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Jornal de Políticas Educacionais

versión On-line ISSN 1981-1969

J. Pol. Educ-s vol.13  Curitiba  2019  Epub 18-Jul-2022

https://doi.org/10.5380/jpe.v13i0.61277 

Artigos

Seleção de diretores de escola como demanda do movimento estudantil: a agenda dissonante da política no Rio de Janeiro

Selection of school principals demanded by student movement: divergent political agenda in Rio de Janeiro

Selección de directores de escuela como demanda del movimiento estudiantil: la agenda disonante de la política en Río de Janeiro

Marcela Castro1 

Daniela Patti do Amaral2 

1Doutoranda e mestre em Educação pelo Programa de Pós-graduação em Educação da UFRJ; Técnica em Assuntos Educacionais da UFRJ

2Doutora em Educação pela UFRJ; Professora da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRJ


Resumo

Este artigo discute a participação da comunidade escolar no processo de seleção de diretores de escolas públicas como pressuposto de uma escola democrática. A alteração da agenda da política educacional do estado do Rio de Janeiro (RJ), reestruturada a partir do movimento dos estudantes secundaristas em 2016, se constitui como objeto de estudo. A análise assume como ponto de partida a promulgação da Lei Estadual nº 7.299 (ALERJ, 2016) que disciplina a seleção de diretores escolares no estado, no atravessamento com outros ordenamentos legais que indicam tal procedimento. O ciclo de políticas (BALL, 1994) se constitui como referencial teórico-metodológico no diálogo com Mouffe (2005, 2015) e Mouffe e Errejón (2016) que analisam a prática da política democrática e Amaral (2016, 2018) e Lima (2018) que discutem a gestão democrática nas escolas e assumem a participação da comunidade como elemento constituinte de tal opção política. Consideramos que, se o movimento dos estudantes secundaristas impulsiona no estado do RJ o redesenho da política, há o reconhecimento destes atores sociais como demandantes de políticas públicas, e que os texto legais consolidados se constituíram como elementos de força no processo do reordenamento da agenda da política educacional do estado.

Palavras-chave Seleção de diretores; Participação; Movimento estudantil.

Abstract

This article discusses the participation of the school community in the process of selecting public school principals as a presupposition of a democratic school. The alteration of the educational policy agenda of the state of Rio de Janeiro (RJ), restructured from the secondary students’ movement in 2016, constitutes an object of study. The analysis assumes as a starting point the promulgation of State Law No. 7.299 (ALERJ, 2016) that disciplines the selection of school directors in the state in crossing with other legislations that indicate such procedure. The cycle of policies (BALL, 1994) constitutes a theoretical- methodological reference in the dialogue with Mouffe (2005, 2015) and Mouffe and Errejón (2016) that analyze the practice of democratic politics and Amaral (2016, 2018) and Lima (2018) that discuss the democratic participation in schools and assumes the participation of the community as a constituent element of such political option. We believe that if the secondary students movement promotes the redesign of politics in the state of RJ, there is recognition of these social actors as demanders of public policies, and that consolidated legal texts have been constituted as elements of force in the process of reordering the agenda of politics educational.

Key words School Principals´selection; Participation; Student movement.

Resumen

Este artículo discute la participación de la comunidad escolar en el proceso de selección de directores de escuelas públicas como presupuesto de una escuela democrática. La alteración de la agenda de la política educativa del estado de Río de Janeiro (RJ), reestructurada a partir del movimiento de los estudiantes secundarios en 2016, se constituye como objeto de estudio. El análisis asume como punto de partida la promulgación de la Ley Estadual nº 7.299 (ALERJ, 2016) que disciplina la selección de directores escolares en el estado, en el atravesamiento con otros ordenamientos legales que indican tal procedimiento. El ciclo de políticas (BALL, 1994) se constituye como referencial teórico-metodológico en el diálogo con Mouffe (2005, 2015) y Mouffe y Errejón (2016) que analizan la práctica de la política democrática y Amaral (2016, 2018) y Lima (2018) que discuten la gestión democrática en las escuelas y asumen la participación de la comunidad como elemento constituyente de tal opción política. Consideramos que si el movimiento de los estudiantes secundarios impulsa en el estado del RJ el rediseño de la política, hay el reconocimiento de estos actores sociales como demandantes de políticas públicas, y que los textos legales consolidados se constituyeron como elementos de fuerza en el proceso del reordenamiento de la agenda de la agenda, política educativa del estado.

Palabras clave Selección de directores; Participación; Movimiento estudiantil.

Introdução

Os pressupostos do presente artigo estão embasados na perspectiva de que a participação da comunidade escolar no processo de seleção de diretores de escolas públicas é um dos critérios de uma escola pública democrática. No entanto, tal como afirmado por Lima (2018a), “uma escola pública, laica e democrática nunca esteve garantida no passado, não está garantida no presente e creio que nunca chegará a estar definitivamente garantida no futuro (...) a escola democrática não existe a não ser como processo”. Nesse sentido, a perspectiva de pensar a democracia em termos de acesso, permanência, aprendizagem e “participação democrática no processo de tomada de decisões relativas ao seu governo” (LIMA, 2018, p. 245) precisa de permanente acompanhamento e aprofundamento em vista dos períodos de avanços e recuos que temos observado no campo educacional brasileiro em relação a uma escola pública democrática.

Nesse complexo cenário de pensar as contradições postas em cena para uma escola pública democrática e a participação dos diferentes atores na cena educacional, o presente texto aborda a agenda educacional do estado do Rio de Janeiro (RJ) reestruturada a partir do movimento dos estudantes secundaristas em 2016 quando, naquele momento, foram incorporadas reivindicações encaminhadas pelos estudantes das escolas públicas para os representantes do estado. Dentre elas, a demanda pela participação no processo de seleção de diretores escolares consegue transcender os limites de uma pauta de discussão e ganha força de lei. Esta agenda que assume a consulta pública da comunidade no processo de seleção de diretores se consolida no estado e, logo em seguida, também, no município do RJ por meio da aprovação de uma Resolução pela Secretaria de Educação.

O exemplo do RJ no que diz respeito à elaboração dos ordenamentos legais para o processo consultivo de seleção de diretores de escolas públicas tanto para o estado quanto para o município, a partir da demanda encaminhada pelos estudantes da rede estadual, se mostra potente para compreender as complexas relações da elaboração da política numa perspectiva de construção cíclica, em que pesem as disputas para fazer valer um determinado projeto como legítimo. Com base em Bowe e Ball (1992) e Ball (1994) pensamos a política como representação decodificada em formas complexas que se mostram através de disputas, compromissos, interpretações e reinterpretações. Nesse aspecto, a política é tanto contestada como modificada. E os textos que resultam das políticas - como no caso das legislações aprovadas no RJ para a seleção de diretores - são resultados de múltiplas agendas e múltiplas vozes. No entanto, somente algumas agendas e influências são consideradas legítimas e reconhecidas e somente algumas vozes são ouvidas já que o texto, seus leitores e o contexto de resposta a esse texto têm histórias.

Considerando prioritariamente que a legislação do regime democrático brasileiro, pautado pela Constituição Federal de 1988, define “estados e municípios como entes federados, portanto com o direito de decidir autonomamente a sua legislação sobre os sistemas de ensino e sua organização” (OLIVEIRA; CARVALHO, 2018, p.10) é possível afirmar que esta relação entre os entes no alinhamento desses ordenamentos pode assumir ações harmônicas, mas simultaneamente dissonantes. Na perspectiva do processo de seleção de diretores de escolas públicas, observamos que a Constituição do estado do RJ define, no artigo 308, “eleições diretas, na forma da lei, para direção das instituições de ensino mantidas pelo Poder Público, com a participação da comunidade escolar”. O Plano Estadual de Educação do estado (PEE/RJ) ainda não foi aprovado, no entanto, a lei nº 7.299/2016 (RIO DE JANEIRO, 2016) dispõe sobre os processos consultivos para a indicação de diretores e diretores adjuntos das instituições de ensino. A lei foi regulamentada, posteriormente, pela Resolução SEEDUC nº 5479/2016 (SEEDUC, 2016).

O Município do Rio de Janeiro, através da Resolução nº 20 (SME, 2017) assinada pela Secretaria de Educação deliberou sobre a consulta à comunidade escolar para a seleção de gestores das unidades escolares antes da aprovação de seu Plano de Educação sancionado através da Lei nº 6.362 de 28 de maio de 2018 (RIO DE JANEIRO, 2018). Conforme o artigo 9º da Lei, “o Município aprovará lei específica para o sistema de ensino, disciplinando a gestão democrática da educação pública, no prazo de dois anos contados a partir da publicação desta Lei, adequando a legislação já adotada com essa finalidade”. Conforme o exposto, compreende-se que a Resolução aprovada em 2017 deverá ser substituída por uma lei como determina o texto do PME. Compreendemos que o termo legislação engloba uma resolução sancionada pelo secretário de educação - o que efetivamente ocorreu no município carioca. No entanto, lei é de responsabilidade das casas legislativas, no caso, a Câmara de Vereadores. Essa questão é reforçada na meta 19 do PME que visa assegurar por meio de Lei Municipal a realização de consulta à comunidade escolar, visando garantir a gestão democrática e a escolha de diretores para cada unidade escolar. Por fim, a estratégia 19.27 do PME determina a realização de “eleições democráticas de diretores a cada três anos, assegurando amplas discussões pela comunidade escolar acerca de sua regulamentação, da gestão democrática, assim como, da sua implementação e efetivação nas unidades escolares”. O estado e o município do RJ atravessam um cenário normativo bem confuso no processo de seleção de diretores, oscilando entre os termos eleição e consulta nas diferentes legislações. Nesse aspecto, Lima (1998) afirma que a produção de uma regra não garante, obrigatoriamente e automaticamente a sua reprodução por parte de quem age e toma decisões. Segundo o autor (2011, p.174), por vezes, pode constituir bons indicadores das dificuldades ou incapacidades de resolver problemas e de concretizar mudanças decretadas, procurando compensar o déficit de mudança através de recursos retóricos e discursos doutrinais ou da reelaboração de certas regras. Pode, ainda, demonstrar diferentes graus de infidelidade normativa.

Acerca da tensão entre eleição e consulta, Amaral (2016) argumenta que, em relação à eleição, várias questões precisam ser acompanhadas no âmbito das redes públicas de educação: quem vota; se o voto é paritário; como serão construídos os processos de formação de chapas; a campanha; a votação; etc. No caso de uma consulta pública, a autora indaga se será formada uma lista tríplice para posterior nomeação do executivo e se haverá por parte do executivo a nomeação do primeiro ou de qualquer candidato presente na lista. Afinal, se é uma consulta, o executivo pode indicar um nome da lista respeitando a decisão da comunidade, mas não nomeando o candidato com mais votos.

Na perspectiva da seleção de diretores no âmbito da rede estadual do RJ, a política posta em cena pelos estudantes constrói o cenário para a análise que pretendemos tecer no que diz respeito aos (re)desenhos da política. Com a pluralidade de leituras, a política não finaliza no momento legislativo quando ela é aprovada tendo em vista a relevância de reconhecer que as intenções da política contêm ambiguidades, contradições e omissões. O processo político e o ciclo das políticas consistem em contextos com arenas distintas. Na perspectiva do ciclo de políticas proposto por Bowe e Ball (1992) e Ball e colaboradores (1994; 2016), o contexto de influência é onde a política é iniciada e os discursos políticos são construídos na expectativa que adquiram credibilidade. Há um número de arenas públicas formais - comitês, grupos representativos e outros e Mainardes (2006) nos ajuda a compreender o papel exercido pelo contexto da produção do texto na cena política ao afirmar que os textos políticos produzidos representam a política e essas representações podem tomar várias formas. Esse aspecto é crucial na perspectiva de compreendermos os estudantes secundaristas como atores na cena política que influenciaram diretamente na produção o texto legal no objeto que nos interessa - participar do processo de seleção de diretores.

O movimento de ocupação dos estudantes nos mobiliza sobre os modos como a participação destes jovens, situados no contexto da prática, a escola - de menor força - rompe com o movimento verticalizado da ação política do estado, do contexto de influência, na escrita de uma lei produzida pelo contexto de produção de textos. Como definido por Bowe e Ball (1992), o contexto da prática é onde a política está sujeita à interpretação e recriação, produzindo efeitos que podem representar mudanças e transformações significativas na política original. No caso em tela produziu a mudança na legislação que disciplina o processo de seleção de diretores.

A questão orientadora deste texto se traduz na reflexão sobre quais os movimentos da política que se configuram a partir da ação política posta em cena pelos estudantes secundaristas que induzem a construção do redesenho de uma política democrática de gestão. Nos interessa perceber como a ação dos sujeitos situados no contexto da escola se mesclam no diálogo que sistematiza a seleção de diretores, a partir da consolidação dos documentos que instituem tais atos. De acordo com os pressupostos orientadores da proposta do ciclo de políticas, nossa indagação flerta com a possibilidade de analisar a “geração das condições para a formulação da política e na construção dos textos que darão concretude às mesmas” (MAINARDES; GANDIM, 2013, p.157).

Este trabalho consiste em apontamentos iniciais do tema e pode ser entendido a partir de dois movimentos: no primeiro, o problema colocado em cena pelo movimento de ocupação, dialogando com Mouffe (2005, 2015) e Mouffe e Errejón (2016) que discorrem seus estudos sobre as práticas da política democrática na contemporaneidade operando com o referencial teórico-metodológico do ciclo de políticas (BALL, 1994). No segundo, sobre os ordenamentos legais que disciplinam a seleção de diretores nas escolas assumindo como ponto de partida da leitura a promulgação da Lei Estadual nº 7.299 (ALERJ, 2016) que, se de um lado sedimentou a demanda dos estudantes, por outro provocou orientações dissonantes entre o executivo e o legislativo do RJ. Para esta análise, recorremos a Amaral (2016, 2018) que discute a gestão democrática nas escolas e assume a participação da comunidade como elemento constituinte de tal opção política.

O caminho que antecede à produção da Lei Estadual nº 7.299 (RIO DE JANEIRO, 2016) oferece indícios para pensar nos modos de construção de uma política pública educacional, de caráter democrático. Esta Lei, quando colocada pari passu ao Plano Nacional de Educação - PNE (BRASIL, 2014), à Constituição do Estado do RJ, à Lei Orgânica do Município do RJ, e ao Plano Municipal de Educação - PME (RIO DE JANEIRO, 2018) delineiam a hipótese que permite, à primeira vista, justificar o motivo pelo qual as demandas encaminhadas pelos estudantes puderam ser atendidas. Assim, partimos do pressuposto que o legislativo encampa a demanda dos estudantes na medida em que está dado, em outros ordenamentos legais, a participação da comunidade na escolha do diretor escolar e que há, neste processo dissonante com o executivo, no caso específico do RJ, a possibilidade de um consenso político que ocorre a posteriori entre os dois poderes.

Nesse cenário, pensar os estudantes secundaristas no contexto de influência, mobilizados em torno de um processo coletivo vinculado a defesa de direitos, na objetivação de uma lei pelo legislativo, legitima estes jovens como sujeitos de direito à participação no processo de construção de uma política pública educacional. Ainda assim, nos chama atenção a ação do grupo como um coletivo que demanda por “trajetórias de vida menos compulsórias” (SOUTO, 2016, p. 282), já que é a escolaridade que “impacta as várias dimensões da vida do jovem” no sentido da construção de caminhos mais autônomos, embora não signifique a construção de valores mais democráticos (SOUTO, 2016). Como afirma Lima (2018), a democracia se constitui como processo e, como não existe uma “linearidade no acúmulo democrático no sentido de uma trajetória virtuosa” (SOUTO, 2016, p. 262), é somente pela prática da política democrática que se define a democracia e a escola democrática.

A prática da política democrática: os estudantes se articulam na cena

Para a reflexão da prática da política democrática Mouffe (2015, 2016) assume como central para a discussão os conceitos de antagonismo e de hegemonia. O primeiro diz respeito à impossibilidade de um consenso na política e, portanto, da inviabilidade de eliminar os conflitos da dimensão política, enquanto que o segundo, pensado a partir do anterior, diz respeito à inexistência de uma ordem fixa, uma ordem dada por qualquer fundamento alheio às práticas políticas dos sujeitos políticos. Para Mouffe e Errejón (2016), a hegemonia se constitui por uma permanente estratégia de desarticulação-rearticulação de diversas configurações de poder que consiste numa guerra de posições por projetos políticos distintos e é este movimento que também se dá na luta contra-hegemônica. Esta consiste num processo que implica uma multiplicidade de rupturas para desarticular os diversos pontos nos quais uma determinada ordem está assegurada (MOUFFE; ERREJÓN, 2016). Assim, os autores apostam que a abertura de um outro ciclo político se dá pelas “grietas” (MOUFFE; ERREJÓN, 2016, p. 39), ou seja, pelas brechas, sempre existentes, de oposição ao projeto que está dado como hegemônico, mas de caráter contingente. Para eles, é no espaço incontornável da negociação da política, dado pelo jogo de oposições, que novos conteúdos podem ser incluídos na pauta para uma nova agenda da política e é, neste sentido, que “a veces que los humildes pueden ganar” (MOUFFE; ERREJÓN, 2016, p. 39).

Para tal análise Mouffe (2015, 2016) considera distintas esferas da política: a da política e a do político. A primeira está relacionada com o conjunto de práticas e instituições nas quais uma ordem é criada - a escola e as instâncias de representação do Estado; a segunda diz respeito ao antagonismo inerente às sociedades humanas - alunos e representantes do estado do RJ - como sujeitos da política, responsáveis pelos “atos da instituição da hegemonia” (MOUFFE, 2015, p.16), ou seja, pelo estabelecimento de uma ordem sempre sujeita a ser desafiada.

A perspectiva de Mouffe (2015) consiste numa ferramenta teórica que possibilita a compreensão positiva do caráter agonístico da sociedade e da provisoriedade da política no entendimento que a “fronteira entre o social e o político é essencialmente instável, exigindo constantes deslocamentos e renegociações entre os agentes sociais” (MOUFFE, 2015, p. 17). O social, ela afirma ser a esfera das práticas sedimentadas, “aceitas sem contestação”, até que questionadas. Assim, direcionamos o olhar para os sujeitos que produzem um estranhamento da política vigente, sedimentada, e que a interpelam no movimento de ocupação. A ação dos secundaristas procura construir coalizões com o legislativo e esta articulação é que induz ao redesenho da agenda política no estado.

Segundo Mouffe (2016), toda ordem social que se funda consiste no resultado das possibilidades das articulações de poder e toda tentativa de instituir novas ordens constituem práticas que fazem parte do pluralismo agonístico da democracia. Assim, por meio de um desalinho do poder executivo com o poder legislativo, que atuaria na composição da pauta da política educacional, os estudantes encontram a brecha por onde entrar e articular com o legislativo uma nova agenda da política para o RJ. Esse movimento que cria a possibilidade de diálogo entre sujeitos entrelaçados situados no contexto da prática com os sujeitos do contexto de influência, situados no legislativo, pode ser justificado por meio dos ordenamentos legais que tratam da gestão democrática para as escolas. Nesse aspecto, compreendemos as ponderações de Mainardes e Marcondes (2009, p. 306) quando afirmam que, na perspectiva do ciclo de políticas, os atores em cena estão ocupando os diferentes contextos sem uma perspectiva linear ou engessada, ora como influenciadores ora como produtores da política. Nesse sentido, os contextos podem ser “aninhados” uns dentro dos outros. Dessa forma,

dentro do contexto de prática você poderia ter um contexto de influência e um contexto de produção de texto, de tal forma que o contexto de influência dentro do contexto da prática estaria em relação à versão privilegiada das políticas ou da versão privilegiada da atuação. Assim, podem existir disputas ou versões em competição dentro do contexto da prática, em diferentes interpretações de interpretações (MAINARDES; MARCONDES, 2009, p. 306).

A demanda pela gestão democrática na escola, trazida pelos secundaristas através do direito à participação na seleção de diretores, representa a contestação de uma prática historicamente sedimentada no Rio de Janeiro, que consistia na indicação política de diretores para seus cargos. A fissura, que faz com que esta demanda ganhe força, está pautada em textos legais os quais se constituem como referência para os entes federados e que apontam a gestão democrática como forma de gerir a escola (BRASIL, 1988; 1996; 2014). Desse modo, arriscamos dizer que, se de um lado os estudantes como atores no contexto da prática assumem menor força pois estão situados fora da dimensão normativa do estado, por outro, os mesmos se empoderam quando trazem para si outros textos sedimentados da política, adensados pelos representantes do legislativo, que circulam tanto no contexto de influência como no contexto de produção de textos.

O movimento dos estudantes de forma capilar se vincula a outros sujeitos no contexto de influência e de produção de textos, demandando, a partir de práticas sociais sedimentadas, a participação no processo consultivo de seleção de diretores. Nesta ação, é possível observar o jogo das diversas configurações de poder no espaço da política no que Mouffe (2016) considera como guerra de posições de poder por projetos políticos distintos. Assim, é possível observar que na luta contra hegemônica entre os jovens e os sujeitos do Estado, estas estruturas de poder que caracterizam o jogo político assumem uma forma relacional, referencialmente situada no contexto que as constituem (BALL et al, 2016), entretanto o sentido de contestação da luta assume, como afirma Mouffe e Errejón (2016), um pé no que já existe - ordenamentos legais - e outro pé na possibilidade de mudança. Assim, é no movimento de desarticulação-rearticulação da política que ocorre no fluxo entre seus contextos que os jovens assumem o lugar legítimo de fala junto ao legislativo, o que culmina na produção do texto da Lei Estadual nº 7.299 (RIO DE JANEIRO, 2016).

Pistas do caminho: os ordenamentos legais do estado

Procurando compreender os (des)alinhos no ordenamento legislativo do estado do RJ para uma nova agenda da política tecemos considerações sobre a relação entre a Lei Estadual nº 7.299 (RIO DE JANEIRO, 2016), o PNE (BRASIL, 2014), a Constituição do Estado do RJ a Lei Orgânica do Município do RJ, a Resolução SEEDUC 5479/ 2016 (SEEDUC, 2016), a Resolução da SME nº 20/17 (RIO DE JANEIRO, 2017), o Plano Estadual de Educação e o Plano Municipal de Educação do RJ (RIO DE JANEIRO, 2018). Estes textos elencados tratam da gestão democrática na escola e do modo como esta ocorrerá, na prática, no cotidiano escolar. Desse modo, alguns destes documentos traduzem como se dará a participação da comunidade no processo de seleção de diretores e por esta razão constituem um quadro inicial de análise, na medida em que possibilitam traçar caminhos para entender os possíveis diálogos estabelecidos nos contextos em que a política circula e que culmina no reordenamento legislativo da nova agenda política do estado do RJ. No quadro 1 organizamos as legislações aprovadas no estado e no município do Rio de Janeiro que tratam da gestão democrática e do processo de seleção de diretores de modo a apresentar um panorama sobre os movimentos e conflitos.

Ordenamento legal Ano de Aprovação Processo de seleção e diretores
Plano Nacional de Educação 2014 Critérios técnicos de mérito, desempenho e consulta à
comunidade escolar.
Constituição do estado do Rio de Janeiro 1989 Eleições diretas, na forma da lei, para direção das instituições de ensino
mantidas pelo Poder Público.
Plano Estadual de Educação Não aprovado xxxx
Lei N. 7299 - Estado do RJ 2016 Processos consultivos para a indicação de diretores.
Resolução SEEDUC que regulamenta a Lei N.7299/16 2016 Processo consultivo para a indicação de diretores.
Lei Orgânica município do Rio de Janeiro 1990 Eleição direta para direção das unidades da rede municipal de
ensino público.
Plano Municipal de Educação 2018 Consulta à comunidade escolar por
meio de lei municipal para escolha de diretores de unidades escolares.
Resolução SME 2017 Processo de seleção de gestores das unidades escolares.

Fonte: Elaborado pelas autoras

Sobre o PNE (Brasil, 2014), interessa observar a meta 19 que prevê, mediante lei específica aprovada pelos entes federados, a nomeação comissionada de diretores de escola vinculada a critérios de mérito e desempenho e a consulta à comunidade escolar. Esta meta se constitui como elemento a ser contextualizado no RJ em seus respectivos planos: no PEE e no PME e nas legislações posteriores que irão disciplinar o processo de seleção.

No RJ, a elaboração do Plano Estadual de Educação parece, até a presente data, não ser objeto de atenção dos sujeitos da política, situados no contexto de influência, muito embora a costura que indica uma conjunção das ações entre estado e município tenha sido traduzida na produção de textos políticos que tratam da seleção de diretores para o estado e para o município. Após a publicação da Lei Estadual nº 7.299/16 (RIO DE JANEIRO, 2016), sem a referência ao PEE, a Resolução da SME nº 20/17 (RIO DE JANEIRO, 2017) que dispõe sobre o processo de seleção de diretores para as escolas da rede pública municipal da cidade é publicada em 19 de setembro de 2017, também sem referência ao seu respectivo Plano, publicado somente em 28 de maio de 2018. Observamos, no entanto, certa confusão normativa que oscila entre os termos eleições, consulta e processo consultivo demonstrando um cenário complexo e confuso da política em cena.

Se há uma dinâmica que articula estado e município às demandas encaminhadas pelos estudantes no que diz respeito ao processo de seleção de diretores, esta fica amparada pelo PNE (BRASIL, 2014), no que diz respeito à aprovação de legislação específica que regulamente a gestão democrática. Entretanto, entre o estado e o município há diferenças nas bases em que se desenha a participação dos destinatários da política para a seleção de diretor escolar. Se para o estado a base é a Lei Estadual nº 7.299/16 (RIO DE JANEIRO, 2016) e a Resolução SEEDUC N. 579/2016 (SEEDUC, 2016) que regulamenta a Lei, para o município é a Resolução da SME nº 20/17 (RIO DE JANEIRO, 2017) e, como chama atenção Amaral (2018), a promulgação de uma Lei assume maior força, na medida em que maiores chances da comunidade participar neste processo, já a promulgação de uma Resolução, pautada pelo executivo, pode assumir característica mais frágil - descartável a qualquer momento - quando se deseja instituir formas de gerir a escola democrática.

É interessante ainda reforçar que ambos os dispositivos legais não têm qualquer vínculo específico quando se fala da tradução do PNE (BRASIL, 2014) para os planos do estado e do município do RJ, pois que até a data da publicação dos referidos textos que tratam especificamente da seleção de diretores ainda não tinham sido sancionados, mas com possíveis justificativas no que tange ao induto de publicação de legislação, pelo PNE (2014), e não lei específica. Segundo Amaral (2018, p.), esta opera de modo a

garantir que os repasses financeiros da União aos estados e municípios não dependesse da aprovação exclusiva do legislativo - no caso da aprovação de leis, prerrogativa das câmaras de vereadores e assembleias estaduais. Dessa forma, a aprovação de legislação pelo executivo - portarias, decretos, resoluções estaria contemplada possibilitando o repasse de verbas federais aos demais entes federados, mas aumentando ou reduzindo as possibilidades de participação dos destinatários da política.

Assim, para os dois entes federados, os recursos financeiros estariam garantidos independente do dispositivo legal utilizado para regulamentar uma determinada ordem mesmo considerando uma possibilidade de variação da participação da comunidade no processo. A gestão democrática no que se refere ao grau de participação da comunidade no processo fica preterida quando se fala do repasse de verbas da União para seus entes.

Considerações finais

Se de um lado há, nos sujeitos que se situam no contexto da produção dos textos políticos um espaço para aninhar as demandas dos estudantes, por outro lado, no contexto da prática há um processo de desnaturalização do social, do que está sedimentado no estado do RJ como ordem para o processo seleção de diretores, que consistia na indicação, pelo executivo e legislativo, dos sujeitos que ocupavam estas funções. Assim, é possível observar nesses jovens secundaristas um movimento que vai de encontro às práticas sociais sedimentadas e que impulsionam a reorganização dos sentidos da política, nesta produção de uma nova agenda para o RJ.

Sobre a Lei orgânica do município em seu inciso VIII, esta trata da eleição direta para direção das unidades da rede municipal de ensino público prevendo a participação da comunidade em tal processo. Já a Resolução da SME nº 20/17 (RIO DE JANEIRO, 2017) fala em processo seletivo com consulta à comunidade e o PME (2018), publicado em data posterior à Resolução, regulamenta a eleição para os diretores de escola. Aqui, chamo atenção, na Resolução da SME nº 20/17 (RIO DE JANEIRO, 2017) para a ideia de um processo seletivo, com a possível intervenção do Secretário Municipal de Educação, no sentido de “excepcionalmente” indicar um candidato ao cargo que não contemple as normas previstas na Resolução para viabilizar o processo seletivo, bem como a consulta à comunidade. Quem determina a intervenção, ou não, do executivo no processo? Seria esta uma possibilidade para a manutenção de práticas clientelistas?

De outro lado, considerando que este texto venha assumir caráter temporário, como afirma Amaral (2018), pois que o texto do PME (RIO DE JANEIRO, 2018) define que a consulta à comunidade no processo de gestão democrática será dado a partir de Lei específica, é incontornável levantar também sobre a temporalidade deste documento legal, na medida em que o estado do RJ tem apresentado um desenho desalinhado no processo de construção dos documentos orientadores de sua política, com orientações que não sugerem, ou sugerem pouco interesse no alinhamento dos ordenamentos legislativos os quais os entes federados estão destinados a seguir.

Assim, se o movimento dos estudantes secundaristas impulsiona no estado do RJ o redesenho da política é possível aferir que de um lado, há o reconhecimento destes atores sociais como demandantes de políticas públicas na agenda da política educacional do RJ e, por outro é factível assumir que os texto legais consolidados se constituíram como elementos de força no processo do reordenamento da agenda da política educacional do estado. Para seguir este caminho que aqui se abre reconhecemos que há que se estabelecer outros diálogos no legislativo, com os sujeitos da dimensão do político que assumiram os encaminhamentos dos secundaristas na produção da Lei Estadual nº 7.299/16 (RIO DE JANEIRO, 2016) e também com os jovens.

Neste cenário, o barulho legislativo provocado pela promulgação da Lei anuncia a dissonância de se pensar uma lei sem a sua base correspondente. Para Ball, “a política cria o contexto, mas o contexto também precede a política” (p.36). Isso quer dizer que, para uma materialização da política, para que ela possa ser colocada em cena, há que se considerar um “conjunto de dinâmicas de condições objetivas em relação a um conjunto de dinâmicas subjetivas” (p.37) relativas aos contextos locais. Este desenho local foi dado por alguns dispositivos legais que traduziram as condições para “o material, o estrutural e o relacional” (p.37) acontecer, no movimento que relaciona o contexto micro e o contexto macro da política no estado do RJ. Entretanto, aqui apontamos os textos políticos como caminhos iniciais de leitura entendendo que outras interlocuções precisam se estabelecidas, a fim de que possam ser melhores compreendidas a complexidade da agenda da política no movimento cíclico que a constitui. A construção do jogo de posições e oposições dos sujeitos que circulam nos contextos da prática da política democrática nos permitirá avançar em nossas indagações.

Referências

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Recebido: Agosto de 2018; Aceito: Outubro de 2018; Publicado: Janeiro de 2019

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