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Jornal de Políticas Educacionais

versión On-line ISSN 1981-1969

J. Pol. Educ-s vol.14  Curitiba  2020  Epub 20-Abr-2022

https://doi.org/10.5380/jpe.v14i0.72597 

Artigos

O conceito de atuação nas políticas educacionais: um olhar sobre a avaliação escolar no contexto do Ensino Médio Politécnico1

The concept of enactment in the educational policies: a look at the school evaluation in the context of the Polytechnic High School

El concepto de enactment en las políticas educativas: una mirada a la evaluación escolar en el contexto de la Escuela Secundaria Politécnica

Luís Armando Gandin2 
http://orcid.org/0000-0002-8219-2004

Adriana Rocely Viana da Rocha3 
http://orcid.org/0000-0002-4854-5400

Andrea Milán Vasques4 
http://orcid.org/0000-0002-7703-4650

Tábata Valesca Corrêa5 
http://orcid.org/0000-0002-0840-4857

2Doutor em Educação. Professor Titular da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Porto Alegre, RS. Brasil. E-mail: luis.gandin@ufrgs.br

3Doutoranda em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (URFGS). Professora assistente pela Universidade Estadual de Alagoas (UNEAL) e Técnica pedagógica da Educação de Jovens, adultos e idosos (EJAI) da Secretaria Municipal de Educação de Maceió -AL, Brasil. E-mail: adriana.viana@uneal.edu.br

4Doutoranda em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atua como pedagoga na Secretaria Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, RS. Brasil. E-mail: deia.milan@yahoo.com.br

5Mestra e Doutoranda em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Porto Alegre, RS. Brasil. E-mail: valesca_tab@hotmail.com


Resumo

Este artigo tem como objetivo discutir a potência do uso do conceito de atuação (enactment) nos estudos de políticas educacionais. Esse conceito possibilita que o pesquisador analise as políticas educacionais não apenas no âmbito de sua produção, mas também no momento de sua interpretação e tradução pelos sujeitos que atuam nas escolas. Inicialmente apresentamos uma discussão teórica sobre o conceito de atuação, evidenciando o desenvolvimento desse conceito nos estudos de Stephen J. Ball, Meg Maguire e Annette Braun (2012; 2016). Na sequência, com o objetivo de ilustrar o uso desse conceito na análise de um caso, apresentamos o resultado de um estudo sobre a atuação da política educacional do Ensino Médio Politécnico, instituída pela Secretaria Estadual de Educação do Rio Grande do Sul, vigente de 2012 a 2016.

Palavras-chave: Atuação; Enactment; Políticas Educacionais; Ensino Médio Politécnico

Abstract

This paper aims to discuss the potential of using the concept of enactment in educational policies studies. This concept allows the researcher to analyze educational policies not only in their creation, but also in interpretation and translation done by the ones who work in schools. Firstly, we present a theoretical discussion about the concept of enactment, showing its development in the studies of Stephen J. Ball, Meg Maguire and Annette Braun (2012; 2016). Then, in order to illustrate the use of the concept of enactment in the analysis of a case, we present the result of a study about enactment of the Polytechnic High School policy, instituted by the Secretaria de Educação in the State of Rio Grande do Sul (Brazil), from 2012 to 2016.

Keywords: Enactment; Educational Policies; Polytechnic High School

Resumen

Este artículo tiene como objetivo discutir el poder de utilizar el concepto de enactment en el estudio de las políticas educativas. Este concepto hace posible que el investigador analice las políticas educativas no solo dentro del alcance de su producción, sino también al interpretarlas y traducirlas a través de las asignaturas que trabajan en las escuelas. Inicialmente, presentamos una discusión teórica sobre el concepto de enactment, mostrando el desarrollo de este concepto en los estudios de Stephen J. Ball, Meg Maguire y Annette Braun (2012; 2016). Luego, para ilustrar el uso de este concepto en el análisis de un caso, presentamos el resultado de un estudio sobre el enactment de la política educativa de la Escuela Politécnica Superior, instituido por la Secretaría de Educación del Estado de Rio Grande do Sul (Brazil), vigente de 2012 hasta 2016.

Palabras Clave: Enactment; Políticas Educativas; Instituto Politécnico

Introdução

O campo da análise de políticas educacionais se configura por diferentes abordagens teórico-conceituais e metodológicas que permitem diferentes olhares e compreensões sobre um objeto de pesquisa. Nesse estudo utilizamos, como lente teórico-metodológica, o conceito de atuação, que nos permite complexificar a análise das políticas educacionais, compreendendo-as de forma dinâmica. Temos como objetivo usar concretamente o conceito de atuação e defender sua importância nos estudos sobre políticas educacionais, trazendo um exemplo de como uma política foi atuada no contexto do estado do Rio Grande do Sul. Inicialmente, demonstramos como o conceito de atuação foi concebido e utilizado por Stephen Ball, Meg Maguire e Annette Braun (2012; 2016). Em seguida, para ilustrar o uso concreto que se pode fazer desse conceito no exame de um campo empírico, apresentamos um estudo que analisa a atuação das práticas de avaliação escolar proposta pela política educacional instituída na rede escolar pública estadual do Rio Grande do Sul, que resultou na reforma curricular do Ensino Médio Politécnico (EMP).

Antes de apresentar o conceito de atuação, é importante, brevemente, contextualizar nosso campo de pesquisa, apresentando um sucinto panorama do EMP (esse contexto da política analisada será aprofundado em uma seção desse artigo). Essa política foi instituída pela equipe da Secretaria Estadual de Educação do Rio Grande do Sul (SEDUC-RS) na gestão 2011-2014, tendo como eixos principais de reestruturação curricular a incorporação de espaços de Seminários Integrados ao currículo escolar, a avaliação por área do conhecimento realizada mediante conceitos – em substituição à nota numérica – e a definição de princípios orientadores para a prática pedagógica. Esses princípios consistem na relação teoria-prática, na relação parte-totalidade, na pesquisa escolar, na interdisciplinaridade, na avaliação emancipatória e no reconhecimento dos saberes prévios dos estudantes. Tendo em vista esses princípios e os eixos que caracterizam essa reforma curricular, neste artigo documentamos a importância do conceito de atuação no estudo da política educacional do Ensino Médio Politécnico, evidenciando como professores e professoras colocaram essa política educacional em prática, destacando os desafios e tensionamentos experimentados nesse contexto.

O conceito de atuação

O conceito de atuação (enactment) tem suas raízes na ênfase que Ball dedica às micropolíticas em seus estudos no campo das políticas educacionais. Segundo Sanny S. da Rosa (2019), a teoria desenvolvida pelo autor privilegia as percepções dos indivíduos a respeito das possibilidades e dos limites de suas ações dentro das circunstâncias em que se encontram, sejam esses limites políticos, culturais e/ ou econômicos que circunscrevem um determinado contexto. Nessa perspectiva, ao conceber as instituições escolares como espaços de luta ideológica, nas quais diversos aspectos das políticas disputam lugar nas práticas dos sujeitos, Ball (1992) já anuncia a ideia de que as políticas educacionais não são meramente implementadas, mas colocadas em prática, interpretadas, traduzidas e materializadas de diferentes maneiras, mediadas pelos sujeitos nos diferentes contextos em que atuam.

Na sua trajetória de estudos em políticas educacionais, Ball ampliou sua temática de investigação deslocando sua ênfase das micropolíticas da escola para as micropolíticas das reformas educacionais, avançando, desse modo, no seu próprio posicionamento epistemológico sobre esse campo. Nesse sentido, Ball (1992) compreende não apenas a escola como um espaço permeado por micropolíticas, mas também as próprias políticas como conjuntos de micropolíticas colocadas em prática – atuadas – no contexto da escola. Entendemos que a partir dessa compreensão sobre as políticas educacionais, desponta a ideia de atuação que mais tarde foi concebida como conceito na teoria de Ball, com a colaboração de Meg Maguire e Annette Braun, em que os autores argumentam que “a política é complexamente codificada em textos e artefatos e é decodificada (e recodificada) de maneiras igualmente complexas” (BALL; MAGUIRE; BRAUN, 2012. p. 9, tradução nossa).

Pensar o conceito de atuação e como este nos auxilia na análise das políticas educacionais, requer primeiramente fazer uma distinção que Stephen J. Ball, Meg Maguire e Annette Braum (2016) salientam: diferir implementação de políticas e atuação de políticas. Implementação é geralmente compreendida em parte de estudos acadêmicos como “um processo de cima pra baixo ou de baixo pra cima de fazer a política funcionar” (BALL; MAGUIRE; BRAUN, 2016, p. 18), criando-se uma espécie de cisão entre a política (enquanto texto) e sua implementação.

Na perspectiva da implementação, o risco de pensar a política educacional de forma “normativa” é marginalizar um conjunto de ações que ocorrem no interior e para além da escola: “professores e demais atores que trabalham dentro e em torno das escolas, sem mencionar os estudantes, são deixados fora do processo da política ou tomados simplesmente como cifras que implementam” (BALL; MAGUIRE; BRAUN, 2016, p. 13). O conceito de atuação vem justamente documentar a ação de todos esses atores na política, tornando-a um processo e compreendendo que professores e professoras são atores, sujeitos e objetos ao mesmo tempo.

Nesse sentido, a perspectiva da atuação busca entender a política como um processo dinâmico, criativo e não-linear, considerando o pressuposto de que as “políticas não lhe dizem normalmente o que fazer, elas criam circunstâncias nas quais a gama de opções disponíveis para decidir o que fazer são estreitadas ou alteradas” (BALL; MAGUIRE; BRAUN, 2016, p. 21). Assim, esse modo de compreender as políticas indica a importância de olhar para as possibilidades de (re)criação a partir das diretrizes que as orientam. Ainda que algumas políticas não estabeleçam diretrizes específicas, o contexto escolar em que essas políticas são atuadas irão envolver processos criativos de interpretação e tradução (BALL; MAGUIRE; BRAUN, 2016).

Ball, Maguire e Braun (2016) alertam para o fato de que muitas pesquisas, que compreendem as políticas pela ótica da implementação, têm negligenciado a forma como as escolas lidam com as demandas das múltiplas políticas que operam no contexto escolar. Em contrapartida a essa lógica da implementação, os autores compreendem a atuação das políticas como um complexo processo de interpretação e tradução mediado tanto pelas concepções dos sujeitos quanto pelo contexto material em que são atuadas (BALL; MAGUIRE; BRAUN, 2016).

Entende-se por interpretação a leitura inicial do texto da política. Esse momento de leitura e interpretação do texto consiste em capturar e compreender os significados e as formas que essa política assume no contexto da cultura escolar. É importante salientar que essa leitura, essa decodificação do texto, é sempre mediada em “relação à cultura e a história da instituição e às biografias das políticas dos autores-chave” (BALL; MAGUIRE; BRAUN, 2016, p. 68). Desse modo, a escola e seus atores interpretam a política a partir de uma tomada de significados que têm como suporte o real, as prioridades institucionais e as possibilidades de aplicabilidade da política dentro do contexto no qual a escola se insere. As políticas, para Ball, Maguire e Braun (2016, p. 14) “não são simplesmente ideacionais ou ideológicas, elas também são muito materiais”. Nota-se que a formulação do texto de uma política geralmente se dá embasada num ideal de escola, a partir de uma perspectiva equivocada de que a política será executada conforme descrita no texto. No entanto, entender que uma política possui materialidade significa reconhecer que existem distintos recursos que possibilitam a cada escola atuar essa política de diferentes formas. Ou seja, existem diferentes escolas, com diferentes contextos, operando sob o mesmo texto de uma política, e essa política é atuada de diferentes maneiras dependendo dos diferentes contextos.

A partir da leitura do texto, há um processo coletivo de criação de uma agenda institucional que prioriza aspectos da política a partir de elementos da materialidade de cada escola. São nesses momentos que esses atores atuam a política colocando-a em prática a partir da realidade, estabelecendo as prioridades e caminhos.

A tradução está ligada às linguagens práticas da política, aos processos de recodificação do texto a partir da realidade:

é um processo interativo de fazer textos institucionais e colocar esses textos em ação, literalmente atuar sobre a política usando táticas que incluem conversas, reuniões, planos, eventos, caminhadas de aprendizagem, bem como a produção de artefatos e empréstimo de ideias e práticas de outras escolas [...] (BALL; MAGUIRE; BRAUN, 2016, p. 69- 70).

Entendemos que a tradução, como um processo interativo de criar textos institucionais, contempla as ações de professores, professoras e equipe pedagógica – mediadas pelo texto da política e pelo contexto da escola – na produção material de documentos, planos didáticos, boletins, relatórios, que são artefatos da prática pedagógica e escolar. Essas interações ocorrem em eventos da sala de aula, de reuniões pedagógicas e demais atividades escolares, em que os atores produzem esses materiais. Ball, Maguire e Braun (2012) acrescentam que a tradução também dá valor simbólico às políticas. Entendemos que a produção de valor simbólico diz respeito ao modo como os sujeitos atuam as políticas no sentido de produzir novos significados e práticas ou de reproduzir dinâmicas naturalizadas na cultura escolar. É pela tradução que os sujeitos transformam o texto em práticas e procedimentos que orientam as dinâmicas de um determinado contexto. Sendo assim, a produção de valor simbólico de uma política ocorre pelas possibilidades de produção e/ ou reprodução de uma cultura escolar.

No processo de tradução, há sempre a presença de multifatores externos e internos à escola que influenciam o processo de tradução da política: desde o contexto em que a instituição está inserida aos diferentes atores envolvidos. As escolas, que estão no centro da atuação das políticas, não se constituem como entidades simples ou coerentes: “as escolas não são uma peça só. Elas são redes precárias de grupos diferentes e sobrepostos de pessoas, de artefatos e de práticas” (BALL; MAGUIRE; BRAUN, 2016, p. 201).

Interpretação e tradução são processos que perfazem a atuação de uma política, de diferentes formas em diferentes arenas. São diferentes partes do processo de atuação da política e estabelecem diferentes relações com a prática (BALL; MAGUIRE; BRAUN, 2016). Para os autores, ao comparar interpretação e tradução no âmbito da atuação de políticas educacionais, pode-se dizer que interpretação se refere à estratégia e tradução diz respeito à tática utilizada. Interpretação e tradução “trabalham juntas para registrar ou abordar assuntos e inscrever os discursos nas práticas” (BALL; MAGUIRE; BRAUN, 2016, p. 72). Podemos concluir que interpretação e tradução, embora sejam fases distintas, são momentos diferentes do mesmo processo de atuação.

A partir da compreensão de que o processo de atuação da política ocorre de forma interativa no entrecruzamento de interpretações e traduções, não é possível analisar uma política apenas sob a perspectiva da implementação. É necessário tratá-la de maneira complexa, entendendo que os sujeitos atuam as políticas a partir de diferentes tradições que orientam suas práticas e concepções. Os aspectos políticos, sociais e econômicos que constituem os sujeitos e marcam o contexto em que a instituição está inserida precisam ser levados em conta em uma análise de política.

É sob a perspectiva da atuação, portanto, que analisamos a Política do Ensino Médio Politécnico documentando como professores e professoras interpretaram e traduziram a proposta de avaliação emancipatória presente nessa política.

Atuação da política de reforma curricular do Ensino Médio Politécnico: um olhar sobre as práticas de avaliação escolar

A política de reestruturação curricular do ensino médio nas escolas gaúchas teve início no ano de 2012 com a instituição do EMP. Nesse contexto, as escolas da rede reorganizaram sua estrutura curricular ampliando a carga horária anual obrigatória de 2400 horas-aula para 3000 horas-aula, incorporando os Seminários Integrados no currículo escolar, e adotando uma nova forma de avaliação, registrada por conceitos, que previa a elaboração de pareceres descritivos por área do conhecimento. Considerando essas mudanças estabelecidas na rede escolar pública estadual do RS, analisamos as ações de uma escola no processo de redefinição dos modos de avaliação escolar, enfatizando como professores e professoras atuaram essa política do EMP a partir das interpretações e traduções que orientaram suas práticas avaliativas nesse contexto. Apresentamos detalhadamente a proposta de avaliação emancipatória inscrita na política do EMP a partir de uma análise documental para complexificar as análises da atuação dessa proposta por professores e professoras no contexto da escola pesquisada.

A avaliação emancipatória refere-se a um dos princípios orientadores da prática pedagógica estabelecidos pela política do EMP, caracterizando-se como

um processo contínuo, participativo, diagnóstico e investigativo, intimamente ligado à concepção de conhecimento e currículo, sempre provisório, histórico, singular na medida em que propicia o tempo adequado de aprendizagem para cada um e para o coletivo (RIO GRANDE DO SUL, 2011, p. 16).

Na tentativa, portanto, de motivar a realização da avaliação escolar na perspectiva emancipatória e, nesse sentido, promover possibilidades de superação da avaliação baseada em médias numéricas, a política do EMP estabeleceu mudanças no registro numérico de notas, passando a significar a avaliação através de conceitos que deveriam ser definidos por cada uma das áreas do conhecimento. Conforme o Parecer nº 310/2012 que homologa o regimento escolar para o EMP nas escolas da rede pública estadual do RS, os conceitos atribuídos à avaliação da aprendizagem dos alunos nesse contexto possuem a seguinte formulação:

CSA – Construção Satisfatória da Aprendizagem: expressa a construção de conceitos necessários para o desenvolvimento dos processos da aprendizagem, correspondentes ao ano de escolarização, embasados na apropriação dos princípios básicos das áreas do conhecimento [...] e sinaliza a aprovação e o avanço do aluno para o ano subsequente de sua escolarização para o ano letivo seguinte. (RIO GRANDE DO SUL, 2012, p.19).

CPA – Construção Parcial da Aprendizagem: expressa a construção parcial dos conceitos necessários para a construção das aprendizagens, correspondentes ao ano de escolarização, embasados na apropriação dos princípios básicos das áreas do conhecimento [...]. É atribuída trimestralmente ou ao final do ano letivo, tendo caráter cumulativo e sumativo. (RIO GRANDE DO SUL, 2012, p.19-20).

CRA – Construção Restrita da Aprendizagem: expressa a construção restrita dos conceitos necessários para a construção das aprendizagens, correspondentes ao ano de escolarização, embasados na apropriação dos princípios básicos das áreas do conhecimento [...]. É atribuída trimestralmente e ao final do ano letivo, tendo caráter cumulativo e sumativo. (RIO GRANDE DO SUL, 2012, p.20).

Conforme o regimento, ao final do ano letivo, a atribuição do conceito de CSA aos alunos indica a conclusão do ano letivo com aprovação. Os conceitos de CPA e CRA indicam que o aluno deve realizar estudos de recuperação por meio de atividades definidas por um Projeto Político Pedagógico de Apoio (PPDA) para obter alteração do resultado expresso. O aluno com conceito de CPA, ao realizar os estudos de recuperação, é aprovado ao final de qualquer um dos anos letivos, pois “a CPA não é impeditiva para que o aluno construa suas aprendizagens em outros tempos e espaços” (RIO GRANDE DO SUL, 2012, p. 20). Já o aluno com conceito de CRA é aprovado ao final dos primeiros e segundos anos letivos, sob condição de progressão parcial. Ao final do terceiro ano letivo, com CRA em apenas uma área do conhecimento, o aluno tem a opção de realizar estudos prolongados ou cursar novamente o terceiro ano. Ao final do curso, com o conceito de CRA “em mais de uma área do conhecimento, após os estudos de recuperação e exames finais, o aluno é reprovado” (RIO GRANDE DO SUL, 2012, p.21).

De acordo com os dados da pesquisa, no que diz respeito à mudança nos registros de avaliação escolar de notas para conceitos, relatos de professores assinalam algumas divergências em relação aos impactos dessa mudança na escola estudada. Veremos também que algumas interpretações do texto da política pelos professores evidenciam a reprodução de práticas cristalizadas na cultura desta escola, o que se deu em grande medida pela fragilidade na interlocução entre os sujeitos que conceberam a proposta, envolvidos diretamente na produção do texto da política, e os sujeitos do contexto escolar que atuaram essa política em suas práticas pedagógicas e curriculares. Assim sendo, destacamos neste artigo o modo como professores e professoras atuaram a proposta de avaliação emancipatória, analisando as interpretações desses sujeitos acerca dos conceitos avaliativos e como traduziram esse entendimento em suas práticas.

Notamos nesse processo, algumas divergências entre professores e professoras a respeito das mudanças na avaliação. Os registros de observações de uma reunião pedagógica na escola permitem afirmar que houve tentativas por parte de alguns docentes de solicitar que nesta escola a avaliação voltasse a ser realizada e registrada por nota. Em resposta a essas tentativas, a supervisão pedagógica enfatizou que não existia essa possibilidade já que o registro das avaliações por conceito era uma determinação da SEDUC-RS. Uma das alegações dos professores em defesa do retorno da avaliação por nota foi de que mães e pais dos alunos não compreendem o significado dos conceitos e não têm clareza sobre o desempenho escolar dos seus filhos. Constatamos no relato desses professores o “atuar da política dentro dos limites e possibilidades do contexto” (2016, p. 14), ou seja, a materialidade dessa política. Isso porque, embora o texto apresentasse uma nova modalidade avaliativa (através de conceitos), um grupo de professores argumentavam que parte dos membros que compõem a comunidade escolar daquela instituição (neste caso, mães e pais) não compreendiam o seu significado. Contudo, é importante salientar que, ainda que esses professores alegassem a incompreensão de mães e pais sobre o desempenho escolar de seus filhos como razão para um retorno das notas, entendemos que os próprios professores atuavam com o interesse em um retorno ao status quo da avaliação escolar. Esse processo é constitutivo do momento de interpretação da política, em que os professores e professoras, a partir de seus instrumentos teóricos e da realidade institucional, apresentam diferentes olhares sobre o modelo avaliativo que integra a proposta curricular do EMP. O relato abaixo de uma das supervisoras da equipe pedagógica da escola contempla essas questões.

“A gente tentou que voltasse a nota, nem que a nota tivesse que ser pela área, por exemplo, cinco disciplinas, era somar e dividir por cinco. É mais fácil e às vezes eu acho que é mais justo com o aluno do que a aquele monte de CR, CS, CP, que tu junta e nem eles [alunos] sabem. A gente, em toda entrega de boletim, tem que repetir um milhão de vezes pros pais, porque ninguém sabe. E é assim, tu tentas [explicar] e eles não têm paciência pra ouvir a gente. É assim: ‘professora, eu só quero saber se tá bem ou se tá mal’. A preocupação deles é essa. [...] O que a gente tem que pensar é na qualidade de ensino. [...] Eu acho que antes de mexer na avaliação, a gente tem que mexer nos instrumentos que se leva até a avaliação”. Supervisora pedagógica Luciana.

Em contrapartida, dados de observação durante a mesma reunião pedagógica também mostram que grande parte dos professores desta escola colocou-se a favor da avaliação por conceito. Parte desses professores considera essa mudança um avanço diante do modo como vinham sendo realizadas as avaliações em anos anteriores, afirmando que os conceitos – ao expressarem a ideia de construção restrita, parcial ou satisfatória da aprendizagem – parecem dizer mais sobre o progresso dos alunos do que a média numérica. Além disso, a maioria deles afirma que o conceito proporciona mais flexibilidade ao professor nesse processo, o que não acontecia com o sistema de notas. Uma das supervisoras da equipe pedagógica reitera a flexibilidade que o conceito proporciona ao avaliar e considera que a avaliação por conceito torna o olhar de alguns professores mais sensível aos progressos nas aprendizagens dos seus alunos.

“A LDB faz tempo que pedia isso, o parecer [entenda-se conceito]6 do aluno, não necessariamente uma quantificação numérica. Então, houve um avanço. A gente tá aprendendo a olhar pro aluno de outra maneira. Até, eu posso flexibilizar mais quando eu vou sentar com os meus colegas da área e a gente discute sobre ele [aluno]. De repente um sabe mais a particularidade desse sujeito que eu não fui capaz de enxergar”. Supervisora pedagógica Sandra.

Ainda que exista esse entendimento de que a avaliação por conceitos foi um avanço, os dados indicam que foram tímidos os esforços desses professores e professoras de repensar fundamentalmente a avaliação escolar. Além disso, esses esforços são empregados por pequena parte do grupo docente, o que contribui para a manutenção de uma tradição de práticas isoladas e desconectadas das ideias de coletividade e emancipação que fundamentam a proposta de avaliação emancipatória. Nesse sentido, a proposta do EMP expressa que “é necessário que os responsáveis pelo desenvolvimento do trabalho pedagógico nas escolas assumam o compromisso de incorporar novas práticas avaliativas, na medida em que se propõem a uma mudança de paradigma” (RIO GRANDE DO SUL, 2011, p. 20). O que é importante salientar, portanto, é a necessidade de uma mudança de paradigma; de construção de um novo projeto educacional balizado por novas práticas que sejam orientadas pelo princípio da emancipação. Entretanto, longe do horizonte de um novo paradigma, os dados de pesquisa mostram que a maior parte das reinterpretações do texto do EMP por parte dos professores e professoras, no contexto de atuação dessa política, reforçam uma cultura escolar de reprodução das práticas de avaliação já incorporadas no cotidiano desta escola.

As práticas naturalizadas no cotidiano desta escola evidenciam-se também no processo de definição dos conceitos, por área do conhecimento, que serão atribuídos aos alunos ao longo do ano letivo. Essas práticas correspondem aos processos de tradução na teoria da atuação, pois é o modo como os sujeitos recodificam as leituras e interpretações da política nas suas práticas pedagógicas. Veremos como esse processo de tradução aconteceu na escola investigada.

Ao final de cada trimestre letivo, são realizados os PPDA7 – que são as provas de recuperação na leitura desta escola. Antes do PPDA, como vimos, também são realizadas as provas trimestrais, que deveriam ser integradas por área do conhecimento, como avaliação somatória do processo de construção da aprendizagem dos alunos. Os dados de observação mostram que, a partir dos resultados dessas provas – tanto das provas que antecedem o PPDA quanto dos próprios PPDA –, calculava-se a média de acertos que seria equivalente a cada um dos conceitos. No caso da avaliação que antecedia o PPDA, professores, professoras e uma supervisora pedagógica reuniam-se em conselho de classe e definiam os conceitos dos alunos e alunas com base na prova realizada pela área do conhecimento e em demais avaliações realizadas no âmbito de cada disciplina. Nesse sentido, os conselhos de classe configuravam-se espaços coletivos de atuação da política, especialmente da avaliação escolar, que se traduziam nos processos de negociações sobre a definição dos rumos da vida escolar de cada um dos alunos da escola.

Nos casos em que os professores e as professoras definiam conceitos de CRA e/ ou CPA aos alunos, estes precisavam realizar o PPDA como forma de recuperação. Após a realização destas provas de recuperação, o conceito final atribuído a cada um desses alunos era definido pela média de acertos que obtinham no PPDA. Essas médias numéricas de acertos no PPDA equivaliam, por decisão arbitrária dos professores, a cada um dos conceitos de construção da aprendizagem estabelecidos pela política do EMP. Desse modo, os professores atuavam as práticas avaliativas supostamente sob o princípio da avaliação emancipatória, contudo movidos por uma interpretação comum de que através de uma escala numérica pode-se representar o progresso das aprendizagens dos alunos, sem levar em conta os limites implicados por essa medida. No relato abaixo, confirmam-se essas contradições relativas à avaliação por conceitos interpretados e traduzidos em médias numéricas no contexto desta escola.

“Pra algumas pessoas houve avanço, pra alguns profissionais que conseguiram fazer essa transição [da nota para o conceito] acho que houve avanço. Eu acho que olhar para o aluno com um parecer escrito [menção aos conceitos] e não mensurar numericamente, embora para a grande maioria ainda seja necessário... O que é um CR? O que é um CP? O que é um CS? Eles [professores] se baseiam em números”. Supervisora pedagógica Sandra.

Pode-se dizer que existe uma tradição de práticas que sustenta o modo como os professores nesta escola, em geral, interpretaram a avaliação escolar.

A respeito dessas interpretações que balizaram a reprodução das práticas de avaliação por notas, uma das supervisoras da equipe pedagógica menciona que os professores não possuem conhecimento e também não há clareza nos documentos sobre como operar com os conceitos, sendo fundamental que fosse proporcionada a esses professores uma formação contínua e qualificada nessa perspectiva.

“Eles [membros da SEDUC-RS na gestão 20112014] querem fazer tudo com o parecer [entenda-se conceito], só que precisa qualificar e capacitar os professores pra que esse parecer [entenda-se conceito] contemple o que de fato representa o desenvolvimento e a aprendizagem daqueles alunos”. Supervisora pedagógica Luciana.

Tendo em vista a reprodução das práticas de avaliação interpretadas e traduzidas pela perspectiva das médias numéricas e considerando os limites da formação docente nesse sentido, a equipe pedagógica desta escola vem atuando uma estratégia que independe da forma como os professores mensuram a avaliação no âmbito das suas disciplinas e/ ou área do conhecimento. Nesse sentido, as professoras da equipe de supervisão pedagógica argumentam que se leva em consideração a caminhada dos alunos e os seus limites, como mostram os relatos abaixo.

“[...] a gente leva em conta a caminhada do aluno. Então, se tem que ir no sistema [de registro dos conceitos] e organizar novamente, a gente organiza. Aquele aluno que tem uma caminhada boa, que tem uma evolução, tu não vais deixar ele perdido. E muitas vezes, tu não és nenhum cirurgião, mas tu deixas uma sequela. Então, assim, tu leva em consideração o todo e isso nós sempre fizemos”. Supervisora pedagógica Vera.

“A gente não pode em hipótese alguma aprovar aluno que não tem condições, mas o caso reprovar é uma coisa muito bem pensada. A gente analisa vários fatores, a gente vê, assim, as condições [...] Às vezes, uma reprovação – e eu falo assim, por exemplo, no terceiro ano ou no nono ano que eles estão loucos pra ir pro ensino médio – cria certas barreiras. A gente às vezes manda alunos embora [ao reprová-los], porque daí a gente manda embora da escola pra nunca mais voltar. [...] Eu fico pensando: que poder tem a gente de definir a vida das pessoas”. Supervisora pedagógica Luciana.

Levar em conta a caminhada dos alunos e analisar as particularidades em cada caso de reprovação na tentativa de promover o avanço desses jovens consistem em uma prática comum atuada nesta escola. Essa tradição de considerar a trajetória de cada estudante indica que apesar das avaliações por conceitos continuarem sendo interpretadas por uma concepção numérica e traduzidas por notas, existe um espaço para a flexibilidade do processo avaliativo que independe do modo como os registros das avaliações são feitos – um processo criativo e dinâmico de atuação da política. Evidencia- se, nesta escola, que, no processo de avaliação, há o reconhecimento dos limites, das dificuldades e das condições concretas de aprendizagem dos alunos nesse contexto.

Além disso, as estratégias desta escola de considerar a caminhada dos alunos ao longo da escolarização pressupõe que existem pontos de partida, etapas, em vista da (re)construção dos conhecimentos escolares avaliados. Podemos constatar que existe o reconhecimento por parte da escola de que os saberes dos alunos, em cada etapa de sua avaliação, são importantes na construção e reconstrução da aprendizagem que é sempre contínua; sempre processo (RIO GRANDE DO SUL, 2011).

Concluímos que, embora as práticas avaliativas atuadas nesta escola tenham sido tensionadas pela proposta da avaliação emancipatória, a cultura escolar ainda se sustenta em uma tradição de práticas difíceis de serem superadas sem uma formação docente qualificada e sem a proposição de diretrizes mais consistentes na orientação do trabalho pedagógico, curricular e escolar, tendo em vista as políticas que são endereçadas a esses espaços.

Conclusões

O conceito de atuação foi importante neste estudo, pois ajudou a complexificar as análises das interpretações que esses professores fizeram da proposta da avaliação emancipatória. No caso da escola pesquisada, professores e professoras interpretaram os conceitos – registros de avaliação escolar previstos pela proposta do EMP – pela óptica das médias numéricas e, portanto, traduziram esses conceitos em números – utilizando as médias numéricas como parâmetro para definição dos conceitos, partindo de uma noção comum de avaliação que, em geral, é naturalizada nas práticas escolares.

Diante desses dados, concluímos que a noção de que as políticas são atuadas – de forma complexa, não linear, não meramente implementadas – nos permite enxergar/compreender que as práticas avaliativas desenvolvidas nesta escola não significam uma leitura equivocada da proposta, mas sim que sua atuação foi mediada pelos recursos materiais do contexto em que a escola se insere, assim como por elementos culturais, sociais, econômicos e ideológicos que orientam as práticas desses sujeitos, definindo os rumos que esses processos assumem tanto na reprodução e manutenção de toda uma cultura pedagógica, curricular e escolar quanto na criação de novas formas de pensar e agir.

Acreditamos que o uso do conceito de atuação tem muita potência na construção de análises da vivência de políticas públicas. Esperamos que o exemplo apresentado possa ter demonstrado essa potência. Há muito para aprender sobre a atuação de políticas públicas na educação, seja para a construção de políticas mais democráticas, seja para entender como professores/as vivem essas políticas nas escolas.

1Esta pesquisa foi financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES)

6Tendo em vista as interpretaçoes que os sujeitos fazem sobre o texto no processo de atuaçao da polí´tica, houve uma leitura que concebeu uma equivale^ncia entre as expressoes “conceito” e “parecer”. Por isso, adotamos, no decorrer deste estudo, unicamente a expressao “conceito”, pois condiz com a forma como os resultados das avaliaçoes sao expressos, como vimos: CSA, CPA e CRA.

7Projeto Político Pedagógico de Apoio (PPDA). A proposta do EMP previa que professores e professoras realizassem o “registro do desenvolvimento do aluno desde o primeiro ano até o último ano do curso, por meio de dossiê/relatórios que apontem para o processo pedagógico de cada aluno elaborando, quando necessário, o Projeto Político Pedagógico de Apoio/PPDA contendo as ações a serem desenvolvidas para a superação das defasagens das aprendizagens nas diferentes áreas do conhecimento. O PPDA é o instrumento norteador dos estudos de recuperação. (RIO GRANDE DO SUL, 2012, p. 18, grifos nossos).

Referências

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BALL, Stephen J.; MAGUIRE, Meg; BRAUN, Annette. Como as escolas fazem as políticas: atuação em escolas secundárias. Ponta Grossa: Editora UEPG, 2016. [ Links ]

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RIO GRANDE DO SUL, Conselho Estadual de Educação. Parecer n.º 310, de 4 de abril de 2012. Porto Alegre: CEED/RS. 2012. Disponível em: <https://servicos.educacao.rs.gov.br/dados/ens_med_regim_padrao_em_Politec_I.pdf>. Acesso em: <28.jun.2012>. [ Links ]

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ROSA, Sanny S. da. Uma introdução às ideias e às contribuições de Stephen J. Ball para o tema da implementação de políticas educacionais. Revista de Estudios Teóricos y Epistemológicos en Política Educativa, v. 4, 2019, p. 1-17. [ Links ]

Recebido: Março de 2020; Aceito: Maio de 2020; Publicado: Junho de 2020

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