune às práticas de leitura e de escrita dos arquivos.

e) Um quinto subprojeto desenvolvido, intitula-se Escola, cinco anos depois: Olhares de Egressos. Iniciado em 2020, o projeto, previsto para três anos, consiste em analisar o olhar de egressos da Escola Básica acerca dos efeitos da instituição escolar em suas vidas, identificando suas trajetórias e problematizando as suas diferenças e singularidades. Espera-se, como resultados, a ampliação da produção científica referente à trajetória de egressos do Ensino Médio e o aumento de discussões acerca das juventudes brasileiras, suas relações com a escola e com a formação, contribuindo com subsídios para a elaboração de políticas públicas para o Ensino Médio.

O ano de 2018 também iniciou com a inclusão do Grupo CEM na Rede de Pesquisa Escrileituras da Diferença em Filosofia-Educação, coordenada pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGEDU/UFRGS), que integra grupos de pesquisa de 15 universidades: Universidade de São Paulo (USP), Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-rio-grandense (IFSUL), Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Universidade de Caxias do Sul (UCS), Universidade Federal do Ceará (UFC), Universidade Vila Velha (UVV), Universidade Federal de Pelotas (UFPEL), Universidade Federal do Paraná (UFPR), Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Universidade Federal de Sergipe (UFS), Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS), Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA), Universidade de Buenos Aires (UBA), Univates. Em 2019, o Grupo CEM também passou a integrar a Rede de Investigação em Inclusão, Aprendizagem e Tecnologia em Educação (RIATTE), que agrega as seguintes universidades: Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), Univates, UFRGS, Universidade Luterana do Brasil (ULBRA), Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), UERGS, Universidade Pedagógica Nacional (UPN). Além desses, mais dois espaços de arte foram agregados como campo empírico do Grupo de Pesquisa CEM: a Fundação Vera Chaves Barcellos (FVCB), de Viamão/RS e o Serviço Social do Comércio (SESC) – Lajeado, RS.

Em 2019, o Grupo lançou uma proposta pedagógica, intitulada Objetos de Pensar, com o objetivo de criar perguntas/questões/indagações/problematizações, que coloquem o pensamento a se mover, saindo dos lugares comuns, dos clichês, das coisas já ditas e pensadas no campo educacional. Por meio de um edital de inscrição, a primeira edição, em 2019/2020, contou com a participação de estudantes de graduação e de pós-graduação, docentes, artistas e bolsistas, que produziram 50 objetos de pensar, publicados no livro Objetos de Pensar: Exercícios para a Docência, que também foram levados para uma exposição, entre outubro e dezembro de 2019, no SESC em Lajeado, RS. Dessa primeira edição, dezesseis objetos de pensar foram experimentados em trinta e duas oficinas, realizadas em escolas e universidades, com estudantes e professores de ensino básico, ensino superior e pós-graduação, além da produção de 10 artigos científicos. O sucesso dessa proposta nos levou à segunda edição. Em meio ao contexto pandêmico, causado pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2), lançou-se a proposta Objetos de Pensar na Pandemia, com 32 objetos inscritos, o que resultou na publicação do e-book Objetos de Pensar na Pandemia: Exercícios para Indagar/Perdurar a Docência.

Em 2021, despontou um novo projeto institucional, que buscou expandir e aprimorar o olhar para a aula, a docência e os processos de ensinar e aprender - elementos que configuram a prática de um currículo. Em relação à aula, trata-se de tomá-la como um modo de pensar/fazer, a partir de uma prática de criação. Mas, o que seria pensar e fazer uma aula perspectivada pela criação? Como se configura uma aula enquanto prática de criação, em meio aos processos de ensinar e de aprender? Perfazem-se aqui três dimensões de uma aula: a) Aula como um conjunto de conteúdos programáticos a serem ensinados, espaço privilegiado do ensinar e aprender, organização de metodologias, didáticas com vistas à aprendizagem de habilidades e competências. b) Aula como espaço relacional entre sujeitos e objetos, entre sujeito e sujeito. Nesse modo de pensar a aula, trata-se de um espaço onde as coisas não estão dadas de antemão. Aluno, professor, currículo, matéria de ensino tomam a forma de relações e só existem na medida em que tais relações vão sendo construídas. c) Aula como lugar de criação. Nesta prática, uma aula consistiria num modo de trabalhar determinada matéria de estudos em um espaço-tempo circunscrito. Pode-se dizer que essa relação envolve determinadas táticas: por uma via, trata-se do modo como o professor escolhe seus materiais, rearranja-os para cada aula, coloca-os sobre a mesa (Larrosa, 2018) e oferece-os aos estudantes, fazendo a matéria circular de maneira a torná-la pública.

Nessa terceira perspectiva, a aula é um trabalho de criação do professor. Então, a aula não se justifica com o ensinar conteúdos referentes a uma disciplina, reproduzi-los, transmiti-los, mediá-los. Também não é o lugar, tão somente, do ensino e da aprendizagem de conteúdos, competências ou habilidades que servem ao mercado. A aula é trabalho de pesquisa, exercício de pensamento, atividade de estudo e de criação. Em meio a esses movimentos, o professor cria a sua aula, a ensaia e a oferece aos estudantes, sendo o mediador entre as pessoas e o mundo (Larrosa, 2018). Nesse sentido, ensina aos estudantes, o exercício de educar o olhar, de mobilizar os sentidos, de direcioná-los para uma determinada atenção, o que exige repetição, concentração e prática, a fim de abrir-lhes um mundo de signos. Assim, mostra-lhes o quanto é necessário abrir mão do olhar disperso, com o intuito de desenvolver a capacidade de dar atenção a alguma coisa. Além disso, ensina-os a sustentar esse olhar, a manter e a aprimorar essa atenção (Larrosa, 2018). O autor ressalta, nesse processo, o estilo do professor, que, mais do que por uma forma ou aspecto, caracteriza-se pelo seu movimento “[…] ou, talvez, melhor, a forma como produz um movimento que não é apenas seu, mas o dos textos” (Larrosa, 2018, p. 382). O instante da aula é então privilegiado e apontado na sua imprevisibilidade: o aqui-e-agora do momento impede o ato de seguir à risca roteiros e planejamentos - no encontro com os outros (estudantes, textos, movimentos da aula), a criação se intensifica. Retomando as três dimensões de uma aula, poderíamos dizer que as duas primeiras dimensões sempre estão presentes e talvez não seja possível desconsiderá-las.

Esta terceira dimensão, objeto de estudo deste projeto, trata das potencialidades que envolvem cada aula, daquilo que uma aula poderá vir a ser, enquanto dispositivo de uma prática criadora. Essa terceira dimensão de uma aula talvez receba uma força maior ao nos depararmos com a pandemia, causada pelo SARS-CoV-2, que faz com que, inesperadamente, a aula se torne uma experiência radicalmente diferente. Planejar e realizar aulas remotas, através do uso de tecnologias da informação e comunicação, implicou uma profunda transformação, não apenas do espaço e do tempo da aula, mas também das práticas pedagógicas do professor. A presença da voz, da escrita e até da imagem da tela, sem o corpo presente, nos obrigaram a construir outras gestualidades frente a uma aula, constituindo-se num desafio. Autores como Inés Dussel (2020), Morgado et al. (2020), Santos (2020) e Narodowski (2020), em publicações recentes, vêm problematizando a educação e o ensino em tempos de pandemia, levando-nos a pensar sobre as dimensões da aula. Se já não podemos estar todos juntos na mesma sala, como inventar a aula?

Diante dessas inquietações, lançaram-se as seguintes problemáticas de pesquisa: de que modo a aula, a docência, o ensino e a aprendizagem estão sendo produzidos/produzem possibilidades de criação? O que está sendo dito e visto no campo da aula, do ensino e da docência? Que outras formas de aula/ensino e aprendizagem estão sendo produzidas a partir da pandemia? Como pensar a aula enquanto um lugar de criação? Tais perguntas estão sendo mobilizadas em discussões realizadas no Grupo CEM, por meio de três Grupos de Trabalho (GTs), os quais, considerando essa nova temática, foram recriados, denominando-se: GT1 – Ensino e Diferenças; GT2 – Arquivo, Docência e Criação; GT3 – Aprendizagem, Docência Inventiva e Educação a Distância. Todos os GTs estão integrados à temática central e aos referenciais teóricos e metodológicos deste novo projeto institucional, lançando diferentes olhares e recortes para a presente pesquisa.

Considerações finais

Considerando que os estudos e pesquisas do Grupo CEM partem de um enfoque genealógico foucaultiano, certamente não se busca perseguir uma contextualização supostamente globalizante e generalizável das temáticas investigadas, nem mesmo partir em defesa de uma certa perspectivação dos seus temas de estudos. Também não há, ao modo de Foucault, nenhuma pretensão de conduzir os resultados da investigação a uma suposta verdade ou a interpretar as fontes analisadas, mas colocá-las em proximidades, conjugá-las, buscar compreender as suas continuidades e descontinuidades. Nesse sentido, Aquino (2017, p. 686) nos ajuda a pensar, ao afirmar que:

Os estudos foucaultianos na educação, pelo fato de não propiciarem soluções, nem regeneradoras nem deletérias, para a prática docente, não se prestam nem a induzir, nem a censurar propostas pedagógicas x ou y, uma vez que a crítica aí almejada carece de ambição valorativa. É algo definitivamente distinto a que ela aspira.

Compreende-se que o Grupo CEM já possui um arquivo consistente de produções (livros, artigos científicos, trabalhos apresentados em eventos nacionais e internacionais), resultante de seus estudos e investigações. Disso decorre o propósito deste artigo - dar visibilidade ao arquivo produzido, por meio da genealogia dos seus oito anos de percurso.

Até o momento, podemos concluir que são as experiências curriculares que podem nos ajudar a experimentar a sua capacidade de produzir uma educação pela força da heterogeneidade e da diferença. Ou seja, o que interessa são “[…] os modos como habitamos os espaços e o quanto os seus movimentos são colocados em variação contínua” (Munhoz et al., 2016c, p. 15). Assim, se, por um lado, um currículo pode aprisionar as forças inventivas, por outro, é capaz de produzir devires e intensidades. Um currículo pode ser um programa que visa a atingir resultados, um roteiro de execuções que se encontra associado às práticas disciplinares e escolarizantes ou pode ser a criação de si e, ao ser colocado em movimento, desescolarizar: “[…] currículo que sangra, que respira, que dorme, que se enverga, pesado das labutas diárias do cotidiano (não apenas) escolar. Vai sendo moldado à mão, de forma artesanal, meticulosa, ganha requintes de obra de arte” (Schwertner, 2016, p. 78).

Tais linhas seguem em movimento no Grupo CEM. Cortando o espaço do currículo, da aula, do ensinar e do aprender, desenhando traços singulares, transversalizando a heterogeneidade dos elementos e dos trajetos, as linhas conectam-se a outras experimentações, que alimentam o desejo, nutrem a vontade de saber. E, na cumplicidade de um grupo que se aventura a estudar, a conhecer e a criar, outras formas de ensinar e de aprender reverberam práticas singulares em espaços escolares e não-escolares.

Referências

Aquino, J. G. (2017). Defender a escola das pedagogias contemporâneas. ETD – Educação Temática Digital, 19(4), 669-690. https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/etd/article/view/8648729Links ]

Becker, A.J., Munhoz, A.V., & Horn, C. I. (2020). Entre teoria e prática: o que dizem os alunos do 9º ano do ensino fundamental de uma escola pública? Horizontes, 38(1), e020049. https://doi.org/10.24933/horizontes.v38i1.848Links ]

Camargo, J., Cavalheiro, B., & Munhoz, A. V. (2020). Ensino, aprendizagem e arte: rastreamentos de um arquivo. Revista E-mosaicos, 9(20), 98-110. https://doi.org/10.12957/e-mosaicos.2020.44534Links ]

Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. (2018). Chamada Universal do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações, MCTI/CNPq n.º 28/2018. http://memoria2.cnpq.br/web/guest/chaadas-publicas?p_p_id=resultadosportlet_WAR_resultadoscnpqportlet_INSTANCE_0ZaM&filtro=encerradas&detalha=chamadaDivulgada&idDivulgacao=8242Links ]

Corazza, S. M. (2001). O que quer um currículo? Pesquisas pós-críticas em educação (3. Ed.). Vozes. [ Links ]

Corazza, S. M. (2012). O drama do currículo: pesquisa e vitalismo de criação. IX Anped Sul, Caxias do Sul, Rio Grande do Sul, Brasil. http://www.ucs.br/etc/conferencias/index.php/anpedsul/9anpedsul/paper/viewFile/128/786Links ]

Corazza, S. M. (2013). O que se transcria em educação? UFRGS. [ Links ]

Corazza, S. M., & Tadeu, T. (2003). Composições. Autêntica. [ Links ]

Costa, C. B. (2016). William Kentridge, Fortuna: currículo em meio ao excesso e às más traduções. Em A. V. Munhoz, C. B. Costa, & M. Ohlweiler. Currículo, Espaço, Movimento: notas de pesquisa (pp. 105-118). Ed. Univates. [ Links ]

Costa, C. B., Crizel, A. P., Olegário, F., & Diaz, J. A. R. (2016). Notas para a construção de uma heterotopia sonora. Em A. V. Munhoz, C. B. Costa, & M. Ohlweiler. Currículo, Espaço, Movimento: notas de pesquisa (pp. 93-104). Ed. Univates. [ Links ]

Coutinho, A. P., Faleiro, A., & Schwertner, S. F. (2016). Aproximações genealógicas em pesquisa: processo de avaliação no espaço escolar. Em A. V. Munhoz, C. B. Costa, & M. Ohlweiler. Currículo, Espaço, Movimento: notas de pesquisa (pp. 19-28). Ed. Univates. [ Links ]

Crizel, A. P., & Hattge, M. D. (2015). Dos processos e efeitos da escolarização em um espaço não escolar. Anais do I Seminário Nacional Formação Pedagógica e Pensamento Nômade: experimentações curriculares. Lajeado, Rio Grande do Sul, Brasil. https://www.univates.br/editora-univates/media/publicacoes/125/pdf_125.pdfLinks ]

Deleuze, G. (2003). Proust e os signos (Trad. Antonio Piquet e Roberto Machado). Forense Universitária. [ Links ]

Deleuze, G. (2006). Diferença e repetição (Trad. Luiz Orlandi e Roberto Machado). Graal. [ Links ]

Deleuze, G., & Guattari, F. (1997) Mil platôs (vol. 5). Editora 34. [ Links ]

Díaz, J. A. R., & Munhoz, A. V. (2018). Mediação e tradução-transcriação em museus. Crítica educativa, 4(1), 87-96. https://doi.org/10.22476/revcted.v4i1.304Links ]

Díaz, J. A. R., & Munhoz, A. V. (2019). Práticas educativas no Museu de Arte do Rio. Revista Educação, Artes, Inclusão, 15(2), 208-232. https://www.revistas.udesc.br/index.php/arteinclusao/article/view/14157/pdfLinks ]

Dussel, I. (2020). La escuela en la pandemia. Reflexiones sobre lo escolar en tiempos dislocados. Práxis Educativa, 15. https://doi.org/10.5212/PraxEduc.v.15.16482.090Links ]

Fiorin, B. Z., & Munhoz, A. V. (2020). Discursividades sobre aprender/aprendizagem na produção acadêmica da área de ensino: operando com um arquivo. Revista Signos, 41(2), 262-275. http://doi.org/10.22410/issn.1983-0378.v41i2a2020.2715Links ]

Foucault, M. (2002). Microfísica do poder. Graal. [ Links ]

Foucault, M. (2005). Nietzsche, a genealogia e a história. Em M. B. da Motta (org.) Ditos e escritos (Vol. II) (pp. 260-281). Forense Universitária. [ Links ]

Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (FAPERGS). (2017b). Edital FAPERGS 01/2017 – Auxílio Recém-Doutor. https://fapergs.rs.gov.br/edital-01-2017-auxilio-recem-doutor-ardLinks ]

Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (FAPERGS). (2017a) Edital FAPERGS 202/2017 – Programa Pesquisador Gaúcho. https://fapergs.rs.gov.br/edital-02-2017-programa-pesquisador-gaucho-pqgLinks ]

Gallo, S. (2011). A Orquídea e a Vespa: transversalidade e currículo rizomático. Em E. P. Gonzalves, M. Z. Pereira, & M. E. Carvalho (Orgs.). Currículo e contemporaneidade: questões emergentes (pp. 37-50). Alínea. [ Links ]

Gallo, S. (2012). As múltiplas dimensões do aprender. Congresso de Educação Básica, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil. http://www.pmf.sc.gov.br/arquivos/arquivos/pdf/13_02_2012_10.54.50.a0ac3b8a140676ef8ae0dbf32e662762.pdfLinks ]

Gohn, M. da G. (2020) Educação não formal: direitos e aprendizagens dos cidadãos (ãs) em tempos do coronavírus. Revista Humanidades e Inovação, 7(7), 9-20. https://revista.unitins.br/index.php/humanidadeseinovacao/article/view/3259Links ]

Klaus, V., Hattge, M. D., & Lockmann, K. (2015). Genealogia foucaultiana e políticas educacionais: possibilidades analíticas. Revista Perspectiva, 33(2), 665-687. https://doi.org/10.5007/2175-795X.2015v33n2p665Links ]

Larrosa, J. (2018). Esperando não se sabe o quê: sobre o ofício do professor (Trad. Cristina Antunes). Autêntica. [ Links ]

Monclús, G. J. (2017). Maestras contemporáneas. Edicions de la Universitat de Lleida. [ Links ]

Morgado, J. C., Souza, J., & Pacheco, J. A. (2020). Transformações educativas em tempos de pandemia: do confinamento social ao isolamento curricular. Práxis Educativa, 15. https://doi.org/10.5212/PraxEduc.v.15.16197.062Links ]

Munhoz, A. V, Costa, C. B. da., & Ohlweiler, M. (2016a). Currículo, Espaço, Movimento: notas de pesquisa. Univates. [ Links ]

Munhoz, A. V. (2016). Currículo entre linhas dançantes. Em A. V. Munhoz, C. B. Costa, & M. Ohlweiler. Currículo, Espaço, Movimento: notas de pesquisa (pp. 41-48). Ed. Univates. [ Links ]

Munhoz, A. V., & Hattge, M. D. (2015). Algumas notas sobre espaços e movimentos do currículo. Espaços do currículo, 8(3), 317-322. https://doi.org/10.15687/rec.v8i3.27464Links ]

Munhoz, A. V., Costa, C. B. (2014). Genealogia e imoralidade: o currículo entre experimentações nômades e estratificações sedentárias. Linhas, 15(29), 347-361. https://doi.org/10.5965/1984723815292014423Links ]

Munhoz, A. V., Costa, C. B., & Guedes, B. (2016b). Notas sobre uma Residência Pedagógica no Museu de Arte do Rio. Gearte, 3(3). https://doi.org/10.22456/2357-9854.67052Links ]

Munhoz, A. V., Guedes, B., & Crizel, A. P. (2016c). Sobre arte e deslocamentos: movimentos curriculares na Fundação Iberê Camargo. VIII Colóquio Internacional de Filosofia e Educação. Rio de Janeiro, Brasil. [ Links ]

Munhoz, A. V., Olegário, F., & Freitas, F. (2020). Aula, pensamento e nomadismo. Debates em educação, 12(27). https://doi.org/10.28998/2175-6600.2020v12n28p404-414Links ]

Munhoz, A. V., Zanotelli, A., & Roos, B. (2018). Das imagens que habitam um pensamento de currículo -pesquisa. Educação: Teoria e Prática, 28(59), 682-698. http://doi.org/10.18675/1981-8106.vol28.n59.p682-698Links ]

Narodowski, M. (2020). Onze teses urgentes para uma pedagogia do contra-isolamento. Pansophia Project. http://pensaraeducacao.com.br/blogpensaraeducacao/onze-teses-urgentes-para-uma-pedagogia-do-contra-isolamentoLinks ]

Nietzsche, F. (1998). Genealogia da moral: uma polêmica (Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza). Companhia das Letras. [ Links ]

Nietzsche, F. (2005). Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro (Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza). Companhia das Letras. [ Links ]

Ribeiro, I. W., Munhoz, A. V., & Detoni, P. (2020). Prática Curricular no Ensino Superior: Gênero e Experimentação. Revista Científica Novas Configurações – Diálogos Plurais, 1(2), 95-105. http://doi.org/10.4322/2675-4177.2020.024Links ]

Roos, B. M., & Munhoz, A. V. (2015). O ensino por meio de oficinas. Revista de Iniciação Científica da ULBRA, 13, 198-204. http://www.periodicos.ulbra.br/index.php/ic/article/view/1405/1183Links ]

Santos, B. S. (2020). A cruel pedagogia do vírus. Almedina. [ Links ]

Schonffeldt, S., & Munhoz, A. V. (2017). Currículo e transcriação: entre aquarelas e têmperas. Debates em educação, 9(19), 57-67. https://doi.org/10.28998/2175-6600.2017v9n19p57Links ]

Schwertner, S. F. (2016). Escultural como somente o humano pode ser: quando o hiper-realismo nos convoca a pensar o currículo. Em A. V. Munhoz, C. B. Costa, & M. Ohlweiler. Currículo, Espaço, Movimento. notas de pesquisa (pp. 67-80). Ed. Univates. [ Links ]

Schwertner, S. F., & Munhoz, A. V. (2017). Imagens da escola e suas funções na contemporaneidade: o discurso de estudantes concluintes do Ensino Médio. Revista Imagens da Educação, 7(1), 58-69. https://doi.org/10.4025/imagenseduc.v7i1.30285Links ]

Schwertner, S. F., Roveda, A. W., & Lopes, M. I. (2016). Estratégias curriculares em espaços escolares. Pro-Posições, 27(1), 197-210. https://doi.org/10.1590/0103-7307201607911Links ]

Schwertner, S. F., Schuck, N., Zanotelli, A., & Hattge, M. (2017). Arte e docência: notas sobre o Projeto Transvisões. Revista Educação, Artes e Inclusão, 13(3), 52-72. http://www.revistas.udesc.br/index.php/arteinclusao/article/view/9767/pdfLinks ]

Silva, T. T. (2001). Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. Autêntica. [ Links ]

[5]Trata-se da Escola Estadual de Ensino Fundamental Manuel Bandeira, Lajeado, RS.

Recebido: 13 de Dezembro de 2021; Aceito: 14 de Julho de 2022

Contribuição na elaboração do texto

autora 1 - escrita da seção Genealogia do Grupo de Pesquisa CEM, revisão e fechamento do manuscrito; autora 2 - escrita da seção Genealogia; autora 3 - escrita da Introdução e Resumo; autora 4 - escrita da seção Genealogia e das Considerações finais.

Creative Commons License Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons CC BY 4.0.