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Jornal de Políticas Educacionais

versão On-line ISSN 1981-1969

J. Pol. Educ-s vol.14  Curitiba  2020  Epub 20-Abr-2022

https://doi.org/10.5380/jpe.v14i0.71196 

DOSSIÊ: O FUTURO DA EDUCAÇÃO SUPERIOR DIANTE DA CONJUNTURA

Existe um direito universal à Educação Superior?

Is there a universal right to higher education?

¿Existe un derecho universal a la educación superior?

1Instituto de Educação, Universidade de Londres. Londres, Reino Unido. E-mail: t.mccowan@ucl.ac.uk


Resumo

A oposição ao pagamento de mensalidades na Educação Superior é, de forma recorrente, formulada como a defesa da Educação Superior como um ‘direito’ ao invés de um ‘privilégio’. No entanto, a base e a natureza desse direito são nebulosas. Este artigo apresenta uma exploração conceitual sobre a questão, a partir de uma aproximação com o Direito Internacional. Um argumento proposto para o reconhecimento do direito à Educação Superior o coloca como uma das muitas formas possíveis de educação pós-escolar, restrita apenas pela exigência de um nível acadêmico mínimo de preparação.

Palavras-chave: Acesso à Educação Superior; Política para a Educação Superior; Direito à Educação; ampliação da participação

Abstract

Opposition to university fees is often framed as a defence of higher education as a ‘right’ rather than a ‘privilege’. However, the basis and nature of this right is unclear. This article presents a conceptual exploration of the question, drawing on an initial analysis of international law. An argument is put forward for a right to higher education seen as one of a number of possible forms of post-school education, restricted only by a requirement for a minimum level of academic preparation.

Keywords: Access to higher education; higher education policy; human rights; right to education; widening participation

Resumen

La oposición a las tasas universitarias a menudo se enmarca como una defensa de la educación superior como un "derecho" en lugar de un "privilegio". Sin embargo, la base y la naturaleza de este derecho no están claras. Este artículo presenta una exploración conceptual de la cuestión, basándose en un análisis inicial del derecho internacional. Se presenta un argumento a favor del derecho a la educación superior visto como una de varias formas posibles de educación post-escolar, restringido solo por el requisito de un nivel mínimo de preparación académica.

Palabras Clave: acceso a la educación superior; política de educación superior; derechos humanos; Derecho a la educación; amplia participación

Introdução2

Os protestos estudantis em várias partes do mundo – e o decorrente debate na mídia – são sustentados pela questão central que se refere à definição de o acesso à universidade ser um direito ou um privilégio. Enquanto, com frequência, o debate fica restrito às mensalidades, as reformas possuem implicações profundas em termos de reenquadramento da Educação Superior como um bem predominantemente privado com retornos econômicos e, em consequência, com os custos que podem ser arcados individualmente. Defensores da Educação Superior gratuita, em contraste, argumentam que ela é um bem público e que pode ser um direito universal da mesma forma que o Ensino Fundamental e o Ensino Médio3.

O número de matrículas na Educação Superior teve um acelerado incremento a partir da segunda metade do século passado, atingindo a marca de 150 milhões de estudantes em todo o mundo em 2007 (ALTBACH et al. 2009). Todavia as taxas de acesso permanecem baixas na maioria dos países – enquanto a taxa global de matrículas é de 26%, nos países com rendas mais baixas ela é de 7% da faixa etária de corte4 – com um significativo número de incapazes de obter uma vaga. Dadas as consideráveis implicações acerca da disponibilidade de recursos para os Estados, a questão sobre se a educação pode ser justificadamente restrita a poucos ou se pode se tornar amplamente disponível assume uma importância primordial em todo o mundo. Este artigo avalia a validade da demanda por Educação Superior enquanto um Direito e explora a natureza e o escopo de tal Direito. Esta forma de esclarecimento é particularmente importante para lançar luz sobre a imprecisão conceitual que tem caracterizado o debate atual sobre o tema.

Em alguns países de renda alta, a Educação Superior foi expandida numa extensão em que há uma quase universalidade de oportunidades de acesso para este nível de estudos, isso quando não é considerado um Direito e consagrado na lei. Todavia este artigo não visa avaliar se a Educação Superior é, ou pode vir a ser, um Direito de facto. No debate sobre a afirmação ou não do direito à Educação Superior, sua tarefa é normativa. Estabelecer, portanto, a validade de um direito moral é de fundamental importância pois afeta nossos posicionamentos sobre questões relativas às condições de acesso, diversidade institucional, investimento de recursos e a natureza da provisão.

A discussão acerca das justificativas para a Educação Superior são altamente complexas. Primeiro, há a noção de ‘direito’ em si, como isso se distingue de um ‘bem’ e as implicações para os indivíduos e a sociedade. Compondo essas dificuldades está o fato de que a tarefa de decidir se a educação é um direito depende do que se entende por ‘educação’, o que está longe de uma concepção unitária. Uma complexidade particular da educação é que ela possui uma gama de diferentes benefícios: intrínsecos, instrumentais e ‘posicionais’– i. e. de uns em relação aos outros na sociedade (UNTERHALTER; BRIGHOUSE, 2007). Justificativas para o direito geral à educação têm sido discutidas em outros trabalhos (e.g. CURREN 2009; HAYDON 1977; SNOOK; LANKSHEAR, 1979; WRINGE 1986), então, por essa razão e por questões de espaço, iremos apenas revisá-las brevemente. Este artigo parte do pressuposto que todas as pessoas têm direito à Educação Básica5 – como é geralmente aceito no direito nacional – e vai avaliar se este direito pode ser estendido à Educação Superior.

O artigo se concentrará principalmente no que se refere ao acesso à Educação Superior, ao invés de abordar questões mais amplas relativas à justiça nas relações das universidades com os estudantes atuais e a sociedade em geral, como explorado em Brighouse (2009), por exemplo. Nos termos de Brennan e Naidoo (2008), portanto, ele se atém no sentido da “importação” de questões relativas à justiça social da sociedade para a Universidade, do que na “exportação” no sentido oposto – embora, como os autores enfatizam, os dois sentidos estejam fortemente ligados. Em termos do que se entende por "Educação Superior", há alguns desafios em oferecer uma definição satisfatória. É difícil separar o conceito de Educação Superior das concepções particulares ou visões normativas apresentadas pelos teóricos, ou dos modelos específicos que aparecem em diferentes pontos da história em diferentes partes do mundo. Em um sentido descritivo, a Educação Superior hoje se refere a uma série de instituições, das quais a mais importante é a "Universidade", mas inclui outras formas institucionais, com características distintas6. Nos últimos anos tem havido também uma proliferação de diferentes formas de cursos, dificultando o estabelecimento de um critério em relação à área temática.

No entanto, alguns limites conceituais devem ser colocados na noção de Educação Superior. Nós não chamaríamos, por exemplo, um curso de espanhol para iniciantes, de curta duração, de "Educação Superior", mesmo se fosse para pessoas que tenham concluído sua educação escolar. O primeiro aspecto necessário da Educação Superior é que ela depende de um estudo anterior, sendo que os estudantes que nela ingressam estão construindo sua formação sobre uma aprendizagem anterior substancial (normalmente através da escolaridade, embora não necessariamente). Por essa razão, o ensino superior é, em regra, cursado por adultos. O segundo aspecto necessário é que ele demanda um estudo aprofundado e sustentado. Normalmente, envolveria especialização em uma área particular de conhecimento, embora também seja possível uma amplitude de assuntos, particularmente nos estágios iniciais. Poderíamos acrescentar a essa condição que a Educação Superior deve ser “emancipatória” (BARNETT, 1990), uma “conversa” (OAKESHOTT, 1989) ou que seja “racionalmente defensável” (MacINTYRE, 1990). No entanto, apesar da conveniência dessas condições, não poderíamos excluir do conceito exemplos que nem sempre atendam a essas características.

Base legal e base moral

Direitos são reivindicações justificadas que indivíduos (e às vezes grupos) podem fazer sobre os demais. Neste artigo, os direitos não são considerados em relação a determinadas jurisdições nacionais, mas em seu sentido universal, pois se referem a todos os seres humanos. Este artigo acompanha Amartya Sen e outros ao ver os Direitos Humanos principalmente enquanto direitos morais, em vez de receber sua legitimidade das formulações legais:

Os Direitos Humanos podem ser vistos principalmente como exigências éticas. Eles não são comandos "legais", "proto-legais" ou "ideais-legais". Mesmo que os direitos humanos possam inspirar leis, isso é um fato adicional, e não uma característica constitutiva dos Direitos Humanos (SEN, 2004, p. 390).

Além disso, Sen os vê como emergentes de discussões coletivas, com sua plausibilidade “dependente de sua capacidade de sobreviver e florescer quando eles encontram discussão e escrutínio desobstruídos” (SEN, 2005, p.160). O debate normativo sobre o tema dos direitos – sem ser restringido pelas atuais formulações jurídicas – é, portanto, não só possível, mas essencial ao estabelecimento e à legitimação de direitos.

O propósito deste artigo não é, portanto, analisar o conteúdo do direito à Educação Superior tal como existente no Direito Internacional. Contudo, um breve exame de sua formulação pelo Direito será útil em discussões posteriores. A Educação Superior consta como parte do direito geral à educação desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 (DUDH), e em instrumentos juridicamente vinculativos posteriores, como o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC) de 1966 e a Convenção sobre os Direitos da Criança (CDC) de 1989. O artigo 26 da DUDH estabelece que “o acesso aos estudos superiores deve estar aberto a todos em plena igualdade, em função do seu mérito7”. Quando tomado no contexto das garantias no início do artigo sobre o ensino básico obrigatório e gratuito, o elemento digno de nota é que não há menção ao quanto tal acesso deve ser franqueado à população. O direito garante que a Educação Superior seja acessível, mas geralmente não disponível (BEITER,2006, p. 97). O requisito apresentado – um aspecto muito importante – é que ninguém deve ser barrado da Educação Superior por qualquer razão que não seja "mérito", ou seja, que a falta de recursos financeiros não seja impeditiva para o acesso, por exemplo. No entanto, é possível aplicar com sucesso esta condição a um sistema universitário que disponha de vagas para apenas 1% da população – e com um número muito grande de pessoas competindo por um pequeno número dessas vagas. Portanto, é essencial considerar a exigência processual de acesso justo, com atenção ao número total de vagas disponíveis (McCOWAN, 2004; 2007) (Como será discutido adiante, isso não requer necessariamente o acesso para toda a população.). A esse respeito, a Carta da Organização dos Estados Americanos de 1948 representa um significativo aperfeiçoamento, afirmando que “A educação de grau superior será acessível a todos, desde que, a fim de manter seu alto nível, se cumpram as normas regulamentares ou acadêmicas respectivas”. A condição para padrões acadêmicos específicos aqui criados – entendidos como requisitos mínimos – é preferível a uma competição por um número fixo de vagas – como será discutido nas seções a seguir.

As formas como a do direito à Educação Superior se desenvolveram podem ser observadas na Convenção relativa à luta contra a Discriminação no campo do Ensino (1960) com seu compromisso de “tornar igualmente acessível a todos o ensino superior em função das capacidades individuais”, e no PIDESC, que afirma que “a educação de nível superior deverá igualmente tornar-se acessível a todos, com base na capacidade de cada um, por todos os meios apropriados e, principalmente, pela implementação progressiva do ensino gratuito”. A 'capacidade' é distinta do 'mérito', pois se relaciona com o potencial futuro e não com as “realizações acadêmicas passadas dos alunos” (BEITER, 2006, p.97) e, portanto, é claramente um avanço em termos de facilitar o acesso a alunos de meios desfavorecidos que podem ter tido uma escolaridade anterior de baixa qualidade. Embora provisória, há também no PIDESC uma referência à gratuidade. No entanto, a CDC posterior remove a cláusula sobre a gratuidade, exigindo que os estados “tornem o ensino superior acessível a todos com base na capacidade por todos os meios apropriados”. De fato, a prática dos governos nacionais não indicou um movimento para a introdução da Educação Superior gratuita: muito pelo contrário, de fato, como no Reino Unido, tem havido uma tendência em muitos países para a cobrança de taxas, mesmo em instituições públicas. Estas foram introduzidas com base nos custos da expansão do acesso à Educação Superior, restrições aos fundos públicos e as origens desproporcionalmente privilegiadas da maioria dos estudantes de Educação Superior e sua consequente capacidade de se financiar. Os empréstimos estudantis podem atenuar os efeitos negativos da cobrança de mensalidades, mas não os removem completamente, e mesmo nos países em que geralmente estão disponíveis, ainda podem representar um desincentivo a estudantes de baixa renda devido ao temor pelo endividamento ou à falta de confiança nos benefícios dos estudos superiores (ALTBACH et al., 2009). Os níveis diferenciados de cobrança (relativos a diferenças de qualidade ou prestígio) também comprometem a exigência de acesso com base no mérito ou capacidade.

O direito à Educação Superior, no âmbito do direito internacional, portanto, é parcialmente deficiente em sua formulação, pois, ao determinar um possível direito, deve- se prestar atenção não apenas aos aspectos processuais de acesso às vagas disponíveis, mas também à extensão da disponibilidade de provisão. Além disso, mesmo os requisitos limitados não foram cumpridos pela maioria dos estados.

Justificativas para o direito generalizado à educação

Antes de avaliar os detalhes da natureza e do escopo do direito à Educação Superior, no entanto, é necessário primeiro considerar se é válido falar de tal direito. As discussões sobre o embasamento do direito à educação se concentraram principalmente sobre as crianças e sobre o acesso à escola. Justificativas têm sido apresentadas a partir de fundamentos variados. Em sua revisão do direito internacional sobre o direito à educação, Hodgson (1998) descreve quatro justificativas para o direito: a perspectiva social utilitária ou de interesse público – baseada no papel da educação no apoio à democracia, à paz mundial e à preservação da cultura comunitária; um pré-requisito para a dignidade individual – através da transmissão de habilidades essenciais e de aptidões para a realização de uma análise fundamentada que permita uma vida digna na sociedade; pré-requisito para o desenvolvimento individual – proporcionando a oportunidade de que os indivíduos desenvolvam seu potencial; e, finalmente, a perspectiva do bem-estar individual, dado que nas sociedades atuais os indivíduos sem educação lutam para assegurar suas necessidades básicas.

Haydon (1977), por outro lado, distingue entre três bases possíveis para o direito. A primeira delas é a socialização, a aquisição das capacidades básicas para viver em sociedade, incluindo a linguagem e outras habilidades necessárias para conviver com os outros. Este é considerado um direito, pois é necessário para ter uma vida genuinamente humana. A segunda – “educação opcional” – refere-se ao desenvolvimento de capacidades intelectuais associadas à educação liberal e à ideia da "pessoa educada" apresentada por Richard Peters e Paul Hirst. Embora Haydon considere que pode haver um direito de não interferência possível aqui (ou seja, que as pessoas devem ser "deixadas em paz" para buscar seu próprio desenvolvimento intelectual), as pessoas não têm o direito de invocar o tempo e os recursos de outras pessoas para essa finalidade, pois se trata de algo supérfluo e não essencial para viver em sociedade. De relevância para este artigo, ele considera essa forma de educação particularmente desnecessária "nos níveis superiores" (embora não necessariamente indesejável). A terceira forma – a autonomia – está localizada entre a primeira e a segunda, na medida em que é mais extensa do que a socialização, mas não se move para o terreno do supérfluo. De acordo com essa visão, temos o direito de sermos seres autônomos, mas precisamos da ajuda de outros para alcançá-lo. A educação básica é um direito, portanto, essencial para a autonomia:

Um certo grau de diversidade do desenvolvimento cognitivo é uma condição da escolha racional: deve haver pelo menos alguma consciência sobre as alternativas entre as quais se pode escolher, e alguma noção de critérios pelos quais as alternativas podem ser avaliadas (HAYDON, 1977, p.241).

Para Haydon, portanto, o direito é justificado pela sua importância para a socialização e a autonomia para viver uma vida plenamente humana. Curren, enfocando principalmente as crianças, parte um pouco dessa posição na defesa do direito à educação entendido como “iniciação em práticas que expressam o florescimento humano” (CURREN, 2009, p.52), uma concepção mais ampla que a ênfase nas formas de conhecimento das crianças conforme Peters e Hirst.

No entanto, diferente das perspectivas baseadas no valor intrínseco da educação, conforme já apresentado, os argumentos geralmente se concentram no papel instrumental da educação. O direito à educação é comumente visto como fundamental para o entendimento e o exercício de todo o conjunto de direitos humanos. Este argumento é apresentado por Wringe (1986), que também enfatiza que a educação no mundo contemporâneo é essencial para evitar que as pessoas sejam subjugadas e exploradas por outros. Uma posição similar é apresentada por Spring (2000), que vê a educação como uma ferramenta essencial para grupos minoritários, como os povos indígenas, para negociar com sucesso os desafios da globalização. A primeira das justificativas de Hodgson (1998) relacionadas ao interesse público também contribui nesse sentido.

Contudo, não está claro nessas discussões porque o direito à educação deve se aplicar apenas a crianças, ou apenas a formas particulares de educação formal. Como discutido em McCowan (2010), a restrição do direito absoluto à educação para o nível "elementar" não se justifica nem com base no valor intrínseco e instrumental da educação, nem com base nas vantagens posicionais conferidas. Assim, é impossível determinar um nível específico de alfabetização necessário para ter acesso ao emprego e à recreação: muitas vezes, à medida que as habilidades e a sensibilidade de uma pessoa ler e escrever se desenvolvem ao longo da vida, suas oportunidades de trabalho e engajamento em atividades culturais são progressivamente aprimoradas. É muito arbitrário determinar que o aprendizado fornecido na escola primária é um direito e nos níveis subsequentes é simplesmente um bem. Em relação à autonomia proposta por Haydon e à “iniciação em práticas que expressam o florescimento humano” de Curren, é difícil ver como o desenvolvimento dessas qualidades tem um ponto final – elas não são tarefas que podem ser completadas. Hodgson (1998), de fato, reconhece em relação às justificativas que ele propõe que, embora as crianças sejam as principais beneficiárias, o direito tem uma aplicação vitalícia. Qualquer limiar de desenvolvimento educacional estabelecido para marcar o fim do direito seria arbitrário.

Tomando o aspecto posicional, uma restrição do direito absoluto à educação para o nível primário também é inadequada, particularmente à luz da chamada inflação que tornou os certificados de conclusão do ensino obrigatório quase sem valor no mercado de trabalho na maioria dos países. É claro que a dimensão posicional da educação é complexa do ponto de vista dos direitos universais, dado que não podemos universalizar a vantagem posicional, embora possamos nos proteger contra desvantagens injustas.

O direito à educação – se é que é um direito – deve aplicar-se de alguma forma ao longo da vida. Isso não é negar a importância da infância como uma fase da vida em relação à educação, e é claro que as formas mais intensivas de educação devem ocorrer nos estágios de rápido desenvolvimento correspondentes à infância e à adolescência. Se puder ser demonstrado que algum aprendizado só pode ocorrer em fases particulares da vida, pode haver justificativas para o ensino obrigatório. No entanto, isso é diferente de restringir o direito a essas fases. O direito à educação não deve ter um ponto inicial e final. Um segundo ponto sobre o direito geral à educação é que as visões puramente instrumentais (p. ex. WRINGE, 1986) não podem fornecer uma justificativa adequada. Se a educação é vista apenas como um mecanismo eficaz para alcançar outras funções valorizadas, tais como meios de subsistência ou participação política, então não é um direito em si mesmo; os direitos são relativos, neste caso, à subsistência e à participação política, sendo a educação apenas o seu instrumento. Para que seja considerada um direito em si, a educação deve ter algum valor intrínseco (embora possa ter simultaneamente valor instrumental).

O direito à educação superior, portanto, deve ser visto no contexto de um direito geral à educação ao longo da vida. A educação superior, dessa forma, é uma das várias opções de aprendizagem organizada disponíveis para as pessoas na idade adulta, juntamente com várias formas de educação vocacional, treinamento específico para o trabalho, atividades criativas e artísticas, desenvolvimento pessoal e assim por diante.

Características específicas do direito à Educação Superior

O argumento de que há um direito à educação ao longo da vida, contudo, pode ser visto como insuficiente para defender o direito à Educação Superior. Há que se questionar justamente se haveria alguma coisa em particular sobre a Educação Superior que lhe conferisse valor. Como argumentado por Barnett (1990, p. 6), a Educação Superior não é apenas “mais do mesmo”, ela indica “um nível especial de desenvolvimento pessoal”. Alguns elementos podem ser vistos como especificidades da Educação Superior, entre a gama de outras opções educacionais. A primeira e mais proeminente delas é que, na maioria das sociedades, tal escolaridade confere acesso inigualável às formas de emprego mais bem pagas e mais recompensadoras. Em parte, isso decorre do conhecimento e das habilidades adquiridas (benefícios instrumentais), mas também da dimensão posicional dos diplomas, imbuídos de valores divergentes em um sistema universitário hierárquico. Como Brighouse afirma, a credencial fornece “maior competitividade para as posições desejáveis distribuídas de forma desigual e os bens desigualmente distribuídos que se ligam a elas” (BRIGHOUSE, 2009, p.6).

A exclusão dessas oportunidades é claramente injusta e pode ser encarada como um argumento em defesa do direito à Educação Superior. No entanto, como dito anteriormente, esta forma de justificação não é suficiente, posto que razões instrumentais por si só não podem formar a base de um direito (por outro lado, o fenômeno do desemprego dos diplomados e outros obstáculos na conversão da Educação Superior em oportunidades nas sociedades contemporâneas não podem ser usados como argumentos contra o reconhecimento do direito). Uma das limitações dos atuais debates acadêmicos sobre a Educação Superior é seu foco exclusivo nesse aspecto. Bou-Habib, por exemplo, avalia argumentos a favor e contra o financiamento estatal, concluindo a partir de uma perspectiva de princípio da diferença rawlsiana que os subsídios públicos são justificáveis na medida em que promovem os interesses dos mais desfavorecidos da sociedade. O autor afirma que “não devemos assumir automaticamente que a Educação Superior financiada por impostos é um 'direito básico' e tampouco devemos supor que é um privilégio pelo qual os formandos devem pagar” (BOU-HABIB, 2010, p.493). Como apontado por Kotzee e Martin (2013), um problema de tal argumentação é que esta parte da abordagem da Educação Superior puramente em seu papel "externo" na realização de outros bens sociais. Só nesse sentido pode ser que não haja um direito à Educação Superior – particularmente porque as vantagens apontadas (principalmente econômicas) poderiam ser fornecidas por outros meios. Além disso, se considerarmos principalmente os benefícios posicionais da ES – e assumimos que ela é necessariamente posicional em seus benefícios – então torna-se incoerente afirmar um direito universal (dado que todos não podem ter vantagem posicional sobre todos os outros). Os benefícios posicionais, de fato, dependem de um sistema restrito e desigual, e não mais se aplicariam em um sistema universal e horizontal. É importante, portanto, considerar não apenas os benefícios instrumentais e posicionais advindos do acesso à Educação Superior, mas também seu valor intrínseco e as experiências dos estudantes dentro do período de estudo. Como Kotzee e Martin (2013), este artigo considera que é o valor não-instrumental – a experiência de aprendizagem e o processo individual e coletivo de desenvolvimento intelectual – que constitui o direito das pessoas à Educação Superior. Embora não se trate do único meio de engajamento nessa forma de desenvolvimento intelectual, trata-se de mecanismo importante.

O valor intrínseco da Educação Superior pode ser entendido de maneiras diferentes. A aquisição de conhecimento em campos específicos pode ser vista como tendo valor intrínseco, levando a uma apreciação aprimorada de, por exemplo, provas matemáticas, arquitetura islâmica ou poesia do século XIV – uma apreciação possibilitada pelo estudo sustentado e aprofundado de um tipo que normalmente não é possível em outras formas de educação. Num sentido mais amplo, podemos vê-la como uma iniciação a uma forma de “cultura” no sentido humboldtiano de “a soma de todo conhecimento que é estudado, bem como o cultivo e desenvolvimento do caráter de alguém como resultado desse estudo” (READINGS, 1996, p. 15). Claramente, as universidades são guardiãs de apenas uma parte do que normalmente consideramos ser cultura, mas isso não as faz menos valiosas. Em termos de ampliação do acesso, esse aspecto assume especial importância, pois certos grupos da sociedade têm sido marginalizados historicamente por conta de sua participação restrita nessa provisão de cultura. Além disso, a investigação profunda e a reflexão crítica permitidas pelo estudo podem ser vistas como tendo valor intrínseco. Essa visão é apresentada por Nussbaum (1997, p. 30), baseando-se na ideia dos estoicos de que “o ensino superior é uma parte da autorrealização de cada ser humano”, devido ao seu papel no desenvolvimento da criticidade.

Há, naturalmente, uma série de outros benefícios instrumentais decorrentes do acesso à ES (ver BYNNER et al., 2003; McMACHON, 2009), entre os quais o desenvolvimento da consciência política e a capacidade de agir como um cidadão informado e ativo em uma sociedade democrática (AHIER; BECK; MOORE, 2003; ARTHUR; BOHLIN, 2005). Soma-se a isso o desfrute da experiência de estudo, o valor da interação com outros estudantes e professores, a possibilidade de fazer amizades e assim por diante.

A Educação Superior, portanto, tem características específicas que contribuem para fundamentá-la enquanto um direito, além das características compartilhadas com a educação em geral, discutida na seção anterior. Restam, no entanto, algumas objeções comuns à afirmação de um direito à ES, sendo que quatro delas serão abordadas nas seções a seguir. A primeira é se a Educação Superior – como uma atividade frequentemente intensiva em recursos e altamente especializada, e que historicamente tem sido restrito às elites – é de fato um privilégio e não um direito. A segunda é se é apropriado afirmar um direito universal à Educação Superior, uma vez que nem todas as pessoas podem ter a capacidade ou o desejo de estudar nesse nível. Terceiro, que o movimento em direção a um sistema universal de ES leva a uma degradação intolerável da qualidade; e quarto, que o direito é inviável dada a incapacidade dos Estados de financiar o acesso universal. As respostas fornecidas a estas questões serão, em parte, que as próprias questões se baseiam em mal-entendidos e ambiguidades na própria concepção de direito.

Um direito ou um privilégio?

“Educação: um direito, não um privilégio!” é um clamor que pode ser encontrado em cartazes de protestos estudantis pelo mundo, de Santiago do Chile e Bogotá a Londres. A ideia de educação como um direito tem tido apelo popular duradouro em todo o mundo, particularmente em contextos nos quais grandes proporções da população são sistematicamente excluídas da educação de qualidade adequada. A ideia de educação superior especificamente como um direito também teve apelo retórico significativo entre certos grupos, especialmente como uma resposta à introdução de cobranças em instituições públicas. Por outro lado, os defensores do "compartilhamento de custos" enfatizaram que o estudo universitário é extremamente caro, que beneficia poucos, mas é pago através de impostos gerais, e que traz vantagens particulares significativas. Neste último sentido, é certamente um privilégio para essas pessoas.

Argumentarei que ambas as perspectivas são válidas, mas que há um uso do termo "direito" que pode, até certo ponto, acomodar-se a ambos. Boa parte da oposição popular aos direitos humanos em geral é baseada na preocupação de que uma cultura de direitos encoraja as pessoas a pensar sobre o que elas podem "obter" ao invés do que elas podem "dar" à sociedade. Essa crítica é baseada em um entendimento equivocado da noção de direitos humanos, na medida em que aceitar que um direito pertence a todos os seres humanos implica extensa responsabilidade na manutenção desse direito para todos os outros. Embora a natureza cada vez mais individualista da sociedade e a falta de compromisso com o bem-estar dos outros possam ser preocupações válidas, essa tendência não é aquela que pode ser identificada com direitos.

Preocupações com uma cultura egoísta certamente podem ser observadas na esfera da Educação Superior. Brighouse (2009) e Brighouse e McAvoy (2009) fornecem um relato convincente da Educação Superior como um "privilégio", no sentido de que, em nossas sociedades contemporâneas desiguais, os grupos favorecidos têm acesso desproporcional a prestigiosos cursos universitários, que por sua vez podem oferecer mais vantagem posicional. A resposta a esta situação – na ausência de uma organização social radicalmente mais igualitária – é que as instituições e os estudantes que emergem delas devem contribuir muito mais para a sociedade e seus membros mais desfavorecidos.

A Educação Superior é, nesse sentido, um privilégio, e há boas razões para acreditar que muitos estudantes de origem privilegiada ao mesmo tempo que não nutrem gratidão pela oportunidade de cursar o estudo universitário, não prestam atenção suficiente à sua dívida com o restante da sociedade. Pode-se argumentar que essa despreocupação em relação à preciosa oportunidade para o estudo da Educação Superior é fruto do sentimento de que, de alguma forma, tal oportunidade caiu no colo das pessoas, no entanto há uma apreciação mais forte das oportunidades educacionais em países nos quais o direito foi conquistado através da luta na história recente.

Há, todavia, outro sentido de "privilégio" usado em relação à Educação Superior. A ideia de privilégio contestada pelos estudantes chilenos, por exemplo, é aquela que é controlada e conferida por quem está no poder, e que de maneiras particulares pode ser condicional. Desta forma, a Educação Superior tem sido historicamente um 'privilégio', no sentido de que ele só está disponível para segmentos específicos da sociedade (com base no gênero, classe social, grupo racial / étnico etc.), ou para um pequena elite intelectual (ou seja, uma pequena proporção daquelas pessoas com capacidade para estudos superiores). As elites têm interesse em manter o tamanho do sistema universitário restrito e, dado o papel proeminente das universidades como locais de crítica ao governo, também houve desincentivos para que os estados expandam o acesso às "massas", exceto na forma de instituições privadas que absorvem a demanda e oferecem treinamento profissionalizante de baixa qualidade. Claro que, neste sentido, estamos realmente falando sobre a Educação Superior ser "para o privilegiado ", ao invés de ser "um privilégio", mas é importante destacar este aspecto, já que muitas vezes é o significado atribuído ao termo em contraste com a ideia de direito.

A Educação Superior deve ser considerada um direito no sentido de que deve ser disponibilizada a todos, mas também deve ser considerado um privilégio, no sentido de que é uma oportunidade preciosa que deve ser aproveitada o mais completamente possível e depois usada para o benefício da sociedade. No entanto, sendo um direito, sua disponibilidade não pode estar condicionada a nenhum uso particular a que seja colocado posteriormente, ou mesmo a qualquer desempenho anterior (além da preparação adequada). Nós podemos muito querer que os estudantes continuem a contribuir para a sociedade depois de estudar, pagando sua dívida, por assim dizer, e nós podemos fazer o nosso melhor para encorajá-los a fazê-lo, mas eles devem ser livres para decidir por si mesmos como utilizar a oportunidade dada. No entanto, como dito acima, gozar do direito ao estudo na Educação Superior implica manter o direito de todos os outros membros da sociedade – e, de fato, dado que estamos falando de um direito humano – para todos os membros da comunidade humana.

Universidade para todos?

O segundo ponto diz respeito à proporção da população que deveria estudar na universidade. O governo New Labour no Reino Unido estabeleceu uma meta que previa a inclusão de 50% dos jovens entre 18 e 30 anos8. O caráter enganoso dessa imagem é mostrado quando é desagregada. Apesar do aumento nas taxas de jovens que vão para a universidade nos últimos anos, pouco mudou quanto a alta participação dos grupos socioeconômicos mais favorecidos e a baixa participação dos grupos desfavorecidos. As estatísticas do governo do Reino Unido (BIS, 2011) mostram uma melhora muito pequena na progressão de alunos que tiveram acesso a refeições escolares gratuitas (um indicador de vulnerabilidade social), com a diferença da participação desses estudantes e outros no conjunto das matrículas ainda em 18 pontos percentuais. Medidas baseadas na classe socioeconômica (BIS, 2009) também mostram apenas uma pequena melhora na diferença entre as classes 1 a 3 e 4 a 7 nos últimos anos (27,8% contra 13,7% de progressão para jovens de 18 anos). Esse fenômeno é evidente em todo o mundo, sendo que, em alguns casos, a proporção de estudantes de baixa renda caindo no contexto de expansão do sistema. Qualquer justificativa da meta de 50% com base no argumento de que metade da população pode ter o desejo e a capacidade de se beneficiar da Educação Superior é, portanto, claramente falsa (a menos que se considere que grupos socioeconômicos mais altos possuem, de forma inerente, uma maior aptidão aos estudos na Educação Superior). As vagas disponíveis na maioria dos países correspondem às necessidades percebidas pela economia nacional, em detrimento de qualquer noção de interesses de aprendizagem dos indivíduos.

Embora a maioria dos sistemas de ES restrinja injustamente o acesso dos estudantes, não é necessariamente o caso a admissão de um cenário ideal no qual todas as pessoas deveriam estudar na universidade. A ideia de que a ES não é conveniente para todas as pessoas poderia ser proposta como uma objeção a um direito universal. De fato, manter a Educação Superior como um direito é inteiramente consistente com o reconhecimento de que nem todas as pessoas vão querer ou vão se adequar para aproveitar a oportunidade. Os direitos são liberdades e não obrigações (embora impliquem em deveres para com os outros). É importante protegermos a liberdade de culto na sociedade, mesmo que apenas uma pequena minoria tenha qualquer crença religiosa. Uma proporção significativa da população – mesmo com a oportunidade de estudar gratuitamente na Educação Superior – pode decidir não aceitar, ou optar por outra forma de educação. Essa proporção seria maior em uma sociedade na qual diplomas universitários – independente da aprendizagem realmente adquirida – não fossem essenciais para a maioria das formas de emprego bem remunerado: como Trow (2006) aponta, em sistemas contemporâneos com acesso quase universal, para as classes alta e média se tornaram quase uma "obrigação".

Todavia o desejo individual de estudar não é o único fator que pode justificadamente restringir o acesso – há também a questão dos procedimentos de seleção adotados pelas instituições e pelo sistema como um todo. O reconhecimento da Educação Superior como um direito implica, principalmente, no fato de que ninguém deve ser injustamente impedido de ter acesso a ela. As barreiras mais óbvias são de natureza econômica, e se considerado um direito, o estudo universitário deveria ser gratuito ou a um custo tão baixo que não seria um obstáculo para qualquer segmento da sociedade. Um ponto associado relacionado às cobranças é que a oferta de maior qualidade não deve ter um preço mais alto – uma característica dos mercados na maioria dos produtos, e que está implícita nas reformas atuais no Reino Unido, e já vista em países como o Brasil, onde o processo de privatização é altamente desenvolvido (McCOWAN, 2004).

No entanto, algumas restrições à admissão por parte das instituições são justificadas. Um nível mínimo de preparação acadêmica é necessário para obter acesso significativo ao estudo disponibilizado pelas universidades, contudo este artigo não irá abordar a questão de quais requisitos específicos podem existir. Restrições ao acesso daqueles que têm este nível de preparação não são justificadas pela proteção dos padrões acadêmicos relativos à instituição, mas pelos interesses de cada estudante, que estariam, na melhor das hipóteses, perdendo seu tempo seguindo um caminho que ainda não seriam capazes de percorrer. Junto a isso, os estudantes devem ser capazes de retornar à Educação Superior numa fase posterior da vida, e ser apoiados na obtenção da preparação necessária. As formas de seleção adotadas devem ser referenciadas por critérios e não referenciadas por normas, no sentido de que o sistema universitário deve ser capaz de expandir (e contrair) em relação ao número de alunos que desejam estudar nesse nível e com o nível exigido de capacidade. Não há justificativa para um número fixo de vagas para os quais os alunos com melhor desempenho são selecionados.

Um direito universal à Educação Superior não requer, nem mesmo incentiva, que todas as pessoas frequentem a universidade. Pode ser que apenas uma pequena parte da população opte por isso. Além disso, um direito é consistente com os requisitos de entrada que garantam que os futuros alunos sejam capazes de se envolver significativamente com o curso em questão.

Massificação e qualidade

Uma questão relevante é relativa à preocupação com a qualidade no contexto da massificação ou universalização da Educação Superior. A questão do direito à educação envolve inevitavelmente a qualidade, uma vez que só podemos considerá-lo realizado se a qualidade for de um nível aceitável. Há pouco ganho em garantir o acesso de 100% da população a universidades com condições inadequadas para a aprendizagem.

As preocupações com a qualidade são, portanto, inteiramente legítimas, e não podem ser descartadas simplesmente por serem tomadas como elitismo ou como crença arraigada na inevitabilidade da perda de padrões quando a educação é estendida a todos. A história recente mostrou problemas substanciais de qualidade no contexto de uma rápida expansão do sistema universitário e na operação de procedimentos de admissão de livre acesso. Alguns países da Europa continental e da América Latina, por exemplo, implementaram sistemas de acesso que não são restritivos e são controlados apenas pela posse de um certificado de conclusão do ensino secundário. Ao permitir um número maior de matrículas, esses sistemas foram caracterizados por turmas excessivamente grandes e taxas muito altas de evasão. A Argentina, por exemplo, tem uma taxa de conclusão abaixo de 24% e a Itália de aproximadamente 45% (ALTBACH et al., 2009; COMISSÃO EUROPEIA, 2010).

A conhecida análise de Trow (1974; 2006) da mudança de um sistema educacional de elite para sistemas de massa e universais é de relevância aqui. Existem problemas que serão naturalmente enfrentados na transição do sistema de Educação Superior, assim como eles foram enfrentados na universalização da educação primária e secundária (e ainda estão sendo enfrentados na maioria dos países de baixa e média renda). Esses desafios resultam da taxa de crescimento, mudanças no tamanho absoluto dos sistemas e instituições e mudanças na proporção da faixa etária relevante matriculada (TROW, 1974). No entanto, é importante distinguir entre problemas de implementação e questões de princípio. O argumento apresentado neste artigo é o de que existe um direito de base moral à Educação Superior, e não de que não existam desafios em colocar essa visão em prática. Os problemas enfrentados em países como Argentina e Itália são os de expansão das matrículas e do tamanho das instituições sem alocação suficiente de recursos, e não, portanto, problemas inerentes à universalização da Educação Superior, tanto quanto nos níveis primário e secundário.

Questões semelhantes podem ser vistas em relação às instituições tomadas individualmente. A expansão rápida ou um sistema de livre acesso em uma única universidade pode levar, pelo menos a curto prazo, a uma perda de qualidade ou a perda de um ethos específico que a caracterizou. De fato, um direito universal à educação não significa necessariamente expansão de instituições existentes, mas apenas expansão de vagas em geral que podem envolver um grande número de pequenas instituições – se se admite que a manutenção de um tamanho pequeno pode garantir um nível mais alto de qualidade. O que está claro, no entanto, é que as pequenas instituições não podem restringir injustamente o acesso a uma parcela específica da população.

Limites sobre os recursos disponíveis

Uma objeção óbvia a uma afirmação do direito à educação é a falta de recursos. Parte do que pode corresponder a um direito à Educação Superior refere-se à não- interferência – ou seja, liberdade para buscar o desenvolvimento intelectual–, mas há também uma quantidade significativa de provisão que precisa ser feita pela sociedade. Claramente, a quantidade de tempo e recursos que indivíduos e grupos podem recorrer a outros na busca de seus interesses educacionais é finita e depende das condições particulares de uma sociedade em um determinado ponto no tempo. As decisões devem ser tomadas em relação ao tempo que se justifica para um indivíduo permanecer na Educação Superior e à distribuição de recursos entre ele e outras opções educacionais.

No entanto, não podemos vetar um direito moral à Educação Superior com base na insuficiência de recursos no momento presente. Em um sentido geral, como argumentado por Sen (2004), nossa deliberação sobre direitos não deve ser considerada apenas em relação ao que pode ser possível em um país em particular. O direito à segurança ou de estar livre da prisão arbitrária aplica-se igualmente a pessoas que vivem em países que atualmente não dispõem de recursos para apoiar uma força policial e um sistema legal adequado. Quando pensamos mais especificamente sobre a Educação Superior, o montante atual de gastos com estudantes seria realmente difícil de ser arcado pela maioria das sociedades para para garantí-lo a 100%, ou mesmo 50% da população. No entanto, como argumenta Bou-Habib (2010), não podemos assumir desde o início um limite máximo de gastos com a Educação Superior, até discutirmos as demandas das várias prioridades que os governos podem ter. Isso é particularmente verdade nos casos de países nos quais a "falta" de fundos públicos para expandir os sistemas de Educação Superior foi causada ou pelo menos exacerbada pela corrupção, má administração e sonegação de impostos. Além disso, pode haver uma variedade de formas de oferta de Educação Superior e nem todas consomem muitos recursos. Para citar alguns exemplos atuais, Cuba e Venezuela alcançaram 95% e 78% de taxas brutas de matrículas9 , respectivamente, com orçamentos moderados (UIS, 2011). Dito isto, é claro que sempre haverá alguns limites nos fundos disponíveis e – como é o caso com a efetivação de todos os Direitos Humanos – decisões devem ser tomadas na prática sobre onde empregar e como distribuir recursos.

Conclusão

Este artigo apresentou duas respostas ao problema colocado.

  1. A Educação Superior é um direito de todas as pessoas, desde que seja parte de uma série de experiências educacionais disponíveis para adultos.

  2. Os procedimentos de acesso não discriminatório são importantes, mas não adequados em si mesmos; todos aqueles que desejam estudar e que contem com um nível mínimo de preparação devem ter vagas à disposição.

Em relação ao primeiro ponto, reconhece-se que as reivindicações gerais de educação como direito são contestadas, dadas as dificuldades comuns a todos os direitos sociais na identificação do titular do dever, na determinação de quais formas de educação podem corresponder ao direito e se essas são universais ou específicas para um determinado contexto. No entanto, se defendermos um direito geral à educação, é arbitrário criar pontos de corte; o direito deve existir de alguma forma ao longo da vida. Não há nenhuma implicação em afirmar o direito de que todas ou mesmo a maioria das pessoas deve dedicar-se a ele, embora deva haver pontos de reentrada fáceis para que as pessoas possam optar por ingressar na Educação Superior em estágios posteriores da vida.

Este artigo considera que a Educação Superior, por direito, repousa no valor não instrumental do estudo universitário. De fato, como argumentado em McCowan (2010), embora a educação tenha valor instrumental e posicional, só é possível existir um direito à educação se houver algum valor intrínseco (caso contrário, os direitos seriam para os outros bens – por exemplo, meios de subsistência viáveis, participação política – sendo a educação apenas um meio de apoiá-los). A extraordinária vantagem posicional conferida por um diploma universitário é específica da nossa era contemporânea, e outros benefícios do estudo universitário lhes dizem respeito mesmo quando as sociedades desenvolvem outras formas de classificação e seleção. Este artigo enfocou a questão do acesso à Educação Superior para estudantes: além disso, é importante lembrar que existem outras formas de interesse público na universidade e até mesmo direitos possíveis relacionados, por exemplo, o acesso das comunidades locais aos serviços prestados ou o acesso da sociedade como um todo ao conhecimento desenvolvido pelas universidades.

As implicações desse argumento para as políticas são claras: os sistemas de ES como um todo precisam se expandir e, além disso, as instituições de elite devem aumentar o número de vagas que oferecem ou, se desejam manter seu tamanho pequeno por razões educacionais, devem democratizar substancialmente o acesso. Mensalidades – desde que não sejam pequenas taxas de matrícula – não devem ser cobradas. Como discutido anteriormente, a Educação Superior deve ser uma das várias opções de educação pós- escolar disponíveis para a população e que ocorre em instituições formais, mas também no local de trabalho, sindicatos, grupos religiosos, movimentos sociais, campanhas políticas, associações comunitárias e assim por diante. A preocupação de Lawson (1979) era que o estabelecimento de Educação Superior para todos poderia colocar um peso intolerável no currículo, forçando-o a se diversificar até o ponto em que não seria mais reconhecível. De fato, isso não é necessário se mantivermos a ideia de que a Educação Superior é apenas uma das várias opções de educação de adultos. Além disso, o direito não implica necessariamente o acesso a uma instituição correspondente à nossa 'universidade' atual: é apenas uma manifestação institucional da Educação Superior que é dominante em nosso tempo, ao passo que a investigação sustentada e profunda que caracteriza a Educação Superior pode ocorrer em outras formas de configuração.

Há também um elemento temporal para a pergunta: um jovem de 18 anos pode optar por não buscar a Educação Superior (ou não estar suficientemente preparado para realizar esse estudo), mas a opção deve permanecer para o ingresso em um estágio posterior da vida (de fato, houve um progresso considerável na facilitação da entrada de alunos mais velhos em muitos países nos últimos anos). Dadas as desigualdades nos níveis anteriores do sistema educacional, recursos substanciais devem ser alocados para permitir que as pessoas, depois de deixar a escola, obtenham a preparação necessária para ingressar na Educação Superior (além de abordar diretamente as desigualdades na Educação Básica). Além do acesso, garantir o direito à Educação Superior envolveria também uma série de outras considerações, como a permanência, a qualidade da experiência durante o estudo e transições subsequentes. De fato, uma medida adequada ao cumprimento do direito à Educação Superior envolveria algo como os quatro elementos descritos por Tomasevski (2006): isto é, disponibilidade (existência de vagas suficientes), acessibilidade (não discriminação no acesso), aceitabilidade (currículo relevante e respeitoso) e adaptabilidade (flexibilidade institucional de acordo com as necessidades do estudante).

Em relação ao segundo princípio acima, há um debate considerável sobre questões de justiça nos processos de admissão para as universidades. No entanto, esses debates foram baseados na situação atual de vagas limitadas em instituições específicas que caracterizam a ES em muitos países (embora não todos). O direito à Educação Superior exigiria que o sistema se expandisse e se contraísse em relação ao número de estudantes que desejam e podem estudar. Ao dizer que ela deve ser acessível a todos com base na capacidade, não deve existir uma competição na qual os alunos com melhor desempenho tenham acesso a um número limitado de vagas, mas que um nível mínimo de preparo constitua uma condição ao acesso. Os debates em andamento sobre políticas de ação afirmativa em vários países, portanto, tornam-se irrelevantes: o debate sobre meritocracia versus discriminação positiva se baseia em um número artificialmente restrito de vagas. Um sistema justo exigiria que houvesse vagas suficientes para todos os que têm o desejo e a capacidade de estudar na ES.

Mesmo com o acesso universalizado, permanecem questões sobre a diversidade de instituições e potenciais disparidades de prestígio entre elas que precisam ser abordadas. A atenção à não discriminação na DUDH precisa ser aplicada não apenas ao acesso ao sistema como um todo, mas às próprias instituições, o que significa que os candidatos não devem ser injustamente impedidos de acessar universidades e cursos de qualidade. Esse requisito não impediria a diversidade no sistema em termos de ethos, variedade de cursos e outros aspectos, mas implicaria em uma alta qualidade em todas as instituições – ou seja, a diferenciação seria horizontal e não vertical (BRENNAN; NAIDOO, 2008). Como afirma Brighouse (2009), esta tarefa é altamente desafiadora nas sociedades contemporâneas, dadas as desigualdades arraigadas decorrentes das experiências educacionais anteriores ao ingresso na universidade.

Os estudantes oriundos de famílias ricas em nossas sociedades desiguais atuais não têm o 'direito' ao ensino superior no sentido de obter benefícios econômicos adicionais às custas do contribuinte em geral, enquanto o acesso a estudantes de baixa renda é severamente restrito. No entanto, o engajamento em experiências educacionais significativas – das quais o ensino superior é um exemplo – pode de fato ser visto como um direito, que deve ser mantido universalmente.

2Artigo originalmente publicado em British Journal of Educational Studies (2012), 60(2), pp.111-128. Tradução: Claudia Regina Baukat Silveira Moreira (PPGE/UFPR e NuPE/UFPR).

3No original: “primary and secondary education”[N.T.]

4A faixa etária de corte, segundo o parâmetro internacional, é entre 18 e 24 anos [N.T.].

5No original: “elementary education” [N.T.].

6Na discussão sobre acesso, este artigo irá se referir, ao mesmo tempo, à “Educação Superior” e à “Universidade”, sem no entanto denotar uma distinção técnica específica entre os termos [N.A.].

7As citações de tratados internacionais reproduzem os respectivos textos em português ratificados pelo Brasil [N.T.].

8Os números relativos ao acesso à Educação Superior nem sempre são comparáveis entre os países, pois incluem uma gama de diferentes formas de estudo, e nem todos seriam considerados Educação Superior em todos os contextos [N.A.].

9A taxa líquida para cada coorte de idade seria menor [N.A.].

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Recebido: Novembro de 2019; Aceito: Dezembro de 2019; Publicado: Janeiro de 2020

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