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Jornal de Políticas Educacionais

versión On-line ISSN 1981-1969

J. Pol. Educ-s vol.14  Curitiba  2020  Epub 20-Abr-2022

https://doi.org/10.5380/jpe.v14i0.71233 

Artigos

A apropriação da proposta de cooperativa escolar como uma forma de privatização do conteúdo da educação

Appropriation of the school cooperative proposal as a way of privacying education content

Aprobación de la propuesta de cooperativa escolar como forma de privacidad contenido de educación

Renata Cecilia Estormovski1 
http://orcid.org/0000-0001-5714-8928

1Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Passo Fundo com bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Professora e coordenadora pedagógica da rede pública estadual do Rio Grande do Sul, graduada em Letras (FAPLAN) e em Pedagogia (UFSM) e especialista em Gestão Educacional (UFSM). Soledade, RS. E-mail: renataestormovski@yahoo.com.br


Resumo

O presente estudo se propõe a retratar duas propostas de cooperativa escolar: a idealizada por Célestin Freinet no início do século XX (considerada vanguardista e tida como uma das técnicas do pedagogo) e a elaborada por uma cooperativa de crédito (inserida nas escolas públicas da atualidade e que cita a primeira como uma de suas inspirações). Com isso, comparam-se as proposições e compreende-se a ressignificação do projeto de cooperativas escolares, quase um século depois, situando sua materialização no atual tempo histórico como parte dos processos de privatização do conteúdo da educação. A análise se define como de natureza qualitativa e foi realizada mediante pesquisas bibliográfica e documental.

Palavras-chave: Políticas educacionais; cooperativas escolares; privatização do conteúdo da educação

Abstract

The present study aims to portray two proposals of school cooperative: the idealized by Célestin Freinet in the beginning of the twentieth century (considered avant-garde and considered as one of the pedagogue's techniques) and the one elaborated by a credit cooperative (inserted in today's public schools and citing the first as one of his inspirations). Thus, we compare the propositions and understand the resignification of the project of school cooperatives, almost a century later, situating its materialization in the current historical time as part of the processes of privatization of the content of education. The analysis is defined as qualitative in nature and was performed through bibliographic and documentary research.

Keywords: Educational policies; school cooperatives; privatization of the content of education

Resumen

El presente estudio propone retratar dos propuestas de cooperativa escolar: la idealizada por Célestin Freinet a principios del siglo XX (considerada vanguardista y considerada una de las técnicas del pedagogo) y la desarrollada por una cooperativa de crédito (insertada en las escuelas públicas de hoy y citando al primero como una de sus inspiraciones). Así, comparamos las proposiciones y entendemos la resignificación del proyecto de las cooperativas escolares, casi un siglo después, situando su materialización en el tiempo histórico actual como parte de los procesos de privatización del contenido de la educación. El análisis se define como de naturaleza cualitativa y se realizó mediante investigación bibliográfica y documental.

Palabras Clave: Políticas educativas; cooperativas escolares; privatización del contenido de la educación

Considerações iniciais

A escola pública brasileira se configura na atualidade como um espaço receptivo a projetos elaborados por sujeitos2 externos à sua realidade, geralmente vinculados ao capital financeiro e ao empresariado e constantemente representados por fundações. A responsabilidade social, a que muitos desses grupos se propõem, tem se constituído como uma possibilidade de inserção de propostas de qualificação (segundo seus próprios princípios) da educação básica ofertada pelo Estado, comumente referenciada como de poucas eficiência e eficácia. Por meio do que caracterizam como boas práticas, estimulam a reprodução de iniciativas que, travestidas por discursos progressistas, esvaziam de diversidade o cotidiano escolar ao mesmo tempo em que figuram como alegação de benevolência com a comunidade. As ações, que são desenvolvidas em uma parcela das instituições escolares, assim, se tornam formas de estabelecer elos entre esses grupos e a sociedade e resultam, constantemente, em campanhas publicitárias recebidas com simpatia pela população.

As cooperativas escolares, pensadas em sua gênese pelo pedagogo francês Célestin Freinet no início do século XX, têm ganhado visibilidade nesse movimento, sendo organizadas em diferentes realidades educativas por estímulo de cooperativas de crédito. Nesse sentido, este estudo se propõe a retratar o conteúdo das propostas de cooperativa escolar apresentadas por Freinet e pela cooperativa de crédito Sicredi (que cita a primeira como sua inspiração), indicando aproximações e afastamentos entre as concepções. Com isso, pretende-se refletir sobre como a ideia primeira de cooperativa escolar foi apropriada, quase um século depois, por um sujeito coletivo que atua no mercado financeiro como instituição bancária, ressignificada e usada como parte de seus projetos sociais. A análise relatada se define como de natureza qualitativa e é realizada por meio de pesquisas bibliográfica e documental.

Conceitos embasadores da análise

Ao iniciar a reflexão a qual este estudo se propõe, convém explicitar que a proposta de cooperativa escolar em análise, por mais que inserida em um contexto específico, não deve ser pensada, a priori, de maneira dissociada do cenário econômico, político e social ao qual se relaciona. Como afirma Lukács (1978), o singular e o universal se estabelecem em uma relação dialética contínua, sendo mediatizados pelo particular. Do mesmo modo, projetos específicos, como os de cooperativas escolares enfocados, se fundamentam como um vínculo entre a realidade distinta da escola e a conjuntura macroestrutural da sociedade em um movimento constante. Ainda, salienta-se a percepção de que a forma como um plano se materializa está em relação com os contextos histórico e geográfico (HARVEY, 2008), que são múltiplos, fazendo com que a mesma proposição, concretizada em distintas circunstâncias, possa se constituir de variadas maneiras. Dessa forma, assim como há diversas iniciativas voltadas à fundação de cooperativas escolares, há também formas diferentes de uma mesma proposta se materializar, sendo possível, com a análise de documentos, compreender apenas as dimensões previstas em um plano e não todas as suas especificidades em termos de implementação.

A proposta ainda precisa ser compreendida como a construção de um sujeito (THOMPSON, 1981) coletivo, que possui suas próprias ideologias e valores e que acredita que seu projeto se evidencia como uma alternativa conveniente de acordo com sua percepção da realidade e, por conseguinte, da educação pública. Contudo, a atuação primeira da cooperativa de crédito que realiza a proposição em estudo como uma instituição, em suma, bancária e vinculada ao mercado financeiro, situa suas cooperativas escolares como parte das relações entre os setores público e privado (com a prevalência do segundo sobre o primeiro na sociedade capitalista). Essa vinculação, como Peroni (2015) concebe, resulta em processos distintos de privatização da educação. A autora esclarece que, por mais que o termo privatização remeta, costumeiramente, à apropriação de matrículas públicas por instituições privadas, engloba múltiplas manifestações, entre elas a que implica no redirecionamento dos conteúdos escolares da escola pública por entes privados. Nessa perspectiva, há a privatização da dimensão pedagógica, na medida em que os temas tratados na escola são definidos sem a participação de docentes, coordenadores pedagógicos ou dos próprios discentes, mas estabelecidos por atores externos.

Neste estudo, por se entender a Educação Básica como um direito público subjetivo (conforme a Constituição Federal Brasileira de 1988), acredita-se que esta só pode ser garantida com a mesma qualidade a todos se for ofertada pelo Estado. Além disso, consideram-se estudos anteriores3 que demonstram como o setor privado mercantil tem inserido nas escolas públicas brasileiras sua lógica corporativa pautada em seus interesses formativos através de programas organizados sem a discussão e a participação das comunidades escolares. Ao mesmo tempo, contudo, compreende-se que tais materializações precisam ser investigadas e compreendidas, sendo situadas, já em um primeiro momento, como construções pautadas em percepções próprias que buscam, segundo princípios particulares, qualificar a educação pública. Assim, busca-se atentar para que a produção da pesquisa, e seu relato aqui expresso, não tomem uma perspectiva idealista, que poderia se constituir como uma simples oposição utópica de bem versus mal.

As cooperativas escolares como motivadoras do trabalho e da cooperação discente

A proposta de cooperativas escolares pode ser situada como tendo o pedagogo francês Célestin Freinet como um de seus propulsores. Nascido em 1896, Freinet era filho de camponeses, cursou magistério e, antes que pudesse iniciar efetivamente sua trajetória como docente, foi convocado a lutar na I Guerra Mundial, onde teve sua capacidade respiratória seriamente comprometida devido a uma intoxicação (FERRARI, 2008). Por mais que os médicos indicassem que não lecionasse a partir de então, já que o contexto escolar da época era predominantemente de aulas expositivas, típicas da escola tradicional, Freinet relutou e construiu, ao longo de sua carreira como professor, reconhecidas teses mencionadas até a atualidade. A Escola Moderna, a pedagogia do senso e a pedagogia do trabalho são algumas das concepções a partir das quais sua obra é referenciada.

Contemporâneo do movimento escola novista, Freinet compartilhava de parte das ideias desse grupo, como a de descentralização da construção pedagógica do conhecimento, antes empreendida apenas pelos docentes e com os discentes sendo considerados receptores dos saberes. Na nova percepção, os alunos se tornam protagonistas das práticas educativas, sendo o professor incumbido de orientar, sanar dúvidas e motivar o processo de descoberta dos estudantes. Freinet, nesse sentido, insere o trabalho (livre e criativo) e a cooperação como princípios educativos, com o estímulo para que as práticas pedagógicas fossem construções dos discentes em um intercâmbio constante entre o pensar e o fazer, rompendo com a tradição do uso dos manuais em classe (FERRARI, 2008). A cooperação também figura como um dos eixos da pedagogia de Freinet que, além dela, incluem a comunicação, a documentação e a afetividade, como explicado por Ferrari (2008). Assim, com a elaboração de planos de trabalho a partir das curiosidades e dos interesses dos alunos, iniciava-se um processo que envolvia a construção colaborativa dos saberes por meio da comunicação entre os discentes e entre eles o mundo (com pesquisas de campo, entrevistas, idas à biblioteca, etc., sendo que as descobertas eram registradas no chamado livro da vida. Todas essas relações estabeleciam-se por meio de vínculos afetivos entre os sujeitos (alunos, professor- orientador e outros atores envolvidos) e com o próprio conhecimento.

Com as chamadas técnicas Freinet, como são atualmente mencionadas (TORNAGHI, 2018), estimulava o intercâmbio dos estudantes com a comunidade, com a proposição de aulas-passeio, a editoração do jornal escolar e as trocas de correspondências entre estudantes, por exemplo, que encorajavam o diálogo com o ambiente social e cultural. Os alunos, logo, eram motivados a pensar e a dialogar com a comunidade, indo além das aulas tradicionais, que geralmente possuíam um fim em si mesmas e se pautavam em estratégias enciclopedistas. E é, por isso, que surge a ideia de formação de cooperativas escolares, como descrito pelo próprio autor:

Mas organize a Cooperativa escolar, essa sociedade de crianças que nasce espontaneamente [...], e a Escola será esse canteiro em que a palavra trabalho aparecerá em todo o seu esplendor, ao mesmo tempo manual, intelectual e social, no seio do qual a criança nunca se cansa de procurar, de realizar, de experimentar, de conhecer e de subir, concentrada, séria, refletida, humana! (FREINET, 2004, p. 66).

Em seus escritos, produzidos de forma simples e que soam quase como um diário ao leitor, Freinet (2014) salienta que a cooperativa não pode ser fundada apenas para que um grupo, mediante cotas de pagamento, consiga comprar um material ou algo que almeja, mas que seja “uma verdadeira sociedade de crianças capaz de administrar a quase totalidade da vida escolar” (FREINET, 1969, p. 149). Nesse sentido, o conceito de autogestão é mencionado como uma maneira de incentivar a atuação independente e democrática, sempre norteada pelo princípio da cooperação, entre os estudantes. A ideia de cooperativa, salienta-se, iniciou como uma proposição de Freinet para o povoado em que nasceu, em Gars, objetivando que os trabalhadores atuassem de forma coletiva (LEGRAND, 2010). Posteriormente, fundou a Cooperativa de Ensino Laico junto com sua esposa Élise, a fim de estimular a produção de diferentes materiais e publicações para e sobre a educação, tornando, enfim, a proposta uma de suas técnicas pedagógicas.

Sobre a cooperativa, Légrand (2010) frisa que Freinet mencionava sua constituição ainda como motivação para o estudo do cálculo entre os alunos, além de se destacar como uma forma de levantar fundos para dar prosseguimento aos projetos do grupo. As viagens de estudo e o jornal escolar, por exemplo, necessitavam de investimento, difícil de ser conseguido em povoados pobres. No entanto, a essência da cooperativa não era a provisão financeira, mas a fundação de um “lugar de reflexão, de elaboração de projetos, de tomadas de decisão, de contabilidade e de avaliação das possibilidades futuras” (LÉGRAND, 2010, p. 17). Para que houvesse a estruturação dessa entidade, eram eleitos responsáveis e reuniões constantes eram realizadas, em um espaço em que:

[...] as técnicas de comunicação escolar tornam-se o instrumento de uma formação cívica mediante a ação, e não mediante discursos sobre instituições longínquas, às quais somente o funcionamento cotidiano da instituição escolar dará um significado concreto (LÉGRAND, 2010, p. 17).

Torna-se relevante citar que o pedagogo, por mais que articulado e com atuação simultânea ao movimento da Escola Nova, também discordava de alguns de seus pontos, principalmete por considerá-la elitista. O que Freinet almejava era a construção de uma pedagogia popular, já que acreditava que o ensino tradicional se estabelecia como uma maneira de reprodução dos saberes considerados convenientes às classes dominantes, que não almejavam transformações sociais. Sua atuação política, inclusive, é marca de sua trajetória. Filiado ativo ao Partido Comunista francês, sofreu perseguições, foi exonerado do serviço público e preso durante a II Guerra Mundial. Posteriormente, contudo, foi convidado pelo governo a colaborar com a elaboração de políticas, sendo considerado por seus colegas de partido uma espécie de traidor, o que provocou sua desfiliação partidária, mas não seu afastamento da ideologia socialista (FERRARI, 2008).

No Brasil, as acepções de Freinet se tornaram mais conhecidas na década de 1980, quando a tendência pedagógica progressista libertária teve maior destaque no país. Ao buscar a resistência ao aparelhamento ideológico do Estado e a formação de trabalhadores regidos pela autogestão, como explica Oliveira (2011), esse movimento utilizava as ideias do pedagogo e de seus contemporâneos para defender a autonomia dos sujeitos em detrimento da opressão institucionalizada. A solidariedade, nesse contexto, também se constituía como um dos fundamentos almejados, a exemplo das percepções sobre o cooperativismo pretendido por Freinet.

Diante das considerações destacadas e em um esforço de síntese, podem-se elencar alguns conceitos como estruturais da pedagogia de Freinet: o protagonismo dos alunos, a cooperação e o trabalho livre e criativo, o pensar e o fazer em constante relação, os quatro eixos (cooperação, comunicação, documentação e afetividade), a cooperativa escolar (como uma de suas técnicas pedagógicas e uma estratégia de autogestão discente), o contato com o mundo social e cultural e a proposta como uma forma de consolidação de uma pedagogia popular. Esses pontos serão considerados, posteriormente, ao se confrontar as propostas de Freinet e da Sicredi. Ratifica-se que o conceito de cooperativa, na percepção do pedagogo, só faz sentido quando articulado às outras categorias citadas e, dessa forma, não é possível formular uma análise considerando apenas esse aspecto, já que representa uma das faces da totalidade que culmina na Pedagogia Freinet.

As cooperativas escolares como uma (re)construção de uma cooperativa de crédito

A cooperativa de crédito Sicredi tem proposto, a escolas públicas, a fundação de cooperativas escolares como parte de seus projetos sociais, mencionando Freinet como uma de suas inspirações. A finalidade exposta em um dos sites4 - que contém as informações utilizadas para a análise - é educativa, sendo que a cooperativa pode desenvolver atividades sociais, culturais e econômicas. Com o desenvolvimento da iniciativa nas escolas, a página referenciada na sentença anterior relata haver a intenção de que uma proposta pedagógica seja formulada pelos discentes, transcendendo as práticas tradicionais e transformando, social e economicamente, a vida dos sujeitos envolvidos. O projeto objetiva estimular os estudantes, por meio das vivências dentro da entidade, a tornarem-se líderes, empreendedores e gestores participativos e responsáveis.

O programa “A união faz a vida”, que também se constitui como um projeto da Sicredi, e as experiências da cidade que é considerada a capital do cooperativismo na Argentina, Sunchales, são referidos como outras vertentes que impulsionam o desenvolvimento da proposta. Cita-se em sua página própria5, o alcance de 284.604 crianças e adolescentes em 1.908 escolas de sete estados brasileiros diferentes, o programa “A União faz a vida” se propõe a, por meio dos princípios de cooperação e cidadania, formar cidadãos cooperativos com uma metodologia própria desenvolvida nas escolas. Já a cidade de Sunchales é mencionada6 como o berço de cooperativas argentinas de sucesso, com parte do orçamento público sendo vinculado para a fundação de entidades do gênero nas escolas e tendo o cooperativismo como eixo transversal do currículo escolar. Articulada a essas boas práticas, então, a iniciativa em análise passou a ser incorporada ao rol de projetos sociais da cooperativa de crédito.

A proposta de cooperativas escolares da Sicredi, ainda de acordo com o primeiro site citado, se dedica a desenvolver no ambiente escolar os sete princípios do cooperativismo: a adesão livre e voluntária; a gestão democrática; a participação econômica; a autonomia e a independência; a educação, a formação e a informação; a intercooperação; e o interesse pela comunidade. Os estudantes são apresentados como os únicos sócios da cooperativa, possuindo apenas um professor como orientador e motivador e desenvolvendo aprendizagens de autogestão, empreendedorismo, educação financeira e respeito entre os cooperados. As cooperativas, além disso, são expostas como formas mais justas e equilibradas, social e economicamente, de se pautar a sociedade, considerando-se o cenário de inclusão social insuficiente, resultado das políticas econômicas.

Em um segundo link em que a proposta é descrita7, as informações da fonte anterior são ratificadas e complementadas. Nele, cita-se o caráter educativo, o espírito cooperativo e o movimento constante entre o saber e o fazer como inerentes ao trabalho desenvolvido nas cooperativas escolares, bem como a tríade educação cooperativista, trabalho e cooperação como promotoras das atividades. O desenvolvimento de valores voltados à convivência, ao respeito, à solidariedade e à justiça social são citados como benefícios da aprendizagem de cooperativismo, como é chamada, vivida nas escolas. Descreve, também, a oferta de um curso de formação de 40 horas para os sujeitos e para as escolas interessados em aderir ao projeto. Nesse curso, versa-se sobre o conceito, o histórico, os ramos e os princípios do cooperativismo, assim como é demonstrada a forma como uma cooperativa é fundada e organizada, abordando-se o estatuto, as assembleias, as reuniões e os conselhos da entidade, entre outras questões. Inclusive, frisa-se as cooperativas como uma forma de geração de emprego e renda e de ampliar as oportunidades por meio do empreendedorismo e do apoio e da solidariedade entre os sujeitos.

Contrapondo as propostas: Quais aproximações? Quais afastamentos?

Como forma de tornar objetiva e ordenada a comparação entre as duas propostas de cooperativa escolar, partir-se-á dos conceitos elencados como estruturais da pedagogia de Freinet e mencionados em uma seção anterior. São eles: o protagonismo, a cooperação e o trabalho livre e criativo dos discentes, o pensar e o fazer em constante relação, os eixos (cooperação, comunicação, documentação e afetividade), a cooperativa escolar (como uma de suas técnicas pedagógicas e uma estratégia de autogestão discente), o contato com o mundo social e cultural e a proposta como uma forma de consolidação de uma pedagogia popular. De antemão, destaca-se que é compreensível que, ao apontar Freinet como uma de suas inspirações, a cooperativa de crédito não assumiu acatar todas as concepções do pedagogo em seu projeto. Contudo, o exercício de identificar as similaridades e os afastamentos se torna relevante no sentido de indicar em que pontos os projetos convergem ou divergem e, desse modo, compreender em que medida houve a ressignificação da concepção primeira.

O conceito inicialmente apontado, é o protagonismo dos alunos, considerado basilar à pedagogia Freinet e que é relatado como uma afinidade com o movimento da Escola Nova e com a consequente percepção de que os discentes deveriam ser o centro dos processos de ensino-aprendizagem, com o professor sendo apenas um orientador da trajetória discente. Na proposta da cooperativa de crédito, essa concepção, da mesma maneira, pode ser identificada ao proporcionar que os alunos sejam os principais atores a realizar o processo de fundação da cooperativa e sendo seus únicos sócios. Há ainda, a menção às questões de liderança que reafirmam a atuação dos jovens nesse projeto. O professor, na segunda proposta analisada, também é tido como o sujeito que auxilia os alunos em sua trajetória, com uma posição secundária.

A cooperação, um dos princípios que Freinet defendia em seu projeto, se revela também nas cooperativas escolares da Sicredi, todavia, seus vieses podem ser considerados de maneira distinta. Enquanto em Freinet a cooperação era orientadora de todas as práticas pedagógicas, inclusive na cooperativa de estudantes, na segunda proposição analisada esse preceito se restringe à cooperativa, que é o objetivo do projeto e do qual participa uma parcela dos estudantes. Não há, dessa maneira, como garantir ou prever que as aulas ministradas regularmente envolvam a cooperação e considerem-na um valor estrutural. O mesmo vale para o outro princípio de Freinet, o trabalho livre e criativo dos discentes. Na proposta da cooperativa de crédito, há o estímulo para que os alunos criem, planejem e produzam objetos que possam sustentar sua cooperativa, de forma ativa e criativa em uma adesão voluntária. No entanto, mais uma vez essa concepção se restringe à organização de estudantes e não há menção a sua inserção nas demais instâncias da escola. Quanto aos eixos definidos por Freinet (cooperação, comunicação, documentação e afetividade), que indicam a articulação empreendida para a consolidação das práticas pedagógicas, estes não são mencionados pela Sicredi.

A categoria definida como o pensar e o fazer, que para Freinet deveriam se estabelecer em constante relação, é citada com uma variação de vocábulo na proposta da Sicredi, em que é exposta como o saber e o fazer, que também são defendidos em sua vinculação permanente. Entretanto, nesta análise não foram encontrados elementos que denotem diferenças de significado no contexto dos projetos. Assim, pode-se identificar as referidas menções como formas de proximidade entre as propostas, já que em ambas há a presença do ponto de vista de que a teoria e a prática necessitam estar próximas nas construções, de forma que a reflexão embase a ação e vice-versa. Nesse sentido, o contato com o mundo social e cultural, ideia presente na pedagogia Freinet de forma recorrente e em relação com o conceito anterior, pode ser identificada como uma aproximação com a proposta da cooperativa de crédito em questão. Afinal, ambas estimulam que os alunos pensem e ajam sobre o ambiente extraescolar, refletindo sobre a sociedade e a maneira como se constitui.

Ao direcionar a análise para a cooperativa escolar, uma das técnicas defendidas por Freinet e foco da proposta elaborada pela cooperativa de crédito Sicredi, percebe-se o maior ponto de união entre as concepções, ratificado pelo comprometimento com a autogestão discente, destacada por ambas. O elo entre os projetos, porém, também pode se destacar como um distanciamento entre eles ao se pensar nos sujeitos que arquitetam sua fundação e nos objetivos que os motivam. Na proposta pensada pelo pedagogo francês, a cooperativa surge como um empreendimento dos discentes, junto a um professor que os apoia, e se salienta assim, como uma maneira de tornar tácitos os princípios pedagógicos definidos para o processo de ensino-aprendizagem (além de estimular o cálculo e o contato com a realidade). Define-se, do mesmo modo, como uma maneira de juntar fundos para a manutenção de outros projetos do grupo relacionados a suas necessidades escolares, como a impressão de jornais ou visitas de estudo.

Na segunda proposta, todavia, quem elabora o projeto e estimula sua fundação é a cooperativa de crédito, que convida escolas e alunos a fundarem uma cooperativa seguindo o seu modelo. Ainda, como a cooperativa se coloca à parte do desenvolvimento das aulas, seus objetivos não estão obrigatoriamente articulados ao trabalho desenvolvido em classe, ademais que a definição de um produto a ser produzido e comercializado (já em um primeiro momento), contraria a percepção de Freinet de que os objetivos financeiros não poderiam ser o foco da cooperativa escolar.

Ao direcionar a análise sobre a ideia de Freinet como uma possibilidade de pedagogia popular, surgem antagonismos que colocam os projetos, até então similares em vários pontos, em eixos distintos. Para o autor, as cooperativas escolares se estabeleciam como maneiras de se pensar em uma sociabilidade diferente ao dar opções aos sujeitos para enfrentar o sistema político. Por meio da cooperação, esperançava que houvesse uma ruptura, tanto na escola quanto na sociedade, com as expectativas das classes dominantes quanto aos processos formativos da classe trabalhadora. Logo, acreditava que os sujeitos seriam capazes de protagonizar um movimento de pensar e agir segundo suas aspirações, almejando a transformação da sociedade. Na proposta da Sicredi, contudo, são perceptíveis conceitos econômicos, em relação com a sociedade capitalista estabelecida, como os de empreendedorismo, gestão e liderança, bem como a ideia de ser um sócio (seguindo o modelo empresarial). O estudo do cálculo, apontado por Freinet, se transforma em educação financeira, com a inclusão também de preceitos próprios da cooperativa de crédito, como os princípios do cooperativismo.

Sobre essa mesma categoria, verifica-se que há a indicação do desenvolvimento de valores conformativos com a situação atual, como a boa convivência e a solidariedade, sem menções à criticidade, por exemplo. Além disso, o fato de a cooperativa de crédito (que atua no mercado financeiro como instituição bancária) produzir uma sistemática de organização similar à sua para ser reproduzida na escola (com um curso que orienta os alunos para garantir esse fim) intensifica essa percepção, reafirmada, aliás, pelos objetivos explicitados como financeiros.

Outra inspiração para a proposta da Sicredi, a cidade argentina Sunchales, em que o cooperativismo está nos currículos escolares e em que as cooperativas são mencionadas como fontes de sucesso, reforçam essas percepções, além de confirmar a intenção de inserir, entre os conteúdos escolares, seus próprios preceitos. E, também, o fato de citar a ineficiência das políticas econômicas e a menção a seu projeto como solução para as dificuldades atuais, acaba por desmerecer a atuação estatal e colocar o empresariado como âmbito de eficiência e de resolução de problemas públicos.

Aproximações e afastamentos, assim, são percebidos entre os projetos de cooperativa escolar de Freinet e da cooperativa de crédito Sicredi. Nessa construção, salienta-se, não se busca menosprezar as potencialidades da proposta de cooperativa escolar da Sicredi, já que o estímulo para que os alunos sejam dotados de voz e de espaço para se expressar, principalmente, se faz conveniente na atualidade, quando parte significativa das práticas educativas ainda são norteadas por concepções tradicionais. As divergências percebidas, utilizando-se a menção a Harvey (2008), podem ser pensadas como relações com os contextos histórico e geográfico aos quais os projetos se vinculam, ao considerar-se que, no início do século passado, parte da Europa cultivava ideias cordiais ao ideário marxista, ao qual Freinet se articulava.

Atualmente, entretanto, o neoliberalismo intensifica as relações aos moldes do mercado, o que é próprio do capitalismo e, como cita Lucáks (1978), tal conjuntura se relaciona com a singularidade das escolas públicas por meio de ferramentas particulares como, nesse caso, as cooperativas escolares. Inclusive, a proposta da cooperativa de crédito, por ser uma elaboração de um ente externo, vinculado ao mercado financeiro, e por ser citada como um de seus projetos sociais, pode também ser definida como uma forma de privatização da educação, conforme Peroni (2015). De maneira naturalizada, nesse sentido, empresas adentram a escola pública, impõe suas propostas formuladas de acordo com seus próprios valores e concepções de formação e redirecionam a lógica escolar, alterando o conteúdo da educação pública.

Considerações Finais

A proposta de cooperativa escolar de Freinet, pensada há quase um século, se constrói mediante um processo educativo pautado na cooperação e no trabalho, exercido com liberdade e criatividade. É compreendida como uma maneira de estabelecer vínculos entre o pensar e o fazer em um contexto em que predominavam percepções educativas que privilegiam a imobilidade, a memorização e a repetição. Inovou, portanto, ao propor que os alunos dialogassem, discutissem, deliberassem e fizessem suas próprias descobertas, incentivando-os, inclusive a fundarem cooperativas escolares. Com isso, estimulava-os a refletir sobre o mundo externo aos muros da escola e sobre o presente, buscando maneiras de transformar a realidade e de superar situações de opressão.

A cooperativa de crédito Sicredi se apropriou dessa proposta, mantendo alguns dos preceitos de Freinet e o acrescentando outros pertencentes às suas próprias concepções de sociedade e de necessidades formativas discentes. Com tal ressignificação, esse projeto pode ser situado como parte dos movimentos que tornam os limites entre o público e o privado menos nítidos e que são classificados como formas de privatização da educação pública, ao passo que, mesmo sem alterar a matrícula estatal, redirecionam o conteúdo da educação. Ao mencionar a ação como um de seus projetos sociais, ainda, reforça-se a ideia de amenizar os efeitos do capitalismo, mas não confrontá-lo, sem promover a reflexão e a transformação da sociedade almejada por Freinet, mas a conformação ao modelo vivenciado. A educação, nessa construção, se materializa não como uma política pública universal, mas como um projeto focalizado e de filantropia, voltado a fins mercantis e constantemente utilizado como campanha publicitária para o capital.

2Sujeitos individuais e coletivos na perspectiva de Thompson (1981), que cita a história não como uma abstração, mas como uma construção de sujeitos, por meio de suas vinculações sociais estabelecidas através de relações de classe.

3No livro “Diálogos sobre as redefinições no papel do Estado e nas fronteiras entre o público e o privado na educação”, organizado pela professora Vera Maria Vidal Peroni, constante nas referências deste artigo, é possível conhecer pesquisas que apontam esses resultados.

5Disponível em: http://auniaofazavida.com.br. Acesso em: 14 dez. 2019.

6Disponível em: https://www.sicredicentroserra.coop/noticia/37eu6p.html. Acesso em: 14 dez. 2019.

Referências

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Recebido: Janeiro de 2020; Aceito: Fevereiro de 2020; Publicado: Abril de 2020

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