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Jornal de Políticas Educacionais

versão On-line ISSN 1981-1969

J. Pol. Educ-s vol.14  Curitiba  2020  Epub 20-Abr-2022

https://doi.org/10.5380/jpe.v14i0.70093 

DOSSIÊ: O FUTURO DA EDUCAÇÃO SUPERIOR DIANTE DA CONJUNTURA

As políticas de austeridade e a educação superior: a presença de estudantes de escolas públicas e o futuro das universidades sob risco

Austerity policies and higher education: the presence of public school students and the future of universities at risk

Las políticas de austeridad y educación superior: la presencia de estudiantes de escuelas públicas y el futuro de las universidades bajo riesgo

Danielle Xabregas Pamplona Nogueira1 
http://orcid.org/0000-0001-8500-0402

Ana Maria de Albuquerque Moreira2 
http://orcid.org/0000-0003-0332-8741

Catarina de Almeida Santos3 
http://orcid.org/0000-0003-1864-4608

Silene de Paulino Lozzi3 
http://orcid.org/0000-0003-2350-2807

1Doutora em Educação pela UnB. Professora Adjunta da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília. Brasilia, DF. Brasil. E-mail:danielle.pamplona@gmail.com

2Doutora em Educação. Professora Adjunta da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília. Brasilia, DF. Brasil. E-mail:ana_moreira@hotmail.com

3Doutora em Educação. Professora Adjunta da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília. Brasilia, DF. E-mail:cdealmeidasantos@gmail.com


Resumo

O presente artigo discute as ameaças impostas pelas políticas de austeridade que dominam as propostas econômicas do atual governo para os avanços alcançados com as políticas sociais direcionadas à democratização da educação superior brasileira. Os resultados dessas políticas são evidenciados na análise do perfil de estudantes de escolas públicas que ingressaram em universidades públicas, notadamente nas federais, a partir da implementação de programas que possibilitaram o acesso, a permanência e a formação de indivíduos até então alijados desse nível educacional. A análise do perfil dos estudantes, sua trajetória acadêmica e as estratégias de apoio à sua permanência na universidade foi realizada por estatísticas descritivas de dados retirados do Censo da Educação Superior de 2018, disponibilizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Concluímos que não há dúvida de que os poucos avanços alcançados na superação de barreiras para o acesso de estudantes de escolas públicas em universidades públicas, nos últimos anos, estão em risco com os retrocessos em curso e as ameaças diante de um futuro incerto.

Palavras-chave: Educação Superior; Políticas de Austeridade; Acesso e permanência; Estudantes de escola pública

Abstract

This article discusses the threats to the recent advances made with social policies directed to the democratization of Brazilian higher education, imposed by the austerity policies that dominate the current government's economic proposals. The results of these policies are evidenced in the analysis of the profile of students from public schools that have entered public universities, especially federal ones, through the implementation of programs that allowed the access, permanence and training of individuals hitherto excluded from this educational level. The analysis of students' profile, academic trajectory and strategies to support their stay at the university was performed using descriptive statistics from data taken from the 2018 Higher Education Census, available from the Anísio Teixeira National Institute for Educational Studies and Research of Brazil (Inep). We conclude that there is no doubt that the few advances that have been made in overcoming barriers to public school students' access to public universities in recent years are at risk from ongoing setbacks and threats in the face of an uncertain future.

Keywords: Higher Education; Austerity Policies; Access and permanence; Public school students

Resumen

Este artículo analiza las amenazas impuestas por las políticas de austeridad que dominan las propuestas económicas del gobierno actual por los progresos logrados con las políticas sociales dirigidas a la democratización de la educación superior en Brasil. Los resultados de estas políticas se ponen de manifiesto en el análisis del perfil de los estudiantes de las escuelas públicas que han ingresado en las universidades públicas, en particular en las instituiciones federales, a través de los programas que permiten el acceso, la permanencia y la formación con éxito de los individuos alejados de la educación superior hasta entonces. El análisis del perfil de los estudiantes, su trayectoria académica y las estrategias institucionales para apoyar su permanencia en la universidad se realiza por estadística descriptiva de datos tomados del Censo de la Educación Superior de 2018, proporcionados por el Instituto Nacional de Estudios e Investigaciones Educacionales Anísio Teixeira (INEP). Concluimos que no hay duda de que los pocos avances alcanzados en la superación de los obstáculos para el acceso de estudiantes de escuelas públicas en las universidades públicas, en los últimos años, estan en riesgo con los retrocesos en curso y las amenazas ante a un futuro incierto.

Palabras Clave: Educación superior; Políticas de austeridad; Acceso y permanencia; Estudiantes de escuelas públicas

1 Introdução

Marx e Engels iniciam o Manifesto do Partido Comunista de 1848 afirmando o que permanece até os dias atuais: a história de toda a sociedade é a história de lutas de classes. Segundo os autores, opressores e oprimidos sempre estiveram em constante oposição uns aos outros, numa luta ininterrupta, ora oculta, ora aberta, que sempre terminou ou com uma transformação revolucionária de toda a sociedade ou pelo declínio comum das classes em luta.

Na obra O 18 Brumário, Marx analisa o Golpe de Estado de Napoleão Bonaparte (1799), apoiado pela burguesia, políticos e exército, que o levou a assumir o poder na França. Essa obra é de fundamental importância, para além daquilo que já se sabe, para analisar elementos similares entre a França de 1800 e o que se observa nos últimos tempos em vários países do mundo, inclusive no Brasil.

O Golpe de Estado de Napoleão ocorreu em um período de intensa agitação política e social na França, em consequência da Revolução Francesa, iniciada em 1789, pautada pelos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. Quando Napoleão assumiu o poder por meio do golpe, a França passava por um período de instabilidade política e econômica. A burguesia ofereceu apoio a Napoleão, argumentando que o Estado francês precisava de um governo forte para pacificar o país e garantir a ordem.

Ao observar o golpe de Napoleão, Marx analisa o desejo de mudança da sociedade francesa e a necessidade da implementação de uma nova ordem não como um movimento novo. Antes, representa o próprio retrocesso de um Estado que se usa da força para a manutenção da ordem e da sua capacidade de dominação. “Longe de ser a própria sociedade que conquista para si mesma um novo conteúdo, é o Estado que parece voltar à sua forma mais antiga, ao domínio desavergonhadamente simples do sabre e da sotaina” (MARX, 1851, p. 11). Estava estabelecido o partido da ordem, contra a classe proletária, considerada como o partido da anarquia, do socialismo, do comunismo. A “nova” ordem tinha a missão de “salvar” a sociedade das forças proletárias, acionando mecanismos tradicionais e conservadores, tais como família e religião.

Assim, foi se constituindo um governo que, em seu discurso, se propagava como novo e necessário. Todavia, representava interesses antigos, referenciando-se no movimento retrógado e de ênfase ao conservadorismo, centralizador, o qual denota a dominação de uma classe privilegiada em detrimento da outra, excludente e de restrição de direitos sociais. “Bonaparte representa não o esclarecimento, mas a superstição do camponês; não o seu bom-senso, mas o seu preconceito; não o seu futuro, mas o seu passado” (MARX, 1851, p. 175).

Voltando o olhar para o Brasil atual, a eleição do presidente Jair Messias Bolsonaro, que assumiu o cargo no dia 1º de janeiro de 2019, se deu em um momento que, guardadas as proporções e particularidades históricas da França na época do Golpe de Estado de Bonaparte, o país vivia também um contexto de instabilidade econômica, política e jurídica, após impeachment da então presidenta Dilma Rousseff, em 2016. O contexto em que Bolsonaro emerge como candidato é marcado, assim como à época de Napoleão na França, pelo envolvimento explícito do exército na política e, consequentemente, a “politização” dos militares, que em menor ou maior escala sempre estiveram à espreita e influenciando decisões no âmbito da política.

A proposta de governo do atual presidente também retoma as palavras de ordem: “pátria”, “ordem”, “família”, dentre outras, que denotam a fundamentação do conservadorismo na sociedade brasileira, em contraposição às palavras de ordem dos movimentos sociais: “democracia”, “direitos sociais”, “equidade”.

Para analisar os resultados das políticas sociais no Brasil, especialmente as voltadas para a educação superior, bem como as propostas do governo vigente, é importante lembrar que as bases do governo Bolsonaro são de orientação ultraliberal e ultraconservadora. No campo econômico, propõem-se ajustes estruturais para a resolução da crise econômica do capital, sustentando um Estado ultraliberal que não tem em seus planos de ação a garantia de políticas sociais. No plano social, de fato, o que se vê é uma ofensiva à classe trabalhadora, utilizando-se da extinção de direitos sociais historicamente conquistados, com a flexibilização dos direitos trabalhistas, a reforma da previdência, as propostas de desvinculação constitucional de recursos para a educação e saúde.

Esse discurso amplamente aceito e defendido pela elite econômica e por fundações empresariais, como por políticos eleitos com apoio e financiamento desses grupos, gestores vinculados e indicados pelos mesmos grupos, busca incutir na sociedade a ideia de que os direitos sociais são inviáveis, pois inviabilizaria o Estado. Para isso, é preciso, segundo os defensores do ultraliberalismo, impor uma política de austeridade para promover crescimento, tendo em vista que a crise é do Estado e não do capitalismo e foi causada pelas políticas sociais, sobretudo aquelas de caráter compensatório e que visam às correções de injustiças e à garantia de direitos humanos fundamentais.

As políticas de austeridade causam uma série de retrocessos nesse sentido. Neste artigo, tratamos especificamente dos prejuízos a um grupo de estudantes que, ao longo dos últimos anos, teve seu acesso à educação superior ampliado: os que cursaram o ensino médio em escolas públicas.

Nas seções seguintes, discutimos o cenário político em que se forjam as políticas de austeridade e os desafios para a educação superior entre a prioridade de ser mais equitativa e os desmontes ocasionados pelo ultraliberalismo econômico. Analisamos o perfil dos estudantes que cursaram o ensino médio em escolas públicas e que ingressaram em instituições de educação superior públicas, com base em dados do Censo da Educação Superior 2018 (BRASIL, 2019). Apontamos, ainda, sua situação acadêmica e o apoio social recebido para permanência nas universidades públicas. Na conclusão, ressaltamos os riscos para tais avanços advindos da injunção das políticas de austeridade.

2 As políticas de austeridade e os direitos sociais em xeque

Com o impeachment da Presidenta Dilma Rousseff, no ano de 2016, a presidência da república foi assumida pelo vice Michel Temer, que acelerou a implementação das chamadas políticas de austeridade, com severos cortes no orçamento do Estado, justificados pelo discurso de que são fundamentais para reequilibrar a economia, reduzir a dívida pública e garantir o crescimento econômico. Segundo Blyth (2017, p. 22),

Austeridade é uma forma de deflação voluntária em que a economia se ajusta através da redução de salários, preços e despesa pública para restabelecer a competitividade, que (supostamente) se consegue melhor cortando o orçamento do Estado, as dívidas e os déficits. Fazê- lo, acham os seus defensores, inspirará a “confiança empresarial” uma vez que o governo não estará “esvaziando” o mercado de investimento ao sugar todo o capital disponível através da emissão de dívida, nem aumentando a já “demasiada grande” dívida da nação. (BLYTH, 2017, p. 22)

Autores como Dweck, Oliveira e Rossi (2018), no entanto, apontam que é falacioso o discurso de que um ajuste fiscal melhora a confiança, tendo em vista que a motivação para um empresário investir não é o fato de o governo ter feito ajuste fiscal, e sim a demanda por seus produtos e perspectivas de lucro. Os autores assinalam que

“Austeridade” não é um termo de origem econômica, a palavra tem origens na filosofa moral e aparece no vocabulário econômico como um neologismo que se apropria da carga moral do termo, especialmente para exaltar o comportamento associado ao rigor, à disciplina, aos sacrifícios, à parcimônia, à prudência, à sobriedade e reprimir comportamentos dispendiosos, insaciáveis, pródigos, perdulários. O discurso moderno da austeridade ainda carrega essa carga moral e transpõe, sem adequadas mediações, essas supostas virtudes do indivíduo para o plano público, personificando, atribuindo características humanas ao governo (DWECK; OLIVEIRA; ROSSI, 2018, p. 17).

A defesa da utilização de medidas austeras, embora trate de decisões políticas e econômicas, vem recheada de um discurso que aponta que os argumentos econômicos são supostamente técnicos e tem, sistematicamente, colocado em questão o pacto social feito no processo de redemocratização brasileira, consolidado na Constituição de 1988. Os ultraliberais combatem veementemente esse pacto social sob a absurda alegação de que “o Estado brasileiro não cabe no PIB” ou que “as demandas sociais da democracia não cabem no orçamento”. Isso significa dizer que, para eles, os direitos sociais aprovados na Constituição Federal de 1988 não cabem no orçamento público brasileiro.

Não por acaso uma das primeiras e mais nefastas medidas adotadas por Michel Temer foi a articulação para a aprovação da Emenda Constitucional nº 95, de 2016, que instituiu o Novo Regime Fiscal, no âmbito dos Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social da União, para vigorar por vinte exercícios financeiros. Essa medida não prevê o corte de gastos com pagamento da dívida, não proíbe isenções de impostos para a instalação de novas empresas, não coíbe o perdão de dívidas de grandes banqueiros, ao contrário, incide diretamente nos “gastos” com direitos sociais, pois congela por 20 anos os investimentos nas despesas primárias, ou seja, impede que haja novos investimentos nos direitos sociais por duas décadas.

O que as políticas de austeridade, tão defendidas pelos ultraliberais, nos dizem é que para o neoliberalismo não é cabível a ideia de um país ter um sistema único de saúde universal, universidades públicas e gratuitas, pois, como aponta Tzvetan Todorov, as defesas dos ultraliberais não se devem à aspiração de viver melhor, mas sim à “lógica do neoliberalismo que vê a humanidade como uma massa indiferenciada de indivíduos, eles próprios reduzidos apenas aos seus interesses econômicos” (TODOROV, 2017, p. 126). Para o autor, esse

esquecimento da dimensão social, constitutiva de cada ser humano, não é apenas um erro intelectual. Existe um perigo de, com base nesta imagem mutilada daquilo que funda a nossa humanidade, seguirmos uma política cujos efeitos seriam igualmente mutilantes (TODOROV, 2017, p. 127).

Segundo esse autor, na tradição ocidental, há dois tipos de laços sociais e três instâncias que produzem relação de obrigação. No que se refere aos laços sociais, o autor aponta a lei e o contrato, já as três instâncias são um eu e um tu, dois parceiros que entram em relação, além de um eles, o terceiro impessoal, que garantiria a validade dos compromissos assumidos. Mas esse terceiro, segundo ele, não assume sempre o mesmo papel na lei e no contrato, e aponta, se utilizando de A. Supiot, que a lei são “os textos e as palavras que se nos impõem independente da nossa vontade” ao passo que o contrato refere-se “aos que procedem de um acordo livre com outrem” (TODOROV, 2017, p. 127).

No caso da lei, o terceiro fixa o próprio conteúdo da obrigação: aquilo que é interdito, permitido ou imposto, ao mesmo tempo que a necessidade de sujeição à lei. No caso do contrato, as partes contratantes decidem livremente o conteúdo, enquanto o terceiro se limita a caucionar a validade dos contratos: se não temos voz, caímos na alçada da lei. Esta traduz a vontade do povo, enquanto o contrato assenta na liberdade individual (TODOROV, 2017, p. 127).

Os argumentos trazidos pelo autor são importantes para compreendermos que as políticas de austeridade representam, na verdade, um recuo da lei em favor dos contratos. Nesse contexto, tem-se a destituição do Estado garantidor dos direitos sociais, tornando-se, quando muito, mediador da relação que se dá entre contratantes e contratados, por meio da criação de normas fluidas e flexíveis.

Os cortes ou contingenciamentos no campo da educação e, especialmente, da educação superior, impostos pelo governo brasileiro e apoiados pela maioria no congresso, ignoram ou descumprem o que está posto na Constituição Federal de 1988, inclusive por meio de emendas à Carta Magna, que em última instância ferem a própria Constituição, como é o caso da EC nº 95/2016. Desanuviar o meio de campo e compreender o que rege a lei e o contrato e que está em curso uma lógica de recuo da lei a favor da proliferação dos contratos, assim como entender que há e quais são seus desdobramentos, é, segundo Todorov, importante, tendo em vista que

Essa distinção consagra o facto de certas normas e valores não relevarem da negociação entre indivíduos, pois foram decididas anteriormente, até antes de nascerem, independente da sua vontade. O que, por sua vez, nos lembra que a sociedade não se reduz à soma dos indivíduos que dela fazem parte, ao contrário do que dava a entender a expressão muitas vezes citada da antiga primeira-ministra britânica, a ultraliberal Margareth Thatcher: “A sociedade não existe”. Por isso, dispomos, não só de direitos decorrentes da nossa pertença ao gênero humano – aquilo a que chamamos de direitos humanos –, mas também (e sobretudo) de direitos e deveres decorrentes da nossa pertença a uma sociedade particular (TODOROV, 2017, p. 127-128).

Em conformidade com o autor, boa parte das sociedades humanas conseguiu avançar da lógica pré-moderna, na qual o papel de garantidor de qualquer obrigação era desempenhado pelas tradições ou pelos deuses. Com esse avanço compreendeu-se que essa função deveria ser confiada ao povo, o que na prática significou delegar ao Estado, que exerce aí o papel do terceiro. Assim, a implementação da lógica ultraliberal da extinção do terceiro que é o garantidor significaria na prática a retirada do Estado, o que nos levaria a voltar ao reino animal, ou aquilo que “chamamos impropriamente da ‘lei’ da selva, estado no qual só a força conta” (TODOROV, 2017, p. 128), nos aproximando assim do regime totalitário, no qual o chefe do Estado não se sente submetido às leis, mas à sua própria vontade.

Para Todorov, já há algum tempo está em curso, nas democracias ocidentais, uma espécie de mutação nas relações em sociedade, traduzida pelo aumento do domínio dos contratos e diminuição das leis, o que significa, na prática, restringir o poder do povo e dar liberdade à vontade dos indivíduos. No mundo do trabalho, isso se manifesta, segundo o autor, quando os patrões se queixam muito das leis ou regulamentações que lhes entravam a liberdade de ação, pois preferem negociar diretamente um contrato com os empregados.

As propostas de desvinculação constitucionais de recursos que financiam os direitos sociais, como educação e saúde, sugeridas pelo governo brasileiro, encampadas por grupos e fundações empresariais e defendidas por parlamentares vinculados e financiados por esses grupos, têm sua fundamentação na lógica ultraliberal de que o Estado e suas instituições precisam ser administrados e geridos como uma empresa. Para Todorov (2017, p. 134), essa ideia perniciosa “significa que devemos tratar os seus diferentes serviços na perspectiva da rentabilidade material”. E que a rentabilidade material “é apenas uma das vertentes da empresa, sendo a outra os benefícios simbólicos que daí retiram os que nela trabalham”. Além do mais, defende o autor:

O Estado não é apenas um guiché de serviços, tem um poder simbólico próprio, pois ocupa o lugar de Deus – não, por certo, como objeto de culto, mas como garante da legalidade e da palavra dada. É também ele que assegura a continuidade no seio de uma sociedade; os homens passam, o Estado fica; é este que pode preocupar-se com o futuro mais distante e com os valores imateriais. Para além de suas funções de regulamentação e de redistribuição, o Estado providencia um quadro à vida comum, que permite situar as nossas relações quotidianas numa relação mútua. Com a melhor vontade do mundo, as agências privadas, às quais por vezes o Estado delega as suas funções de serviço social ou de ajuda no emprego, não podem assumir esse papel simbólico ou dar esse acrescento de sentido. O objetivo do Estado não é a rentabilidade, mas o bem-estar da população. Esta diferença nos fins visados diz tanto respeito às administrações como às instituições, como a escola ou o hospital (TODOROV, 2017, p. 134- 135).

Nesse cenário, a educação superior como direito social e bem público está em risco, assim como todas as conquistas da sociedade brasileira que se traduziram em maior acesso, permanência e conclusão nas instituições públicas por parte de grupos historicamente excluídos desse nível de ensino. As medidas de cortes orçamentários, diminuição da participação pública e desmoralização das instituições públicas são medidas que não só colocam em risco os avanços científicos e tecnológicos do país como um todo, mas, sem dúvida, incidem mais direta e intensamente nos grupos majoritária e historicamente alijados dos ganhos e riquezas da nossa sociedade.

Ao propor medidas econômicas austeras, os ultraliberais colocam em risco não só a garantia de direitos sociais basilares, mas a própria democracia, tendo em vista que não é possível existir Estado Democrático de Direito sem que tais direitos sejam garantidos. Como aponta Blyth (2017, p. 20), “em uma democracia, a sustentabilidade política supera a necessidade econômica o tempo todo”.

3 Educação superior no Brasil: entre o desafio da equidade e o desmantelamento da universidade pública

A educação superior no Brasil tem a sua trajetória marcada pelo elitismo e destinação a uma classe privilegiada, da qual os trabalhadores, sobretudo os negros, não se fazem representados. Enquanto direito social, ainda encontra barreiras à sua garantia, em um país marcado por profundas desigualdades sociais e restrição dos direitos fundamentais às minorias. Sobre minoria, segundo Bonetti (2004), não corresponde àquela em menor quantidade, mas sim, àquela que difere do padrão imposto pelas classes dominantes, considerado os iguais, e que, assim, definem quais são os desiguais.

Para Oliveira et al. (2008), o acesso à educação superior no Brasil representa o confronto entre perspectivas mais elitistas de contenção do acesso, as quais visam à manutenção do prestígio dos diplomas e o status dos profissionais no mercado de trabalho, e perspectivas mais populares de ampliação do acesso, que defendem aspirações de largas camadas da sociedade, objetivando inserção profissional que garanta melhoria nas condições de vida e de ascensão social.

As lutas travadas historicamente, sobretudo pelos grupos alijados do acesso à educação, trouxeram como resultados, a partir dos anos 2000, algumas políticas de educação superior voltada para a democratização do acesso, resultando em ações como o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI) e o Programa Nacional de Assistência Estudantil (PNAES).

Segundo Ristoff (2008, p. 45), democratizar significa “criar oportunidades para que os milhares de jovens de classe baixa, pobres, filhos da classe trabalhadora e estudantes das escolas públicas tenham acesso à educação superior”. Assim, para que a democratização ocorra de fato, necessita-se de ações que afirmem os direitos dos historicamente excluídos e que assegurem o acesso, a permanência e a conclusão dos cursos com qualidade.

Para além das políticas já mencionadas, destaca-se a criação da Lei de Cotas (Lei nº 12.711/2012), sancionada em 29 de agosto de 2012, como política pública de ação afirmativa que dispõe sobre o ingresso nas IFES de ensino superior e técnico de nível médio. A Lei de Cotas estabelece, em seu art. 1º, que as IFES “reservarão, em cada concurso seletivo para ingresso nos cursos de graduação, por curso e turno, no mínimo 50% (cinquenta por cento) de suas vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas” (BRASIL, 2012).

No movimento pautado pela democratização do acesso, o Plano Nacional de Educação (PNE 2014-2024) instituiu na meta 12 a elevação da taxa bruta de matrícula na educação superior para 50% e a taxa líquida para 33% da população de 18 a 24 anos, até 2024, sendo que 40% das novas vagas precisam ser nas instituições públicas. Para o alcance da meta, há um conjunto de estratégias para acesso, permanência e conclusão com qualidade. Entre essas estratégias está a ampliação das políticas de inclusão e de assistência estudantil para aumentar as taxas de acesso e permanência na educação superior de estudantes egressos da escola pública, afrodescendentes e indígenas e de estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação, de forma a apoiar seu sucesso acadêmico.

Diante desse contexto, a universidade se defronta com o desafio da equidade. Para Suárez e Gairin (2018), a contribuição da equidade não se limita apenas ao desenvolvimento individual dos sujeitos; mas volta-se à promoção da justiça social. A equidade, como princípio norteador da política, implica um tratamento diferenciado daquele que é desigual em suas origens, com o objetivo de alcançar maior igualdade nas oportunidades de estudo, no acesso, na permanência e equidade nos resultados.

Segundo Dovigo et al. (2018), a inclusão é concretizada pelo reconhecimento da diversidade dos alunos e suas necessidades, garantindo o aprendizado e o desenvolvimento de todos, sem características individuais (como status social, raça, etnia ou gênero) que dificultam essa trajetória. O entendimento é o de que quando uma universidade disponibiliza vagas, faz um contrato tácito com o estudante e assume a responsabilidade de ter as condições de aprendizagem (infraestrutura, equipamento, ensino e apoio ao ensino) para que atinja os objetivos propostos, com a única condição de que ele cumpra suas obrigações como estudantes.

Retomando a análise das atuais políticas sociais, destacamos aquelas voltadas à educação superior. Em entrevista, o sociólogo Boaventura de Sousa Santos afirma que, nas últimas décadas, houve esforço notável no sentido de tornar o projeto de universidade pública mais inclusivo e intercultural. No entanto, esse esforço está hoje no centro da hostilidade à universidade pública. Como bem aponta Santos (2019 5),

A extrema direita vê na universidade um ambiente particularmente hostil precisamente porque esta tem vindo a operar gradualmente contra tudo o que é anátema para a extrema direita: democratização, produção de conhecimento com vocação anticapitalista, anticolonialista e antipatriarcal, luta contra os preconceitos raciais e sexuais e contra conservadorismo religioso ou de casta (no caso da Índia).

Não por acaso, Ricardo Vélez Rodríguez, primeiro ministro da Educação do atual governo que se declara de extrema direita, afirmou que “a ideia de universidade para todos não existe” e que “As universidades devem ficar reservadas para uma elite intelectual, que não é a mesma elite econômica (do país)” (MINISTRO, 2019).

A fala do então ministro representa a intencionalidade do governo e seus grupos de apoio de desmantelar as políticas de acesso à educação superior, e às universidades públicas, tendo em vista serem elas, como aponta Santos (2019), aquelas que têm defendido o pluralismo de atores em seu interior e a liberdade acadêmica como pressuposto da produção de um conhecimento livre, crítico e independente em uma sociedade democrática. Para o autor, “esse conhecimento confronta as elites retrógradas ao pôr a sua dominação injusta a nu. Daí que elas não desperdicem as oportunidades para tentar neutralizar a universidade pública” (SANTOS, 2019).

A desestruturação das universidades públicas ignora, inclusive, o fato de que foi no âmbito dessas instituições que os projetos de país foram construídos e não de forma inclusiva. Ao contrário, foram projetos quase sempre excludentes, “pois não incluíram a história da resistência anticolonial, os povos indígenas, os povos de matriz africana, as mulheres, para não falar dos direitos do povo cigano ou de pessoas com necessidades especiais etc.” (SANTOS, 2019, online).

As significativas alterações desse cenário talvez sejam um dos elementos de ataque contra a universidade pública, tendo em vista as mudanças no perfil dos sujeitos que nela adentram e usufruem dos seus serviços, como os estudantes de escolas públicas, os indígenas, os negros e pessoas com necessidades educativas especiais, entre outros, que, inevitavelmente, trazem questões da equidade para o interior das instituições, o que será demonstrado na próxima seção.

4 Os estudantes de escolas públicas nas universidades públicas

As análises realizadas neste trabalho tiveram por base o banco de dados dos alunos do Censo da Educação Superior de 2018, disponibilizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Os microdados foram extraídos e analisados com a utilização do programa Microsoft Excel® eStatistical Package for the Social Sciences (SPSS) IBM para Windows. Inicialmente foi feito um banco de dados com apenas casos de estudantes de Instituições de Educação Superior (IES) públicas, a partir da construção de uma variável numérica do tipo “dummy”, na qual IES públicas eram consideradas como “1” e IES privadas como “0”.

A partir desse banco de dados, de alunos que estudavam em IES públicas, foi feito outro banco, com a seleção de casos de estudantes que tinham concluído o ensino médio em escolas públicas. Assim, os dados aqui apresentados referem-se a estudantes de IES públicas que concluíram o ensino médio em escolas públicas, de acordo com o Censo da Educação Superior em 2018.

Em seguida, foram processadas análises estatísticas descritivas, considerando as variáveis de categoria administrativa, organização acadêmica, turno, grau e nível acadêmico, modalidade de ensino, idade, sexo, cor/raça dos estudantes. Por fim, foi feita a análise da forma de ingresso dos estudantes, sua situação acadêmica e o recebimento de apoio social nas instituições. O cruzamento de vários desses dados permitiu uma análise mais detalhada do perfil desses estudantes.

Os resultados obtidos mostraram que mais de 1,5 milhão de estudantes em IES da rede pública são provenientes de escolas públicas de ensino médio. Primeiramente, com relação a categoria administrativa das instituições públicas que esses estudantes frequentam, constatamos que a maioria (63,7%) está matriculada em instituições federais (Tabela 1).

Tabela 1 Matrículas em IES públicas de alunos provenientes de escolas públicas, segundo a categoria administrativa da instituição - Brasil - 2018  

Categoria Administrativa Número de matrículas Percentual(%)
Federal 1.004.006 63,7
Estadual 489.530 31,0
Municipal 59.360 3,8
Especial 24.133 1,5
Total 1.577.029 100,0

Fonte: Adaptado de MEC/INEP/DEED (2019).

Para a variável organização acadêmica, predomina a matrícula dos estudantes de escolas públicas nas universidades (78,7%) em relação aos demais tipos, conforme demonstrado na Tabela 2.

Tabela 2 Matrículas em IES públicas de alunos provenientes de escolas públicas, segundo a organização acadêmica da instituição - Brasil - 2018  

Organização Acadêmica Número de matrículas Percentual(%)
Universidade 1.240.454 78,7
Centro Universitário 18.781 1,2
Faculdades 121.350 7,7
Instituto Federal 188.174 11,9
Cefet 8.270 0,5
Total 1.577.029 100,0

Fonte: Adaptado de MEC/INEP/DEED (2019).

Quando associados à categoria administrativa e à organização acadêmica, verifica- se o percentual mais elevado dos estudantes de escolas públicas que ingressaram em IES da rede pública em universidades federais (65%), de acordo com dados mostrados na Tabela 3.

Tabela 3 Perfil predominante dos estudantes de escolas públicas que ingressam nas IES Públicas, segundo características selecionadas - Brasil - 2018  

Características selecionadas Predominância Percentual (%)
Categoria Administrativa e Organização Acadêmica Universidade Pública Federal 65
Turno Noturno 41,5
Grau Acadêmico Bacharelado 53,2
Modalidade de Ensino Presencial 89
Nível Acadêmico Graduação 99,7
Grau Acadêmico e Modalidade de Ensino Bacharelado Presencial 58,1

Fonte: Adaptado de MEC/INEP/DEED (2019).

Outras características selecionadas mostraram que predominam as matrículas em cursos noturnos, de bacharelados e na modalidade presencial em sua maior parte (Tabela 3).

No que se refere ao sexo, dos estudantes de escolas públicas que ingressaram em IES da rede pública, 51% se declararam do sexo feminino e 49% do masculino e tinham, em média, 26 anos de idade. Nas características raça e cor, verifica-se a predominância de estudantes negros (pretos e pardos), conforme tabela 4.

Tabela 4 Estudantes de escolas públicas que frequentam IES públicas, segundo raça e cor - Brasil – 2018  

Cor / Raça Números absolutos Percentual(%) Percentual Acumulado(%)
Não declarado 228.607 14,5 14,5
Branca 550.524 34,9 49,4
Preta 182.170 11,6 61,0
Parda 571.609 36,2 97,2
Amarela 20.343 1,3 98,5
Indígena 13.052 0,8 99,3
Sem informação 10.724 0,7 100,0
Total 1.577.029 100,0

Fonte: Adaptado de MEC/INEP/DEED (2019).

Na forma de acesso, 46,7% ingressaram por meio de vestibular, 42,7% pelo Sistema Nacional de Seleção Unificada (SiSU), que toma como referência a nota no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), e 2,0% por meio de Programas de Avaliação Seriada (Pas).

Para além do ingresso e questionando o discurso presente na sociedade brasileira de precariedade da escola pública, inclusive como uma das formas de negá-la, analisamos também a situação acadêmica dos estudantes de escolas públicas que frequentam IES públicas. O intuito foi verificar em que medida haveria um processo de abandono dos estudos por parte desse público. Como pode ser visto na Tabela 5, a maioria desses estudantes (70%) encontra-se com matrícula ativa, seguida de 13% de desvinculados e 6,9% em situação de trancamento de matrícula.

Tabela 5 Situação acadêmica de estudantes de IES públicas provenientes de escolas públicas – Brasil – 2018

Situação do Aluno Números absolutos Percentual (%)
Cursando 1106.244 70,1
Matrícula Trancada 108.369 6,9
Desvinculado do Curso 205.415 13,0
Transferido Outro Curso na mesma IES 13.033 0,8
Formado 143.778 9,1
Falecido 190 0,0
Total 1.577.029 100,0

Fonte: Adaptado de MEC/INEP/DEED (2019).

Ao compararmos esses dados com os dos alunos da educação superior, independente de terem cursado o ensino médio em escola pública ou de frequentarem cursos em IES públicas, tem-se para aqueles um percentual de 10,7% de trancamentos e 18,2% de desvinculamentos. Esses dados sinalizam que os alunos das escolas públicas que ingressam nas IES públicas, especialmente por meio dos mecanismos de reserva de vagas, tendem a não abandonar o curso, o que torna mais relevante ainda o apoio para permanecerem no curso.

Políticas de austeridade implicam em cortes orçamentários e tendem a ter impactos no acesso e na permanência dos estudantes das escolas públicas na educação superior. Na análise realizada, observamos que 17,8% dos estudantes de escolas públicas que estão matriculados em IES públicas receberam algum tipo de apoio social, com destaque para o apoio à alimentação, seguido do apoio à permanência e ao transporte (Tabela 6).

Tabela 6 Percentual de estudantes de escolas públicas que frequentam IES públicas por tipo de apoio social recebido – Brasil – 2018  

Apoio Alimentação Apoio Permanência Bolsa Trabalho Apoio Material Didático Apoio Moradia Apoio Transporte
Não, possui outro tipo de apoio social 4,6 12,9 17,1 16,4 15 13,1
Sim 13,3 4,9 0,7 1,4 2,8 4,8
Total dos que recebem apoio 17,8 17,8 17,8 17,8 17,8 17,8

Fonte: Adaptado de MEC/INEP/DEED (2019).

Um dado essencial para o debate em questão é que quando se analisa apenas os estudantes que entraram por reserva de vagas, o percentual de quem recebe apoio social sobe para 57,8%, sinalizando para a relevância do apoio social, em distintas modalidades, para que estudantes em situação de vulnerabilidade permaneçam e concluam os cursos de educação superior com êxito.

Na Tabela 7, a situação acadêmica dos estudantes de escolas públicas é analisada em relação à sua forma de ingresso, se por reserva de vaga ou não. Evidenciando resultados positivos para políticas compensatórias, observa-se que trancamentos e desvinculação do curso são mais frequentes entre os estudantes que ingressaram pelo sistema universal do que para os estudantes que ingressaram por reserva de vagas. Um argumento muito presente no discurso conservador é que o ingresso de estudantes oriundos de escolas secundárias públicas contribuiria para um declínio na qualidade dos cursos e da instituição. Um dos indicadores que avaliam essa qualidade diz respeito justamente à evasão. Os dados aqui observados nos permitem contra argumentar ao mostrarem que há mais trancamento e desvinculação dos cursos para quem não entra pelo sistema de reserva e, ainda, que a diferença entre quem está cursando e entrou por reserva e quem não entrou é de 10 pontos percentuais (76,1 x 66,5%).

Tabela 7 Situação acadêmica dos alunos de escolas públicas que ingressaram em IES públicas por reserva de vaga – Brasil – 2018  

Situação do Aluno Reserva de Vagas
Não Sim
Números absolutos Percentual (%) Números absolutos Percentual (%)
Cursando 646.823 66,45% 459.421 76,11%
Matrícula Trancada 71.212 7,32% 37.157 6,16%
Desvinculado do Curso 142.677 14,66% 62.738 10,39%
Transferido Outro Curso mesma IES 6.570 0,67% 6.463 1,07%
Formado 105.988 10,89% 37.790 6,26%
Falecido 124 0,01% 66 0,01%
Total 973.394 100,00% 603.635 100,00%

Fonte: Adaptado de MEC/INEP/DEED (2019).

Para além das políticas de acesso, as políticas para a permanência se mostram essenciais, pois verificamos que o maior percentual de estudantes em situação de possível desligamento não recebe qualquer tipo de apoio social, assim como os que foram desvinculados dos seus cursos. No primeiro caso, entre os que trancaram as matrículas, apenas 3,7% recebiam algum apoio, enquanto 7,6% não tiveram acesso a nenhum tipo de assistência social. Essa situação se torna mais crítica quando analisamos os que já foram desvinculados, com 14,5% sem nenhum tipo de apoio e 6% que tinham algum apoio social. Esses dados apontam para a possibilidade de o recebimento de apoio social nas IES diminuir as chances de desvinculamento dos estudantes e consequências posteriores que podem chegar ao abandono ou à evasão dos cursos, das IES ou mesmo da educação superior.

Em tempos de desmonte das universidades públicas pelas políticas de austeridade, é importante observar que, se todos serão penalizados, alguns serão mais penalizados que outros. Mesmo com a implementação de políticas voltadas para a permanência dos estudantes em IES públicas, o percentual de estudantes que recebem apoio social está aquém do desejado quando o assunto é inclusão e permanência, indissociáveis ao nosso ver. Prova disso é que percentual menor de estudantes que ingressaram por todas as formas de reserva de vagas recebe apoio em relação aos que não recebem, conforme a Tabela 8.

Tabela 8 Estudantes de escolas públicas em IES públicas que receberam apoio social, segundo critério de reserva de vaga – Brasil - 2018  

Reserva de Vagas – Critério Apoio Social
Não @ Sim
Números absolutos Percentual(%) Números absolutos Percentual (%)
Étnico 207.822 72,2% 80.042 27,8%
Deficiência 4.250 78,3% 1.181 21,7%
Ensino Público 379.713 72,0% 147.989 28,0%
Renda Familiar 141.379 63,2% 82.220 36,8%
Outra 6.339 67,1% 3.107 32,9%

Fonte: Adaptado de MEC/INEP/DEED (2019).

Por fim, destacamos que as análises exploratórias aqui realizadas estão em acordo com outras análises que evidenciam a modificação do perfil socioeconômico dos estudantes da educação superior, em especial, da rede pública. De acordo com os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD Contínua), em 2018, o percentual de estudantes negros nas instituições de educação superior da rede pública (50,3%) superou o de estudantes brancos (48,2%). Da mesma forma, a rede pública de educação superior apresenta uma proporção mais elevada (9,7%) de estudantes pertencentes ao quinto da população com os rendimentos mais baixos em relação à rede privada (5,5%) (IBGE, 2019).

Os dados atinentes ao acesso e à permanência dos estudantes de escolas públicas indicam que as IES públicas apresentam um perfil mais democrático e equitativo, como resultado de uma série de políticas de democratização do acesso à educação superior implementadas nas últimas décadas. Políticas de austeridade representam uma inflexão nessa trajetória de redução das desigualdades educacionais com fortes impactos nos indicadores econômicos e sociais.

5 Considerações Finais

O presente estudo destacou ameaças às políticas sociais, sobretudo à democratização da educação superior brasileira, decorrentes de políticas de austeridade que dominam as propostas econômicas do atual governo.

As análises sobre o perfil dos estudantes oriundos de escolas públicas que ingressam em IES públicas, majoritariamente, nas universidades federais, corroboram a importância que as políticas de democratização possuem na garantia de direitos sociais para a redução das desigualdades históricas na composição da população universitária, verificada também em outros estudos (FONAPRACE/ANDIFES, 2018). De um grupo, em sua maioria, oriundo de escolas de ensino médio privadas, predominantemente branco, de classes sociais mais altas, vem se caminhando para a participação mais significativa de estudantes que cursaram o ensino médio em escolas públicas, na maior parte de negros (pretos e pardos) e de estratos sociais mais baixos.

Analisar a luta pelo direito à educação no Brasil e as políticas públicas voltadas para sua concretização, assim como os avanços e retrocessos, especialmente no que se refere à educação superior, requer que não esqueçamos o contexto social, político e econômico do país e as bases em que a sociedade brasileira foi forjada. Requer, ainda, que jamais esqueçamos a base escravocrata e oligárquica que persiste na nossa realidade, que compõe, se adequa e se submete ao capital internacional e sua permanente metamorfose como forma de manutenção dos seus privilégios.

A análise dos dados necessita de ser realizada à luz do quadro teórico, que explicita os mecanismos de formulação das políticas de austeridade que compõem o cenário econômico ultraliberal do atual governo para compreender os riscos decorrentes de sua implantação para o desmonte de uma rede de apoio social, que é essencial na construção de uma educação superior mais equitativa. Disso, concluímos que os avanços alcançados na superação de barreiras para o acesso de estudantes de escolas públicas em universidades públicas, nos últimos anos, estão em risco com os retrocessos em curso e as ameaças diante de um futuro incerto. A mudança desse quadro ocorre somente pela atuação do Estado Democrático de Direito em resposta às demandas sociais.

5SANTOS, Boaventura de Sousa. Future-se e o capitalismo universitário: “Trata-se de transformar a universidade, de um bem comum, em investimento lucrativo”. [Entrevista cedida a] João Vitor Santos e Wagner Fernandes de Azevedo. Carta Maior, São Paulo, 19 ago. 2019. Disponível em: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Educacao/Future-se-e-o-capitalismo-universitario-Trata-se- de-transformar-a-universidade-de-um-bem-comum-em-investimento-lucrativo-/54/44994. Acesso em: set. 2019.

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Recebido: Novembro de 2019; Aceito: Dezembro de 2019; Publicado: Janeiro de 2020

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