Introdução
No processo de construção democrática do país, em oposição à ditadura civil- militar (1964-1985), destaca-se o movimento de luta de segmentos organizados da sociedade. O tema da gestão democrática, entre outros, integrou a pauta dos educadores, presente nesse movimento de contestação, que reivindicavam mecanismos de participação como eleição de dirigentes escolares, instituição de conselhos escolares, elaboração de regimento e de projeto pedagógico de forma coletiva, exclusividade do financiamento da escola pública pelo poder público (ADRIÃO, 2006).
Essa luta resultou em importantes conquistas na Constituição Federal (CF) de 1988, como a declaração de direitos sociais, a garantia de padrão de qualidade da educação, assim como a definição de princípios pelos quais se deve pautar a educação brasileira, entre eles, “gestão democrática do ensino na forma da lei” (BRASIL, 1988).
Esse princípio constitucional inédito, como analisa Cury (2002), fundamenta-se na noção de Estado Democrático de Direito, tal como expresso na mencionada Constituição, no seu Preâmbulo e no seu art. 1o, “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito [...]”, inclusive seu parágrafo único, “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição” (BRASIL, 1988).
Nesse sentido,
A gestão democrática é um princípio do Estado nas políticas educacionais que espelha o próprio Estado Democrático de Direito e nele se espelha postulando a presença dos cidadãos no processo e no produto de políticas de governo. Os cidadãos querem mais do que serem executores de políticas, querem ser ouvidos e ter presença em arenas públicas de elaboração e nos momentos de tomada de decisão. Trata-se de democratizar a própria democracia (CURY, 2002, p.172, grifos do autor).
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, reafirma os princípios do ensino, atribuindo no art. 3°, Inciso VIII, “gestão democrática do ensino público, na forma desta Lei e da legislação dos sistemas de ensino” (BRASIL, 1996), assim como define no art. 14, que,
Os sistemas de ensino definirão as normas da gestão democrática do ensino público na educação básica, de acordo com as suas peculiaridades e conforme os seguintes princípios:
I - participação dos profissionais da educação na elaboração do projeto pedagógico da escola;
II - participação das comunidades escolar e local em conselhos escolares ou equivalentes (BRASIL, 1996).
Assim, ao regulamentar o princípio da gestão democrática delegou aos sistemas de ensino a sua normatização, desde que atendam os dois elementos indicados de participação, o que implicou durante os últimos 20 anos, distintas formas legais e o quadro mais diferenciado sobre a matéria no Brasil (SOUZA; PIRES, 2018). Por um lado, há estados e municípios do país que instituíram instrumentos de democratização da educação (eleição de diretores, implantação e eleição de colegiados escolares, construção coletiva do projeto pedagógico da escola). Por outro, há aqueles em que o provimento do cargo de diretor escolar é exclusivamente ato do poder executivo, assim como as decisões no âmbito escolar são emanadas exclusivamente dos sistemas de ensino, ou mesmo quando há projeto pedagógico, este é resultado, apenas, da tarefa exigida pela burocracia institucional, como analisam Fernandes, Scaff e Oliveira (2013).
Cinco anos após a LDBEN de 1996, atendendo a exigência do art. 87, § 1º da Lei da educação, o Congresso Nacional aprovou o Plano Nacional de Educação (PNE) para o período 2001 a 2010 pela Lei nº 10.172, de 9 de janeiro de 2001, com vigência de dez anos, sancionada pelo presidente, à época, Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), do Partido da Social da Democracia Brasileira (PSDB), com nove vetos presidenciais (DOURADO, 2010). Entre os objetivos, essa Lei concentrou nos elementos de participação abordados no art. 14 da LDBEN, ou seja,
[...] democratização da gestão do ensino público, nos estabelecimentos oficiais, obedecendo aos princípios da participação dos profissionais da educação na elaboração do projeto pedagógico da escola e a participação das comunidades escolar e local em conselhos escolares ou equivalentes (BRASIL, 2001).
Com o encerramento do PNE 2001-2011, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010), do Partido dos Trabalhadores (PT), encaminhou ao Congresso Nacional o Projeto de Lei (PL) do PNE, identificado pelo PL nº 8.035, de 2010. Após amplo processo de discussão, confronto de ideias, que compreendeu, em conjunto, a participação da sociedade política e de organismos representativos da sociedade civil, a Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014, que aprova o Plano Nacional de Educação (PNE), para o período de 2014 a 2024, foi sancionada, sem vetos, pela presidente Dilma Vana Rousseff (2011-2014), também do PT.
O processo de elaboração desse PNE demonstra ser a primeira grande experiência de participação popular no planejamento educacional nacional em processo conduzido pelo Estado brasileiro que resultou em um plano aprovado por lei federal, como afirma Souza (2016). O autor enfatiza que o cumprimento das metas e estratégias do Plano “[...] está diretamente relacionado à vigilância e controle social, que neste caso parecem ser de uma dimensão poucas vezes (ou nunca) vista na história educacional brasileira” (SOUZA, 2016, p. 118).
O art. 9º da Lei nº 13.005, de 2014, dispõe que os estados, o Distrito Federal e os municípios, no âmbito de suas competências, deverão aprovar leis específicas para os seus sistemas de ensino, disciplinando a Gestão Democrática, com indicação de dois anos de prazo para cumprimento de tal finalidade.
Diante do exposto, este artigo3 aborda o processo de normatização da gestão democrática da educação em cumprimento ao dispositivo legal mencionado. Para tanto, elege-se o município de Campo Grande4, no sentido de apreender uma situação real localizada, em relação à exigência estabelecida.
Como assinala Saviani (2011),
É comum afirmar-se que o município é a instância mais importante, pois é aí onde, vivem as pessoas. Desse ponto de vista, o estado e a União configuram-se como instâncias abstratas, já que sua realidade se materializa, de fato, no recorte dos municípios. Ora, mas se é assim, então, está claro que a configuração dos estados e da União, sua estrutura, sua organização e administração são operadas por indivíduos concretos, cidadãos reais, ou seja, os habitantes dos municípios (SAVIANI, 2011, p. 78-79).
Não se pode esquecer a importância que os municípios adquiriram no federalismo brasileiro, ao assumirem o status de entes federados, atribuído pela CF de 1988, com responsabilidades e deveres próprios (BRASIL, 1988). Assim, em tese, “as garantias constitucionais do Estado federativo permitem que os governos locais estabeleçam sua própria agenda na área social”, embora sejam diversos em sua capacidade administrativa, política e financeira (ARRETCHE, 2004, p. 20).
Parte-se do pressuposto que as políticas educacionais formuladas ou reformuladas no âmbito do Estado, entendido em sentido ampliado (GRAMSCI, 1984), ou seja, que abrange a sociedade política (aparelho governamental) e a sociedade civil, resultam do movimento, de tensões, de correlação de forças sociais e de projetos distintos de sociedade.
A análise da normatização da Lei de Gestão Democrática em um município implica traduzir o movimento do real e explicita, portanto, um processo dinâmico com influências, embates e contradições resultante de “[...] arranjos institucionais que contribuem para a materialidade das políticas de gestão e organização educacionais” (DOURADO, 2007, p. 923).
Movimento de elaboração da Lei de Gestão Democrática: a experiência do município de Campo Grande-MS
Em decorrência do PNE 2014-2014, o Plano Estadual de Educação de Mato Grosso do Sul (PEE-MS) 2014-2024 foi aprovado pela Lei nº 4.621, de 22 de dezembro de 2014, no segundo mandato do governo de André Puccinelli (2011-2014), do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), atual Movimento Democrático Brasileiro (MDB).
O art. 9º da Lei que aprova o PEE-MS, define que “os planos municipais de educação deverão ser elaborados ou adequados em alinhamento ao PNE e ao PEE-MS, para que as metas e estratégias sejam cumpridas na próxima década” (MATO GROSSO DO SUL, 2014).
A Lei estadual orienta, ainda, no art. 10, que os estados e municípios, no âmbito de suas competências, “deverão aprovar lei específica para os seus sistemas de ensino, disciplinando a gestão democrática da educação pública”, no prazo de dois anos, contado da publicação do PNE (MATO GROSSO DO SUL, 2014).
Após seis meses da aprovação do PEE-MS, o Plano Municipal de Educação (PME) de Campo Grande, para o período 2015-2025, foi aprovado, por meio da Lei nº 5.565, em 23 de junho de 2015, no governo de Gilmar Antunes Olarte (2014-2015), do Partido Progressista (PP) (CAMPO GRANDE, 2015).
Essa Lei, estabelece, entre suas diretrizes, no art. 2º, “[...] VI - promoção do princípio da gestão democrática da educação pública”. Dispõe, ainda, no artigo 11, que cabe ao Município, a aprovação de lei específica para o sistema de ensino, disciplinando a gestão democrática da educação pública, no âmbito de sua atuação, a partir da aprovação do PME (CAMPO GRANDE, 2015).
A referência à Lei de Gestão Democrática no PME 2015-2025 de Campo Grande, encontra-se na primeira estratégia da Meta 19.
19.1 aprovar lei específica para o sistema de ensino e disciplinar a gestão democrática da educação pública, no prazo de dois anos contados da data da publicação do PME, adequando à legislação local já adotada com essa finalidade;
19.1.1 elaborar normas que orientem o processo de implantação e implementação da gestão democrática, com a participação da comunidade escolar, a partir de dois anos da vigência deste PME (CAMPO GRANDE, 2015).
Na sequência, em 2016, Marcos Marcello Trad, do Partido Social Democrático (PSD), quando candidato a Prefeito de Campo Grande-MS, anunciou em campanha que implantaria a gestão democrática e que haveria eleições para os diretores de escolas pela comunidade (FERNANDES; SOUZA, 2018).
O movimento para elaboração da Lei de Gestão Democrática, conforme o Sindicato Campo-Grandense dos Profissionais da Educação Pública (ACP), teve início com a criação da Comissão para Implantação da Gestão Democrática na Rede Municipal de Educação (REME), por meio do Ofício nº 2.781/AJUR/SEMED, de 26 de maio de 2017. A primeira reunião foi realizada em 15 de setembro de 2017, com a participação dos representantes da ACP, do Conselho de Diretores e Diretores Adjuntos das Escolas Municipais {CONDAEM), da Comissão de Educação da Câmara Municipal e da Secretaria Municipal de Educação (SEMED). Na oportunidade, segundo a matéria, “foi assegurada pelos representantes da SEMED, a realização das eleições para diretores, conforme o compromisso político assumido pelo prefeito e a Secretária Municipal de Educação (GESTÃO..., 2017).
Em 15 de dezembro de 2017, por meio da Resolução “PE” SEMED nº 1.208, a Secretária Municipal de Educação considerando, o princípio da gestão democrática no ensino público, disposto no art. 206, inciso VI da CF de 1988; os termos do art. 167, caput, da Lei Orgânica do Município de Campo Grande de que a educação municipal será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade (CAMPO GRANDE, 1990); e que o PNE 2014-2024, na meta 19, dispõe “que estados e municípios deverão assegurar condições para a efetivação da gestão democrática”, designou a Comissão formada por quatro membros representantes da SEMED, três do CONDAEM, três da ACP e três vereadores da Câmara Municipal de Campo Grande para “implantação do sistema de eleição de diretores e diretores adjuntos das unidades de ensino da Rede Municipal de Ensino” (CAMPO GRANDE, 2017, p. 23).
Quanto ao objetivo do trabalho da Comissão, observa-se que o Ofício nº 2.781/AJUR/SEMED, de 2017, se refere à Implantação da Gestão Democrática na Rede Municipal de Educação (REME), enquanto a Resolução “PE” SEMED nº 1.208, do mesmo ano, focaliza a eleição de diretores e diretores das unidades de ensino. Essa divergência pode indicar uma concepção restrita, entendendo-se que o princípio da gestão democrática vai além de eleição de diretores em escolas públicas, e que essa gestão se constitui um processo político que comporta a atuação das pessoas nas escolas e, também, no âmbito da educação e dos sistemas, sempre pautado no diálogo e com participação dos segmentos da comunidade escolar e da sociedade (SOUZA, 2009).
Após reuniões e deliberações dos integrantes da Comissão de Implantação, o Poder Executivo encaminhou proposta ao legislativo municipal que, ao ser configurado no Projeto de Lei (PL) nº 8.811 de 2018, foi debatido em audiência pública realizada em 21 de março de 2018 na Câmara Municipal de Campo Grande. Esse PL foi contestado pela representante da ACP presente na audiência, por não considerar os Centros de Educação Infantil da Rede Municipal de Ensino (CEINF), na eleição de diretores escolares, conforme debatido e acordado nas reuniões da Comissão supracitada (ELEIÇÃO..., 2018).
O texto foi alterado pelo Executivo Municipal e dois dias em seguida à audiência encaminhado à Câmara Municipal, em 23 de março de 2018. A mensagem nº 19 do Executivo destaca que o novo PL: “[...] em substituição ao de no 107, de 20 de dezembro de 2017, tem “o condão de incluir os centros de educação infantil da Rede Municipal de Ensino como parte integrante do processo democrático de eleição para diretores e diretores adjuntos” (CAMPO GRANDE, 2018a). Assim, retorna a proposta da ACP, ao que havia sido acordado no âmbito dos trabalhos da Comissão.
Ao ser configurado como PL nº 8.877, de 26 de março de 2018, que “institui a Gestão Democrática e dispõe sobre a eleição direta para diretores e diretores adjuntos das unidades escolares e diretores dos centros de educação infantil da REME de Campo Grande”, a tramitação do Projeto prosseguiu sendo encaminhado no dia 2 de abril de 2018 à Coordenadoria de Apoio Técnico-Jurídico da Câmara Municipal de Campo Grande, sendo considerado legal e regular pela Subprocuradora de Assuntos Legislativos. Na sequência, em 4 de abril de 2018, seguiu para a Comissão de Legislação, Justiça e Redação Final, recebendo parecer favorável do vereador Otávio Trad (PTB) e aprovação unânime dos integrantes da referida Comissão, vereadores André Salineiro (PSDB), Dr. Lívio (PSDB), William Maksoud (PMN) e Odilon de Oliveira (PDT) (CAMPO GRANDE, 2018b).
Em 15 de maio de 2018, o texto foi encaminhado à Comissão de Educação e Desporto, com relatoria e parecer favorável do vereador Valdir Gomes (PP), acompanhado integralmente pelos membros dessa Comissão, ou seja, vereadores Delegado Wellington (PSDB), Ademir Santana (PDT), Veterinário Francisco (PSB) e André Salineiro (PSDB). Em última análise técnica interna do legislativo municipal, o PL foi enviado à Comissão de Finanças e Orçamento, com relatoria do vereador Eduardo Romero (REDE) e aval de seus integrantes, vereadores Júnior Longo (PSB), João César Mattogrosso (PSDB), Betinho (PRB) e Dharleng Campos (PP) (CAMPO GRANDE, 2018b). Levado ao plenário em 17 de maio de 2018, o PL foi aprovado em única sessão e votação (VEREADORES..., 2018).
A aprovação da Lei nº 6.023, de 15 de junho de 2018, homologada pelo chefe do Poder Executivo municipal, que “institui a Gestão Democrática e dispõe sobre a eleição direta para diretores e diretores adjuntos das unidades escolares e diretores dos centros de educação infantil da REME de Campo Grande” (CAMPO GRANDE, 2018c), foi comemorada pela ACP.
Esse é um momento inédito e histórico para os profissionais da educação da REME. Há mais de 20 anos nós lutamos pela implantação da gestão democrática e hoje estamos vivendo essa realidade. Isso é fruto da luta e da união da categoria por meio do sindicato (GESTÃO..., 2018).
A manifestação da ACP mostra que o provimento do cargo de diretor e diretor ajunto na REME, até então, era por indicação do Chefe do Executivo Municipal como norma exclusiva, ou seja, uma modalidade que pode ser identificada de caráter político-partidário e com base no clientelismo político (PARO, 2003).
É importante recordar que outras normativas foram agregadas no segundo mandato do governo de André Puccinelli (2001-2004), do PMDB, à época, prefeito de Campo Grande-MS. Esse governo firmou parceria com o Instituto Ayrton Senna (IAS) para implantação do Programa Escola Campeã (PEC) nas escolas da REME (OLIVEIRA; BOLSON; DANTAS, 2010).
Para adequações aos termos da parceria, foram publicados o Decreto no. 8.508, de 7 de agosto de 2002, que dispôs sobre o provimento do cargo em comissão de Direção Escolar, de livre nomeação e exoneração do Chefe do Poder Executivo, entre outros itens, com a obrigatoriedade do diretor indicado de participar de um curso de capacitação de gerenciamento escolar (CAMPO GRANDE, 2003a); e a Resolução SEMED no 59, de 16 de maio de 2003 que instituiu o processo seletivo para dirigentes das escolas municipais, com a exigência de certificação ocupacional, conforme uma das etapas do processo de seleção (CAMPO GRANDE, 2003b). O curso de gestão e a certificação ocupacional, critérios exigidos para o cargo, eram ofertados pela Fundação Luís Eduardo Magalhães (FLEM), uma instituição particular (OLIVEIRA; BOLSON; DANTAS, 2010), que tem, até hoje, como parceiro/cliente o IAS (FLEM, 2020).
Esses critérios de seleção permaneceram, mesmo após o encerramento da parceria entre a Prefeitura Municipal de Campo Grande e o IAS. Na gestão seguinte, do prefeito Nelson Trad Filho (2005-2008), também do então PMDB, foi instituída uma nova etapa, além do curso de gestão e da certificação ocupacional, isto é, o acompanhamento sistemático do desempenho dos indicados, segundo regras definidas pelo órgão central e mediante assinatura de termo de compromisso, podendo, conforme resultado de sua avaliação, ser afastado do cargo (CAMPO GRANDE, 2008).
Esses requisitos, com fundamento na concepção gerencial de educação, que toma como indicadores resultados da avaliação, pautados em critérios técnicos de mérito e desempenho, indicam que,
Embora, no nível do discurso, se defenda a eficiência e racionalidade na obtenção dos objetivos - constituindo isso, inclusive, justificativa para a aplicação da administração tipicamente capitalista na escola -, no nível da ação, acabam por prevalecer apenas os mecanismos mais propriamente gerenciais, relacionados ao controle do trabalhador (PARO, 2008, p. 130).
Compreende-se, assim, que a eleição de diretores escolares pela comunidade escolar é uma dimensão da gestão democrática, condição para a democratização da escola pública, na medida em que possibilita “[...] controle democrático no Estado por parte da população, no sentido do provimento de serviços coletivos em quantidade e qualidade compatíveis com as obrigações do Poder Público e de acordo com os interesses da sociedade” (PARO, 2003, p. 26).
A Lei de Gestão Democrática da educação
A Lei que institui a Gestão Democrática na REME de Campo Grande, em seu art. 1º, define os preceitos relacionados à autonomia das unidades escolares na gestão administrativa, financeira e pedagógica; livre organização de segmentos na escola; participação da comunidade escolar nos processos decisórios em órgãos colegiados; transparência dos mecanismos administrativos, financeiros e pedagógicos; descentralização do processo educacional; valorização dos profissionais da educação; e eficiência no uso dos recursos (CAMPO GRANDE, 2018c).
Os elementos referentes à autonomia administrativa, financeira e pedagógica são essenciais para a materialização da gestão democrática, pois proporcionam bases para uma participação mais autônoma e condizente com a realidade de cada ambiente escolar.
No entanto, chama-se a atenção para os elementos presentes como “descentralização do processo educacional” e “eficiência no uso dos recursos”, descritos entre os preceitos (CAMPO GRANDE, 2018c). Compreende-se que, se forem considerados de forma linear, podem induzir ao desenvolvimento de ações, com alicerce na racionalidade técnica, presente na concepção gerencial de educação, cujo modelo de gestão, centrado na eficácia e na eficiência, sob a égide da ordenação neoliberal, encontra-se em ascensão, abrangendo “[...] a persecução da administração por objetivos, em escala organizacional, com fortes componentes de divisão de trabalho, de racionalidade instrumental e hierarquia estrutural, com vistas à qualidade total do setor educacional” (PERONI; OLIVEIRA; FERNANDES, 2009, p. 772).
Apesar do caráter inédito da Lei de Gestão Democrática esses elementos ensejam vigilância, na medida em que essa concepção se contrapõe à concepção de gestão democrática, que se fundamenta em princípios como transparência, representatividade plural, participação nas decisões e trabalho coletivo (CURY, 2002).
A escolha do diretor e do diretor adjunto, segundo o artigo 6º, Inciso I, será por meio de consulta à comunidade escolar, mediante voto direto, secreto e paritário; e, tem direito ao voto, os profissionais da unidade de ensino, alunos com idade mínima de dez anos, pai, mãe ou responsável legal dos alunos e professores convocados em regime de suplência acima de 60 dias consecutivos (Art. 22). Sobre os mandatos, o art. 44 da supracitada Lei informa quatro anos de gestão, sendo “permitida a reeleição quantas vezes forem de interesse da comunidade” (CAMPO GRANDE, 2018c).
O art. 10 da Lei no 6.023, de 2018, indica que os interessados no processo eleitoral sejam “[...] professores e especialistas em educação, efetivos do grupo do magistério municipal, e atendam às condições previstas no art. 16 desta lei”, ou seja, ser profissional efetivo do magistério municipal, com tempo mínimo de cinco anos de exercício, ter um ano de exercício na unidade de ensino em que pretende concorrer; ter formação superior em nível de licenciatura plena e ser pós-graduado na área de educação; ter disponibilidade para cumprimento da carga horária integral na unidade escolar (CAMPO GRANDE, 2018c).
Em que pese a importância da escolha pela comunidade de quem estará na direção da escola e de sua qualificação, compreende-se que esse cargo é revestido de responsabilidade social, no sentido de que não seja unipessoal, “[...] o único detentor da autoridade, mas que esta seja distribuída, junto com a responsabilidade que lhe é inerente, entre todos os membros da equipe escolar” (PARO, 2003, p. 126).
Destaca-se o art. 5º da referida Lei, que confirma a gestão das unidades de ensino a ser exercida pelo diretor e diretor-adjunto, quando for o caso, de acordo com o número de alunos, e o Conselho Escolar, como “órgão colegiado, instituído por normas próprias, corresponsável pela gestão da unidade de ensino, juntamente com a direção” (CAMPO GRANDE, 2018c).
Salienta-se a importância dos Conselho Escolares, implantados na REME em 2009, mediante o Decreto nº 10.900, de 13 de julho de 2009 (CAMPO GRANDE, 2009), entendendo que se trata de alternativa democrática de grande alcance (LIMA, 2014), pois, como um colegiado plural participa da tomada de decisões da escola. Trata-se de uma dimensão essencial da gestão democrática, na medida em que,
O poder de decidir, participando democraticamente e com os outros nos respectivos processos de tomada das decisões representa o âmago da democracia e, consequentemente, sem participação na decisão não é possível conceber uma gestão democrática das escolas na perspectiva do seu autogoverno (LIMA, 2014, p. 1072).
A Lei de Gestão Democrática, de 2018, interrompeu, portanto, o ciclo de indicações de diretores e diretores adjuntos pelo Poder Executivo na REME de Campo Grande-MS, com a efetivação das eleições, cinco meses após a sua aprovação, uma “experiência tardia”, nos termos de Fernandes e Souza (2018).
O pleito eleitoral, inédito na REME, foi organizado pela SEMED e realizado no dia 29 de novembro de 2018 em todas as escolas municipais com inscritos. Foram registradas 123 inscrições ao cargo de diretor e 81 ao cargo de diretor adjunto (para escolas com mais de 700 alunos), para 102 escolas da REME (CAMPO GRANDE, 2018e), observando a prerrogativa de inscrição individual, isto é, de candidato a diretor, nas unidades com menos de 700 alunos e chapas com candidato a diretor e diretor adjunto nas demais unidades com número superior a esse e/ou com três turnos de funcionamento (CAMPO GRANDE, 2018d).
No entanto, as eleições não foram realizadas nos CEINF em 2018, com o argumento de que a mencionada Lei prevê que as unidades de ensino participantes do pleito eleitoral devem ter Conselhos Escolares em sua gestão, conforme os artigos 5º, 6º e 7º, que descrevem sobre a composição da gestão escolar (CAMPO GRANDE, 2018c); e com candidatos que sejam servidores efetivos da REME há, pelo menos, cinco anos, como disposto nos artigos 8º e 16 da Lei.
Essas condições não representavam a realidade de todas as 101 unidades de Educação Infantil na Rede Municipal de Ensino, não havendo Conselhos Escolares ou Associação de Pais e Mestres (APM) nessas unidades, conforme legislação referente ao funcionamento e gestão dos CEINF (CAMPO GRANDE, 2014), assim como pela contratação de parte dos profissionais que exerciam a função por meio de contratos emergenciais nesses Centros, atualmente denominados de Escolas Municipais de Educação Infantil (EMEI) (CAMPO GRANDE, 2019). Infere-se que essa pode ter sido uma estratégia do Poder Executivo para a aprovação da Lei, após questionamento dos representantes da ACP para inclusão dos CEINF, que não foi problematizada por esses representantes, por ocasião de sua aprovação e, portanto, expressa as condições objetivas em que se efetivam o processo, marcado pelas disputas de concepções de educação e de gestão da sociedade política (aparelho governamental) e da sociedade civil.
De todo modo, a eleição, uma das dimensões da Gestão Democrática, está na esteira da materialização da Meta 19 do PME de Campo Grande 2015-2025, observando-se o avanço na legislação, na medida em que, por exemplo, define a escolha de diretores e diretores adjuntos da REME, por meio do voto direto, secreto e paritário, dos diferentes segmentos da comunidade escolar e não se refere, por exemplo, a programas de formação de diretores ou prova nacional específica, como critérios específicos para o provimento das funções, conforme define a estratégia 19.8 do PME de Campo Grande 2015-2025 (CAMPO GRANDE, 2015), ou seja, critérios técnicos de mérito e desempenho para o cargo.
Considerações finais
Buscou-se neste artigo mostrar como um município, Campo Grande, Capital do Estado de Mato Grosso do Sul, organizou o processo de normatização da Lei de Gestão Democrática, no âmbito de sua responsabilidade, decorrente da exigência do art. 9o da Lei nº 13.005, de 2014, que aprova o PNE 2014-2025, em consonância com o princípio da Gestão Democrática estabelecido na CF de 1988 e com a Lei nº 9.394, de 1996.
Mostrou que o Poder Executivo, em função de um compromisso de campanha, desencadeou o processo organizando uma Comissão com a participação de representantes da sociedade política (aparelho governamental), quatro representantes da Secretaria Municipal de Educação e da sociedade civil, três representantes do CONDAEM e três da ACP, assim como de três representantes da Câmara Municipal, para elaboração da proposta.
O processo de construção da Lei focalizou mais o tema das eleições para diretores e diretores adjuntos e, principalmente, na audiência pública realizada, pode-se observar tensionamentos e disputas entre os sujeitos sociais, que resultou na retirada do Projeto de Lei de pauta pelo Poder Executivo, devido à pressão exercida pela ACP, por não ter incluído no Projeto os CEINF.
A presença de vereadores na Comissão que elaborou a proposta, ou seja, aquelas pessoas que, em um significado jurídico-estatal, estão habilitadas por leis a legislar (GRAMSCI, 1984), no caso, na esfera do município, assim como a aprovação integral do Projeto de Lei em todas as comissões necessárias e no plenário da Câmara Municipal, indica que a Lei aprovada resulta de arranjos institucionais efetivados durante o processo de elaboração, de possíveis negociações, que marcam as concepções em disputa, com base em princípios e interesses contraditórios, nos quais os consensos se fazem necessários.
Assim, a Lei de Gestão Democrática provoca uma ruptura na indicação política, ao definir a eleição como critério para escolha de diretores e diretores adjuntos na REME, reivindicação histórica dos educadores, e traduz o esforço político dos representantes da sociedade civil, principalmente da ACP, abrindo espaço para a construção de um sistema educacional e de escolas mais autônomos, com sujeitos abertos ao diálogo, capazes de se contrapor à lógica gerencial da educação que vem se afirmando e, portanto, de materializar a gestão democrática da educação pública, em um projeto de sociedade que busca “democratizar a própria democracia” (CURY, 2002).
Desse modo, revela a necessidade de outros estudos, no que concerne à sua materialização nas escolas da Rede Municipal de Ensino.