Introdução
O cenário social, político e econômico encontra-se tomado por profundas e rápidas transformações. Neste contexto, o discurso oficial sobre a educação no Brasil mantém-se alinhado a dois aspectos estruturalmente ideológicos: o de crise permanente da educação nacional; e de uma consequente solução eminentemente mercadológica, caracterizada pela desresponsabilização do papel do Estado como moderador e promotor da educação, como um bem social (MOTA JÚNIOR; SOUSA, 2019).
Uma breve revisão histórica da realidade educacional brasileira revela que as atividades de ensino foram iniciadas na Bahia (sede do Governo Geral) de forma isolada pelos jesuítas a partir de 1549. Nesse período, a Companhia de Jesus criou 17 colégios, com uma proposta de educação que já não objetivava, exclusivamente, a formação de sacerdotes; ofertando o ensino das primeiras letras, o ensino secundário e, em alguns deles, o ensino superior em Artes e Teologia (CUNHA, 2010).
Por outro lado, o país sofreu um processo de resistência à criação de Universidades, que se estendeu do Brasil-Colônia até a Primeira República (1889-1930). Logo, a atividade universitária emergiu tardiamente, principalmente se comparada a outros países da América espanhola, que tiveram Universidades criadas ainda no século XVI (TEIXEIRA, 1968; CUNHA, 2010).
A primeira universidade brasileira, a Universidade do Rio de Janeiro, surgiu em 1920, articulada pela reunião de algumas poucas e tímidas iniciativas que, mesmo de forma embrionária, configuravam núcleos pré-existentes de pequenas Faculdades. Somente a partir de 1940, de forma pontual, foram-se rompendo paulatinamente as barreiras contra a atividade universitária no Brasil. Mesmo assim, sem a conotação de política governamental, mas, prioritariamente, um modelo centrado na formação profissional por meio de Faculdades isoladas (OLIVEN, 2002; CUNHA, 2010).
A partir de meados dos anos 1960, houve um expressivo crescimento de Instituições de Ensino Superior (IES), principalmente graças à oferta privada. Desde esse primeiro momento, consagrou-se no país um processo de abertura mercadológica do ensino superior baseado em um modelo que privilegiou e que, ainda hoje, segue privilegiando a participação do capital financeiro no processo de expansão universitária. Iniciativa que, nos dias atuais, promoveu uma grande aceleração das parcerias público- privadas, inclusive com o financiamento público, refletindo as pressões políticas em favor do aumento de vagas e da consequente massificação do acesso (DOURADO; CATANI; OLIVEIRA, 2003; GOMES, 2006; NASCIMENTO, 2012).
Atualmente, segundo dados da Sinopse Estatística do Censo da Educação Superior do ano de 2018, das 2.537 IES presentes no país, apenas 12% (299) são públicas, ou seja, as IES privadas têm uma representatividade de 88% (2.238). No que se refere às matrículas (graduação), apenas 25% (2.077.481) estão na rede pública, enquanto que 75% (6.373.274) estão na rede privada (INEP, 2019b).
No caso do estado da Bahia, a rede privada apresenta uma representatividade de 93%, abrangendo 136 IES (39 na capital e 97 no interior). Dentre essas: 2 Universidades (na capital); 10 Centros Universitários (8 na capital e 2 no interior); e 124 Faculdades isoladas (29 na capital e 95 no interior). Já a rede pública, com sede no estado, mantém 4 Universidades federais, 4 Universidades estaduais e 2 Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (INEP, 2019b).
Nota-se que o cenário de oferta de educação superior privada na Bahia (93%) supera, de forma significativa, a média nacional (75%). Nesse sentido, esse cenário pode ser explicado pela tímida oferta pública federal, ao longo de quatro décadas, porém atenuado, parcialmente, pela atuação do sistema estadual de educação superior nesse estado, bem como pela centralidade da política federal nos estados das regiões Sul e Sudeste do país. Além disso, ratifica que, para além da constituição tardia das universidades no Brasil, esse cenário está historicamente relacionado à condição mercantil, notadamente nos estados do Norte e Nordeste, especialmente, no estado da Bahia (OLIVEN, 2002; FIALHO; CARNEIRO, 2016).
Desse modo, ao se observar o avanço da oferta de ensino superior no Brasil, a participação da iniciativa privada resulta em uma fatia majoritária, tanto na criação de instituições, quanto na criação de vagas. Logo, é diante desse cenário que se estabelece o discurso de crise na educação brasileira e, em especial, de desvalorização da universidade pública, tendo como única e imediata solução uma maior abertura ao capital privado da área educacional (MOTA JÚNIOR; SOUSA, 2019).
Nesse contexto, este estudo exploratório, bibliográfico e documental visa caracterizar a oferta atual de ensino superior no estado da Bahia, apresentando aspectos do processo de mercantilização, contextualizado por esse crescente discurso de crise na educação brasileira.
O discurso de crise na educação brasileira
A crescente disseminação de um discurso de crise permanente da educação reflete uma estratégia baseada no forte assédio do mercado, visando o controle dos serviços públicos e a diminuição da ação estatal na promoção do bem estar social. Essa agenda de uma nova onda neoliberal, que avança sem encontrar barreiras de contenção e obstáculos reais, cobre todo o campo político e, especialmente, o sistema educacional brasileiro, encontrando-se voltada aos interesses do mercado, ao induzir reformas, consolidar políticas de privatização e, consequentemente, abrir ao capital privado à exploração do mercado educacional (MOTA JÚNIOR; SOUSA, 2019).
Cabe enfatizar que a hegemonia desse discurso binário – de uma lado a ideia de uma crise permanente da educação, de outro a solução meramente mercadológica –, não chega a ecoar como crítica construtiva ou mesmo promotora de debate público. O objetivo principal desse discurso é estabelecer uma mentalidade compatível com os novos direcionamentos de mercantilização na educação brasileira, em que os resultados avaliativos apontam inequivocamente para diagnósticos, análises e proposições, revelando uma paisagem de terra arrasada. Em outras palavras, uma crise global que vai do ensino básico à universidade (MOTA JÚNIOR; SOUSA, 2019).
A estratégia de ressoar esse discurso de crise visa à desvalorização da educação, especialmente quanto à fragilidade e incompetência da Administração Pública, mediante contínua exposição de fracasso governamental na proposição, implantação e condução de políticas educacionais. Como resultado, tem-se um convencimento da opinião pública sobre a necessidade de adequar métodos e ferramentas da iniciativa privada na aplicação dessas políticas, principalmente como solução para questões fundamentais de qualidade na educação, levando a concordância unânime sobre a existência de graves problemas educacionais (MOTA JÚNIOR; SOUSA, 2019).
Então, o discurso de crise na educação, em sentido geral, e na educação superior, em sentido restrito, legitima a perspectiva da abordagem empresarial e ofusca qualquer pretensão de ampliação na oferta da educação pública, mesmo que esta oferta tenha alcançado limitado protagonismo histórico. Uma análise dos textos constitucionais a partir do advento da República no Brasil sempre colocou a família como responsável pela promoção da educação e, quase sempre, desresponsabilizou o estado (CONCEIÇÃO, 2013).
Em consequência disso, pode-se perceber que a crise pautada na educação, como instrumento de legitimação do mercado do ensino superior, acabou por ratificar uma crise efetiva de construção de uma autonomia tecnológica. Além disso, confirma o encaixe brasileiro no papel secundário e periférico do capitalismo global e, igualmente, limítrofe do desenvolvimento do estado da Bahia, refém desse arranjo mercantil.
Nesse mesmo sentido, o antropólogo e educador Darcy Ribeiro já havia sentenciado, ao perceber a crescente hegemonia do discurso de crise na educação brasileira, enfatizando que, na verdade: “[...] a crise educacional do Brasil da qual tanto se fala, não é uma crise, é um programa. Um programa em curso, cujos frutos, amanhã, falarão por si mesmos” (RIBEIRO, 2019, p. 55).
Logo, essa condição de crise configura-se como uma estratégia ideológica de manipulação dos discursos, visando à legitimação e aceitação da interferência do capital financeiro como protagonismo em um campo de atuação governamental. Logo, esse discurso apresenta-se amplificado, assumindo formas cada vez mais nítidas, visando à implantação de políticas neoliberais com a multiplicação de propostas reformistas que aceleram parcerias público-privadas e, sobretudo, as próprias privatizações (MOTA JÚNIOR; SOUSA, 2019).
Nessa perspectiva, especialmente, a universidade pública tem sido alvo desse discurso que visa desvalorizar seus serviços e precarizar, ainda mais, as condições de sua existência, através de um processo de sucateamento, deflagrado agora por meio de cortes sucessivos, contingenciamentos de verbas e redução dos investimentos. Esse cenário relembra o processo de resistência sofrido no passado, que mereceu críticas do educador Anísio Teixeira, por essa “[...] tradição antiuniversitária alimentada pelo retardamento ou pobreza intelectual vigente no país” (FIALHO, 1998, p. 32).
Por outro lado, nesse contexto, tem-se consolidado um fenômeno amplo de transnacionalização, que ocorre por toda América Latina, afetada enormemente por políticas de ajuste exigidas por organismos multilaterais, numa nova ordem político- econômica internacional, que ultrapassa as fronteiras nacionais e tem sido facilitada pelo avanço das tecnologias informação e comunicação (TIC) e pelo avanço do neoliberalismo nos países considerados emergentes. A ocorrência dessa lógica, com fins econômicos, políticos e jurídicos, organiza-se por meio da globalização da economia e da financeirização do capital (LAMPERT, 2006; MAUÉS; SOUZA, 2018).
No caso brasileiro, nunca este processo foi tão abertamente defendido ou politicamente viabilizado, de modo que, hoje, os grupos mercadológicos tem representação no cargo máximo da educação no país. O atual Ministro da Educação, Abraham Weintraub, ao participar de um Congresso promovido pelo Fórum das Entidades Representativas do Ensino Superior Particular, em Belo Horizonte (MG), destacou a iniciativa privada como o principal agente na expansão do ensino superior. Enquanto isso, as instituições federais de ensino superior (IFES) passam por forte contingenciamento de recursos e, como consequência direta desse discurso, as ações dos grupos educacionais Estácio e Kroton lideraram a alta do índice na Bolsa de Valores de São Paulo (EXAME, 2019).
Além disso, a fim de tornar mais visível o modo mercantilista de atuação do atual governo federal no campo da educação, foi lançado em Brasília no dia 16 de julho de 2019, o Programa Future-se. Segundo o Ministro da Educação, o objetivo é dar mais autonomia financeira para as IFES, fomentando o empreendedorismo e a inovação com a captação de recursos privados, por meio de contratos de gestão com Organizações Sociais (OS), ligadas ao ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico e à cultura.
Contudo, na prática, o Programa visa desresponsabilizar a atuação estatal na promoção da educação superior, entregando à iniciativa privada a condução de todos os processos envolvendo a gestão das IFES. Em curto prazo, pode significar a perda do protagonismo das comunidades universitárias na distribuição dos recursos destinados ao ensino, pesquisa e extensão, situação em que as decisões passarão a se orientar por critérios empresariais e não mais, por exemplo, pelo interesse de formação sociocultural. Já em longo prazo, a adesão a todos os propósitos desse Programa poderá representar uma das graves consequências e com potencial danoso: o fim da gratuidade no ensino superior.
No caso da educação superior baiana, essa não se tornou mercantilizável, pois sua oferta pública nunca foi majoritária nesse contexto; mas concebida, executada e ambientada em perspectiva empresarial e mercantil. Essa “tradição” talvez explique, bastante, a dependência tecnológica externa e a produção econômica, pautada em um capitalismo agroexportador (global de commodities), que caracterizam tanto a economia nacional quanto baiana.
Dessa maneira, as políticas educacionais passariam a atender às demandas do mercado ao invés dos anseios sociais, abrindo um novo nicho de mercado à proliferação de empresas educacionais. Logo, esse processo de mercantilização já é uma realidade, tornando-se oportuno discutir as consequências desse crescente modelo de privatização na educação, que visa, precipuamente, desresponsabilizar o Estado do cuidado e da formação dos cidadãos.
A mercantilização do ensino superior brasileiro
A privatização do ensino superior brasileiro se iniciou durante a Ditadura Militar, nos anos de 1964 a 1985. Nesse período, o ensino superior privado cresceu mais rapidamente do que o setor público, porém em detrimento da própria qualidade do serviço ofertado. No início desse período, a proporção de matrículas era de 62% para o setor público contra 38% no privado. Já no ano anterior ao seu término, verificou-se uma inversão: a proporção das matrículas privadas passou para 59% contra 41% do setor público (SAMPAIO, 2011; NASCIMENTO, 2012).
Essa grande expansão instituiu a relação de complementaridade entre os setores público e privado no ensino superior brasileiro, em uma massificação do acesso pelo setor privado, manifestada de várias formas: natureza institucional dos estabelecimentos; política de acesso ao ensino superior; localização geográfica; existência de pesquisa e da pós-graduação stricto sensu; áreas de concentração dos cursos; titulação e regime de trabalho docente; entre outros (SAMPAIO, 2011).
Segundo Sampaio (2011), a publicação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de 1961 foi uma das responsáveis nesse processo de privatização. Essa lei reconheceu a organização do sistema educacional em moldes não universitários, favoreceu a proliferação de Faculdades isoladas e instituiu mecanismos de controle na relação com o mercado, legitimando certo equilíbrio na dualidade público-privado do ensino superior, reforçada também pela Reforma Universitária de 1968 (SAMPAIO, 2011).
Nos anos 1970, esse processo desenvolveu-se por meio da criação de instituições privadas isoladas, que aumentaram o número de cursos e vagas ofertados, porém focadas no ensino. Já no setor público, investia-se na pesquisa, criando estruturas de regulação e de apoio à pós-graduação. Além disso, ganhou-se impulso a partir do surgimento de incentivos e subvenções às instituições privadas, bem como pela implantação de fundações educacionais, operacionalizadas de duas formas: direta, por meio de subvenções públicas; e indireta, através das fundações de direito público ou privado, desobrigando o Estado da manutenção do ensino superior e do aumento do poder de intervenção (SAMPAIO, 2011; NASCIMENTO, 2012).
Durante a década de 1980, a renúncia fiscal foi primordial para amenizar os impactos da recessão econômica, referentes à inadimplência, ao desemprego e à queda de poder aquisitivo da população, havendo redução na demanda por ensino superior sobre os estabelecimentos privados; o que permitiu a continuidade da atividade no setor educacional e evitou muitas falências (NASCIMENTO, 2012).
Nesse contexto, com a publicação da atual LDB (Lei nº 9394/1996), todas as IES privadas, praticamente, passaram a usufruir de imunidade tributária (referente à renda, serviços e patrimônio). Promoveu-se, assim, a diferenciação institucional entre instituições com e sem fins lucrativos, sendo que aquelas com finalidade lucrativa perderam benefícios diretos com recursos públicos e indiretos da renúncia fiscal. Por outro lado, as IES sem finalidade lucrativa (confessionais, comunitárias e filantrópicas) permaneceram imunes ou isentas à incidência tributária (CUNHA, 2007; NASCIMENTO, 2012).
Para Nascimento (2012), essas alterações trazidas pela LDB permitiram ampliar a arrecadação governamental e, consequentemente, aumentar os custos operacionais da rede privada. Logo, em função da impossibilidade de crescimento desse setor, foram criadas algumas formas de mediação (liberalização de serviços educacionais, isenções tributárias e de contribuição previdenciária das filantrópicas, bolsas de estudos para alunos carentes via crédito educativo, empréstimos financeiros a juros mais baixos, PROUNI, entre outros), visando à manutenção da expansão do ensino superior no país, principalmente por via privada.
No final do século XX, ocorreu um cenário de transformações no ensino superior, em função de um Estado regulador e de um mercado desaquecido, havendo uma disparada de IES privadas transformando-se em Universidades. Esse fenômeno ocasionou o crescimento dessas instituições e a redução de estabelecimentos isolados, evidenciando processos de fusão e/ou incorporação de instituições (SAMPAIO, 2011).
Como resposta aos impactos econômicos sofridos nos rumos do ensino superior privado no país, a publicação do Decreto nº 2.306/1997 significou uma iniciativa relevante, ao determinar, em seu artigo 1º, que as entidades mantenedoras das IES privadas pudessem assumir qualquer das formas admitidas em direito (natureza civil e comercial). Em outras palavras, esse Decreto permitiu que as entidades mantenedoras alterassem seus estatutos, assumindo-se sem finalidade lucrativa e sujeitas a um maior controle estatal, porém com a possibilidade de obter isenções fiscais e de receber recursos públicos (CUNHA, 2007; SAMPAIO, 2011).
No final da década de 1990, acentuou-se também o processo de mercantilização, influenciado pela globalização e disseminação das TIC, manifestando-se por meio da educação a distância (EaD), da produção de materiais instrucionais (livros, apostilas e softwares) e do surgimento de consultorias, responsáveis pelo assessoramento financeiro e na gestão de recursos educacionais. Esse modelo de universidade virtual opera no formato de consórcios de instituições, representado pela Rede Brasileira de EaD, criada em 2000 pela associação de seis IES privadas e da Rede de Instituições Católicas de Ensino Superior (RICESU), formadora do Instituto Universidade Virtual Brasileira (CARVALHO, 2013).
Nos anos 2000, em função da sociedade brasileira não vislumbrar sinais positivos de crescimento da demanda por ensino superior, o setor privado deparava-se com um duplo desafio: manter a larga fatia de participação no sistema (67% das matrículas e 85% das IES); e acirrar a competição institucional por estudantes. Além disso, no período de 2004 a 2008, apesar do crescimento de 22% nas matrículas, houve um incremento substantivo de vagas ociosas no setor privado (SAMPAIO, 2011; NASCIMENTO, 2012).
Dentro dessa lógica mercantilista, pressões políticas ao incentivo à massificação do acesso ao ensino superior forçaram a transferência de recursos públicos para a rede privada, principalmente por meio do financiamento estudantil e das isenções fiscais (DOURADO; CATANI; OLIVEIRA, 2003; GOMES, 2006).
Nesse sentido, por meio do Fundo de Financiamento Estudantil (FIES), criado pela Lei nº 10.260/2001, recursos públicos são destinados à concessão de financiamento a estudantes, para pagamento dos encargos educacionais. O Programa Universidade para Todos (PROUNI), instituído pela Lei nº 11.096/2005, consiste na concessão de bolsas estudantis, integrais e parciais, por IES privadas, tendo como contrapartida à isenção de impostos (BRASIL, 2018).
Além disso, outra forma de financiamento público ao ensino superior privado acontece por via tributária, como no caso das entidades educacionais beneficentes de assistência social, que têm imunidade à incidência de impostos, pela concessão anual de uma bolsa de estudo integral, no mínimo, para cada cinco pagantes e de bolsas parciais – desde que haja uma bolsa integral, minimamente, para cada nove estudantes pagantes (BRASIL, 2018).
Processo de financeirização do ensino superior
Nos anos 1990, por apresentar relevantes taxas de crescimento de matrículas, o ensino superior tornou-se um importante negócio global. Logo, grandes instituições educacionais lucrativas passaram a negociar suas ações na NASDAQ e na Bolsa de Valores de Nova York. Em 1991, a DeVry University foi a primeira dessas grandes companhias a realizar oferta pública de ações, seguida da Apollo Group (controladora da Universidade de Phoenix), em 1994, com uma cotação inicial acionária de 2 dólares por ação e que passou, em 2011, a ser negociada por 33 dólares por ação (CARVALHO, 2013).
No Brasil, inicia-se um processo de transformação de Universidades e Centros Universitários em grandes conglomerados ou holdings, seja pela aquisição de instituições de pequeno ou médio porte em dificuldades financeiras, seja por meio de fusões de capital, permitindo ganhos de escala e de maior fatia de mercado; ou por novos nichos geográficos de mercado e de vantagens, visando aumentar a participação de mercado pelo crescimento do número de alunos e de cursos já autorizados pelo Ministério da Educação (CARVALHO, 2013).
No início do século XXI, formaram-se novos arranjos no ensino superior privado, envolvendo grandiosos investimentos com bancos, visando à abertura de capital em bolsa de valores ou a associação a redes internacionais de educação. No Brasil, ocorreram dois fenômenos distintos: um referente ao fato de que nem toda IES privada que se associou ao capital internacional fez oferta pública de ações; e outro, que reflete o oposto, em que todas as IES privadas que se tornaram empresas de capital aberto provavelmente têm capital internacional (SAMPAIO, 2011).
De acordo com Sampaio (2011), esses novos arranjos no ensino superior privado, referentes à abertura de capital em bolsa de valores ou às parcerias com grandes redes internacionais de educação, só foram possíveis no país em função da mudança normativa em que as mantenedoras puderam optar pela forma comercial, ou seja, instituindo-se com finalidade lucrativa.
Na ótica do capital internacional, as IES brasileiras tornaram-se extremamente atrativas, principalmente por terem significativo patrimônio, isto é, estrutura predial própria e marca consolidada. No caso das mantenedoras, não se esgotaram as oportunidades em multiplicar os lucros, ao decidir se associar às grandes redes internacionais de educação e/ou abrir capital na bolsa de valores, em função de aportes estrangeiros (SAMPAIO, 2011).
Esse processo de financeirização do ensino superior, a partir da abertura de capital, tornou-se responsável pela maioria das operações de fusões e aquisições no setor, principalmente em razão de negócios ocorridos com grandes empresas educacionais, sinalizando um movimento de oligopolização. Em outras palavras, a formação de oligopólios educacionais, cuja mantenedora (holding) controla todos os negócios (CARVALHO, 2013).
Como exemplos no Brasil, têm-se: a compra do Centro Universitário Ibero- Americano (UNIBERO) pelo Grupo Anhanguera Educacional, em 2007; seguida pela compra do Centro Universitário Radial (UNIRADIAL), de São Paulo, pela Universidade Estácio de Sá; e do Centro de Ensino Atenas Maranhense, adquirido pela Kroton, de Belo Horizonte, em 2011 (CARVALHO, 2013).
Ademais, como processo de financeirização e de internacionalização do ensino superior, a venda parcial da instituição nacional ao capital estrangeiro tem como precursores: a Laureate International Universities, que adquiriu 51% do capital da Universidade Anhembi Morumbi, São Paulo, em 2005, e 90% do Centro Universitário Hermínio da Fonseca, Rio de Janeiro, em 2010; a rede universitária global Whitney International University System (atual Rede Ilumno), que adquiriu 60% do Centro Universitário Jorge Amado – UNIJORGE, Bahia, em 2006; e a rede DeVry University qe adquiriu 69,3% da Faculdades do Nordeste (FANOR), Ceará, e participações nas Faculdades Área1 e Ruy Barbosa, Bahia, em 2009 (CARVALHO, 2013).
No ano de 2011, 40% do total de 2.069 IES privadas tinham finalidade lucrativa. Dessas, apenas 36 grupos abriram o capital na bolsa de valores, a exemplo: Kroton Educacional S.A.; Anhanguera Educacional Participações S.A.; Estácio Participações S.A.; SEB – Sistema Educacional Brasileiro S.A.; dentre outros. Desses, cada grupo controlava muitas IES por todo o território brasileiro, com um peso relevante em termos de matrículas do ensino superior, conjuntamente. Assim, unidos, esses grupos educacionais respondiam a, aproximadamente, 10% das matrículas (SAMPAIO, 2011).
Segundo Carvalho (2013), a financeirização pode ser observada pelas aquisições realizadas por fundos de investimento em participações de empresas de capital aberto ou fechado, conhecidos como Private Equity (Ativo Privado), com posterior envolvimento da investidora na gestão da investida. Esses fundos injetam elevados recursos nos negócios educacionais, por meio de grupos de grandes especuladores (nacionais e internacionais), exigindo reestruturação administrativa, redução de custos e profissionalização.
Para Carvalho (2013), entre 2006 e 2010 no país, foi possível identificar cinco grandes operações: aquisição pelo Banco Pátria, por meio de um fundo de investimento, de 68% da Anhanguera Educacional; aquisição de 20% pela GP Investimentos na Estácio Participações (2008); aquisição pelo Cartesian Capital Group da Faculdade Maurício de Nassau (2008); aquisição pelo Advent de 50% do grupo Kroton Educacional (2009); e compra pelo Capital Intl do IBMEC Educacional (2010).
O Quadro 1 apresenta dados da Consultoria Hoper Educação do ano de 2017, com os dez maiores grupos empresariais do ensino superior privado no Brasil.
Grupo Educacional | Estimativa de Receita Líquida | Matrículas na Graduação |
---|---|---|
Kroton Educacional (Anhanguera, Unopar e Pitágoras) | R$ 5,3 bilhões | 841,3 mil |
Estácio Participações | R$ 3,3 bilhões | 441,7 mil |
Universidade Paulista – UNIP | R$ 2,4 bilhões | 417,4 mil |
Laureate International Universities (FMU, Anhembi Morumbi, UniRitter) | R$ 2,5 bilhões | 271,2 mil |
Cruzeiro do Sul Educacional (Universidade Cruzeiro do Sul, Colégio Alto Padrão) | R$ 850,8 milhões | 149,8 mil |
Ser Educacional (UniNassau, Univeritas) | 1,2 bilhão | 143,4 mil |
Universidade Nove de Julho (UniNove) | R$ 749,2 milhões | 138,2 mil |
Ânima (São Judas, UniBH) | R$ 981,8 milhões | 85,8 mil |
UniCesumar | R$ 449,5 milhões | 79,5 mil |
Adtalem Global Education (Damásio, Ibmec, Wyden) | R$ 899,5 milhões | 54,6 mil |
Fonte: Adaptado de Folha de São Paulo (2018).
Dessa forma, a lógica mercantilista do ensino superior no Brasil (como fenômeno global) revela-se pelo avanço de grandes conglomerados nacionais e internacionais sobre IES privadas, seja pela internacionalização do capital, seja pela globalização da oferta, com a transferência de recursos públicos para iniciativa privada. Esse fenômeno é representado pela massificação da oferta, financeirização, oligopolização e transnacionalização, configurando-se no processo de mercantilização da educação (GOMES, 2003; SAMPAIO, 2011; CARVALHO, 2013; MAUÉS; SOUZA, 2018).
Oferta atual de ensino superior no estado da Bahia
No estado da Bahia, a oferta federal compreende 6 Universidades e 2 IF: a Universidade Federal da Bahia – UFBA; a Fundação Universidade Federal do Vale do São Francisco – UNIVASF (sede em Petrolina-PE e campus em Juazeiro-BA); a Universidade Federal do Recôncavo da Bahia – UFRB; a Universidade Federal do Oeste da Bahia – UFOB; a Universidade Federal do Sul da Bahia – UFSB; a Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira – UNILAB (sede em Redenção-CE e campus em São Francisco do Conde-BA); o Instituto Federal da Bahia – IFBA; e o Instituto Federal Baiano – IFBAIANO.
Já na rede estadual, o governo baiano mantém 4 instituições: a Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS; a Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB (multicampi, sede em Vitória da Conquista-BA); a Universidade do Estado da Bahia – UNEB (multicampi, sede em Salvador-BA); e a Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC.
Segundo INEP (2019b), a oferta atual no estado da Bahia apresenta um total de 441.195 matriculados em cursos de graduação (presenciais e a distância). Destes, 113.150 matriculados são da rede pública, sendo 64.998 (57,44%) da rede federal, 48.100 (42,51%) da rede estadual e 52 (0,05%) da municipal (Pólo EaD da Universidade Taubaté em Tucano-BA). Na rede federal, 59% das matrículas presenciais estão presentes na capital e 41% no interior. Já na rede estadual, apenas 12% das matrículas presenciais estão na capital, enquanto que 88% encontram-se no interior.
Por outro lado, a rede privada na Bahia tem uma representatividade de 92% (136, 39 na capital e 97 no interior) do total de IES e de 74% (328.045) das matrículas em cursos de graduação (presenciais e a distância). Dentre as IES privadas existem 2 Universidades (na capital, a Universidade Salvador – UNIFACS e a Universidade Católica do Salvador – UCSal), 10 Centros Universitários (8 na capital e 2 no interior) e 124 Faculdades Isoladas (29 na capital e 95 no interior) (INEP, 2019b).
A partir desses dados, verifica-se uma concentração dessas IES privadas na capital baiana, indicando uma preferência estratégica que visa à conciliação dessas IES privadas no contexto das grandes cidades, onde também há uma concentração da demanda. Sendo assim, na maioria das vezes, a expansão para o interior do estado fica por conta da oferta do ensino à distância ou, em alguns casos, com a aquisição de pequenas IES privadas que apresentaram um significativo potencial de lucro.
A Tabela 1 apresenta o quantitativo de IES privadas do estado da Bahia, no ano de 2018, por categoria administrativa e organização acadêmica. Conforme esses dados, 75% dessas IES têm finalidade lucrativa, apontando para um forte processo de mercantilização acontecendo nesse estado, principalmente ao se comparar com o cenário nacional, que apresenta 58% de IES privadas com fins lucrativos.
Categoria Administrativa | IES | Universidade | Centro Universitário | Faculdade |
---|---|---|---|---|
Privada Sem Fins Lucrativos | 34 | 1 | 2 | 31 |
Privada Com Fins Lucrativos | 102 | 1 | 8 | 93 |
Fonte: INEP (2019a).
Com isso, o estado da Bahia assume uma posição de destaque quanto à movimentação do mercado ligado ao ensino superior, indicando a existência de uma grande demanda por vagas que, em contrapartida, justifica os altos investimentos na abertura de novas IES privadas e as enormes expectativas por lucro que alimentam essa expansão.
Já o Quadro 2 apresenta as Universidades e Centros Universitários da rede privada no estado da Bahia no ano de 2018, por categoria administrativa e por localização da sede (Capital ou Interior), identificando suas instituições mantenedoras e os respectivos grupos educacionais associados.
IES privada | Categoria Administrativa | Mantenedora/Grupo Educacional | Localização |
---|---|---|---|
Universidade Católica do Salvador (UCSAL) | Privada sem Fins Lucrativos | Associação Universitária e Cultural da Bahia (AUCBA) | Capital |
Centro Universitário Maurício de Nassau de Salvador (UNINASSAU Salvador) | Sociedade Baiana de Ensino Superior Ltda. (ABES) | Capital | |
Centro Universitário SENAI CIMATEC | Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SESI) | Capital | |
Universidade Salvador (UNIFACS) | Privada com Fins Lucrativos | FACS Serviços Educacionais Ltda. / Laureate International Universities | Capital |
Centro Universitário Ruy Barbosa Wyden (UniRuy Wyden) | Academia Baiana de Ensino Pesquisa E Extensão Ltda. – ABEP / Wyden Educacional (Adtalem Global Education) | Capital | |
Centro Universitário Estácio da Bahia (Estácio FIB) | Sociedade de Ensino Superior, Médio e Fundamental Ltda. (IREP) / Estácio Participações S.A. | Capital | |
Centro Universitário Jorge Amado (UNIJORGE) | Sociedade Baiana de Educação e Cultura S.A. (ASBEC) / Rede Ilumno | Capital | |
Centro Universitário AGES (UniAGES) | AGES Empreendimentos Educacionais Ltda. | Interior | |
Centro Universitário FG (UNIFG) | Centro de Educação Superior de Guanambi Ltda. (CESG) | Interior | |
Centro Universitário Regional do Brasil (UNIRB) | Unidades de Ensino Superior da Bahia Ltda. (UNIRB) | Capital | |
Centro Universitário Dom Pedro II | Instituição Baiana de Ensino Superior Ltda. / Grupo UniDom | Capital | |
Centro Universitário de Salvador (UNICEUSA) | ASSUPERO Ensino Superior Ltda. | Capital |
Fonte: INEP (2019a).
Nesse Quadro, cinco IES privadas com finalidade lucrativa são mantidas por cinco grandes grupos educacionais do cenário nacional: Estácio FIB (Estácio Participações S.A.); UNIFACS (Laurente International Universities); UniRuy Wyden (Adtalem Global Education), UNIJORGE (Rede Ilumno); e a UNICEUSA (ASSUPERO Ensino Superior Ltda., também mantenedora da UNIP).
Portanto, essas informações demonstram o avanço desses grandes grupos educacionais sobre as IES privadas baianas, seguindo a tendência global de mercantilização do ensino superior no país.
Conclusões
Este estudo exploratório, bibliográfico e documental caracterizou a oferta atual de ensino superior no estado da Bahia, discutindo aspectos do processo de mercantilização no Brasil, contextualizado por um incessante discurso de crise na educação nacional.
A hegemonia desse discurso, justificado e legitimado por projetos políticos e reformas do sistema educacional, atinge fortemente o ensino superior, refletindo a desvalorização e o sucateamento das universidades públicas, numa ação concreta e defendida por entes governamentais. Esse discurso confirma o objetivo neoliberal de desresponsabilizar o Estado e promover a abertura para a mercantilização da educação, em especial do ensino superior.
A crescente necessidade de massificação do acesso ao ensino superior no Brasil, inclusive prevista nas metas do Plano Nacional de Educação (PNE 2014-2024), consagra essa lógica mercantilista, incentivando a expansão da oferta, inclusive com a transferência de recursos públicos para a iniciativa privada, numa estratégia impulsionadora dos lucros e de empresariamento da educação, diretamente responsável pelo crescimento vertigino da rede privada no país.
Essa lógica obedece às tendências do neoliberalismo, que promove a chegada de grandes conglomerados internacionais, assumindo o controle desse processo de financeirização do mercado educacional, centrado na lógica capitalista do lucro fácil. Essas instituições, rapidamente, estruturaram-se e aguardam novas diretrizes para seguir ampliando seus ganhos, sem, necessariamente, resultar em uma formação de qualidade e socialmente responsável para a sociedade brasileira.
Desse modo, o estado da Bahia passa por esse processo de mercantilização, sendo afetado por esse cenário atual do ensino superior brasileiro, apresentando uma representatividade da rede privada de 92% de instituições e de 74% nas matrículas em cursos de graduação, com a presença de grandes conglomerados nacionais e internacionais.