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Jornal de Políticas Educacionais

versión On-line ISSN 1981-1969

J. Pol. Educ-s vol.13  Curitiba  2019  Epub 18-Jul-2022

https://doi.org/10.5380/jpe.v13i0.66890 

Artigos

Notas sobre o campo de estudos do currículo: controvérsias críticas e pós-críticas

Notes on the field of curriculum studies: critical and post-critical controversies

Notas sobre el campo de estudios del currículo: controversias críticas y post-críticas

Renata Peres Barbosa1 
http://orcid.org/0000-0003-3545-2421

Sinésio Ferraz Bueno2 
http://orcid.org/0000-0003-3124-4692

1Doutora em Educação (2017) pela Universidade Estadual Paulista - UNESP. Docente da Universidade Federal do Paraná (UFPR)

2Professor doutor em Filosofia da Educação, atuando como professor do Departamento de Filosofia e da Pós-graduação em Educação da Unesp de Marília


Resumo

O presente artigo tem como objetivo tensionar o debate acerca do pensamento pós-crítico no campo do currículo, problematizando e situando os limites e controvérsias do campo enquanto subsídio teórico relevante para análise dos fundamentos e das políticas curriculares. Para tanto, no primeiro momento, apresenta-se um breve histórico dos estudos do currículo como campo de disputas, que delineia as bases para um projeto formativo que ampara as experiências escolares. Em seguida, busca-se apresentar, de modo geral, o debate pós-crítico e sua articulação com as teorias curriculares a partir de pesquisas nacionais do campo. Por fim, problematiza-se as implicações da adoção de uma perspectiva pós-crítica, buscando refletir sobre a educação e o currículo perante o quadro hegemônico do pensamento pós-crítico. Como aspectos conclusivos, inferimos que a postura cética adotada pelos enfoques pós-críticos parece-nos emboscar em uma cilada pedagógica, que impede ainda mais a apropriação dos conteúdos objetivos formativos de forma crítica, anulando as potencialidades de resistência à reificação. Trata-se de um estudo bibliográfico.

Palavras-chave: Teorias do Currículo; Pensamento pós-crítico.

Abstract

This article aims to stress the debate about post-critical thinking in the field of curriculum, problematizing and situating the limits and controversies of the field as a relevant theoretical subsidy for the analysis of fundamentals and curricular policies. In order to do so, in the first moment, a brief history of curriculum studies is presented as a field of contention, which outlines the bases for a formative project that supports the school experiences. Afterwards, it is sought to present, in a general way, the post-critical debate and its articulation with the curricular theories from national field surveys. Finally, the implications of adopting a post-critical perspective are analyzed, seeking to reflect on education and curriculum before the hegemonic framework of post-critical thinking. As conclusive aspects, we infer that the skeptical stance adopted by post-critical approaches seems to ambush a pedagogical trap, which further impedes the appropriation of formative objective contents in a critical way, nullifying the potentialities of resistance to reification. This is a bibliographic study.

Keywords: Curriculum Theories; Post-critical thinking.

Resumen

El presente artículo tiene como objetivo tensar el debate acerca del pensamiento post-crítico en el campo del currículo, problematizando y situando los límites y controversias del campo como subsidio teórico relevante para el análisis de los fundamentos y de las políticas curriculares. Para ello, en el primer momento, se presenta un breve histórico de los estudios del currículo en cuanto campo de disputas, que delinea las bases para un proyecto formativo que ampara las experiencias escolares. A continuación, se busca presentar, de modo general, el debate post-crítico y su articulación con las teorías curriculares a partir de investigaciones nacionales del campo. Por último, se cuestiona las implicaciones de la adopción de una perspectiva post-crítica, buscando reflexionar sobre la educación y el currículo ante el cuadro hegemónico del pensamiento post-crítico. Como aspectos concluyentes, inferimos que la postura escéptica adoptada por los enfoques post-críticos nos parece emboscar en una trampa pedagógica, que impide aún más la apropiación de los contenidos objetivos formativos de forma crítica, anulando las potencialidades de resistencia a la reificación. Se trata de un estudio bibliográfico.

Palabras clave: Teorías del Currículo; Pensamiento post-crítico.

Introdução

No auge dos movimentos culturais dos anos de 1970, a tendência pós-moderna ganha destaque e se difunde em diversas áreas do conhecimento como uma “nova onda” que entusiasma as orientações investigativas. Torna-se uma tendência cultural dominante, que se hegemoniza no campo das ciências humanas e sociais nos anos de 1990.

No Brasil, a partir da década de 1990, o pensamento “pós-moderno” ou “pós- crítico” ganha a cena e passa a ser base teórica que fundamenta o debate educacional. A recepção desse pensamento tem ressoado, em especial, no debate sobre o currículo escolar, campo de estudos que se enredou para as influências pós-críticas (pós-modernas, pós-estruturalistas, multiculturais, entre outras), no final da década de 1990 até os dias atuais (MOREIRA, 1998; LOPES e MACEDO, 2010; SILVA, 2004), tornando-se fundamento teórico hegemônico da teorização curricular, de modo que suas implicações merecem ser refletidas. Os pressupostos pós-críticos influenciam tanto os fundamentos teóricos da teoria do currículo quanto o campo das políticas educativas curriculares no cenário nacional, em um “movimento de hegemonização dos estudos de corte pós-crítico no campo da produção científica em currículo” (THIESEN, 2015, p. 641).

Com ênfase nos processos de subjetivação e no elogio à diferença, rompe com visões de totalidade, universalidade e objetividade, no questionamento dos princípios da modernidade. A problematização levantada no presente trabalho é que tais pressupostos desfazem os próprios alicerces das possibilidades de crítica à racionalidade instrumental, pois se respaldam em discursos relativistas, de base irracional e subjetivista, minando as possibilidades de crítica e de enfrentamento da reificação da realidade social.

Ao considerar que o campo do currículo sofre uma “virada epistemológica” de corte pós-crítico, busca-se compreender o campo de problematização presente no debate sobre o currículo, com o intuito de desenvolver um olhar crítico a partir da problematização das contradições marcadamente presentes.

Tal problemática se justifica uma vez que compreendemos que o debate sobre os fundamentos teóricos curriculares alude sobre princípios que sustentam projetos sociais que repercutem na educação e incidem diretamente sobre os projetos formativos e, por sua vez, sobre as políticas curriculares. Com efeito, promover tal debate se torna tarefa relevante para o campo curricular, como salientam Pacheco e Sousa (2016):

Escrever sobre a teorização crítica e pós-crítica é sempre algo de pertinente, mais ainda quando a sociedade, onde estão mergulhadas as escolas, com os seus projetos de currículo orientados tendencialmente para a aprendizagem, necessita de ser repensada, sobretudo no modo como as políticas neoliberais impõem lógicas que anulam o currículo como projeto de educação (PACHECO; SOUSA, 2016, p. 67).

Nesse sentido, o presente artigo tem como objetivo tensionar o debate acerca do pensamento pós-crítico no campo do currículo, problematizando e situando os limites e controvérsias do campo enquanto subsídio teórico relevante para análise dos fundamentos e das políticas curriculares. Para tanto, no primeiro momento, apresenta-se um breve histórico dos estudos do currículo enquanto campo de disputas, que delineia as bases para um projeto formativo que ampara as experiências escolares. Em seguida, busca-se apresentar, de modo geral, o debate pós-crítico e sua articulação com as teorias curriculares a partir de pesquisas nacionais do campo do currículo (PARAISO, 2005, 2010; SILVA, 2004; LOPES, 2013). Por fim, o intuito é problematizar as implicações da adoção de uma perspectiva pós-crítica nos estudos sobre currículo, à luz dos contrapontos apresentados, em especial, por Julia Malachen (2014), Lucíola Santos (2007), Maria Célia

Moraes (2001; 2004) e Juares Thiesen (2014), arcabouço argumentativo que nos oferece insights significativos para pensar a educação e o currículo perante o quadro hegemônico do pensamento pós-crítico. Trata-se de um estudo bibliográfico.

O campo de estudos do currículo: breve histórico

Os estudos do currículo se configuram como um espaço de lutas e controvérsias, ao versarem sobre as concepções de homem e de sociedade, e delineiam as bases para um projeto formativo que ampara as experiências escolares. Neste tópico, temos como objetivo apresentar brevemente o histórico do campo de estudos do currículo, a partir das considerações de teóricos curriculistas, a saber, Tomaz Tadeu da Silva (2004), Alice Lopes e Elizabeth Macedo (2010) e José Alberto Pedra (1997).

A breve retomada histórica dos estudos do currículo nos permite compreendê-lo como campo de disputas, animado por questões históricas, éticas e políticas. Os currículos são tensionados constantemente pelas demandas e exigências sociais, na apropriação de seus códigos, e carregam uma carga ideológica que pode conformar ao modelo social, na incorporação da racionalidade e lógica dominantes. O campo curricular educacional deve ser concebido como uma construção - trata-se, portanto, de uma seleção da cultura, sendo histórica e política. Ou seja, diz respeito aos projetos formativos em ação, e neles refletem os projetos sociais em disputa. Assim, vemos que o conceito de currículo já adquiriu diversas definições, modificando-se conforme o contexto histórico.

No que se refere ao campo teórico, a teoria curricular no Brasil, sob o enfoque tradicional, perdurou dos anos de 1920 até por volta dos anos de 1980. Teve respaldo no referencial positivista e funcional, de caráter técnico e instrumental, marcado pela transferência instrumental das teorizações americanas. O campo associou-se aos interesses voltados para a formação do trabalhador e a consequente massificação da escolarização, atendendo às demandas da industrialização e da urbanização. Através do currículo, buscava-se a racionalização dos processos educativos com base nos preceitos da administração, a partir da organização racional dos tempos e espaços. Com base nos princípios de racionalidade e eficiência, o currículo centra-se no planejamento e organização das atividades, a partir de bases científicas, voltado para a adequação de métodos educacionais, visando ao controle dos processos educativos.

No final da década de 1970, começam a emergir no Brasil perspeactivas críticas, de viés marxista, sob a influência das teorias da reprodução e das abordagens sociológicas, desenvolvidas nos Estados Unidos e na Inglaterra. A teoria crítica contesta radicalmente o viés tecnicista e denuncia a escola enquanto instituição reprodutora das estruturas sociais injustas e desiguais, de modo que o currículo é compreendido como veículo de disseminação da ideologia dominante. O pensamento crítico ganha a cena no país e se torna o quadro hegemônico dos estudos curriculares até meados da década de 1990.

Na década de 1990, assiste-se à abertura do campo da teoria curricular para influências teóricas pós-críticas, em que novas questões são colocadas. A crítica enfatiza o quanto a escola, a partir de um modelo universalista e eurocêntrico, oprimiu e segregou grupos sociais. São correntes céticas em relação ao projeto moderno e seus princípios, sob a perspectiva do contingente e do descontínuo, buscam abarcar as subjetividades plurais, rompendo com as noções de sujeito racional e emancipação aclamadas pelas teorias críticas. Assim, o currículo passa a enfatizar discursos sobre a promoção da diferença e das linguagens particulares, no intuito de reconhecer e dar voz às minorias silenciadas, com vistas à construção de identidades e subjetividades, que trataremos no próximo tópico.

O currículo e o pensamento pós-crítico: crítica aos princípios modernos e a ênfase na diferença

Neste tópico, temos como objetivo apresentar, ainda que de modo geral, o debate pós-crítico e sua articulação com as teorias curriculares a partir de pesquisas nacionais do campo do currículo, em especial, Tomaz Tadeu da Silva, Alice Lopes e Marlucy Alves Paraíso.

Embora a perspectiva pós-crítica se insira num quadro de distintas vertentes, o que dificulta traçar uma definição precisa, o questionamento dos princípios da modernidade ressoa como um traço em comum: desconfia-se do discurso universal, das metanarrativas e das grandes cosmovisões que prometeram mais justiça e liberdade entre os homens, ao considerar as relações de opressão e de desigualdade legitimadas pela razão universal. Assim, os processos formativos implicados nas pretensões universalistas são postos em suspensão, na rejeição dos núcleos fundamentais do legado do Iluminismo e da filosofia clássica: as concepções de sujeito, razão e conhecimento científico. A razão é desacreditada enquanto fundamento e ferramenta para eliminar as desigualdades e injustiças sociais. Trata-se de uma “reavaliação radical da cultura do Iluminismo e de sua concepção de uma razão universal” (PETERS, 2000, p. 50).

Diante deste quadro, podemos colocar ainda como aspecto comum a ênfase na diferença, enquanto crítica da identidade e dos processos identificatórios que a enquadram em suas infinitas normatizações. Assim, a ideia de diferença é radicalizada, remete a algo que não se fixa, que não se submete à identidade. A diferença aparece, nesse sentido, como indeterminação e subversão aos saberes postos, buscando quebrar com as noções de estabilidade, substituídas pelo instável e pelo incerto.

Na segunda metade dos anos de 1990, o campo da teoria curricular no Brasil passa a incorporar enfoques pós-críticos, da chamada “agenda pós-moderna”, marcado por múltiplas influências teóricas advindas, em especial, da literatura francesa, e que colocam em suspensão os princípios críticos. Autores como Michel Foucault, Jacques Derrida, Gilles Deleuze, Félix Gattari, Edgar Morin, entre outros são os que mais tiveram repercussão no período (MOREIRA, 1998; LOPES e MACEDO, 2010; SILVA, 2004, PARAÍSO, 2004).

No campo do currículo, a expressão teorias pós-críticas é utilizada para se referir às teorias que questionam os pressupostos das teorias críticas, marcadas pelas influências do marxismo, da Escola de Frankfurt e em alguma medida da fenomenologia, discussões em que as conexões entre currículo, poder e ideologia são destacadas (LOPES, 2013, p. 9).

A expressão teorias pós-críticas em educação e no currículo, embora não apresentem um corpo conceitual coerente e unificado, são correntes céticas em relação ao projeto moderno e seus princípios, por conseguinte, ao princípio da identidade. Sob a perspectiva do contingente e do descontínuo, buscam abarcar as subjetividades plurais, marcadas por diversas tendências teóricas que visam atender as demandas da incorporação teórica proposta pela “virada linguística” no campo cultural, tido como “cenário de fluidas, irregulares e subjetivas paisagens” (LOPES, 2013, p. 17), que “inclui os estudos pós-estruturais, pós-coloniais, pós-modernos, pós-fundacionais e pós- marxistas” (LOPES, 2013, p. 10), em que “todos esses movimentos se cruzam, se mesclam [...] pertencendo a uma tradição que se remete aos pensamentos de Nietzsche, Heidegger e Derrida” (LOPES, 2013, p. 17). Seguindo tais premissas, os processos de significação são tidos enquanto instáveis, a análise se estende ao campo do simbólico, dos discursos e das práticas, críticas que alcançam a reflexão pedagógica: “a atitude pós-estruturalista enfatiza a indeterminação e a incerteza também em questões de conhecimento” (SILVA, 2004, p. 123).

Assim, o currículo é considerado o espaço de crítica à lógica moderna, suas centralidades, hierarquias e verdades. Dá lugar ao múltiplo, como prática de significação: “se os percursos exigem outros traçados, os currículos envolvem tranversalizações que abandonam fronteiras disciplinares em sua forma de organização, em seus desenhos” (MAUÉS, 2004, p. 8). Um currículo que cria sujeitos, livre de prescrições, enquanto prática de subjetivação, que “prefere a diferença em si, a variação, a multiplicação, a disseminação e a proliferação” (PARAISO, 2010, p. 588).

Caminhos rizomáticos, esse é um dos termos muito presentes nos debates sobre currículo nos dias atuais, os diferentes estudos pós-críticos do currículo "fazem rizoma em sua heterogeneidade” (PARAISO, 2005, p. 79). O conceito de rizoma é um termo da botânica, que significa uma espécie de raiz, são ramificações de plantas que não se direcionam a partir de uma base, como as árvores. Assim, os rizomas seguem sem uma direção prévia. No campo da filosofia, a imagem do rizoma é utilizada por Deleuze e Guatarri para exemplificar um sistema filosófico aberto, não mais ancorado por conceitos, mas num devir caótico estabelecido na heterogeneidade, na multiciplidade, sem eixo, sem direção, na ordem das experimentações.

Nas perspectivas pós-críticas de currículo, os caminhos rizomáticos são recorrentes, utilizados como opção metodológica para a promoção da diferença: “o processo de produção de conhecimento pode ser imaginado como rizoma, que requer criatividade e invenção e que pode ser confeccionado por linhas não lineares” (MAUÉS, 2004, p. 7), que se “prolifera e estende-se para os modos de subjetivação” (PARAISO, 2005, p. 76).

Para subsidiar nossa análise, tomamos por base dois textos que tratam diretamente do currículo na perspectiva pós-crítica, a saber: Currículo-mapa: linhas e traçados das pesquisas pós-críticas sobre currículo no Brasil (2005) e Diferença no Currículo (2010), ambos de Marlucy Alves Paraíso. No texto Currículo-mapa: linhas e traçados das pesquisas pós-críticas sobre currículo no Brasil (2005), Paraiso investiga as principais linhas de discussão sobre o currículo pós-crítico a partir das publicações no âmbito da ANPED - Associação Nacional de Pós-Graduação em Educação. O currículo pós-crítico é marcado pela multiplicidade de definições que, segundo a autora, são caminhos que permitem transgredir e romper com a rigidez. O currículo “é pós-crítico porque faz traçados e trajetos, sempre mutantes, que mostram conjunções, disjunções e lacunas produzidas nos movimentos de desterritorializações e reterritorializações, que geram trajetórias marcadas pelo pensamento pós-crítico” (PARAISO, 2005, p. 70). Subsidia sua análise com elementos da filosofia da diferença deleuziana, entendendo o currículo como “currículo-mapa”, de saliência rizomática, da multiplicidade: “o currículo pós-crítico pode ser lido como um mapa. Afinal, nele encontramos um conjunto de linhas dispersas, funcionando todas ao mesmo tempo, em velocidades variadas” (p. 69). Ou ainda: “currículo-mapa é experimental, quer ligar multiplicidades, fazer conexões e composições, desterritorializar e reterritorializar” (PARAISO, 2005, p. 69).

Salienta a autora que o currículo deve “transgredir, fazer proliferar a diferença, o singular, a criação, o movimento” (PARAISO, 2005, p. 72). Diferença e repetição são elementos atrelados e essenciais ao currículo pós-crítico, que corresponde a uma criação, uma invenção social, o currículo “gosta de inventar, diferenciar, repetir” (PARAISO, 2005, p. 71-72). No tocante à repetição, vale destacar que não significa a repetição/reprodução do semelhante, ao contrário, se associa à diferença, e não à representação: “não é generalidade e nem o procedimento de reunião das coisas supostamente semelhantes sob o mesmo conceito ou a mesma lei. Repetição é o que vem primeiro; é a força que faz a criação” (PARAISO, 2005, p. 71).

A repetição tem ligação com a produção da singularidade e da diferença. Ela é transgressão. Põe a lei em questão. Manifesta sempre ‘uma singularidade contra os particulares submetidos à lei e um universal contra as generalidades que fazem a lei’ (Deleuze, 1988, p. 27). A repetição é crucial para a própria criação; é a condição da diferença. A repetição é aquilo que faz agir a diferença; é o "motor" da diferença. É pura invenção! (PARAISO, 2005, p. 71-72).

No texto Diferença no Currículo (2010), a autora visa ensaiar o currículo da diferença a partir dos pressupostos da filosofia de Gilles Deleuze, “filósofo da multiplicidade”, que pensa a diferença, a repetição e o acontecimento. É enfática: o currículo da diferença se refere a “um adeus à identidade” (p. 588), contrapõe-se radicalmente ao pensamento da identidade, à busca por definições, explicações, ordenações, especificações, pois “mesmo quando é pensada na sua relação com a diferença, é a identidade que está em foco” (p. 592), visto que “buscamos o comum sob a diferença” (p. 592), somos “acostumados a olhar por meio da identidade” (p. 593). Assim, “pensar o currículo com a diferença deleuziana é tirar o foco da identidade” (p. 592), é romper com a ideia de “classificar, encontrar a unidade, aquilo que as identifica: a identidade” (p. 592).

O currículo da diferença diz respeito a uma reivindicação da diferença pura, da multiplicidade, refere-se “aquelas hastes de rizomas que brotam, crescem e se bifurcam” (p. 595). Em síntese, “para ver, sentir e registrar o jogo da diferença, em vez do ‘é’ (que remete à identidade), devemos priorizar o ‘e’ (que remete à multiplicidade). O ‘e’ é o entre-espaço de um currículo, é o que está no meio, que cresce no meio dos currículos” (p. 595). Desse modo, se assenta no terreno rizomático da diferença pura: “Um currículo é, por natureza, rizomático, porque é território de proliferação de sentidos e multiplicação de significados” (PARAISO, 2010, p. 588). Com efeito, “um currículo é diferença por natureza; é pura diferença; é diferença em si” (PARAISO, 2010, p. 588), “exalta e reivindica a diferença em si: o diferenciar-se em si da própria coisa” (PARAISO, 2010, p. 588).

Em síntese, o currículo pós-crítico opera na recusa às representações, como criação de práticas discursivas, como elemento de produção e constituição de realidades. O modo de conceber o conhecimento apropria novas formas: segue no questionamento das metanarrativas iluministas, na suspensão das noções de razão, sujeito, ciência, progresso, entre outros. Seguindo tais acepções, o currículo deve refletir sobre o movimento de constituição dos processos de significação, que nunca são fixos e se voltam para a produção das diferenças, em que não há nenhum elemento transcendental. Os mecanismos de validação do conhecimento são relativizados, numa gama diversa de narrativas, uma “discursividade inventada”.

Controvérsias sobre o pensamento pós-crítico e o currículo

Nesta seção, nosso intuito é problematizar as implicações da adoção de uma perspectiva pós-crítica nos estudos sobre currículo, à luz das contrapontos apresentados, em especial, por Julia Malachen (2014), Lucíola Santos (2007), Maria Célia Moraes (2001;2004) e Juares Thiesen (2015), arcabouço argumentativo que nos oferece insights significativos para pensar a educação e o currículo diante do quadro hegemônico do pensamento pós-crítico. De modo geral, de acordo com esses autores, conceber a ação pedagógica circunscrita aos limites da experiência imediata, aos “limites rizomáticos da diferença pura”, da multiplicidade das narrativas simbólicas, discursivas e parciais, dos “jogos de linguagem”, parece-nos emboscar em uma cilada pedagógica, que impede ainda mais a apropriação dos conteúdos objetivos formativos de maneira crítica, como veremos a seguir.

No artigo Currículo em tempos difíceis, Lucíola Santos (2007) argumenta que, com a gradual influência de referenciais pós-modernistas no currículo, esse campo teórico deixou de oferecer contribuições efetivas para a prática pedagógica nas escolas. Sob o crivo do campo hegemônico pós-crítico, tal tendência tem paralisado a crítica, engessado as possibilidades de se avançar nas discussões em currículo nas escolas. Conforme a autora, “falar em currículo implica em pensar e analisar criticamente o que as escolas estão fazendo ou o que pretendem fazer. Para este grupo, como não há certezas objetivas que assegurem o que é melhor e pior, não há como trabalhar nessa perspectiva” (SANTOS, 2007, p. 294). Dessa maneira, sob o viés pós-moderno o campo do currículo perde seu caráter crítico, “não mais oferecendo reflexões, ideias e perspectivas que façam avançar o currículo escolar” (SANTOS, 2007, p. 295).

De acordo com Lucíola Santos, há um receio em ser normativo, o que faz com que se impossibilitem orientações pedagógicas nas escolas: “de uma maneira bem direta e simples, parece que fica quase impossível, para alguns, aprofundar problemas presentes nos currículos escolares sem ser prescritivo, e para outros, sem ser moralista, essencialista e metafísico” (SANTOS, 2007, p. 294). A autora chama a atenção para o fato de que, ao se rechaçar com as verdades objetivas, discutir currículo pensando na possibilidade de emancipação tornou-se, portanto, sinônimo de opressão. Santos (2007) argumenta sobre a importância de se estabelecer parâmetros futuros nas escolas, de modo objetivo, pontuar suas fragilidades e necessidades. A crítica é para o normativo, para as regras, as normas e convenções para a vida social. No entanto, a pluralidade, para a autora, no plano relativista, desacompanhada do conteúdo objetivo, não supera os discursos do senso comum:

sua preocupação com a diferença leva a um discurso acadêmico, em que, muitas vezes, a própria diferença na forma e conteúdo da produção não tem possibilitado um estranhamento, que leve a novas interpelações sobre questões naturalizadas pelo senso comum pedagógico (SANTOS, 2007, p. 305).

Ainda como outro risco advindo da adoção do discurso pós-crítico, Santos (2007) conclui sua argumentação alertando o quanto os valores efêmeros, defendidos por essa abordagem, podem aliar-se à sociedade do consumo, seguindo os ritos da cultura de mercado. Para a autora,

É preciso examinar com cautela as ideias que circulam nesse campo, pois algumas delas parecem estar se alinhando à arquitetura dessa sociedade de consumo, em que a valorização do efêmero, do instantâneo, do que causa prazer imediato, reproduz a exclusão social de forma insidiosa e brutal (SANTOS, 2007, p. 305-306).

Indo na mesma direção, o texto Virada Epistemológica no campo curricular: reflexos das políticas de currículo e em proposições de interesse privada, de Juares Thiesen, também nos alerta quanto às implicações da dita virada epistemológica para o currículo. Para Juares Thiesen (2015), a proposta de uma educação pela indeterminação, por não poder demarcar padrões do que se almeja alcançar, pode ser bem recebida pelo mercado e por setores não comprometidos com uma educação de qualidade. Assim, adverte o autor:

Considerando-se haver rejeição a fundamentos, perspectivas de projetos de futuro e orientação teórico-metodológica, pode, sob certo aspecto, ampliar ainda mais as fendas que separam os registros teóricos do campo curricular da prática dos professores e, sob outro aspecto, estimular certo esvaziamento de sentidos para projetos de formação humana, o que induziria o fortalecimento da iniciativa não estatal e privada nestes espaços politicamente menos marcados (THIESEN, 2015, p. 643 - 644).

Além disso, para o autor, a ausência de perspectivas formativas futuras decorrentes do pensamento pós-crítico tem consequências para a formação de professores e pode repercutir negativamente, ao esvaziar de sentidos os projetos de formação humana.

Ainda oportuna para o debate em questão, por fim, apresentamos a tese de Julia Malachen (2014) intitulada Pedagogia histórico-crítica e o currículo: para além do multiculturalismo das políticas curriculares nacionais. A partir da análise da influência do neoliberalismo no campo das políticas educacionais, aproxima o discurso neoliberal aos pressupostos do pensamento pós-moderno que, segundo a crítica da autora, se sustenta com base no relativismo cultural e epistemológico. Para a autora, o movimento pós- modernista legitima o ideário neoliberal, servindo aos interesses ideológicos do capitalismo:

O discurso produzido pelas reformas neoliberais, direcionadas pelos organismos internacionais para as necessidades da economia e do Estado burguês, se reflete claramente, no campo do conhecimento, materializando-se em um discurso pós-moderno, e apresentando, com isso, outro modelo de produção da ciência (MALACHEN, 2014, p. 17).

Julia Malachen (2014) traz à tona algumas implicações da adoção da perspectiva pós-moderna nas políticas curriculares, que se convertem em uma das importantes ferramentas para atender as demandas da mundialização do capital. A autora alerta para as suas contradições, ao tratar-se de uma “visão de mundo que, aparentemente, defende a inclusão social, a democratização, o respeito à diversidade etc., mas que, na realidade, tem como função principal a legitimação ideológica do capitalismo contemporâneo” (p. 18).

Para a autora, a presença dos pressupostos pós-modernos nas políticas curriculares nacionais carrega questões nem sempre evidenciadas, que fragilizam as possibilidades de crítica, conferindo preocupantes implicações atinentes ao papel da escola: “o relativismo trazido da ideologia pós-moderna para o campo educacional soma- se ao pragmatismo neoliberal, marcando de forma comprometedora a função social da escola [...] aprisionada aos limites da vida cotidiana, assumida como instância única da prática social” (MALACHEN, 2014, p. 21). Desse modo, as análises de Malachen indicam que a concepção de currículo hegemônica no campo aponta para a desvalorização do conhecimento objetivo e para o esfacelamento do currículo.

Maria Célia Moraes, nos textos Recuo da teoria: dilemas da pesquisa em educação (2001) e O renovado conservadorismo da agenda pós-moderna (2004), assinala a importância da crítica à epistemologia moderna, contudo, sem cair no ceticismo e no relativismo. Nesse sentido, problematiza o quanto as produções da chamada “agenda pós- moderna” tendem a suprimir a discussão teórica, refere-se ao movimento de “recuo da teoria”, uma retração teórica em decorrência do ceticismo pós-crítico, com implicações éticas e políticas que inviabilizam a potencialização do pensamento crítico sob a perspectiva do contingente, do descontínuo e das subjetividades plurais: “descarta-se a necessidade humana de inquirir sobre questões relativas à natureza do objeto e do próprio conhecimento” (p. 352) e “reduz o cognoscível à experiência sensível” (p. 352). Por sua vez, esvazia-se a intervenção pedagógica através da renúncia ao saber historicamente sistematizado, e ao conhecimento acumulado. Imersos em “fragmentos descolados, nômades perdidas nas ilhas dos discursos” (MORAES, 2004, p. 353), reduz-se ao pragmático, à dimensão prática, na obstrução da apropriação dos conhecimentos elaborados.

Considerações finais

Partindo do pressuposto de que as teorizações e pesquisas da agenda “pós- moderna” se voltaram para o campo do currículo escolar, sobretudo a partir do final da década de 1990, neste artigo propomos tensionar a discussão a partir de uma análise crítica dos pressupostos pós-críticos nas produções no campo do currículo. Diante desse cenário de ênfase nos processos de subjetivação, depreendemos que o ceticismo epistemológico, núcleo central do pensamento pós-crítico, tem repercussões que incidem diretamente no papel da educação escolar, e influenciaram tanto os fundamentos quanto as políticas curriculares. Ao aludir a uma singularidade sem apelo à identidade, essas abordagens recaem em solo relativista, em um horizonte de indeterminação, em que se anula o investimento no conteúdo objetivo e nas potencialidades críticas.

Desse modo, como aspectos conclusivos, inferimos que a postura cética adotada pelos enfoques pós-críticos leva ao esvaziamento das potencialidades críticas, exaurindo os conteúdos objetivos formativos necessários para a resistência aos modos de dominação do mundo administrado. Ao conceber a ação pedagógica circunscrita aos limites da experiência imediata, aos limites “rizomáticos da diferença pura” e da multiplicidade das narrativas simbólicas, discursivas e parciais, parece-nos emboscar em uma cilada pedagógica, que impede ainda mais a apropriação dos conteúdos objetivos formativos de forma crítica, anulando as potencialidades de resistência à reificação.

Referências

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Recebido: Julho de 2019; Aceito: Agosto de 2019; Publicado: Outubro de 2019

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