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Jornal de Políticas Educacionais

versão On-line ISSN 1981-1969

J. Pol. Educ-s vol.14  Curitiba  2020  Epub 20-Abr-2022

https://doi.org/10.5380/jpe.v14i0.70090 

DOSSIÊ: O FUTURO DA EDUCAÇÃO SUPERIOR DIANTE DA CONJUNTURA

Velhas tendências, novos arranjos: a autonomia universitária frente às propostas de Organizações Sociais e Fundos Patrimoniais

Old tendencies, new arrangements: university autonomy in the face of Social Organizations and Endowments Funds proposals

Viejas tendencias, nuevos arreglos: autonomía universitaria frente a propuestas de Organizaciones Sociales y Fondos Patrimoniales

Carolina Gabas Stuchi1 
http://orcid.org/0000-0003-0518-6580

Salomão Barros Ximenes2 
http://orcid.org/0000-0002-3672-6781

Vanessa Teixeira Pipinis3 
http://orcid.org/0000-0002-7506-3546

Fernanda Vick4 
http://orcid.org/0000-0002-9528-2623

1Doutora em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo (USP). Professora do Programa de Pós- graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do ABC (UFABC). São Bernardo do Campo, SP. E-mail:carolina.stuchi@ufabc.edu.br

2Doutor em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo (USP). Professor do Programa de Pós- graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do ABC (UFABC). São Bernardo do Campo, SP. E-mail:salomao.ximenes@ufabc.edu.br

3Doutoranda e Mestra em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). São Paulo, SP. E-mail:vanessapipinis@gmail.com

4Doutoranda e Mestra em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). São Paulo, SP. E-mail:vanessapipinis@gmail.com


Resumo

O ensaio analisa os institutos jurídico-administrativos propostos no Programa Universidades e Institutos Empreendedores e Inovadores - Future-se, especificamente as Organizações Sociais (OS) e os Fundos Patrimoniais, com o objetivo de compreender as inovações trazidas em tais institutos, como eles seriam incorporados às estruturas das Instituições Federais de Ensino Superior (IFES) e quais os potenciais efeitos na gestão democrática e no exercício da autonomia universitária, bem como na dinâmica de financiamento das IFES. A partir do sentido normativo do princípio da autonomia universitária, utiliza-se como método a análise documental, sob o enfoque técnico-jurídico, das propostas de adoção de OS e Fundos presentes nas minutas de projeto de lei do Future-se. Argumenta-se que por trás de uma aparente mudança incremental no atual modelo da educação superior pública, o Programa Future-se parece subverter as diretrizes constitucionais visando estabelecer as bases para a privatização e a ampla desresponsabilização estatal. Por um lado, permitiria reservar recursos públicos à exploração do mercado financeiro, desviando-os do orçamento público ou mesmo promovendo a privatização sob os auspícios do discurso filantrópico; e, por outro lado, possibilitaria transferir a atores privados lucrativos e não-lucrativos parcelas relevantes do poder hoje conferido à comunidade acadêmica, em suas instâncias colegiadas de administração, pulverizando-se os núcleos de decisão, privatizando-os e, com isso, afastando os critérios e pressupostos públicos com efeitos potencialmente devastadores sobre a autonomia das instituições, que seriam heteronomamente governadas.

Palavras-chave: educação superior; autonomia universitária; organizações sociais; fundos patrimoniais; Programa Future-se

Abstract

The essay analyzes the legal-administrative institutes proposed in the Entrepreneurial and Innovative Universities and Institutes Program – Future-se, specifically the Social Organizations and the Endowment Funds, with the objective of understanding the innovations brought in such institutes, as they would be incorporated in the structures of the Federal Higher Education Institutions (FHEI), which are the potential effects on democratic management and the exercise of university autonomy, as well as on the dynamics of FHEI funding. Based on the normative sense of the principle of university autonomy, the method used is the documentary analysis of "Future-se" Program draft proposals regarding the adoption of Social Organizations and Endowments Funds, under technical-legal criteria. It is argued that behind an apparent incremental change in the current model of public higher education, the Future-se Program appears to subvert constitutional guidelines to lay the foundations for privatization and the widespread decline of state function in higher education policy. On the one hand, it would allow public resources to be set aside for financial market exploitation by diverting them from the public budget or even promoting privatization under the auspices of philanthropic discourse; and, on the other hand, it would make it possible to transfer to lucrative and non-profit private actors relevant portions of the power conferred today on the academic community, in its collegiate instances of administration, pulverizing the decision-making process, privatizing them and, thus, removing the criteria and public assumptions with potentially devastating effects on the autonomy of institutions, which would be heteronomously governed.

Keywords: higher education; university autonomy; social organizations; endowment funds; Future-se Program

Resumen

El ensayo analiza los institutos jurídico-administrativos propuestos en el Programa de Universidades e Institutos Empresariales e Innovadores - Future-se, específicamente las Organizaciones Sociales y los Fondos Patrimoniales, con el objetivo de comprender las innovaciones introducidas en dichos institutos, como sucedería la incorporación a las estructuras de las Instituciones Federales de Enseñanza Superior (IFES), y cuáles son los posibles efectos sobre la gestión democrática y el ejercicio de la autonomía universitaria, así como sobre la dinámica de la financiación de IFES. Basado en el sentido normativo del principio de autonomía universitaria, el método utilizado es el análisis documental, bajo el enfoque técnico- legal, de las propuestas para la adopción del sistema operativo y los fondos presentes en los proyectos de ley de Future-se. Se argumenta que detrás de un aparente cambio incremental en el modelo actual de educación superior pública, el Programa Future-se parece subvertir las pautas constitucionales y sentar las bases para la privatización y para eximir responsabilidad del estado. Por un lado, permitiría que los recursos públicos se reservaran para la explotación del mercado financiero al desviarlos del presupuesto público o incluso promover la privatización bajo los auspicios del discurso filantrópico; y, por otro lado, permitiría transferir a actores privados lucrativos y sin fines de lucro porciones relevantes del poder conferido hoy a la comunidad académica, en sus instancias de administración colegiadas, diversificando los núcleos de toma de decisiones, privatizándolos y, por lo tanto, alejando los criterios y supuestos públicos con efectos potencialmente devastadores sobre la autonomía de las instituciones, que se regirían de manera heterónoma.

Palabras Clave: educación superior; autonomía universitaria; organizaciones sociales; fondos patrimoniales; Programa Future-se

Introdução

O debate sobre a necessidade de uma reforma universitária no Brasil vem de longe, seu mais novo episódio foi inaugurado em julho de 2019, quando o Ministério da Educação (MEC) apresentou a proposta do Programa Universidades e Institutos Empreendedores e Inovadores - Future-se. Tal proposição teria como objetivo “aumentar a autonomia administrativa, financeira e de gestão das universidades e institutos federais” (BRASIL; MEC, 2019a). Segundo o MEC, a adesão ao programa seria voluntária.

As primeiras discussões do Future-se foram marcadas pela crítica à forma de comunicação, à debilidade técnica e à ausência que qualquer estudo que justificasse a viabilidade e pretensa eficácia das medidas propostas. Houve a rejeição formal por dezenas de Instituições Federais de Ensino Superior (IFES) e questionamento por parte do Ministério Público, no contexto de uma consulta pública carregada de vícios e ilegalidades, entre tantas, ironicamente realizada em parceria com uma Organização Social (OS) - o Centro de Gestão e Estudos Estratégicos - e não no sítio eletrônico da Presidência da República (STUCHI, 2019; SALDAÑA, 2019)5. Em resposta, o MEC constituiu “Grupo de Especialistas Jurídicos, de natureza técnica, com o objetivo de discutir e consolidar as propostas apresentadas por meio da pré-consulta aberta à comunidade sobre o Programa Future-se e elaborar proposição legislativa acerca do referido Programa” (BRASIL; MEC, 2019b).

O que era consulta pública regride, portanto, ao estágio de “pré-consulta” e uma nova versão do texto é apresentada à imprensa em 16 de outubro (BRASIL; MEC, 2019c). Nesta, aprimora-se a técnica legislativa, são incluídas as fundações de apoio e há uma maior preocupação em afirmar a autonomia das instituições que passariam a aderir por intermédio de um “contrato de desempenho”6 com o MEC. Para cumprir os objetivos e acessar os recursos suplementares prometidos, as IFES poderiam dispor e optar por um conjunto de renovados institutos: OS (na primeira versão, de contratação obrigatória), Fundações de Apoio, Fundos Patrimoniais e Fundos de Investimento.

A despeito das fortes críticas imediatas ao Future-se e das incertezas quanto às condições de aprovação e implementação do conteúdo que veicula, a proposta apresenta tendências reformistas de longa duração, reunidas em um único e complexo projeto legislativo. Retoma-se assim, por parte do governo federal, a iniciativa de proposição de uma reforma universitária de grande espectro, tentada, sem ter sido completada, em governos anteriores (SGUISSARDI, 2006; AMARAL, 2008).

Essas tendências estão ancoradas em alguns dos pressupostos basilares e arranjos jurídico-administrativos da Nova Gestão Pública (NGP), tais como: a fragmentação da gestão pública em pequenas unidades, o controle por resultados mensuráveis, o financiamento atrelado à avaliação e à competição no setor público e a ênfase nos modelos de gestão do setor privado etc. (HOOD, 1991); objetivam alterar a fundo os modelos de gestão e de financiamento das instituições públicas. Em grande medida, trata-se de propor a adaptação e a disseminação massiva, para o ensino superior público federal, de modelos administrativos já regulados e, em boa medida, testados ou prontos para teste nas políticas públicas estatais. Modelos de financiamento como os fundos propostos no Future-se vêm sendo, há mais de duas décadas, disseminados pelo Banco Mundial: "La experiencia también demuestra que para que las instituciones públicas logren una mayor calidad y eficiencia, los gobiernos requieren aplicar extensas reformas en el financiamiento con el objeto de: 1) movilizar más fondos privados para la enseñanza superior” (BIRD, 1995, p.6).

Com esses pressupostos, o ensaio analisa os institutos jurídico-administrativos já regulamentados no Brasil e propostos no Future-se, especificamente as OS e os Fundos Patrimoniais, com o objetivo de compreender as seguintes questões: a) quais as inovações trazidas em tais institutos e como eles seriam incorporados, segundo a proposta do MEC, às estruturas das IFES?; b) o que há de mudança na estrutura jurídico-administrativa já regulada de tais institutos, adaptando-os ao propósito do Future-se?; c) quais os potenciais efeitos na gestão democrática e no exercício da autonomia universitária?; d) quais os potenciais efeitos na dinâmica de financiamento das IFES, incluindo-se os eventuais repasses à iniciativa privadas?

O método é a análise documental, sob o enfoque técnico-jurídico, das propostas de adoção de OS e Fundos presentes nas minutas de projeto de lei do Future-se. Na análise, os institutos são estudados considerando o arranjo jurídico pré-existente e o debate sobre os seus respectivos limites. Com esse método analítico buscamos responder às questões “a” e “b”, acima formuladas. Para o estudo das questões “c” e “d”, contudo, é necessário estabelecer, para efeitos deste ensaio, o sentido normativo do princípio constitucional da autonomia universitária, na forma prevista em Lei e, principalmente, como vem sendo formulada no âmbito da própria comunidade universitária.

O ensaio se divide em três partes além desta introdução e das considerações finais. A primeira apresenta as definições normativas e recupera brevemente a disputa em torno do conceito de autonomia nas visões de reforma universitária. A segunda trata do modelo de gestão por OS, suas origens, experiências estaduais na área educacional e o arranjo proposto no Future-se. A terceira apresenta a recente legislação de Fundos Patrimoniais e discute sua centralidade para a compreensão do desenho do Future-se e dos atores interessados no modelo de financiamento proposto.

A autonomia em disputa nas visões de reforma universitária

A autonomia universitária, em termos genéricos e normativos, é o poder funcional das IFES que serve à garantia do princípio da liberdade do ensino e implica, para tanto, as prerrogativas de autogoverno (SILVA, 2001; RANIERI, 2018). Pelo art. 207 da Constituição Federal (CF), este poder abarca três campos complementares de autonomia: a didático-científica, administrativa e a de gestão financeira e patrimonial (BRASIL, 1988), que podem ser assim compreendidos, com remissão aos artigos da LDB (BRASIL, 1996):

  1. Autonomia didático-científica: capacidade para estabelecer políticas e concepções pedagógicas em relação à produção e disseminação do conhecimento e da cultura. Compreende dimensões coletivas das IFES, objetivas (art. 53, I a III) e subjetivas (art. 53, § 1º, I, III e IV), e individuais de seus docentes e estudantes (art. 3º, II a IV; art. 13, I e II);

  2. Autonomia administrativa: capacidade de auto-organização e de edição de normas próprias quanto à administração de recursos humanos e materiais e, ainda, escolher seus dirigentes. Também tem expressão objetiva (art. 53, IV a VII, e art. 54) e subjetiva (art. 53, § 1º, II, V e VI);

  3. Autonomia de gestão financeira e patrimonial: capacidade de gerir recursos financeiros e patrimoniais à sua disposição. O sistema federal de ensino superior tem autonomia limitada neste aspecto pela possibilidade de contingenciamento das dotações (RANIERI, 2018; AMARAL, 2008). Diversos aspectos da lei estão pendentes de regulamentação (art. 53, VIII a X; art. 54, IV a VII).

O conteúdo principiológico dessas dimensões da autonomia universitária não é acidental. Sguissardi (2006) aponta que esta foi a estratégia dos grupos empresariais para viabilizar a desregulamentação do setor e, com isso, promover a expansão do setor privado lucrativo que viria a tornar o Brasil um dos países com maior taxa de matrículas privadas na educação superior. Tal fato indica também que qualquer tentativa de prescrever ou regulamentar o princípio da autonomia está sujeita, em contrapartida, a reduzir o seu alcance e a limitar o raio de ação das IFES e do próprio setor público.

Por outro lado, a inexistência de parâmetros legais e obrigações relativas à garantia da autonomia tem se mostrado uma ameaça constante à sua própria preservação, interferindo em temas centrais como o poder de escolha dos dirigentes das IFES e na regularidade do financiamento.

A Associação Nacional de Dirigentes de Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) advoga a necessidade de dar garantias jurídico-institucionais de gestão e de financiamento às IFES, aprofundando a parca regulamentação hoje existente. Com esse propósito, ao mesmo tempo em que afirma a autoaplicabilidade do art. 207 da CF, propõe a aprovação de uma “Lei Orgânica das Universidades Públicas Federais” (ANDIFES, 2002). Esta legislação, cuja edição está prevista no caput do art. 54 da LDB (BRASIL, 1996), viria justamente parametrizar a autonomia e, com isso, bloquear impulsos reformistas oriundos de atores externos às IFES (AMARAL, 2008).

Naquele contexto, como agora, estava em causa o propósito do governo federal, à época por intermédio do Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado (MARE), de alterar integralmente a natureza jurídica das IFES, transformando-as em OS, ideia abandonada em razão da oposição das universidades (PEREIRA, 1997; BRASIL; MARE, 1998; AMARAL, 2008).

Diante disso, a proposta de Lei Orgânica da Andifes começa por definir a IFES como “pessoa jurídica de direito público, dotada de capacidade de autonormação e de autogestão” (ANDIFES, 2002, p.3). Além disso, tal proposta visa criar um Sistema de Instituições Federais de Ensino Superior e delimitar aspectos relevantes da autonomia universitária, como a escolha dos dirigentes, autonomia na gestão do quadro de servidores e o estabelecimento de regras de financiamento vinculado (75% do montante obrigatório do art. 212 da CF, excluídos inativos), com repasses obrigatórios em duodécimos mensais.

Algumas dessas proposições, sobretudo a subvinculação de receitas de impostos, chegaram a ser veiculadas no Projeto de Lei n. 7.200, de 2006, apresentado pelo governo federal ao Congresso (BRASIL, 2006). Assim como proposições anteriores, tal reforma não prosperou, prevalecendo as “reformas pontuais da educação superior” (SGISSARDI, 2006, p.1034) que caracteriza esse campo de políticas públicas.

Em termos de gestão financeira e patrimonial, a Andifes quer assegurar liberdade de execução do orçamento, incluindo-se o poder de remanejar receitas da União e próprias, liberdade de gestão patrimonial e para o recebimento de doações, heranças e legado, bem como para estabelecer cooperação financeira com entidades privadas, subvenções públicas e operações públicas (ANDIFES, 2002).

Com isso, recursos diretamente captados pelas instituições não retornariam à conta do Tesouro nem sob o regime da Emenda Constitucional 95/2016 (EC 95/2016), seriam computados nos limites de despesa da União, hoje uma das principais demandas das IFES que foi incorporada ao Future-se. A demanda por maior discricionariedade na gestão financeira, patrimonial e de pessoal por parte das IFES, entretanto, está subordinada ao objetivo de fortalecimento institucional. A autonomia administrativa e a autonomia de gestão financeira e patrimonial decorrem e devem “ser subordinadas à autonomia didático-científica, como meios de assegurar a sua efetividade” (ANDIFES, 2002, p.5).

No programa Future-se, esses propósitos são invertidos. A autonomia na gestão administrativa e financeira anuncia-se como medida de desresponsabilização estatal e tem como consequência esperada a perda de autonomia didático-científica via fragmentação e privatização dos processos decisórios nas IFES. Os instrumentos centrais desse processo seriam as OS e os Fundos Patrimoniais.

Organizações sociais na área da educação

Um dos instrumentos propostos para a operacionalização do Future-se é o contrato de gestão instituído na lei (BRASIL, 1998), firmado entre as IFES e OS cujas atividades estejam relacionadas às finalidades do Programa. Tais contratos podem ser celebrados com OS já qualificadas pelo poder público, sem a necessidade de chamamento público, desde que o escopo do trabalho esteja no âmbito do contrato de gestão já existente. Admite-se também a possibilidade de qualificação de novas OS. Esse fluxo de novas qualificações, no entanto, ainda está pouco claro. Há ainda a possibilidade de Núcleos de Inovação Tecnológica (NIT) se tornarem entidades privadas e se qualificarem como OS.

Também não há clareza sobre os termos e objetivos dos contratos de gestão e como se dará a triangulação MEC, IFES e OS. É certo, contudo, que o modelo proposto se afasta da formulação original da lei das OS de 1998 (BRASIL, 1998). No contexto do programa, as OS aparecem como entes intermediários, entre o MEC e as IFES (autarquias), possivelmente com inspiração em experiências recentes nos sistemas estaduais de ensino em que as OS atuam como gestoras de escolas da rede pública, conforme apontaremos.

As OS foram criadas no bojo da Reforma do Estado dos anos 1990. De acordo com o documento orientador da “Reforma Bresser Pereira”, como ficou conhecida, as próprias universidades seriam transformadas em OS e extintas enquanto autarquias (BRASIL; MARE, 1998; PEREIRA, 1997). A estratégia da reforma se apoiava na “publicização” dos serviços não-exclusivos do Estado, ou seja, na sua absorção por um setor público não- estatal que, uma vez fomentados pelo Estado, assumiriam a forma de organizações sociais. Essa parceria viabilizaria a ação pública com mais agilidade e maior alcance, em razão de uma autonomia administrativa muito maior do que aquela possível dentro do aparelho estatal. Em compensação, seus dirigentes teriam uma responsabilidade maior, em conjunto com a sociedade, na gestão da instituição. Por essa razão, a legislação federal prevê um alto percentual de participação do poder público nos conselhos de administração dessas organizações.

A constitucionalidade da lei das OS foi questionada pela ADI 1923/DF no Supremo Tribunal Federal (STF) em 1999, mas o julgamento só se deu em 2015 (BRASIL; STF, 2015). Nesse intervalo, muitos estados e municípios publicaram leis próprias com modelos de OS e de contrato de gestão variados entre si e muito diferentes do federal. Talvez por essa multiplicidade de modelos existentes, quando o STF decidiu pela constitucionalidade da lei e estabeleceu os parâmetros para sua interpretação conforme a CF, colaborou para deixar seu desenho jurídico ainda mais confuso. Além disso, como apontam Regules e Higa (2015), a decisão o STF subverte a própria lógica constitucional ao permitir que a atuação complementar da sociedade civil na prestação de serviços sociais passe a ser a regra, mediante critérios de mero eficientismo.

Somente dois anos após essa decisão, o governo federal regulamentou a lei das OS (BRASIL, 2017), dando especial ênfase ao Programa Nacional de Publicização (PNP) e ao procedimento de chamamento público para a qualificação de entidades, em cumprimento à decisão do STF. Mais recentemente, foi editada portaria (BRASIL; ME, 2019), detalhando esses procedimentos. De acordo com essas normas (BRASIL, 2017 e BRASIL; ME, 2019), o programa de publicização se destina à absorção de atividades desenvolvidas por entidades ou órgãos da União pelas OS qualificadas e deve ser implementado de acordo com as diretrizes de: alinhamento aos objetivos estratégicos da política pública correspondente, ênfase no atendimento ao cliente-cidadão, ênfase nos resultados qualitativos e quantitativos e controle social das ações de forma transparente. A qualificação de OS deve ser precedida de estudo de publicização, com indicação das razões que fundamentam a conveniência e a oportunidade da aplicação do modelo.

No âmbito dos estados e municípios, as leis próprias que tratam de OS costumam dispor sobre modelos significativamente diferentes do federal. Muito utilizados nas áreas de saúde e cultura, geralmente as leis não exigem estudos de publicização e as OS surgem de iniciativas da sociedade civil. Os modelos locais são mais flexíveis na composição dos Conselhos de Administração e as regras sobre o contrato de gestão são minimalistas (VILLELA; DONINNI, 2018).

A literatura sobre o tema aponta o crescimento e a banalização desse tipo de parceria, com a participação de entidades sem experiência, estrutura própria ou tradição na área de atuação. A entrada desse perfil de OS nos processos de seleção reforçou a noção de que o contrato de gestão pode ser um instrumento voltado apenas à intermediação de mão de obra, o que tem levado muitos tribunais de contas a interpretar esses contratos como terceirização de pessoal para efeitos do cômputo de despesas com pessoal, conforme a Lei de Responsabilidade Fiscal (VILLELA; DONINNI, 2018).

Vale a pena destacar algumas experiências de OS na área educacional, em que elas cumprem papel de intermediação entre as secretarias de educação e as escolas da rede pública, por guardarem certa similaridade com o modelo proposto no Future-se.

Em Goiás, por exemplo, com objetivo de mobilizar a atuação de “empresários na área educacional”, melhorar a gestão das escolas e deixar os diretores concentrados em questões pedagógicas (VILLELA; DONINNI, 2018, p. 41), desde 2015 o governo tenta implementar a gestão por OS, mas os editais de chamamento público e as contratações têm sido suspensos. Em alguns desses editais, previa-se que as OS pudessem captar recursos privados por meio de doações, legados, patrocínios, apoios e contribuições de entidades, rendimentos de aplicações de ativos financeiros, além da venda de espaço publicitário e exploração comercial das próprias unidades escolares. Souza e Flores (2018) argumentam que, além de criar uma rede paralela de ensino, essa previsão possibilitaria a aplicação de tais recursos fora da atividade-fim do contrato, sem a incidência do controle administrativo-fiscal peculiar aos recursos públicos.

No caso da Paraíba, o edital publicado em 2017 previa a contratação de OS para a gestão pactuada das ações e serviços de apoio escolar, que envolvia algumas atividades alegadamente não pedagógicas: secretariado, zeladoria, limpeza, segurança, manutenção etc. e outras de apoio à gestão educacional, como suporte e acompanhamento pedagógico. Nessa experiência de intermediação, algumas questões que se colocam: i) se o interesse está nas atividades não pedagógicas, por que contratar uma OS qualificada por sua atuação na área educacional e não na gestão administrativa? ii) como compatibilizar o contrato de gestão com os mecanismos e instâncias de gestão democrática da escola? (VILLELA; DONINNI, 2018).

Em síntese, as experiências relatadas nos mostram relações jurídicas marcadas por incertezas, incongruências e irregularidades junto aos órgãos de controle. Não há referências sobre ganhos de eficiência ou de melhoria na gestão administrativa e pedagógica nas escolas. Ainda recentes e com poucas avaliações, elas nos revelam que o debate atual sobre contrato de gestão com OS já se afastou muito da proposta original da Reforma do Estado no que diz respeito ao significado do fomento a atividades públicas não-estatais. Em primeiro lugar pelo deslocamento do objeto da contratação - da prestação direta do serviço educacional pelas OS para atividades de intermediação. Em segundo lugar pelas novas formas de financiamento - do orçamento público, da cessão de bens e pessoas como fomento à atuação das OS, para a autorização de captação de recursos para seu autofinanciamento e financiamento das atividades contratadas. Nesse contexto, as OS e os contratos de gestão perdem sua substância e se convertem em meros “instrumentos para o atingimento dos resultados” (BRASIL; MEC, 2019c).

Talvez por esse caráter fungível dos instrumentos, as Fundações de Apoio também aparecem como instrumentos do programa (BRASIL; MEC, 2019c). Essa alternativa ao modelo de OS foi apresentada pelo Conselho Nacional das Fundações de Apoio (Confies) com a intenção de ampliar a utilização dos convênios e contratos com as fundações, atualmente utilizados pelas IFES para apoiar projetos de ensino, pesquisa, extensão, desenvolvimento institucional, científico e tecnológico e estímulo à inovação, inclusive na gestão administrativa e financeira necessária à execução desses projetos.

Não há previsão legal, contudo, para que as Fundações de Apoio sejam contratadas para fazer a gestão das IFES. O art. 1º, § 3º da lei (BRASIL, 1994) diz que é vedado o enquadramento, no conceito de desenvolvimento institucional, de atividades como manutenção predial ou infraestrutural, conservação, limpeza, vigilância, reparos, serviços de informática, telefonia e demais atividades administrativas de rotina. Mesmo assim, ao que parece, OS e Fundações de Apoio seriam utilizadas ora de forma indistinta ora de forma complementar no desenho do Future-se, cabendo às segundas especialmente a comercialização de insumos, produtos e serviços relacionados às IFES, inclusive relacionados à marca dessas instituições (naming rights).

A partir dessas considerações e das propostas de utilização de OS e Fundações de Apoio, retomadas e ressignificadas no Future-se, várias questões se colocam quanto aos potenciais efeitos sobre as três dimensões da autonomia universitária:

  1. i) Quanto à autonomia didático-científica: Quais seriam os termos do contrato de desempenho entre IFES e MEC? Que atividades seriam objeto de publicização e, consequentemente, de contrato de gestão com OS? Que atividades seriam objetivo de convênios e contratos com as fundações de apoio? Como seriam compatibilizadas as diferentes instâncias decisórias entre MEC, IFES, OS e fundações de apoio? As IFES continuariam a definir suas políticas e concepções pedagógicas em relação à geração, organização, sistematização, transmissão e disseminação do conhecimento? Como ficaria a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão?

  2. ii) Quanto à autonomia administrativa: Quantas e quais OS firmariam os contratos de gestão? Haveria um processo de seleção dessas OS? As IFES poderiam fazer estudos de publicização e qualificar novas OS? Várias IFES poderiam integrar um único contrato de gestão, considerando a regra legal de que cada OS tenha apenas um contrato de gestão (BRASIL, 2017)? Como ficaria a composição dos conselhos de administração da OS contratada, considerando os percentuais de participação do poder público previstos no art. 3º da lei federal (BRASIL, 1998)? Haveria possibilidade de contratação de pessoal celetista sem concurso público pelas OS? Como ficariam os contratos de bens e serviços?

  3. iii) Quanto à autonomia de gestão financeira e patrimonial: Como seria o fomento às OS no contrato de gestão? Haveria transferência de recursos orçamentários, bens e pessoal? Como seria possível firmar o contrato sem garantia de recursos aprovados na legislação orçamentária se a lei da OS exige previsão de orçamento pelos quatro primeiros anos do contrato (BRASIL, 1998; 2017)? O fomento se daria com a autorização para captação de recursos privados? Esses recursos captados ficariam atrelados à finalidade do contrato? Como isso seria garantido? Como se daria a relação das IFES, OS e fundações de apoio com os Fundos Patrimoniais e suas organizações gestoras?

Como se percebe, o modelo de OS do Future-se não parece se enquadrar no que o STF definiu como fomento público no domínio social. Ao flertar com as experiências estaduais de OS que fazem a gestão mista de unidades públicas de ensino, o programa estimula as IFES a transferir parte de suas atividades para entidades privadas e possibilita a captação de recursos privados para o seu financiamento, especialmente por meio de Fundos Patrimoniais.

Lei dos Fundos Patrimoniais e o Future-se

As modificações à última minuta do Future-se e a agenda da implementação da Lei dos Fundos Patrimoniais ou endowments estão integradas. Por um lado, a Lei nº 13.800 (BRASIL, 2019) oferece um arranjo formal que não apenas responde a diversas inconsistências operacionais da proposta do MEC como também afasta qualquer dúvida sobre a real atratividade do programa para os investidores privados. Por outro lado, o interesse do governo em implementar o Future-se tem potencial para impulsionar regulamentações incrementais para a operação desses fundos, especialmente isenções fiscais.

Essa confluência permitiu identificar o lobby (MANCUSO; GOZETTO, 2013) de empresas e fundações de origem empresarial ou familiar que se organizou especificamente para aprovar a lei fundos privados7, com importante papel na articulação do regime de urgência da aprovação da lei durante o governo Temer (BRASIL, 2018). Trata-se de um ator privado difícil de situar nos setores tradicionais - mercado ou sociedade civil -, designado nova filantropia ou investimento social privado, que disputa espaço e condições jurídicas para atuar em áreas de políticas públicas até então de exclusiva atribuição do Estado e de organizações sem fins lucrativos tradicionais (BALL, 2014).

A lei dos Fundos Patrimoniais, portanto, deve ser lida à luz dos interesses desses atores. É uma norma que traz várias disposições sobre institutos jurídicos tradicionais (associações, fundações, doação, instrumentos de parceria etc.) e os combina com conceitos do mercado financeiro (ativos, fundos, principal e rendimentos, carteira de investimento etc.), desregulando, de forma prática, relações entre Estado e grupos econômicos.

Uma das novidades da lei, por exemplo, é a figura de Organização Gestora de Fundo Patrimonial (OGFP), que pode ser exercida por uma associação ou fundação privada, nos termos do Código Civil. Tal figura concentra todas as operações formais do novo arranjo de parceria entre doadores e instituições públicas (receber recursos, gerir investimentos, firmar parcerias com a Administração etc.), dando-lhe centralidade. Mas a gestora, nesse arranjo, é apenas a mediadora formal. Doadores e instituição pública, desconectados entre si, se conectam por intermédio da OGFP, através de dinâmicas jurídicas tradicionais: a doação, de um lado; instrumento de parceria, de outro. Dessa forma, os interesses dos agentes do mercado e dos representantes das instituições públicas ficam subjacentes à ação de uma entidade sem fins lucrativos, a quem se atribui a execução de um interesse público e prestígio social.

Os Fundos Patrimoniais, por sua vez, são descritos como um conjunto de ativos de natureza privada através do qual se pode arrecadar, gerir e destinar doações para executar finalidades de interesse público em todas as políticas sociais, sendo a educação o primeiro item nomeado na lei (BRASIL, 2019). O direito brasileiro, entretanto, já tem um instituto que permite designar recursos para operar finalidades sociais, as fundações privadas, um modelo com vantagens e limitações, conforme o propósito: podem operar com certos benefícios fiscais, mas têm restrições legais para operar como captadoras e investidoras no mercado financeiro. Assim, separando o patrimônio e a pessoa jurídica (o fundo e sua gestora) cria-se um arranjo que permite aos investidores sociais acomodar recursos em duas posições vantajosas, a da organização sem fins lucrativos e a do mercado. Para a Coalizão (2018) é importante que a OGFP possa “investir financeiramente, de acordo com a Lei 13.800, sem impedimento ao exercício de seu direito à imunidade ou isenção”.

Outra manobra que a lei dos fundos faz é estabelecer tipos de doação (art. 14) e, com base nisso, atribuir tipos de poderes aos doadores em relação aos recursos (BRASIL, 2019). Das três modalidades, apenas uma é doação livre, decisão que cabe exclusivamente ao doador. Isso significa que as pessoas jurídicas que doarem aos fundos apoiadores de instituições públicas podem interferir, em alguma medida, na execução ou nas deliberações dos programas que apoiarem, estabelecendo-se, assim, um modelo que, a depender do volume de investimento social, permite a influência direta de importantes segmentos de mercado sobre campos inteiros de políticas públicas.

As parcerias também operam de forma fragmentada nesta lei: a OGFP pactua com a Instituição Pública um compromisso sem obrigações financeiras (art. 18), o Instrumento de Parceria (art. 2º, VII); a partir disso, a Instituição Pública ou apoiada pactua com organizações executoras o Termo de execução de programa (art. 2º, VIII e art. 21), que está especificado no primeiro instrumento (art. 19, II), conforme a lei (BRASIL, 2019). Tal objetivo está expresso em manifestações de representantes da coalizão:

(...) há uma estrutura segura e sólida para a gestão dos recursos, prevendo três figuras: a da Organização Gestora de Fundo Patrimonial, cuja responsabilidade exclusiva é de captar e gerir os fundos patrimoniais, para a destinação às instituições apoiadas; a Instituição Apoiada, que pode ser a universidade pública ou a IFES – Instituições Federais de Ensino Superior; e a Organização Executora, cuja função é exatamente fazer a execução financeira dos projetos pactuados com a universidade pública ou IFES, inclusive as atividades previstas no programa FUTURE-SE (FABIANI; PASQUALIN, 2019).

Neste arranjo triangular, por fim, o modelo do contrato de gestão se acomoda à proposta do Future-se: a lei dos Fundos Patrimoniais, de forma indireta, condiciona as executoras das IFES a assumirem a forma jurídica das OS para que possam pactuar termos de execução de programa com as IFES, conforme o art. 31 (BRASIL, 2019). Além disso, a minuta do Future-se prevê dispensa de processo de chamamento para a qualificação das OS, dando ao MEC grande poder de condicionar os parceiros das IFES e, portanto, os intermediários do Fundo.

Neste aparato de privatização e de pulverização de eixos decisórios, as IFES perdem significativamente nas dimensões didático-científica e administrativa de sua autonomia universitária. A necessidade de atrair investidores passaria a condicionar as escolhas de pesquisa e as prioridades acadêmicas e pedagógicas, já que é das OGFP e dos doadores a decisão de manter as parcerias dos programas. O MEC pode condicionar os parceiros das IFES pelo processo de qualificação das OS a que as universidades se sujeitam, se quiserem aderir às dinâmicas da lei dos Fundos Patrimoniais (BRASIL, 2019).

O Future-se previu, ainda, seus próprios fundos para desconstituir o orçamento da educação superior: Fundo Patrimonial do Future-se e Fundo Soberano do Conhecimento. A criação de fundos privados para o MEC, analisada de forma sistemática com os efeitos da EC 95, com a Lei n. 13.800, o regime das OS e o modelo de autonomia financeira limitada das IFES, é uma estratégia formal e sinuosa para a subversão completa da autonomia financeira e patrimonial das universidades. Isso ocorre em função de várias disposições normativas esparsas e importantes alterações na proposta do Future-se de outubro de 2019 (BRASIL; MEC, 2019c).

Em síntese, um fundo de regime privado para o MEC lhe permite absorver a redução nominal do seu próprio orçamento público, desconstituindo a memória de gasto dos recursos vinculados. Por sua vez, a redução nominal dos gastos no orçamento demanda a adesão das IFES ao Future-se e a adoção de seus próprios fundos. As IFES que não quiserem aderir ao programa podem ser constrangidas a fazê-lo, através de rotinas de contingenciamentos das despesas discricionárias. Aderindo ao Future-se, por fim, há a possibilidade de constranger, ainda, as despesas obrigatórias, a partir da celebração do contrato de desempenho, reduzindo ainda mais o volume de despesa na conta do orçamento.

O projeto Future-se (BRASIL; MEC 2019c) traz importantes condições para operar esta funcionalidade, aproveitando-se dos institutos já existentes: a) passaria a permitir expressamente a alienação de móveis e imóveis das IFES e doações financeiras pelo MEC para constituir o fundo (art. 27), abrindo caminho à redução paulatina do orçamento público pela privatização dos próprios recursos, sendo os fundos de natureza privada; 2) os recursos operados pelos fundos, sendo fontes adicionais das IFES, não integrariam a conta única do Tesouro Nacional (art. 28, §1º), ou seja, não contam como despesas públicas da União; 3) a previsão do contrato de desempenho, a ser assinado pelas IFES que aderissem ao Future-se (art. 3º, I), permitiria pactuar condições que, por exemplo, reduziriam o quadro de servidores estáveis, via exigência de adoção de programas de demissão voluntária ou exigiriam que os programas das IFES contratantes fossem realizados pelas OS, sob o regime jurídico trabalhista de direito privado.

Considerações finais

Vimos que apesar de toda a indefinição quanto ao andamento da atual proposta de reforma universitária apresentada pelo Executivo federal, o Future-se é expressão de tendências reformistas de longa duração, que em boa medida vêm sendo implantadas e experimentadas nas normas e nas políticas públicas desde os anos 1990. Atualmente, tais propostas buscam adaptação e disseminação no contexto nacional de políticas para a educação superior pública, mostrando-se ora como solução à alegada ineficiência das IFES e à falta de autonomia destas para a gestão de seus recursos financeiros e patrimoniais; ora como resposta à própria crise fiscal do Estado, especificamente ao “Estado de Sítio Fiscal” imposto à União pela EC 95/2016, que inviabiliza, na prática, a elevação dos dispêndios públicos com as IFES durante sua vigência de vinte anos (PINTO; XIMENES, 2018).

Nesse contexto, é enganosa a ressalva do art. 25 do projeto Future-se, ao fazer crer que os recursos vinculados poderiam estar resguardados das manobras gestionárias e financeiras previstas no restante do projeto. Ora, a garantia de que “fontes alternativas não substituem as dotações orçamentárias regulares” (BRASIL, 2019c) não opera efeitos com a regular e paulatina redução do gasto público e o seu crescente direcionamento a fundos de operação privada. Nisso, o Future-se e seus efeitos deletérios devem muito ao regime fiscal da EC 95/2016.

Apresentado como um programa de caráter voluntário, na sua versão inicial já previa os compromissos a serem assumidos pelas IFES que aderissem. Na versão mais recente (BRASIL; MEC, 2019c), surge a figura do contrato de desempenho para instrumentalizar os compromissos que o MEC e as IFES devem assumir. O desenho jurídico fica mais sofisticado, fazendo crer que as IFES terão autonomia para dispor sobre aspectos relevantes do contrato. Entretanto, ao longo das versões e dos anúncios feitos pelos dirigentes do MEC, sem considerar as reais necessidades das IFES, alguns compromissos foram anunciados como condição para acesso aos benefícios especiais, entre eles a utilização de entidades privadas para o suporte à execução de atividades do programa (OS ou Fundações de Apoio) e a redução de gasto com pessoal. Esta e a revisão de garantias das carreiras públicas são, inclusive, objetivos centrais da anunciada Reforma Administrativa. Nesse sentido, o caráter voluntário do programa é bastante questionável. Com compromissos pré-definidos, desconectados e em vários casos contrários às necessidades de cada instituição, viola-se a autonomia constitucional em todos os seus aspectos.

A pretexto de tornar as IFES empreendedoras, propiciar a elas fontes adicionais de financiamento e incentivar o incremento da captação de recursos próprios, portanto, o MEC apresenta novos arranjos de gestão e financiamento das IFES, utilizando-se de velhas figuras combinadas com novas formas de geração de recursos, os Fundos Patrimoniais e os fundos de investimento específicos (multimercado). Opera assim, em complemento, a financeirização da política pública de educação superior, já amplamente disseminada no setor privado (MARQUES; XIMENES; UGINO, 2018).

Daí a importância de explorar o que há de novidade nas propostas, especialmente na mudança de uso que se faz das organizações sociais e das Fundações de Apoio, explicitando-se como essas figuras perdem seus originais propósitos e passam, no desenho do Future-se, a integrar um complexo de captação de recursos privados, para fins lucrativos e não-lucrativos, regados a benefícios fiscais, conforme apontamos.

Por trás de uma aparente mudança incremental no atual modelo da educação superior pública, portanto, o Future-se parece subverter as diretrizes constitucionais e criar as bases de uma ampla desresponsabilização estatal, com a implantação de outra matriz de financiamento. Nesse sentido, é sintomática a rejeição da matéria por parte da comunidade universitária, em especial a Andifes (2019), uma vez que na proposta nada se avança em termos de garantia de previsibilidade e regularidade do financiamento público às IFES, ponto essencial à estruturação das respectivas autonomias, conforme analisamos.

O Future-se abandona o desenho original das OS, que já havia sido barrado pelas próprias IFES à época. Sem plano de publicização e definição prévia de atividades delegáveis, OS e fundações de apoio se tornam meros instrumentos com o objetivo de intermediar a captação de recursos e geri-los à revelia do regime público. É neste contexto que, impulsionada pelo lobby da filantropia empresarial, a lei dos fundos patrimoniais se apresenta, combinando institutos jurídicos tradicionais com o vocabulário do mercado financeiro e oferecendo um arranjo de relações propositalmente fragmentadas, centrado na figura da OGFP, que opera intermediando relações entre grandes interesses econômicos e instituições públicas. Tal modelo confere aos grupos interessados, por um lado, liberdade e autonomia típicas das sociedades empresárias para gerir recursos e aplicações no mercado financeiro e, por outro, oportunidade para reivindicar regimes privilegiados de tributação, calcados no prestígio social da atuação sem fins lucrativos e em nome de interesses públicos.

Trata-se de um aparato que opera desregulamentação das relações entre Estado e interesses privados, visando não somente flexibilizar a administração e descentralizar as responsabilidades de financiamento, mas reservar recursos públicos à exploração do mercado financeiro, desviando-os do orçamento público ou mesmo promovendo a privatização sob os auspícios do discurso filantrópico; por outro lado, quer transferir a atores privados lucrativos e não-lucrativos parcelas relevantes do poder hoje conferido à comunidade acadêmica, em suas instâncias colegiadas de administração, pulverizando-se os núcleos de decisão, privatizando-os e, com isso, afastando os critérios e pressupostos públicos, com efeitos potencialmente devastadores sobre a autonomia das instituições. Sob a gramática da autonomia, portanto, teríamos uma universidade heteronomamente governada (LIMA, 2011), gerida por uma multiplicidade de instâncias e contratos de regime privado e, de preferência, capaz de produzir direta e indiretamente algum lucro, via produtos financeiros e venda de serviços.

5A consulta pública ficou disponível no site: https://isurvey.cgee.org.br/future-se/. Acesso em 4 nov. 2019.

6De acordo com o art. 3º, I, considera-se contrato de desempenho o “instrumento jurídico celebrado entre universidades ou institutos federais e a União, por intermédio do Ministério da Educação , caracterizado pela consensualidade, objetividade, responsabilidade e transparência, com a finalidade de estabelecer indicadores de resultado para a contratante, tendo como contrapartida a concessão de benefícios especiais”. (BRASIL; MEC, 2019c)

7A iniciativa da Coalizão pelos Fundos Filantrópicos é liderada pelo Instituto para Desenvolvimento do Investimento Social (IDIS) e opera no interesse e com o apoio de 68 instituições, dentre empresas, fundações, associações; hoje atua para influenciar aspectos de sua regulamentação (COALIZÃO, 2018).

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Recebido: Novembro de 2019; Aceito: Dezembro de 2019; Publicado: Janeiro de 2020

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