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Jornal de Políticas Educacionais

versión On-line ISSN 1981-1969

J. Pol. Educ-s vol.14  Curitiba  2020  Epub 01-Dic-2021

https://doi.org/10.5380/jpe.v14i0.73335 

Article

Neoliberalismo, Teoria do Capital Humano e Avaliação: Contribuições Para o Debate das Políticas Educacionais

Neoliberalism, Theory of Human Capital and Evaluation: Contributions to the Debate of Educational Policies

Neoliberalismo, Teoría del Capital Humano y Evaluación: Contribuciones al Debate de las Políticas Educativas

Wesley Brito Magalhães1 
http://orcid.org/0000-0002-5772-9041

Lúcia Maria de Assis2 
http://orcid.org/0000-0002-6380-2129

1Mestrando em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás (UFG), na linha de Estado, Políticas e História da Educação. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Didática e Questões Contemporâneas - DIDAKTIKÉ FE/UFG. Goiania, GO, Brasil.

2Doutora em Educação pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e Professora da Faculdade de Educação da UFG, na graduação e no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE). Goiania, GO, Brasil.


Resumo

O artigo objetiva contribuir com o debate atual da educação que vem sendo chamada pelos neoliberais a formar o sujeito competitivo, empresário de si mesmo. Trata-se de um estudo teórico que tem por base a noção foucaultiana de sociedade neoliberal. Problematiza o neoliberalismo e a teoria do capital humano como orientadores de políticas públicas que assimilam os valores da nova gestão pública, pautadas na meritocracia e na competição nas e entre as escolas. Sinaliza que a racionalidade neoliberal impõe mecanismos simplificadores da realidade educacional, como os indicadores provenientes das avaliações em larga escala, o que dificulta e às vezes impede o exercício pleno de uma prática educativa emancipatória.

Palavras-chave: Neoliberalismo; teoria do capital humano; avaliações em larga escala

Abstract:

The article aims to contribute to the current debate on Education that has been called by neoliberals to develop the subjects as competitive and entrepreneurs for themselves. It is a theoretical study based on the Foucaultian notion of neoliberal society. It problematizes the neoliberalism and the theory of human capital as the guidelines for public policies that assimilate the values of the new public management, based on meritocracy and competition in and between schools. It signals that neoliberal rationality imposes mechanisms that simplify educational reality, such as the indicators resulting from large-scale evaluations, which makes it difficult and sometimes prevents the full exercise of an emancipatory educational practice.

Keywords: Neoliberalism; theory of human capital; large-scale evaluations

Resumen:

El artículo tiene como objetivo contribuir al debate actual sobre educación que han convocado los neoliberales para desarrollar los temas como competitivos y emprendedores por sí mismos. Es un estudio teórico basado en la noción foucaultiana de la sociedad neoliberal. Problematiza el neoliberalismo y la teoría del capital humano como pautas para las políticas públicas que asimilan los valores de la nueva gestión pública, basados en la meritocracia y la competencia dentro y entre las escuelas. Señala que la racionalidad neoliberal impone mecanismos que simplifican la realidad educativa, como los indicadores resultantes de las evaluaciones a gran escala, lo que dificulta y a veces impide el ejercicio pleno de una práctica educativa emancipadora.

Palabras-clave: Neoliberalismo; teoría del capital humano; evaluación a gran escala

Introdução

Elevar o desempenho educacional nos índices resultantes dos exames em larga escala tem sido uma das grandes preocupações dos governos brasileiros desde a década de 1990. Ressalte-se que esse foi um dos compromissos da campanha eleitoral do atual governo3 no qual se lê, “que as crianças e os jovens brasileiros deveriam ter um desempenho escolar muito melhor, tendo em vista o montante de recursos gastos”, e “que o nível de gastos que o Brasil tem com educação é incompatível com o péssimo nível educacional dos estudantes”, levando em consideração os resultados no Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA)4 promovido pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

Entretanto, a respeito do montante de recursos que o Brasil aplica em educação, Amaral mostra que o Brasil aplica muito menos por pessoa em idade educacional do que a média dos países membros da OCDE (AMARAL, 2013). Quanto ao desempenho dos estudantes brasileiros no PISA, a análise deve ser feita levando-se em conta os diversos fatores intervenientes no resultado, inclusive a enorme desigualdade social e educacional brasileira. Estudo publicado por Amaral, Assis e Oliveira (2018) mostra que, quando se isola o resultado dos estudantes da rede federal, o resultado no PISA é compatível com a média dos países da OCDE. Ou seja, faltam às redes estaduais e municipais melhores condições de ensino, o que implica aumento dos recursos destinados à educação.

Por sua vez, o Ministro da Educação, Abraham Weintraub, na cerimônia de sua posse em abril de 2019, comprometeu-se a melhorar os resultados educacionais e a entregar o que foi prometido na proposta de governo de Bolsonaro. Nesta ocasião, Bolsonaro, o presidente, definiu o que espera da educação até o final do seu mandato:

Queremos uma garotada que não esteja ocupando os últimos lugares no Pisa. Queremos que não mais 70% dessa garotada não saiba fazer uma regra de três simples, não saiba interpretar textos, não saiba perguntas básicas de Ciências. Nós queremos uma garotada que comece a não se interessar por política, como é atualmente dentro das escolas, mas comece realmente aprender coisas que possam levar a quem sabe ao Espaço no futuro.5 [grifo nosso].

Chama atenção o objetivo declarado do Presidente da República em desestimular o interesse dos jovens pela política. Embora o fenômeno da despolitização não seja novo no cenário da educação brasileira, Paulo Freire já se manifestava com indignação sobre esse processo há algumas décadas passadas, quando afirmou que “A educação para hoje é a que melhor adapte homens e mulheres ao mundo tal qual está sendo. Nunca talvez se tenha feito tanto pela despolitização da educação quanto hoje” (FREIRE, 2000, p. 95). Constata-se, portanto, que no atual governo esse processo tende a se aprofundar.

Outra fala emblemática no âmbito deste governo foi proferida pelo Ministro da Educação em setembro de 2019, na cerimônia Destaques da Educação, publicada no jornal Valor Econômico, na matéria Brasil "só tem espaço para os melhores", diz Weintraub a crianças6. Ao se dirigir às crianças e adolescentes na cerimônia, o ministro defendeu que o Brasil “só tem espaço para os melhores” e que “quem tem mérito tem que ser premiado”. Salientou ainda que uma das propostas do governo federal é aumentar em 50% os repasses para o Ensino Fundamental “com critérios de desempenho, não para dar dinheiro a fundo perdido”. Na mesma ocasião, em conversa com jornalistas, como mencionado na referida matéria, o ministro destacou que “a competição é algo que puxa todo mundo para cima e que precisa ser espalhada pelo Brasil”, e acrescentou que

Tem que haver uma dinâmica para aumentar a competição e mostrar que quem vai melhor recebe mais, que quem melhora mais recebe mais. É um critério de gestão. Você introduz a competição não para punir quem ficou para trás, mas para estimular que todos melhorem sua performance.

Destaca-se o fato de um ministro da educação explicitar publicamente a “competição” e a “meritocracia” como princípios que devem ser fomentados pelo Estado para a melhoria individual, em uma fala que remete ao spencerismo, ao destacar que o Brasil “só tem espaço para os melhores”, sem mencionar as profundas desigualdades sociais e educacionais brasileiras e sem propor políticas para reduzir tais desigualdades.

A “dinâmica da competição” está no cerne das políticas públicas educacionais desde as reformas educacionais da década de 1990, introduzidas no Brasil com o movimento pelas referências curriculares nacionais, que deram centralidade aos resultados de exames de desempenho dos estudantes em larga escala. Tais políticas estimulam a competição que é própria da concepção de sociedade baseada na lógica mercantil adaptada ao campo educacional.

É nesta discussão que este estudo teórico se insere. Inicialmente apresenta-se uma síntese que problematiza o neoliberalismo e um dos seus elementos fundamentais, que vem influenciando as formas de conceber a educação em nível mundial, a teoria do capital humano. Em seguida problematiza-se a avaliação de desempenho escolar em larga escala, que ganhou centralidade nas políticas educacionais brasileiras, entendida neste contexto como uma prática governamental que vem sendo utilizada para desqualificar a educação pública, responsabilizar os professores e gestores pelos desempenhos insatisfatórios dos estudantes nos exames e testes estandardizados, promover a prestação de contas à sociedade de maneira simples e direta - por meio de um índice -, introduzir a competição entre os sujeitos escolares e entre escolas da mesma rede, orientar as condutas com vistas ao bom desempenho, e produzir uma “subjetividade ‘contábil’ pela criação da concorrência sistemática entre os indivíduos” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 30), o que é próprio da racionalidade neoliberal.

Neoliberalismo, teoria do capital humano e educação

A noção de neoliberalismo e de sociedade neoliberal assumida neste trabalho é a foucaultiana. Nesta perspectiva o neoliberalismo é compreendido como uma racionalidade política ou razão de um novo modo de governo, dos sujeitos e das instituições (FOUCAULT, 2008; DARDOT, LAVAL, 2016), que demanda um Estado ativo na promoção e garantia da lógica do capital a todas as relações sociais e a todas as esferas da vida e, por conseguinte, passa a romper com o liberalismo clássico. Assim interpretado,

[...] o neoliberalismo, antes de ser uma ideologia ou uma política econômica, é em primeiro lugar e fundamentalmente uma racionalidade e, como tal, tende a estruturar e organizar não apenas a ação dos governantes, mas até a própria conduta dos governados. A racionalidade neoliberal tem como característica principal a generalização da concorrência como norma de conduta e da empresa como modelo de subjetivação. [...] O neoliberalismo é a razão do capitalismo contemporâneo, de um capitalismo desimpedido de suas referências arcaizantes e plenamente assumido como construção histórica e norma geral de vida. O neoliberalismo pode ser definido como o conjunto de discursos, práticas e dispositivos que determinam um novo modo de governo dos homens segundo o princípio universal da concorrência. (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 17 [grifos dos autores]).

Os autores franceses refutam as análises simplistas que caracterizam o neoliberalismo, em termos de “retirada do Estado” diante do mercado, e destacam que:

Ao contrário de certa percepção imediata, e de certa ideia demasiado simples, de que os mercados conquistaram a partir de fora os Estados e ditam a política que estes devem seguir, foram antes os Estados, e os mais poderosos em primeiro lugar, que introduziram e universalizaram na economia, na sociedade e até neles próprios a lógica da concorrência e o modelo de empresa. [...] Mais uma vez, comprovamos as grandes análises de Marx, Weber ou Polanyi segundo os quais o mercado moderno não atua sozinho: ele sempre foi amparado pelo Estado. (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 19).

Conforme Apple (2005), a característica definidora do neoliberalismo é, primordialmente, baseada nos princípios centrais do liberalismo clássico, particularmente no liberalismo econômico clássico. No entanto, há diferenças cruciais entre o liberalismo clássico e o neoliberalismo, que podem ser sintetizadas da seguinte maneira:

Enquanto o liberalismo clássico representa uma concepção negativa do poder do Estado, no sentido de que o indivíduo era tido como um objeto a ser libertado das suas intervenções, o neoliberalismo acabou por representar uma concepção positiva do papel do Estado, ao criar o mercado apropriado, pois fornece as condições, leis e instituições necessárias a seu funcionamento. No liberalismo clássico, o indivíduo é caracterizado como tendo uma natureza humana autônoma e podendo praticar a liberdade. No neoliberalismo, o Estado procura criar um indivíduo que seja um empreendedor, ousado e competitivo. No modelo clássico, o objetivo teórico do Estado era limitar e minimizar o seu papel, baseado em postulados que incluíam o egoísmo universal (o indivíduo interessado em si mesmo); a teoria da mão invisível, a qual declarava que os interesses dos indivíduos eram também os interesses da sociedade como um todo; e a máxima política do laissez-faire. Na troca do liberalismo clássico para o neoliberalismo, então, há um elemento a mais, pois tal troca envolve uma mudança na posição do sujeito, de homo economicus - que se comporta naturalmente a partir do interesse próprio e é relativamente separado do Estado - para o homem manipulável - é criado pelo Estado e continuamente encorajado a ser responsivo perpetuamente. Não significa que a concepção do sujeito interessado por si próprio seja substituída, ou destruída, pelos novos ideais do neoliberalismo, mas que em uma era de bem-estar universal, as possibilidades perceptíveis de uma preguiçosa indolência criam necessidades de formas novas de vigilância, fiscalização, avaliação de desempenho e, em geral, de formas de controle. Nesse modelo, o Estado toma para si a função de nos manter a todos acima da nota. O Estado providencia que cada um faça “um empreendimento contínuo de si próprio...”, o que parece ser um processo de “governar sem governar”. (OLSSEN, 1996, p. 340, apudAPPLE, 2005, p. 38 [grifos do autor]).

Dardot e Laval (2016, p. 24) destacam que a “originalidade do neoliberalismo está no fato de criar um novo conjunto de regras que definem não apenas outro ‘regime de acumulação’, mas também, mais amplamente, outra sociedade”, a sociedade neoliberal. Dessa forma, a compreensão do neoliberalismo, enquanto sistema normativo dotado de certa eficiência, assim como suas diferenças para o liberalismo clássico, são fundamentais para o entendimento das políticas educacionais vigentes, das transformações pelas quais o sistema educativo passa hoje, e das exigências que vêm sendo colocadas para a educação.

Com o advento do neoliberalismo, tal como foi apreendido nos Estados Unidos7 e generalizado para os outros países, a educação, a partir das décadas de 1950-1960, passa a ser vista como um investimento, um fator de produção, um incremento de capital, só que humano. Foram os estudos de Theodore Schultz, Gary Becker e Jacob Mincer, da Escola de Chicago, que revelaram que o investimento em capital humano era capaz de explicar o crescimento econômico. Com os estudos, Schultz fez a seguinte constatação:

O conceito de capital consiste em entidades, que têm a propriedade econômica de prestar serviços futuros de um valor determinado. Esse conceito não deve ser confundido com o de capital como uma entidade fungível. Ao classificar-se o capital que presta serviços futuros, é conveniente começar com uma dicotomia, a saber, a do capital humano e não-humano. Nenhuma dessas duas classes de capital é homogênea; ao contrário, cada qual, na verdade, consiste em muitas formas diferentes de capital e cada qual é, por conseguinte, extremamente heterogênea. Não obstante, a distinção entre capital humano e não-humano é real e analiticamente fundamental. [...] A característica distintiva do capital humano é a de que é ele parte do homem. É humano porquanto se acha configurado no homem, e é capital porque é uma fonte de satisfações futuras, ou de futuros rendimentos, ou ambas as coisas. Onde os homens sejam pessoas livres, o capital humano não é um ativo negociável, no sentido de que possa ser vendido. Pode, sem dúvida, ser adquirido, não como elemento de ativo, que se adquire no mercado, mas por intermédio de um investimento no próprio indivíduo. Segue-se que nenhuma pessoa pode separar-se a si mesma do capital humano que possui. Tem de acompanhar, sempre, o seu capital humano, quer o sirva na produção ou no consumo. Desses atributos básicos do capital humano, surgem muitas diferenças sutis entre o capital humano e não-humano, que explicam o comportamento vinculado à formação e à utilização dessas duas classes de capital. (SCHULTZ, 1973, p. 53 [grifos do autor]).

Conforme Foucault (2008), o primeiro passo dado pelos neoliberais na elaboração da teoria do capital humano foi a reintrodução do trabalho no campo da análise econômica. Para os neoliberais, o trabalho na economia clássica, embora considerado como um fator na produção de bens, permaneceu inexplorado na análise econômica, ao ser restringido ao fator tempo - obviamente, passam ao largo da obra de Marx. Neste caso, o problema central para os neoliberais

[...] será saber como quem trabalha utiliza os recursos de que dispõe. Ou seja, será necessário, para introduzir o trabalho no campo da análise econômica, situar-se do ponto de vista de quem trabalha; será preciso estudar o trabalho como conduta econômica, como conduta econômica praticada, aplicada, racionalizada, calculada por quem trabalha (FOUCAULT, 2008, p. 307).

Trata-se, ao situar do ponto de vista do trabalhador, tratá-lo na análise econômica como um sujeito econômico ativo, e não como um objeto de oferta e procura na forma de força de trabalho como na economia clássica. Para os neoliberais quem trabalha está em busca de um salário, sendo este considerado uma renda e não o valor da venda da força de trabalho. A renda é, nesta ótica, “simplesmente o produto ou rendimento de um capital”, de forma que o capital é tudo o que pode ser “uma fonte de renda futura” (FOUCAULT, 2008, p. 308). Dessa forma, esse capital, do qual o salário é a renda, é “o conjunto de todos os fatores físicos e psicológicos que tornam uma pessoa capaz de ganhar este ou aquele salário, de sorte que, visto do lado do trabalhador, o trabalho não é uma mercadoria reduzida por abstração à força de trabalho e ao tempo [durante] o qual ela é utilizada.” (FOUCAULT, 2008, p. 308). Nessa perspectiva, a fonte de renda são as aptidões e competências, ou como dizem os neoliberais, o trabalhador é uma máquina de produção de renda, ou melhor dizendo, de fluxos de salários, isto é, de fluxos de rendimentos.

Consoante a essa interpretação, Foucault (2008) observa que essa decomposição do trabalho em capital e renda traz certas implicações. Em primeiro lugar, que o capital assim definido, como aquilo que possibilita uma renda futura, é praticamente indissociável de quem o detém. Dessa forma, o trabalhador não está a vender sua força de trabalho e a ser expropriado, mas sim a investir seu capital-competência, com vistas a receber, “em função de variáveis diversas, certa renda que é um salário, uma renda-salário, de sorte que é o próprio trabalhador que aparece como uma espécie de empresa para si mesmo” (FOUCAULT, 2008, p. 310).

Foucault (2008) observa que com o neoliberalismo, particularmente com a teoria do capital humano, o indivíduo enquanto homo oeconomicus, é reposto e ao mesmo tempo é consideravelmente deslocado. Na economia clássica o homo oeconomicus, como aparece em Smith e Ricardo, é um parceiro da troca e consumidor. No neoliberalismo, o homo oeconomicus é compreendido como “empresário de si mesmo, sendo ele seu próprio capital, sendo para si mesmo seu produtor, sendo para si mesmo a fonte de [sua] renda” (FOUCAULT, 2008, p. 311). Em síntese, o homo oeconomicus que se quer reconstruir na sociedade neoliberal, “não é o homem da troca, não é o homem consumidor, é o homem da empresa e da produção” (FOUCAULT, 2008, p. 201).

Sendo assim, o trabalhador, embora não detenha os meios de produção, é considerado um capitalista, pois a partir de certo capital de que dispõe, vai produzir a sua própria satisfação. Os trabalhadores se tornaram capitalistas, segundo Schultz (2012, p. 63), “não porque todos compraram ações na bolsa [...], mas sim porque passaram a adquirir conhecimentos e habilidades que têm valor econômico.” Com isso, a educação ganha papel de destaque, ao contribuir na formação e construção de pequenas máquinas de produção de fluxos de rendimentos.

De acordo com Saviani (2013), a partir de sua formulação inicial nos Estados Unidos a teoria do capital humano se difundiu amplamente entre os técnicos da economia, das finanças, do planejamento e da educação. Essa teoria chegou ao Brasil no período da Ditadura Militar, ainda na década de 1960, quando havia a crença de que era necessário investir em capital humano como força propulsora da economia. Nesse contexto a baixa produtividade do sistema de ensino brasileiro, identificada no reduzido índice de atendimento da população em idade escolar e nos altos índices de evasão e repetência, era considerada um entrave para o crescimento econômico (SAVIANI, 2013).

Saviani (2013, p. 365) destaca ainda, que a teoria do capital humano “adquiriu força impositiva ao ser incorporada à legislação na forma dos princípios da racionalidade, eficiência e produtividade”, e, neste sentido, pode-se acrescentar também o princípio da competitividade. No final da década de 1960 essa teoria inspirou a reforma universitária, a pós-graduação e, inclusive, a formação em pedagogia, com a introdução das habilitações técnicas. Conforme o autor:

Com a aprovação da lei n. 5.692, de 11 de agosto de 1971, buscou-se estender essa tendência produtivista a todas as escolas do país, por meio da pedagogia tecnicista, convertida em pedagogia oficial. Já a partir da segunda metade dos anos de 1970, adentrando pelos anos de 1980, essa orientação esteve na mira das tendências críticas, mas manteve-se como referência da política educacional. [...] Na década de 1990, já refuncionalizada, a visão produtivista, suplantando a ênfase na qualidade social da educação que marcou os projetos de Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) na Câmera Federal, constituiu-se na referência para o projeto Darcy Ribeiro. Esse projeto surgiu no Senado e, patrocinado pelo Ministério da Educação (MEC), transformou-se na nova LDB (SAVIANI, 2013, p. 365).

Conforme Saviani (2013, p. 439), com as reformas educacionais da década de 1990, nos deparamos com o neotecnicismo, no qual “o controle decisivo desloca-se do processo para os resultados”. Nesse sentido, é “pela avaliação dos resultados que se buscará garantir a eficiência e produtividade” (SAVIANI, 2013, p. 439), e aqui, mais uma vez, acrescente-se a competitividade como demanda o neoliberalismo.

Avaliação e competitividade na educação

Michel Foucault (2008) destaca que na sociedade pensada pelos neoliberais, o princípio regulador é a concorrência. Sendo assim, são os mecanismos da concorrência “que devem ter o máximo de superfície e de espessura possível, que também devem ocupar o maior volume possível na sociedade”, por sua vez, o que se procura “é uma sociedade submetida a dinâmica concorrencial” (FOUCAULT, 2008, p. 201).

Conforme Dardot e Laval (2016, p. 27), a “exigência de ‘competitividade’ tornou-se um princípio político geral que comanda as reformas em todos os domínios, mesmo os mais distantes dos enfrentamentos comerciais no mercado mundial.” O neoliberalismo, enquanto sistema normativo,

[...] estende a lógica do mercado muito além das fronteiras estritas do mercado, em especial, produzindo uma subjetividade “contábil” pela criação da concorrência sistemática entre os indivíduos. Pense-se em particular na generalização dos métodos de avaliação no ensino público oriundos da empresa. (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 30).

Dardot e Laval (2016, p. 231) ressaltam que o mais importante na virada neoliberal, que no Brasil ocorreu de forma decisiva especialmente na década de 19908, “não foi tanto a ‘retirada do Estado’, mas as modificações de suas modalidades de intervenção em nome da ‘racionalização’ e da ‘modernização’ das empresas e da administração pública”. Na virada neoliberal do Brasil, as reformas da administração pública foram conduzidas pelo então Ministro da Modernização Administrativa e Reforma do Estado, Luiz Carlos Bresser Pereira, na segunda metade da década de 1990, no Governo de Fernando Henrique Cardoso. As reformas empreendidas foram coincidentes com as previstas no Consenso de Washington de 1989.

Conforme Dardot e Laval (2016, p. 231), muito mais que os intelectuais midiáticos e os jornalistas convertidos, foram “os especialistas e os administradores públicos dóceis, que, nos diferentes campos em que deveriam intervir, instauraram os novos dispositivos e modos de gestão próprios do neoliberalismo, apresentando-os como técnicas políticas novas, guiadas unicamente pela busca de resultados benéficos para todos.”

Além do Ministro da Modernização Administrativa e Reforma do Estado, Luiz Carlos Bresser Pereira, muitos outros especialistas tiveram destaque na instauração dos novos dispositivos e modos de gestão neoliberais, entre eles o Ministro da Educação do Governo FHC, o economista Paulo Renato Souza, que antes de assumir o ministério passou por diversos organismos multilaterais. Cabe destacar que os

[...] “intelectuais orgânicos” do neoliberalismo [...] tiveram um papel-chave na naturalização dessas práticas, em sua neutralização ideológica e, por fim, em sua implantação prática. Células de pesquisa, inúmeros colóquios, amplas operações de formação de quadros de função pública, produção e difusão maciça de um léxico homogêneo, verdadeira língua franca das elites modernizadoras, acabaram por impor o discurso ortodoxo da gestão. Mas não nos enganemos: as políticas neoliberais não foram implantadas em nome da “religião’ do mercado”, mas em nome de imperativos técnicos de gestão, em nome da eficácia, ou até mesmo da “democratização” dos sistemas de ação pública. (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 231 [grifo dos autores]).

Em evento sobre avaliação ocorrido em 1997, a presidente do Inep, Maria Helena Guimarães de Castro, declarou que a instituição que presidia “assume claramente a missão de se especializar como instituto de avaliação e informação educacional, exercendo, dessa forma, um papel estratégico para o desenvolvimento do sistema educacional brasileiro.” (CASTRO, 1998, p. 11). Ainda no mesmo evento, ela, em nome do ministro da educação, Paulo Renato Souza, defendeu as reformas que estavam em curso no Governo FHC, ressaltando que,

[...] com a atual reforma, sai de cena o Estado-executor, assumindo seu lugar o Estado-regulador e o Estado-avaliador. Essa mudança de paradigma exige uma verdadeira reengenharia do setor público. Trata-se da difícil tarefa de substituir controles burocráticos por uma nova cultura gerencial, que incorpora a política de avaliação como elemento estratégico da gestão pública. (CASTRO, 1998, p. 9).

A expressão “Estado-avaliador”, que Castro (1998) enfatizou em sua fala, traduz o interesse pela avaliação, sobretudo nos governos neoconservadores e neoliberais. Essa expressão significa, conforme Afonso (2009, p. 49), que “o Estado vem adoptando um ethos competitivo, neodawinista, passando a admitir a lógica do mercado, através da importação para o domínio público de modelos de gestão privada, com ênfase nos resultados ou produtos do sistema educativo.”

Laval (2004, p. 12), ao analisar as reformas neoliberais impostas à escola, em nível mundial, salienta que estas

[...] vão ser em seguida, cada vez mais, guiadas pela preocupação com a competição econômica entre sistemas sociais e educativos e pela adaptação às condições sociais e subjetivas da mobilização econômica geral. [...] A padronização dos objetivos e dos controles, a descentralização, a mutação do “gerenciamento educativo”, a formação dos docentes são, essencialmente, reformas “centradas na produtividade. (LAVAL, 2004, p. 12).

No Brasil, com as reformas educacionais da segunda metade da década de 1990, diante do neotecnicismo, “a avaliação converte-se no papel principal a ser exercido pelo Estado, seja mediatamente, pela criação de agências reguladoras, seja diretamente, como vem ocorrendo no caso da educação” (SAVIANI, 2013, p. 439). Recomendadas pelos organismos internacionais, as avaliações de desempenho escolar externas, padronizadas e de larga escala, ganharam centralidade nas políticas públicas educacionais brasileiras. Nesse sentido, cabe ressaltar que:

A “avaliação” tornou-se o primeiro meio de orientar a conduta pelo estímulo ao “bom desempenho” individual. Ela pode ser definida como uma relação de poder exercida por superiores hierárquicos encarregados da expertise dos resultados, uma relação cujo efeito é uma subjetivação contábil dos avaliados. Uma vez que o sujeito aceita ser julgado com base nessas avaliações e sofrer as consequências, ele se torna constantemente avaliável, isto é, um sujeito que sabe que depende de um avaliador e das ferramentas empregadas por ele, sobretudo porque ele mesmo foi educado para reconhecer de antemão a competência do avaliador e a validade das ferramentas. (DARDOT; LAVAL, p. 351 [grifo dos autores]).

No Governo FHC (1995-2002) foi introduzido, de forma sistemática e oficial, um movimento pelas referências nacionais curriculares, que juntamente com a implantação de processos de avaliação - que já havia sido ensaiado no final da década de 1980 e oficializada em 1994 pelo governo de Itamar Franco -, resultaram nos Parâmetros Curriculares Nacionais e no fortalecimento do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) (FREITAS, 2018). Em 1997 são elaboradas matrizes curriculares de referência para o Saeb, ano que segundo Horta Neto (2007), pode ser considerado como o passo decisivo para a institucionalização da avaliação da educação básica no Brasil.

Ainda no Governo FHC foram criados o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), em 1998, e o Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja), em 2002, inspirado no primeiro. Foi decidido também, neste período, pela participação do Brasil nos estudos internacionais do Laboratório Latino-americano de Avaliação da Qualidade da Educação (LLECE) da Oficina Regional da Unesco para a Educação na América Latina e no Caribe (Orealc), e pela participação no Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA), desenvolvido pela OCDE.

Em 2003 assume o governo liderado pelo Partido dos Trabalhadores (PT), com uma proposta de capitalismo desenvolvimentista, que segundo Freitas (2018), não foi uma linha nem reta e nem célere em direção à reforma empresarial da educação, como teria sido se o governo anterior tivesse permanecido no poder. O governo foi eleito fazendo crítica às reformas da educação realizadas nos anos anteriores. No entanto, no que diz respeito às avaliações externas de larga escala, estas foram aprofundadas, com o apoio decisivo, do que Freitas (2018) chamou de nova direita neoliberal. Um marco nas políticas de avaliação foi a criação do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) em 2007, calculado a partir dos dados sobre aprovação obtidos no Censo Escolar e das médias de desempenho obtidas no Saeb.

O Plano Nacional de Educação (2014-2024) transformou o Ideb em política de Estado e reconheceu o Pisa como referência internacional de avaliação externa, ao vincular a promoção da qualidade da educação aos indicadores de desempenho dos estudantes mensurados pelo Ideb. Já a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), aprovada e homologada em 2017, vem “ajustar o funcionamento da educação brasileira aos parâmetros das avaliações gerais padronizadas” (SAVIANI, 2016, p. 75), indicando novos parâmetros para a organização e o funcionamento do ensino e do currículo em todo o país.

Esses ajustes de funcionamento da educação não são exclusividade do Brasil, pois algo muito semelhante já se verificou em muitos outros países, como os Estados Unidos. A educação, diante desse quadro,

[...] é entendida muitíssimas vezes como sendo apenas a transmissão de um conhecimento neutro aos alunos. Segundo esse discurso, o papel fundamental da escolarização é encher os estudantes com o conhecimento necessário para competir no mundo de hoje, que está em processo de transformação rápida. A isso se costuma acrescentar uma ressalva: façam tudo da maneira mais econômica e eficiente possível. O árbitro supremo que vai decidir se conseguimos fazer isso é a média dos alunos nas provas. Um currículo neutro está ligado a um sistema neutro de avaliação, que por sua vez está ligado a um sistema de finanças escolares. Supostamente, quando funciona bem, essas ligações garantem a recompensa do mérito. “Bons” alunos assimilam “bons” conhecimentos e conseguem “bons” empregos. (APPLE, 2003, p. 6).

Esse também é o discurso do Governo Bolsonaro, iniciado em 2019. A proposta desse governo, como mencionado na introdução deste estudo, toma como única referência de qualidade os resultados de uma avaliação internacional, o Pisa. Entretanto, cabe ressaltar que, embora os recursos destinados à educação no Brasil em termos de percentuais de PIB possam ser maiores que os de alguns países membros da OCDE, os valores por aluno em idade educacional é muito inferior, em dólar PPP9, ao aplicado em média por esses países, considerando o estudo de Amaral (2013) e Amaral, Assis e Oliveira (2019).

Para continuar a discussão...

A educação é um direito humano, social, político e civil de todos os brasileiros e dever do Estado, garantido na Constituição de 1988. Trata-se de um direito que vem sendo ameaçado pela racionalidade neoliberal. Como assinala Marilena Chauí, (2019)10, com o neoliberalismo, todos os direitos sociais são abolidos, incluindo o direito à educação, e são transformados em serviços, comprados e vendidos no mercado. Cabe acrescentar, conforme a perspectiva que vem sendo desenvolvida neste estudo, que:

O neoliberalismo não destrói apenas regras, instituições, direitos. Ele também produz certos tipos de relações sociais, certas maneiras de viver, certas subjetividades. Em outras palavras, com o neoliberalismo, o que está em jogo é nada mais nada menos que a forma de nossa existência, isto é, a forma como somos levados a nos comportar, a nos relacionar com os outros e com nós mesmos. O neoliberalismo define certa norma de vida nas sociedades ocidentais e, para além dela, em todas as sociedades que as seguem no caminho da “modernidade”. (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 16 [grifo dos autores]).

Ainda de acordo com estes autores, o neoliberalismo não é implementado apenas pela via da violência, como ocorreu no Chile e em outros lugares, com o apoio decisivo de potências capitalistas, como os Estados Unidos.

Convém não confundir estratégia geral com métodos particulares. Estes dependem das circunstâncias locais, das relações de força e das fases históricas: podem tanto empregar a brutalidade do putsch militar como a sedução eleitoreira das classes médias; podem usar e abusar da chantagem do emprego e do crescimento e aproveitar os déficits e as dívidas como pretexto para as “reformas estruturais” como fazem há muito tempo o Fundo Monetário Internacional (FMI) e a União Europeia. O questionamento da democracia toma caminhos diversos, que nem sempre têm a ver com a “terapia de choque”, mas sim, e sobretudo, com o que Wendy Brown chamou, com justiça, de processo de “desdemocratização”, que consiste em esvaziar a democracia de sua substância sem a extinguir formalmente. (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 20).

Conforme Amaral (2017), ocorreu no Brasil, nos anos 2014 e 2015, uma inflexão no crescimento do PIB e na arrecadação de impostos pela União, que “foi decisivo para a aglutinação de forças oposicionistas ao governo do Partido dos Trabalhadores (PT), o que resultou no impeachment de Dilma Rousseff no mês de agosto de 2016 e se caracterizou como um verdadeiro golpe legislativo-judicial-midiático” (AMARAL, 2017, p. 5), rompendo, assim, com a legalidade democrática do Brasil.

Essa ruptura democrática possibilitou o aprofundamento do neoliberalismo, como não se via desde o Governo FHC. Em um curto prazo foram adotadas medidas, sobretudo na disputa pelo fundo público: reforma administrativa, que aglutinou pastas importantes na implementação de ações com vistas a redução das desigualdades sociais; reforma trabalhista, que restringe direitos da classe trabalhadora e também a reforma da previdência. Mais perversa foi a aprovação da EC n. 95, que segundo Amaral (2017)

É emblemática nessa nova fase a apresentação da Proposta de Emenda à Constituição de número 241 na Câmara dos Deputados e 55 no Senado Federal, que se tornou a EC 95, de 15 de dezembro de 2016. Essa mudança constitucional instituiu um Novo Regime Fiscal (NRF) no país e que prevalecerá, inicialmente, por 20 anos, portanto, até 2036, que congelará as despesas primárias e liberará os pagamentos relativos ao mercado financeiro. Estarão, portanto, limitadas as possibilidades da implementação de novas políticas públicas que objetivem diminuir a enorme desigualdade brasileira. (AMARAL, 2017, p. 6)

A EC 95, também denominada Teto de Gastos, traz implicações diretas às áreas sociais, especialmente para a saúde e a educação. Conforme Amaral (2017, p. 24), o cumprimento do PNE (2014-2024) “no contexto da EC 95, que perdurará até o ano de 2036, abarcando também o próximo PNE decenal, é uma tarefa praticamente impossível, e pode-se afirmar que a EC 95 determinou a ‘morte’ do PNE (2014-2024).” Isso significa dizer que a garantia do direito à educação, no que diz respeito à expansão da educação básica ao ensino superior, o estabelecimento do Custo aluno qualidade inicial/Custo aluno qualidade (CAQi, CAQ), valorização do magistério da educação básica, aumento do financiamento que determina, até 2024, a aplicação de recursos públicos equivalentes a 10% do PIB na educação, entre outras medidas, estão praticamente inviabilizadas.

O Governo Bolsonaro, eleito com o apelo à retórica do combate a corrupção, ao soberanismo e ao neoconservadorismo com um estilo populista, vem intensificando as reformas neoliberais iniciadas com Michel Temer após o golpe jurídico, parlamentar e midiático de 2016. Logo no primeiro ano já realizou a reforma da previdência e no momento encontra-se em debate uma nova reforma administrativa11, que tende a contribuir para aprofundar as desigualdades sociais. O campo educacional tem sido marcado por instabilidades, dentre as quais as mudanças de ministro ainda no primeiro semestre de gestão12, falhas na realização do Enem, como erro na correção de provas e divulgação de notas erradas na prova objetiva13, alta rotatividade em cargos de confiança, contingenciamento seletivo dos recursos destinados às universidades federais, baixa execução orçamentária, uma vez que o MEC não utilizou todo o montante da pasta para investimentos em 2019, além de outros problemas14.

Para os neoliberais cabe à educação apenas formar o sujeito competitivo, o empresário de si mesmo, aquele que é para si próprio seu produtor, a sua fonte de renda, isto é, o sujeito considerado capitalista porque passa a adquirir conhecimentos e habilidades que têm valor econômico. Nessa vertente, que tem por base o darwinismo social, ou no concorrencialismo social (DARDOT; LAVAL, 2016), educar é preparar as crianças e jovens para serem empreendedores no competitivo mercado de trabalho.

É nesse sentido que a avaliação ganha um papel de destaque, pois visa aumentar a exigência de si mesmo e o bom desempenho individual, o que traz implicações de ordem subjetiva não só para quem é avaliado, mas também para quem avalia e/ou prepara o indivíduo para a avaliação, pois este também é constrangido a impor ao outro as prioridades da empresa (DARDOT; LAVAL, 2016). A centralidade das avaliações em larga escala vem impedindo a construção de processos avaliativos mais autônomos e formativos.

Esse quadro dificulta e às vezes impede o exercício pleno de uma prática pedagógica emancipatória, que realmente prepare as pessoas para o exercício pleno da cidadania, como prevê a Constituição Federal de 1988. No neoliberalismo não há perspectiva de humanização, de formação política, de transformação social nos processos educativos. Não causa surpresa que em um governo neoliberal, um dos objetivos para a educação seja desestimular o interesse por política nas escolas, o que, inclusive, contraria a legislação educacional vigente (CF/1998 e LDB/1996).

No entanto, a escola é uma instituição social que reflete em seu interior as determinações e contradições próprias do conflito de interesses de classe que caracteriza a sociedade capitalista (SAVIANI, 2012). Já a educação, conforme Paulo Freire, é um ato político, um instrumento privilegiado de entendimento, crítica e transformação da realidade.

Neste contexto, é necessário defender a formação política em seu sentido mais amplo, crítico e ético nas escolas e nas demais instâncias formativas próprias do Estado democrático. Da mesma forma, processos avaliativos mais complexos e multirreferenciados, que não sejam baseados exclusivamente em índices simplificados de desempenho dos estudantes, precisam ganhar espaço nas políticas educacionais. Afinal, são muitos os aspectos que impactam no processo ensino e aprendizagem, tais como as condições de infraestrutura escolar, a formação e valorização do corpo docente, dos gestores e dos funcionários da escola, as condições sociais e culturais da comunidade na qual a escola está inserida e, sobretudo, que se leve em conta a imensa desigualdade econômica brasileira, que torna os testes padronizados e em larga escala limitados para diagnosticar realidades muito distintas sem incorrer em injustiças. Isso demandaria uma outra visão de educação e de sociedade que não a neoliberal, conforme se demonstrou ao longo deste ensaio.

3Proposta disponível em: http://www.tse.jus.br/eleicoes/eleicoes-2018/propostas-de-candidatos Acesso em: 29 fev. 2020.

4O Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA), tradução para Programme for International Student Assessment, é uma avaliação comparativa em larga escala, utilizada para aferir o desempenho dos estudantes matriculados na educação básica na faixa etária dos 15 anos, promovida pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), realizada há cada três anos, desde 2000, para os seus países-membros e países com os quais estabelece acordos para essa finalidade, incluindo o Brasil.

7Michel Foucault no curso proferido no Collège de France em 1978-79, publicado com o título Nascimento da biopolítica (São Paulo: Martins Fontes, 2008), observa que nos Estados Unidos o liberalismo é “toda uma maneira de ser e de pensar” e deve ser concebido, portanto, como assinala Hayek, mencionado por ele, “como estilo geral de pensamento, de análise e de imaginação” (FOUCAULT, 2008, p. 302).

8É importante sublinhar que embora a virada neoliberal no Brasil tenha ocorrido de forma decisiva na década de 1990, muitas das ideias, discursos e práticas próprias do neoliberalismo já estavam aqui presentes desde muito antes. Podemos destacar a teoria do capital humano, própria do neoliberalismo dos Estados Unidos, que vem inspirando a legislação educacional, discursos e práticas educativas desde o período da Ditadura Militar (SAVIANI, 2013).

9Para análise completa do quadro político, quando se trata de utilizar o percentual do PIB investido em educação num país, há necessidade de utilização de duas outras informações: o valor do PIB do país e o tamanho do alunado a ser atendido. Para possibilitar comparações entre países utiliza-se uma conversão das moedas destes países em “poder de paridade de compra” ou “dólar PPP” (AMARAL, 2013).

10Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=UCyVT2HLQQI Vídeo publicado em: 21 nov. 2019. Acesso em: 14 mar. 2019.

11Propostas de Emenda à Constituição (PECs), as de número 186, 187 e 188, encaminhadas no final de 2019.

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Recebido: de 2020; Aceito: de 2020; Publicado: de 2020

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