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Linhas Críticas

versión impresa ISSN 1516-4896versión On-line ISSN 1981-0431

Linhas Críticas vol.29  Brasília  2023  Epub 25-Ene-2023

https://doi.org/10.26512/lc29202345897 

Artigos

Vulnerabilidade social e performatividade: motivações da escolha das escolas militarizadas no Maranhão

Vulnerabilidad social y performatividad social: motivaciones de la opción por las escuelas militarizadas en Maranhão

Social vulnerability and performativity: motivations for choosing militarized schools in Maranhão

Hélio Cleidilson de Oliveira Sena1 
http://orcid.org/0000-0002-6821-6698

Viviane Klaus2 
http://orcid.org/0000-0002-6382-8089

1Mestre em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) (2021). Doutorando em educação pela Unisinos.

2Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2011). Professora e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Unisinos.


Resumo

O presente artigo analisou os motivos que levam as Redes Públicas de Ensino do Maranhão a firmarem parcerias com o Corpo de Bombeiros e com a Polícia Militar, possibilitando que eles assumam a gestão administrativa de algumas de suas escolas. Os procedimentos metodológicos adotados foram a análise documental e a realização de entrevistas semiestruturadas. No contexto investigado, a militarização se deu a partir da interface entre educação, vulnerabilidade social e performatividade, sem uma discussão e problematização das desigualdades sociais e do caráter público da escola, que é profundamente alterado.

Palavras-chave Escolas militarizadas; Escolas tradicionais; Vulnerabilidade social; Performatividade

Resumen

El artículo analizó las razones que llevan las Redes Públicas de Educación de Maranhão a firmar alianzas con el Cuerpo de Bomberos y de la Policía Militar, haciendo posible que asuman la gerencia administrativa de algunas de sus escuelas. Los procedimientos metodológicos adoptados fueron el análisis documental y la realización de entrevistas semiestructuradas. En el contexto investigado, la militarización se dio a partir del interfaz entre educación, vulnerabilidad social y performatividad, sin una discusión acerca de las desigualdades sociales y del carácter público de la escuela, que es profundamente modificado.

Palabras clave Escuelas militarizadas; Escuelas tradicionales; Vulnerabilidad social; Performatividad

Abstract

This article analyzed the reasons why the Public Nets of Education of Maranhão establish partnerships with the Fire Department and the Military Police, enabling them to assume the administrative management of some of its schools. The methodological procedures adopted were the documentary analysis and the conduction of semi-structured interviews. In the investigated context, the militarization occurred from the interface between education, social vulnerability and performativity, without properly discussing the social inequalities and the public character of the school, which is deeply modified.

Keywords Militarized schools; Traditional schools; Social vulnerability; Performativity

Notas introdutórias

Em pesquisa realizada, Sena (2021) analisou os motivos que levam as Redes Públicas de Ensino do Maranhão a firmarem parcerias com o Corpo de Bombeiros e com a Polícia Militar, possibilitando que eles assumam a gestão administrativa de algumas de suas escolas. Estudou, também, os efeitos de tais parcerias na gestão escolar. Os procedimentos metodológicos adotados foram a análise documental e a realização de sete entrevistas semiestruturadas com representantes das Secretarias de Educação de municípios da região e duas entrevistas com as Diretorias de Ensino do Corpo de Bombeiros Militar (CBMMA) e da Polícia Militar do Maranhão (PMMA).

Importa dizer que a nomenclatura “colégios militares” concerne aos colégios vinculados às forças armadas e de dependência federal; a nomenclatura “escolas militarizadas” refere-se a escolas regulares de ensino que sofreram esse processo de militarização com a entrada da gestão militar.

O Governo Federal brasileiro – período de 2019 a 2022 – utilizava o termo escolas cívico-militares nos casos de implantação de novas escolas militarizadas em parceria com Ministério da Defesa, Ministério da Educação, Secretarias Estaduais e Municipais de Educação e Secretarias Estaduais de Segurança Pública, por meio dos militares das Forças Armadas, das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros.

A pesquisa evidenciou que um dos principais motivos que mobiliza as Redes Públicas de Ensino a transformarem algumas de suas escolas públicas regulares em escolas militarizadas é a questão da interface entre educação, vulnerabilidade social e performatividade. Na visão dos entrevistados, a entrada em cena dos militares resolveria o problema da violência e da indisciplina escolar e melhoraria o desempenho de escolas situadas em regiões de vulnerabilidade social nos rankings educacionais, o que empalidece uma discussão mais aprofundada sobre desigualdades sociais na Contemporaneidade e o direito ao acesso, a permanência e a aprendizagem de todos(as). O que causa certo estranhamento é que a modificação do público-alvo dessas escolas a partir de processos seletivos para ingresso, cobranças de taxas e transferência de alunos que não se adequam às normas institucionais não foi problematizada pelos participantes da pesquisa. O caráter público da escola que se torna militarizada é profundamente alterado.

A pesquisa evidenciou, também, que as escolas militarizadas encontram terreno fértil no contexto de uma aliança constituída pela Nova Direita “entre neoconservadores e neoliberais, central para o desmantelamento do Estado de Bem-Estar e para a criação de uma nova forma de administrar o Estado” (Lima & Hypolito, 2019, p. 3) e de incidir sobre as funções sociais da escola.

As reformas na área da educação têm sido perpassadas por uma agenda global de transformações, influenciadas por grupos neoliberais e neoconservadores que modificam significativamente as principais pautas educacionais. Os populistas autoritários, por exemplo, “[…] baseiam suas posições sobre educação e política social em certas visões da autoridade bíblica, como a moralidade cristã, os papéis de gênero e da família” (Lima & Hypolito, 2019, p. 8, grifos dos autores). Eles colocam em circulação debates sobre livros didáticos e a mudança do seu conteúdo, e sobre o ensino domiciliar (homeschooling), que entende que a interferência do Estado na vida da família representa um perigo, já que, na escola, seus filhos precisam conviver com o diferente e, muitas vezes, com o dito imoral (Lima & Hypolito, 2019). Os valores da liberdade e da moralidade são característicos tanto do neoliberalismo como do neoconservadorismo.

Nesta linha, Brown (2019) aponta que “O ataque contemporâneo à sociedade e à justiça social em nome da liberdade de mercado e do tradicionalismo moral é, portanto, uma emanação direta da racionalidade neoliberal, e não se limita aos assim chamados ‘conservadores’” (Brown, 2019, p. 23). A autora afirma ainda que “As forças conservadoras, no entanto, fizeram apelos mais diretos à moralidade tradicional e homílias ao livre-mercado, embrulhando tudo isso com patriotismo, nativismo e cristandade” (Brown, 2019, p. 23). A expansão das escolas militarizadas se inscreve neste contexto.

Desse modo, este artigo, apresentará um recorte da investigação realizada por Sena (2021). Para uma melhor organização da discussão, está estruturado em cinco seções. Na primeira seção, apresentam-se os procedimentos metodológicos adotados na investigação. Na segunda seção, situa-se no que consiste a parceria entre Polícia Militar e Corpo de Bombeiros com as Secretarias Municipais e Estaduais de Educação, apresentam-se alguns dados das escolas militarizadas no Maranhão. Na terceira seção, discorre-se brevemente sobre o tema da vulnerabilidade social e da performatividade – motivações para a militarização das escolas públicas no Maranhão no recorte analisado, e procura-se compreender como esses temas se articulam na Contemporaneidade, a partir da responsabilização individual dos sujeitos pelos seus sucessos e fracassos. Na quarta seção, apresentam-se as análises realizadas a partir do material empírico selecionado; e, na quinta e última seção, encontram-se as considerações finais.

Procedimentos metodológicos

Na presente pesquisa, utilizam-se como procedimentos metodológicos a análise documental e a realização de entrevistas compreensivas. Parte-se do pressuposto de que os caminhos metodológicos são uma construção que vai se delineando durante todo o percurso investigativo. Assim, para compreender as razões da parceria entre Redes Públicas de Ensino do Maranhão e o Corpo de Bombeiros ou Polícia Militar, analisam-se as entrevistas realizadas com sete secretarias de educação e duas diretorias de ensino militar do Maranhão, que propiciaram compreender de forma mais aprofundada as motivações das escolhas das escolas selecionadas para militarização.

No Quadro 1, apresenta-se a relação de secretarias de educação, a Secretaria Estadual de Educação (SEDUC) e as Secretarias Municipais de Educação (SEMED), com suas respectivas escolas militarizadas, os Colégios Militares do Corpo de Bombeiros (CMCB) e os Colégios Militares Tiradentes (CMT) da Polícia Militar, vinculadas à sua estrutura e organização, que participaram das entrevistas em 2020, por ordem de entrevistas.

Fonte: Elaborado pelos autores.

Quadro 1 Localização das escolas militarizadas por Secretaria que participaram das entrevistas 

Observa-se que CMCB I (São Luís), CMT I (São Luís), CMT II (Imperatriz), CMT III (Bacabal), CMT IV (Caxias) e CMT V (Timon) são da SEDUC. As demais unidades estão em municípios distintos, envolvendo sete Redes Municipais de Educação, pois uma delas conta com dois colégios cada (Rosário). Destaca-se que o CMCB XI (Barra do Corda) é uma escola que faz parte da rede estadual de educação e também da rede municipal. Acrescentou-se, também, duas entrevistas, uma com a Diretoria de Ensino do CBMMA e uma com a Diretoria de Ensino Regular da PMMA, acreditando ser importante ouvir os gestores desses dois setores sobre a temática em estudo, prevendo ao todo nove entrevistas.

Das nove secretarias de educação que em 2020 tinham parcerias com as corporações militares, apenas as SEMEDs de São José de Ribamar, com três colégios (CMCB II e III, e CMT VI) e Paço do Lumiar (CMCB XII) não participaram das entrevistas. Após a realização das entrevistas, o Corpo de Bombeiros firmou mais 15 parcerias com as secretarias de educação; são elas: em 2021, foi implantado o Anexo do CMCB I (Colégio Pio XII) e os CMCBs XIII (São José de Ribamar), XIV (Coroatá), XV (Pedreiras), XVI (Palmeirândia), XVII (Capinzal do Norte), XVIII (São Bento), XIX (Penalva), em 2022 em processo de implantação estão as unidades XX (Guimarães), XXI (Santa Inês), XXII (São Vicente Ferrer), XXIII (Bequimão), XXIV (Cantanhede), XXV (São Mateus) e XXVI (Porto Franco). A Polícia Militar, em 2022, implantou mais 10 parcerias; são elas: CMTs VII (Peritoró), VIII (São Mateus), IX (Aldeias Altas), X (Turilândia), XI (Tuntum), XII (Raposa), XIII (Coroatá), XIV (Primeira Cruz), XV (Axixá) e XVI (Santa Quitéria do Maranhão).

O roteiro de entrevista versou sobre quatro aspectos centrais: (a) a história da parceria em cada um dos municípios (período, atores envolvidos, materiais publicados, documentos formulados); (b) as motivações para o estabelecimento da parceria e os critérios de escolha da(s) escola(s); (c) as funções exercidas pelas equipes diretivas (gestão militar e gestão pedagógica); (d) os principais resultados da parceria desde a sua implantação.

Devido à pandemia da Covid-19, todas as entrevistas foram realizadas através de videoconferência pelo aplicativo Zoom, gravadas e transcritas na íntegra. Todos os procedimentos éticos foram adotados durante a investigação. Cada Secretaria de Educação assinou o Termo de Anuência Institucional e todos os entrevistados assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Os nomes dos entrevistados foram mantidos em sigilo.

Considera-se que os ditos produzidos por meio de entrevistas fazem parte de um contexto discursivo maior, ou seja, inscrevem-se a partir de condições que possibilitam que algumas coisas sejam ditas, pensadas e construídas em um determinado contexto histórico, social, econômico e político – e não em outro. Afasta-se, portanto, o entendimento a partir do qual “concebe-se a fala do entrevistador como mero instrumento de extração de verdades e não como um provocador de outras verdades, outras histórias, outras lógicas!” (Silveira, 2002, p. 134).

Além das entrevistas, analisou-se um conjunto de documentos, como leis de criação, termos de cooperação técnica, projetos políticos-pedagógicos, regimentos internos, regulamentos disciplinares e normas gerais de ação, que propiciaram compreender, de forma mais aprofundada, as implicações da parceria entre o Corpo de Bombeiros ou a Polícia Militar e as Redes de Ensino, principalmente a partir do binômio administrativo-pedagógico.

Sobre as Escolas Militarizadas no Maranhão

A expansão das escolas militarizadas é uma realidade no Brasil, que tem como pilares as normas dos Colégios Militares do Exército originadas em 1889, com o primeiro Colégio Militar no Rio de Janeiro, criado para atender aos filhos dos militares que morriam em combate. Conforme os dados mapeados na pesquisa de Sena (2021), em janeiro de 2021 foram contabilizados 259 colégios militares e escolas militarizadas espalhadas pelo Brasil.

No Maranhão, existem 44 escolas militarizadas atualmente: 9 de dependência estadual e 34 de dependência municipal; 16 delas estão sob a gestão da PMMA e são caracterizadas a partir da denominação de Colégio Militar Tiradentes (CMT); 27 estão sob a gestão do CBMMA e são caracterizadas como Colégio Militar do Corpo de Bombeiros (CMCB) ou Colégio Militar 2 de Julho; e uma está sob dependência da Aeronáutica.

Além das instituições escolares já citadas, o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (PECIM), promulgado pelo Governo Federal brasileiro por meio do Decreto 10.004 (Brasil, 2019), implantou 53 escolas cívico-militares em 2020, 74 em 2021, e está em processo de implantação 89 escolas em 2022[3], totalizando 216 instituições. As escolas estão distribuídas nas cinco regiões do país, sendo 44 na Região Norte, 36 na Região Nordeste, 28 na Região Centro-Oeste, 54 na Região Sudeste e 54 na Região Sul (Brasil, 2022). Tais instituições estão divididas nas três esferas de governo (federal, estadual e municipal), mas com formas distintas de gestão e por meio de diversas parcerias e atores envolvidos, tais como: Ministério da Defesa, Ministério da Educação, Secretarias Estaduais de Educação, Secretarias Estaduais de Segurança Pública e Secretarias Municipais de Educação. Porém, praticamente todos os colégios seguem os mesmos pressupostos dos Colégios Militares do Exército.

As escolas públicas regulares estaduais que passam a ser militarizadas no Maranhão e que são criadas por lei própria são mantidas tanto pela SEDUC como pela Secretaria de Estado da Segurança Pública (SSP), por meio do Corpo de Bombeiros, e mudam a sua razão social para a nomenclatura Colégio Militar 2 de Julho, absorvendo toda a estrutura da antiga escola. O mesmo acontece nas leis de instituição das escolas militarizadas da Polícia Militar: a escola escolhida passa a se chamar Colégio Militar Tiradentes, absorvendo também toda a estrutura da antiga escola pública. Já nas escolas públicas regulares municipais, a nova nomenclatura de colégios militares fica sendo o nome fantasia, pois é uma parceria realizada através de um termo de cooperação que tem prazo de vigência, que pode ser prorrogado, e a manutenção delas se dá tanto pelas SEMED quanto pela SSP, através do CBMMA ou da PMMA (Sena, 2021).

Os militares assumem a gestão das escolas militarizadas, permanecendo com as secretarias de educação a responsabilidade pela manutenção do prédio escolar, pela coordenação pedagógica das instituições e pelo corpo docente. As escolas militarizadas de dependência municipal funcionam, em sua maioria, nos anos finais do Ensino Fundamental (do 6° ao 9° ano), sendo que um número menor de escolas funciona com a educação infantil (pré-escolar) e anos iniciais do Ensino Fundamental. Já as escolas de dependência estadual funcionam nos anos finais do Ensino Fundamental e no Ensino Médio. É de competência do CBMMA ou da PMMA estabelecer as normas de organização e funcionamento dos colégios, em compatibilidade com as legislações pertinentes. Tanto nas leis de criação como nos termos de cooperação, as parcerias também trazem essa divisão de responsabilidade entre os entes envolvidos, em que a gestão militar assume a administração geral das escolas regulares, e a gestão que estava na escola passa a ser gestão pedagógica, assim, há uma cisão entre o pedagógico e o administrativo.

Dos dados fornecidos pelas escolas militarizadas do Maranhão e da análise dos documentos, chega-se ao Gráfico 1 relacionado a seguir, em que destaca-se o número de alunos matriculados pelos CMCBs e CMTs em 2020, indicando que o CMT I e CMCB I possui um público maior de alunos que abrange tanto estudantes do ensino fundamental como do ensino médio.

Fonte: Elaborado pelos autores.

Gráfico 1 Quantidade de alunos matriculados nos CMCBs e CMTs em 2020 

Reflexões sobre vulnerabilidade e performatividade

Tendo em vista os dois principais motivadores, na visão dos entrevistados, para a transformação de algumas escolas públicas em escolas militarizadas, optou-se por discutir brevemente, nesta seção, a articulação entre vulnerabilidade e performatividade na Contemporaneidade. O intuito é uma breve reflexão sobre a individualização dos riscos sociais, a melhora da performance individual nas avaliações de larga escala e a performatividade das instituições nos rankings.

A argumentação central é a de que, na Contemporaneidade, a lógica performática coloca em circulação um processo de “individualização dos riscos sociais”; e “as diferenças sociais de classe perdem sua feição no mundo da vida e, com sua perda, desvanece-se a noção de mobilidade social, no sentido de uma troca de indivíduos entre os grandes grupos perceptíveis” (Beck, 2010, p. 147, grifos do autor). O autor menciona que as diferenças sociais de classe e a noção de mobilidade foram temas sociais e políticos fortes na geração de identidade ainda durante boa parte do século XX.

Tal desvanecimento está relacionado a um conjunto de mudanças que ocorreram principalmente a partir do final do século XX e do início do século XXI, tais como: dissociação das áreas do econômico, do político e do social; mutações profundas no mundo do trabalho; fragmentação social e individualização exacerbada; lógica da concorrência e da diferenciação; processo de individualização da desigualdade social (Beck, 2010).

A dissociação entre as áreas do econômico, do político e do social implica a compreensão de que o mercado não é mais um ambiente natural de livre circulação das mercadorias, mas um processo regulado (e menos autorregulador), autocriador, que tem a sua própria dinâmica e utiliza motivações psicológicas e competências específicas (Dardot & Laval, 2016). Tal dinâmica parte da lógica do concorrencialismo cujas bases teóricas foram estabelecidas pelo sociólogo norte-americano William Graham Sumner (1840-1910), que considerava a escassez a grande educadora da humanidade e a luta contra a natureza como uma luta dos homens entre si (Dardot & Laval, 2016). Os indivíduos passaram a ser considerados “agentes ativos em seu próprio governo econômico através da capitalização de sua própria existência”, questão que “coincide com toda uma nova série de vocabulários e esquemas para supervisionar os indivíduos dentro do ambiente de trabalho, em termos do desenvolvimento de suas habilidades, capacidades e empreendedorismo” (Miller & Rose, 2012, p. 121).

Martuccelli (2017) discute de que modo o termo vulnerabilidade [4] foi sendo ressignificado ao longo do tempo, e diz que na Modernidade emerge a semântica voluntarística [5] , que se caracteriza por uma modificação política considerada inédita: a valorização da vida humana e o domínio da natureza. Segundo o autor, neste período, há uma supremacia da vontade do homem, uma glorificação da vida e dos prazeres terrenos; e, a partir de então, surge o individualismo no contexto do liberalismo e do pacto político da modernidade.

Assim, na modernidade, essa semântica voluntarista do termo vulnerabilidade apresenta uma função política incontestável, sendo que, dentro do pacto político, há a proteção à vida. “A vulnerabilidade humana transforma-se, assim, neste período, em uma questão de desigualdade social: algo bem refletido e mensurado pelas taxas diferenciais de mortalidade, morbidade, segurança, pobreza.” (Martuccelli, 2017, p. 129). Martuccelli (2017) apresenta, ainda, a semântica performativa, que surge na contemporaneidade, em que a vulnerabilidade passou a ser percebida através das transformações ocorridas ao nível do controle coletivo dos fenômenos sociais e naturais, gerando consequências no contexto das vítimas e ao seu nível de sofrimento, dessa forma, passando então esta semântica a ter um sentido ético e político.

Nessa semântica, a vulnerabilidade como via sofrimento “é percebida como um teste ético e uma forma de conhecimento de si mesmo” (Martuccelli, 2017, p. 131), sendo que as condições de ser ou não vítima são julgadas dentro de uma avaliação ou estratégica coletiva. Ele diz ainda que, “Se toda a semântica é indissociável de uma forma de representação, somente na semântica atual a vulnerabilidade é evitada e enfrentada a partir de um trabalho propriamente performativo” (Martuccelli, 2017, p. 131); assim, esta semântica apresenta dilemas: por exemplo, como evitar a competição entre vítimas, como se sensibilizar com o sofrimento alheio diante dos bombardeios de mensagens dos vários aplicativos das redes digitais. Vive-se uma estetização da vida no sentido da visibilidade e consciência das nossas próprias vulnerabilidades e dos outros.

Neste sentido, a vulnerabilidade social, diante de um contexto de riscos produzidos por fatores sociais e econômicos, tem fragilizado o modo de vida de muitos grupos e indivíduos. A “emergência da sociedade de risco […] designa uma fase de desenvolvimento da sociedade moderna na qual os riscos sociais, políticos, econômicos e individuais tendem, cada vez mais, a escapar das instituições de monitorização e proteção da sociedade industrial” (Beck, 1997, p. 5). Assim, destaca-se que esta reflexividade está na ordem da autoconfrontação, em que o indivíduo é colocado em xeque a todo momento. O autor afirma, ainda, que:

[…] a individualização não é baseada na livre decisão dos indivíduos. Utilizando as palavras de Sartre, às pessoas estão condenadas a individualização. A individualização é uma compulsão, mas uma compulsão para o fabrico, autodesenho, auto-encenação, não apenas da nossa própria bibliografia, como também dos nossos compromissos e redes, à medida que as nossas preferências e fases da vida mudam, mas, é claro, sob as condições e os modelos gerais do Estado de bem-estar, como seja o sistema educativo (adquirindo diplomas), o mercado de trabalho, o direito laboral e social, o mercado imobiliário e assim por diante. (Beck, 1997, p. 15)

Tais discussões são centrais no presente artigo, pois permitem a desnaturalização das desigualdades sociais que são produzidas no contexto da racionalidade neoliberal. As transformações que estão ocorrendo na sociedade, em virtude deste novo capitalismo informacional ou flexível, têm impactado consideravelmente a forma de vida das pessoas e empresas, as relações de cuidado de si, de cuidado do outro e do meio natural em que vivem, o que ocasiona e ocasionará muitas catástrofes. Bauman (2017, p. 59) afirma: “Hoje nós tendemos a temer o futuro, tendo perdido a confiança na nossa capacidade coletiva de mitigar seus excessos, torná-lo menos assustador e repelente, bem como um pouco mais amigável para o usuário”.

Dentro da lógica de uma sociedade inscrita pela racionalidade neoliberal, em que as populações miseráveis são a maioria, a dinâmica de responsabilização dos sujeitos pelos seus sucessos e fracassos acaba por empalidecer as discussões sobre as desigualdades sociais. Nesta sociedade de risco, do controle, da informação etc., não faltam argumentos e soluções que não resolvem os principais problemas educacionais. Assim, o novo modelo de gestão das escolas militarizadas está inserido na racionalidade neoliberal e neoconservadora, que busca uma divisão de responsabilidades entre instituições, além de visar à qualidade do ensino através de competividade, performance, eficiência e resultados. Nesse sentido, Dardot e Laval (2016, p. 302) dizem que a nova gestão pública.

[…] consiste em fazer com que os agentes públicos não ajam mais por simples conformidade com as regras burocráticas, mas procurem maximizar os resultados e respeitar as expectativas dos clientes […] Cada entidade (unidade de produção, coletivo ou indivíduo) passa a ser “autônoma” e “responsável” (no sentido accountability). No âmbito de suas missões, recebe metas que deve atingir. A realização dessas metas é avaliada regularmente, e a unidade é sancionada positiva ou negativamente de acordo com seu desempenho.

Essa nova racionalidade vem pautando uma educação voltada para resultados, inovações, eficiência, performatividade e formação de ‘sujeitos para o século XXI’ que devem atender a um mercado cada vez mais competitivo. Dessa forma, a escola passa a ter uma função econômica influenciada pelas constantes mutações no campo social, político e cultural, em que o fracasso ou o sucesso de cada indivíduo é de responsabilidade de cada um.

O Estado passa a funcionar como uma quase empresa e a incorporar novas formas de gestão empresarial que impactam diretamente no significado do “público”. As escolas militarizadas se inserem nesse contexto e aparecem como instituições eficientes na busca de resultados e de indicadores educacionais que comprovem seu sucesso e eficiência. Neste sentido, Laval (2019, p. 251) diz que:

A função atribuída à escola na formação de competências e os objetivos de eficiência que se esperam dela encontram no sistema educacional sua continuação lógica, sob os auspícios da ‘revolução gerencial’. O objetivo desta última é gerir a escola como uma empresa.

As reformas educacionais neoliberais das últimas décadas, que transformaram a forma de gestão pública em uma gestão de uma quase empresa, têm mudado as condutas das pessoas e instituições, na busca crescente de resultados e desempenhos, além de fomentarem a competitividade e a responsabilização pelo fracasso dos indivíduos e instituições. Assim, a pauta de uma educação “de qualidade” em zonas vulneráveis a partir do discurso da disciplina, da contenção da violência que é estrutural, da criminalização da pobreza e da performatividade dos indivíduos e das instituições invisibiliza as desigualdades, descaracteriza o caráter público da escola e não coloca em pauta a discussão de políticas públicas que possibilitem a melhoria de vida da população. As motivações para a escolha das escolas a serem militarizadas no Maranhão merecem ser problematizadas e desnaturalizadas.

Sobre a análise do material empírico

Conforme já mencionado, analisaram-se entrevistas realizadas com sete secretarias de educação e duas diretorias de ensino militar do Maranhão, com o objetivo de compreender as razões da parceria entre Redes Públicas de Ensino do estado e o Corpo de Bombeiros ou Polícia Militar, e as motivações das escolhas das escolas selecionadas para militarização.

Nessas escolas, a vulnerabilidade passa a ser assunto de disciplina, pois só permanecem os alunos que se enquadram nos regulamentos disciplinares; os que não se enquadram nos requisitos da disciplina e comportamento são transferidos da escola, e o perfil dos estudantes é alterado quando essas instituições passam a exigir processo seletivo para seu ingresso, a cobrar taxas escolares e exigir aquisição de uniformes por parte dos pais.

Assim, analisando as entrevistas, fica claro que importa a localização da escola em zonas periféricas e em situações de vulnerabilidade como a motivação para a escolha das escolas a se tornarem militarizadas, conforme destaca-se nas falas dos entrevistados:

[…] que a escola está né, no seu entorno de muitas situações de vulnerabilidade, de um contexto social realmente, eu digo assim, num espaço pra, é interessante justamente porque a escola vem com aquela função de cumprir aquela função social mesmo de transformação do espaço em si […]. […] queríamos um espaço, a escola fosse num espaço né, de vulnerabilidade, que pudesse mudar aquele contexto social […]. (entrevistado 1)

O outro fator importante é que a escola tá sediada em um bairro de periferia e né, de, de famílias carentes e nós tivemos todo um olhar pra essa questão social, né, pro perfil social de alunos que nós iríamos atender, justamente pra tirar esse menino da rua, pra tirar esse menino das drogas, né, então, nós tivemos um olhar social também na implantação dessa escola […]. (entrevistado 2)

[…] a gente segue a linha sempre de ofertar escolas aonde nós temos um alto grau de vulnerabilidade, né, naquela comunidade ou naquela, naquele espaço né, então, geralmente nós seguimos essa linha enquanto Secretaria […]. Então, a ideia é sempre trazer a escola pra mais próximo e nas comunidades de alta vulnerabilidade […]. (entrevistado 5)

[…] nós tivemos uma mudança na clientela, do aluno, a indisciplina caiu demais, essa questão com drogas também ficou praticamente zerado. Nós tínhamos índices de violência ali diminuiu, no entorno escolar diminuiu muito, diminuiu muito […]. (entrevistado 7)

[…] o secretário de educação escolheu o bairro da […] que é um bairro de periferia, […] então, a gente montou esses outros colégios e esses outros colégios são em áreas periféricas e aí as pessoas, geralmente, eu costumo criticar quem […] solicita essas escolas? É a comunidade? Não, agora sim é a comunidade, mas logo no começo é mais uma questão política […]. (entrevistado 9)

Conforme a análise documental dos regulamentos disciplinares, observou-se que há uma mudança de perfil dos alunos que ingressam nas escolas militarizadas do Maranhão. Pode-se esse aspecto observar no item 3.3 do Projeto Político-Pedagógico (PPP) do CMT I, que apresenta as questões das cerimônias militares, enfatizando a semana de adaptação, em que todos os alunos matriculados têm de participar – e a não participação gera o cancelamento da matrícula do aluno:

Art. 23. O aluno matriculado neste estabelecimento de ensino deverá obrigatoriamente comparecer na SEMANA DE ADAPTAÇÃO, que ocorre na semana que antecede o início do ano letivo, sendo imperiosa a sua participação ativa e efetiva em todas as rotinas diárias de treinamento que ocorrerem neste período adaptativo.

§ 1º – A presença é necessária nesta semana, pois visa inserir o aluno no cotidiano da vida escolar do Colégio Militar Tiradentes, além de receber instruções cívicas e militares fundamentais para sua formação e adaptação à rotina desta unidade de ensino.

§ 2º – O não comparecimento e efetiva participação do aluno em todas as rotinas diárias de treinamento será objeto de cancelamento de sua matrícula. (Colégio Militar Tiradentes Unidade I, 2019, p. 18)

Não se pode esquecer que se trata de escolas públicas – e, mais ainda, de escolas públicas em zonas de vulnerabilidade social. Conforme já discutido, a lógica da concorrência em curso na racionalidade neoliberal produz desigualdades e exclusões. Muitas famílias que têm seus filhos em escolas públicas não têm condições mínimas de subsistência. A criminalização da pobreza em curso precisa ser mais bem compreendida. As regras das escolas militarizadas deixam muito claro que existe um período de adaptação, e muitos podem ser excluídos da escola ainda nesse período. E o direito à educação, como fica?

Observou-se que as escolas militarizadas utilizam o processo seletivo como forma de ingresso de seus alunos. A Lei 10.664 (Maranhão, 2017), de normatização dos Colégios Tiradentes, apresenta a questão da seleção para ingresso, conforme destaca-se a seguir:

Art. 18. O número de vagas para o ingresso nos Colégios Militares Tiradentes, por concurso de admissão, será fixado anualmente pelo Diretor de Ensino da Corporação mediante proposta dos gestores dos Colégios Militares Tiradentes e homologadas pelo Comandante Geral da Polícia Militar do Maranhão.

Art. 19. Serão destinadas no máximo 50% (cinquenta por cento) das vagas existentes para preenchimento, mediante aprovação, por candidatos dependentes de militares da Polícia Militar do Maranhão, de professores e funcionários civis dos Colégios Militares Tiradentes e da Corporação.

Art. 20. Os 50% (cinquenta por cento) das vagas restantes serão destinadas para a comunidade em geral e preenchidas pelos candidatos aprovados, observada a ordem de classificação do concurso de admissão.

Enfatizou-se que o processo seletivo nestes colégios é um fator que vem a contribuir para gerar uma exclusão de acesso a essas instituições, além das contribuições realizadas pelas famílias na manutenção das escolas, o que é visto com exaltação pelos gestores, considerando que uma parceria com as famílias contribui para a manutenção das instituições. Ou seja, nos critérios de escolha das escolas, o argumento da vulnerabilidade social e da violência e a necessidade de uma educação de “qualidade” para a população mais pobre são reinscritos pela lógica da meritocracia – melhoria dos índices, que será discutida mais adiante, mas resultam em hierarquia, disciplina e exclusões. Vê-se aqui a articulação entre neoliberalismo e neoconservadorismo. A escola militarizada não é para todos; ela vai sendo reescrita e recomposta a partir de diferentes combinações de processos seletivos e regras de quem fica e quem sai, quem entra e quem não entra.

Em relação aos critérios de acesso às escolas, alguns entrevistados falam sobre uma taxa de manutenção paga pelos pais, conforme as entrevistas 2, 3 e 7:

[…] a escola tem se beneficiado com a parceria da comunidade também porque, exemplo, existe uma taxa de manutenção que a gente ficou muito preocupado com relação a essa taxa da manutenção, mas a gente conseguiu implantar isso, mesmo que num valor bem diferente dos demais colégios militares, mas nós conseguimos ter essa parceria com a comunidade, e aí mais do que nunca a gente percebe que a comunidade acredita no ensino, acredita na escola, por conta dessa parceria que nós já temos com a comunidade. (entrevistado 2)

[…] as escolas, as duas escolas os alunos contribuem com uma taxa, se não me engano é R$30,00. Se tu tem 427 alunos esse aluno todo mês da R$30,00 tu calcula isso vai dar o diferencial de receita pra que o administrativo da escola, ele atenda essas demandas didáticas, pedagógicas, ele pode chamar, ele pode criar uma escola e reforço no horário contraturno, então, isso faz uma diferença […]. (entrevistado 3)

[…] Tem a associação de pais, né, que tem essa função de aproximar os pais da escola, os pais da, da administração da escola e tudo e tem a contribuição deles também, que esse dinheiro é revertido pro caixa escolar, que é justamente pra fazer essa manutenção. e que foi fundamental pra gente […]. (entrevistado 7)

Poder-se-ia fazer uma discussão aqui sobre o valor da taxa versus o valor do Bolsa Família [6] , por exemplo, bem como apresentar levantamentos da renda das famílias que vivem nas comunidades das escolas militarizadas. Porém, não foi possível fazer essa análise, pois isso ampliaria o escopo da investigação. Mas observou-se que a taxa reforça a exclusão dos alunos em situação de vulnerabilidade social e que não têm condições de pagar o valor cobrado nos colégios militares, sem contar que um princípio constitutivo da escola pública é a gratuidade. Além disso, há um processo seletivo para ingresso e uma série de critérios para ter a permanência assegurada, o que acaba por inverter a lógica da escola pública, laica e gratuita para todos(as). O Regimento Interno do CMCB I também apresenta os critérios por meio dos quais os alunos serão desligados ou transferidos da escola, destacando o seguinte:

V – tendo concluído o ano letivo, ainda que com aproveitamento, não contar com o parecer favorável do Conselho de Ensino para sua permanência nesta escola, ante seu comportamento disciplinar e ético não satisfatório

VII – descumprimento das regras estabelecidas no Termo de Compromisso Educacional assinado no ato da matrícula. (Colégio Militar do Corpo de Bombeiros Unidade I, 2018a)

A mudança de perfil de aluno mereceria uma maior investigação. Onde estão esses alunos? Evadiram? Mudaram de escola? Como o processo seletivo contribui com essa mudança de perfil? São vários questionamentos que futuras pesquisas poderiam problematizar e buscar respostas aos problemas sociais gerados com a militarização das escolas.

É importante ressaltar que, inseridos nessa racionalidade de performatividade desde sua criação, os colégios militares são vistos como conquistadores de grandes resultados e eficiência.

As secretarias de educação, ao serem questionadas sobre as motivações para transformarem escolas públicas em escolas militarizadas, enfatizam a melhoria do desempenho nas avaliações externas. Importa dizer que disciplina e melhores resultados aparecem nas mesmas respostas, ou seja, conforme já havia destacado, neoconservadorismo e neoliberalismo estão diretamente relacionados. A competitividade, a performatividade a partir da melhoria do desempenho e a retomada de “valores perdidos” se articulam, se hibridizam e se retroalimentam. Assim, constam nas falas dos entrevistados relacionadas a seguir, sobre os bons resultados das escolas militarizadas:

[…] os resultados vêm demonstrando, se você fizer um levantamento das escolas militares, elas se destacam em relação à qualidade de ensino, então, é um modelo que trabalha essa parte pedagógica com a questão da disciplina, né, muito bem […]. […] uma simulação dos resultados que vai, do resultado que vai ser do IDEB e a gente já tem uma prévia do que valeu muito a pena essa parceria e que os resultados, realmente, serão muito bons, serão resultados assim que vai consolidar, vai dizer, olha realmente é um modelo eficiente, o aluno ele aprende […]. (entrevistado 1)

[…] a vontade de ter essa educação ehh, mais, com mais disciplina, com melhores resultados, né, que busca resultados, melhores resultados, e aí se a gente já tinha a certeza que o Colégio Militar teria esses bons resultados e de uma forma também, ehh, pedagógica de ser inspiração pras demais escolas […]. […] Então, a gente precisa elevar esses indicadores educacionais, e aí se pensou que um Colégio Militar seria essa referência, teria esse padrão de qualidade […]. (entrevistado 2)

[…] eu vejo que a tendência dos resultados dessa escola é fazer com que a comunidade acredite nela, trazer mais credibilidade pela boa imagem, que a escola representa e aí ela se amplia e a procura é maior […]. essa escola sempre teve uns indicadores de avaliação num ponto legal, mas agora a tendência é melhorar mesmo […]. (entrevistado 3)

Certo, a escola militar ela sempre foi um desejo né, […], principalmente por causa dos bons resultados que as escolas têm a nível de Brasil, né, nós temos, nós sabemos a grade parte, grande parte das escolas militares tem excelentes resultados em provas externas, e provas internas também. (entrevistado 4)

[…] Então, também isso é algo que chama muito atenção da comunidade escolar, os resultados que essas escolas já proporcionam ao longo desse período, desse tempo que nós temos essa parceria. […] eu consigo afirmar que eles têm bons resultados sim, e sempre configuram ali entre as cinco melhores escolas nas nossas avaliações estaduais, internas e a nível de externo, de ENEM, de vestibulares eles têm quem consegue aprovar, eles também conseguem ter uma boa, uma boa colocação nas olimpíadas […]. (entrevistado 5)

Primeiro pelo resultado, que as escolas começam a obter, são as primeiras né, estão entre as cinco melhores escolas do estado, quer seja Corpo de Bombeiros, quer seja Polícia Militar, e isso chama atenção das famílias, além também do senso de responsabilidade dos alunos, da forma como eles passam a se portar dentro de casa. (entrevistado 6)

Os principais resultados nós na parte pedagógica nós avançamos, né, na, no resultado da Provinha Brasil, nós avançamos muito, né, pelo ano da implantação, o impacto, nós conseguimos passar de três pra três vírgula cinco, nós não alcançamos o objetivo que era três vírgula sete. Nós passamos a disputar a Olimpíada a de Português, a Olimpíada de Matemática que a gente já disputava né, não teve avanço nisso […]. (entrevistado 7)

[…] nós estamos inicialmente, nós estamos satisfeitos com os resultados tá, com toda a parceria e a gente espera que essa parceria possa perdurar […]. (entrevistado 8)

[…] Então, depois do sucesso do colégio […] a gente começou a dar resultado […]. (entrevistado 9)

Os regulamentos disciplinares dessas escolas enfatizam ainda mais a performance dos alunos dentro do ambiente escolar, por meio da meritocracia, que é estimulada através das pontuações e das recompensas. Há uma classificação em categorias já pré-estabelecidas, levando em consideração alguns méritos conquistados pelo aluno, conforme destacado no Regulamento Disciplinar do CMCB I, a seguir:

Art. 44. As recompensas são utilizadas para valorizar e enaltecer os alunos que se destacam na vida escolar seja por mérito disciplinar, intelectual, esportivo, físico ou social. São concedidas aos alunos as seguintes recompensas: I – Elogio Verbal – 0,1 ponto; II – Elogio Coletivo em Boletim do Corpo de Alunos – 0,2 pontos; III – Elogio Individual em Boletim do Corpo de Alunos – 0,3 pontos; IV – Alunos esportistas do colégio com medalhas de bronze – 0,3 pontos; V– Alunos esportistas do colégio com medalhas de prata – 0,5 ponto; VI – Alunos esportistas do colégio com medalhas de ouro – 1 ponto; VII – Promoção aos Postos e Graduações da Hierarquia Escolar – 2,0 pontos; VIII – Prêmios Educativos: 3º lugar: 0,5 pontos / 2º lugar: 1 ponto e 1º lugar: 2 pontos; IX – Alunos Notas Dez – 1,0 pontos; X – Aluno destaque – elogio individual em Boletim do Corpo de Alunos. (Colégio Militar do Corpo de Bombeiros Unidade I, 2018b)

A comemoração do bom desempenho das escolas militarizadas não visibiliza todos os elementos discutidos até aqui: qual o lugar do pedagógico? De que modo as práticas pedagógicas têm sido reescritas na lógica da disciplina, da hierarquia e da organização militares? Que espaço de autonomia os docentes têm para o desenvolvimento do trabalho pedagógico? Além disso, há invisibilidade das desigualdades sociais, e a disciplina é vista como solução para um problema de criminalização da pobreza, de modo que os processos seletivos e a cobrança de taxas escolares produzem exclusões e reforçam a meritocracia. Nesse sentido, é preciso reconhecer que a escola passa a ser “dos adaptados”, dos “selecionados”, excluindo todos aqueles que não se encaixam no perfil desejado como é o caso, por exemplo, dos estudantes que se encontram em defasagem idade/série. A instituição que passa a obter melhores resultados nas avaliações de larga escala, é profundamente alterada no processo de militarização.

Considerações finais

Diante dos resultados desta pesquisa, destaca-se que o que tem mobilizado as Redes de Ensino do Maranhão a firmarem parceira com as corporações militares é a possibilidade de “resolverem” a dita “qualidade” da educação em escolas situadas em regiões de vulnerabilidade social, o que empalidece uma discussão mais aprofundada sobre desigualdades sociais na Contemporaneidade. A gestão militarizada dá o tom das funções da escola, bem como dos contornos “pedagógicos”, que são baseados em disciplina, hierarquia, organização e performatividade, por meio dos indicadores educacionais.

O estudo trata, ainda, das motivações de escolha das escolas para se tornarem militarizadas. A maior parte dos entrevistados mencionou que o que influenciou essa escolha foi a questão da vulnerabilidade social (presente nos locais em que se encontram as escolas) e do seu desempenho nos rankings educacionais.

Pode-se dizer que as escolas militarizadas no Maranhão surgem como uma forma de controle da violência e da criminalidade em alguns bairros de periferia, mas excluem grande parte dessa periferia do cotidiano escolar, por meio dos seus processos seletivos, cobrança de taxas e exclusão dos alunos por indisciplina e/ou comportamentos incompatíveis com as normas das escolas. O processo seletivo para ingresso, a lógica meritocrática, o cancelamento e a transferência das matrículas acabam por inverter a lógica da escola pública, laica e gratuita para todos(as). Compreender as implicações dessas parcerias na área da educação é fundamental na construção de uma sociedade mais justa e igualitária.

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[3]As 216 escolas implantadas pelo PECIM somadas as 259 escolas contabilizadas pela pesquisa de (Sena, 2021), mais 15 implementadas desde 2021 pelo CBMMA e 10 pela PMMA, totalizam 500 instituições de ensino cívico-militar. Importa dizer que o PECIM não foi o foco do presente estudo.

[4]Importa dizer que o tema da investigação que originou o artigo não foi a vulnerabilidade em si, tema que vem sendo estudado a partir da sua historicidade por vários pesquisadores, tais como: Martuccelli (2017), Martí (2006), Abramovay et al. (2002), Monteiro (2011), entre outros.

[5]Antes desta semântica, Martuccelli (2017) apresenta duas outras semânticas sócio-históricas do termo vulnerabilidade: a exclusiva, visível na antiguidade ocidental – nessa época, a vulnerabilidade era excluída de qualquer valor moral ou político –; e a vulnerabilidade moral, percebida na Idade Média, que se apresenta com um forte valor moral e um fraco significado político.

[6]O Bolsa Família foi instituído em 2003 com o objetivo de “contribuir para a inclusão social de milhões de famílias brasileiras premidas pela miséria, com alívio imediato de sua situação de pobreza e da fome.” (Campello & Neri, 2013, p. 17), mas em 2021 foi extinto e “com um discurso pautado na não dependência, Bolsonaro criou o auxílio Brasil” (Germann & Medeiros, 2022, p. 47478).

Recebido: 01 de Dezembro de 2022; Aceito: 17 de Janeiro de 2023

Contribuição na elaboração do texto

Os autores contribuíram igualmente na elaboração do manuscrito.

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