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Jornal de Políticas Educacionais

versión On-line ISSN 1981-1969

J. Pol. Educ-s vol.14  Curitiba  2020  Epub 20-Abr-2022

https://doi.org/10.5380/jpe.v14i0.71719 

Resenhas

EDUCAÇÃO É A BASE?

Altair Alberto Fávero1 
http://orcid.org/0000-0002-9187-7283

Bufon Centenaro Junior2 
http://orcid.org/0000-0003-3046-3885

Antonio Pereira dos Santos3 
http://orcid.org/0000-0002-3530-6582

1Pós-Doutor (Bolsista Capes) pela Universidad Autónoma del Estado de México (UAEMéx), Doutor em Educação (UFRGS). Atua como professor e pesquisador no Curso de Filosofia, no Mestrado e Doutorado em Educação da Universidade de Passo Fundo (UPF). É coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Superior - GEPES/UPF, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Passo Fundo - RS/Brasil e ao Grupo Internacional de Estudos e Pesquisas sobre Educação Superior - GIEPES, ligado à Unicamp. Passo Fundo, RS. Brasil. E-mail: altairfavero@gmail.com

2Doutorando em Educação (UPF), Mestre em Educação (Bolsista CAPES) pelo Programa de Pós Graduação em Educação da Universidade de Passo Fundo (PPGEdu/UPF); Graduado em Filosofia (licenciatura) pela Universidade de Passo Fundo. Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Educação Superior (GEPES/UPF), ligado ao PPGEDU da Universidade de Passo Fundo e a Rede de Estudos sobre Educação Superior (REPES/Furg). Passo Fundo, RS. Brasil. E-mail: junior.centenaro@bol.com.br

3Graduado em Filosofia (Bacharelado) pelo Instituto Superior de Filosofia Berthier - IFIBE (2016). Coordenador de Pastoral Escolar na Rede La Lasse em Caxias do Sul. Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Superior (GEPES-UPF/RS), no qual participa dos projetos de pesquisa "Políticas para Docência Universitária" e "Políticas para o Ensino de Filosofia". É também integrante no Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Educação Superior (GEPES/UPF) vinculado ao PPGEdu/UPF. Passo Fundo, RS. Brasil. E-mail: antoniops1993@gmail.com

Educação é a base?, 23 educadores discutem a BNCC.. CÁSSIO, F.; CATELLI JR., R.. São Paulo: Ação Educativa, 2019. 320pp.


A coletânea em tela, organizada por Fernando Cássio e Roberto Catelli Jr., propõe construir uma visão crítica sobre a BNCC e refletir sobre os avanços e retrocessos que ela pode representar. Uma das motivações da produção da coletânea é questionar os agentes responsáveis pela construção da política curricular, que, em sua fase final, não contou com participação social no processo de elaboração. Outra motivação é discutir os limites da imposição de um currículo comum em um país tão diverso como o Brasil. Dessa forma, a obra visa ampliar o debate por meio de reflexões especializadas sobre diferentes aspectos da Base. Dividida em três partes, apresenta, na Parte I, “A BNCC como política educacional”; na Parte II, “A BNCC na sala de aula”; e, por fim, na terceira parte, as “Ausências na BNCC”.

O primeiro ensaio, intitulado “Existe vida fora da BNCC?”, de autoria de Fernando Cássio, analisa a BNCC como uma política de centralização curricular, alicerçada nas avaliações em larga escala e balizadora dos programas governamentais de distribuição de livros didáticos. O texto apresenta dados da participação das fundações empresariais na formulação da política curricular, além da defesa que essas fundações fazem da proposta em nível nacional, por meio de eventos e assessorias pedagógicas, ou mesmo de artigos na internet, jornais e revistas. Cássio afirma que a versão final da BNCC não possui vínculo com as versões anteriores, que foram amplamente debatidas e discutidas com participação popular. A terceira versão adotou como fio condutor a pedagogia das competências, defendidas pelos integrantes do Ministério da Educação entre 2016 e 2018. Por fim, o autor ressalta que o deslocamento da linguagem da educação para uma linguagem da aprendizagem não é, evidentemente, fruto de uma simples escolha de palavras. É, acima de tudo, um deslocamento político de um projeto coletivo de educação transformado em um projeto individual (aprendizagem mensurável nas avaliações).

Gilberto Alvarez assina o segundo ensaio, intitulado “Capítulos do desmonte do ensino”. Na análise do autor, a proposta original de uma base comum sugeria princípios democratizantes interessados em garantir isonomia curricular a todas as escolas, independentemente das desigualdades regionais, mas, no decorrer do processo, esses princípios democratizantes foram sendo substituídos por uma concepção gerencial de escola apoiada no controle de processos via produção de materiais didáticos. A formulação da BNCC deixou-se impregnar da opinião dos setores empresariais, que, com superficialidade, defendem que o problema da educação brasileira é de fundamento gerencial. Nesse sentido, o desmonte apontado por Alvares é eminente, pois os diversos problemas relacionados à educação não serão abordados devidamente enquanto o paradigma vigente for o da eficácia empresarial.

O terceiro ensaio, “BNCC e o avanço neoliberal nos discursos sobre educação”, é de autoria de Bárbara Lopes. A autora destaca que os rumos da educação na atualidade estão permeados por intensas disputas e tensões entre lutas históricas de professoras e professores pela valorização da profissão, bem como por manifestações de estudantes, por ações de incidência de fundações empresariais, pelo trabalho de pesquisadores nas universidades e pela atuação de grupos conservadores que formam um ecossistema complexo de alianças, tensões e conflitos. A tese do ensaio é a de que o discurso neoliberal da BNCC e da reforma do ensino médio busca “apaziguar” e oferecer uma solução para os problemas da educação. Por trás dos supostos consensos dessas reformas está um discurso que descaracteriza o ensino médio como uma etapa fadada ao fracasso, sem considerar os avanços obtidos nessa etapa nos últimos anos; está velado um discurso conservador que visa eliminar as discussões sobre gênero e desigualdade social; e apresenta uma fantasiosa “liberdade de escolha”, quando, na verdade, se está limitando o acesso ao conhecimento em razão dos itinerários formativos.

Denise Carreira assina o ensaio “Gênero na BNCC: dos ataques fundamentalistas à resistência política”. O texto sintetiza, a partir de uma ampla fundamentação, que a BNCC constituiu mais um capítulo da desconstrução da agenda de promoção da igualdade de gênero nas políticas educacionais brasileiras. Carreira apresenta como a questão de gênero foi tratada ao longo da BNCC e quais os antecedentes da interdição a essa abordagem no documento. Para a autora, é preciso compreender que “gênero” diz respeito a “vida de todo o ser humano” e é uma questão complexa que precisa ser discutida e analisada para além dos reducionismos impostos por grupos conservadores como o Escola sem Partido e por grupos religiosos que de forma equivocada estereotiparam a abordagem de gênero como “ideologia de gênero”. Existem marcos legais que sustentam que a abordagem de gênero seja mantida e aprofundada nas escolas do país, como o “direito à educação para igualdade de gênero e sexualidade” na Constituição de 1988, na LDB 1996 e nas Diretrizes Curriculares do Ensino Médio. Por esses marcos legais, ninguém pode proibir o debate sobre gênero nas escolas, e a BNCC abre inúmeras brechas para um trabalho de resistências nas escolas e na gestão educacional à desconstrução da agenda de gênero e sexualidade nas políticas educacionais brasileiras. Por fim, o ensaio destaca a importância de defender a educação em gênero, raça e sexualidade como direito humano, contra os fundamentalismos e desigualdades.

O último ensaio da primeira parte é de autoria do cientista político Daniel Cara e está intitulado como “O que Paulo Freire e Anísio Teixeira diriam sobre a BNCC?”. Inicialmente, o autor pontua que a última versão da Base não representa uma sequência das versões elaboradas no governo Dilma, ou seja, o currículo homologado no Palácio do Planalto entre 2017 e 2018 expressa a visão de educação do governo Michel Temer. Esse governo é fruto de uma aliança entre “ultraliberais e ultraconservadores” e, dessa articulação, muitos elementos incidiram sobre a versão final da BNCC. Dentre esses elementos está uma Base condizente com a austeridade econômica e propícia para que os ultraconservadores chamem-na de sua, dado que o comitê gestor da BNCC acolheu o pedido de grupos religiosos para suprimir as questões de identidade de gênero e orientação sexual, o que representa um retrocesso no combate às formas de discriminação, asseguradas na própria Constituição Federal. O autor afirma que Anísio Teixeira diria que a base curricular de Temer contradiz uma experiência significativa e democrática, orientada a educar ao invés de simplesmente instruir; Paulo Freire diria que a BNCC é a própria expressão da educação bancária, aquela que pressupõe que o aluno nada sabe e que o professor transmite o conhecimento, como se essa transmissão fosse possível em termos práticos. Por fim, o autor indica o legado desses dois expoentes do pensamento pedagógico brasileiro como fundamentais para compreender o retrocesso que a BNCC representa para a educação pública.

A segunda parte da coletânea está intitulada “A BNCC na sala de aula” e é composta por treze ensaios. O primeiro deles é de autoria de Bianca Correa e tem como título “À Base de um Golpe, a BNCC foi aprovada: implicações para a Educação Infantil”. Para a autora, se no início do debate sobre a formulação da BNCC – especialmente por parte dos responsáveis pela EI no MEC – havia a preocupação legítima em garantir ou ampliar a efetivação de direitos, e o que se fez a partir do golpe de 2016 foi aprofundar o alinhamento com interesses diferentes daqueles que, em 1988, com a Constituição Federal, foram inscritos a muito custo como direito de todos. Correa evidencia que a proposta original da BNCCEI foi alterada de modo significativo na versão aprovada de 2017. Entre as mudanças ocorridas, chama atenção o fato de que, na versão aprovada, diferentemente da segunda, não há a menção a professoras e professores, mas a educadores, definindo-se como uma de suas funções, entre outras, a de monitorar o conjunto das práticas e interações. Dessa forma, entende-se que o documento não explicita a necessidade de que seja um professor ou professora ou mesmo que seja um professor a/o profissional a atuar com as crianças. Reforça-se uma prática que vem se disseminando em municípios brasileiros ao arrepio da LDB. A autora finaliza destacando que há contratação de educadores, monitores, pajens e correlatos que, embora atuem como docentes e possuam salários inferiores, são excluídos dos planos de carreira e submetidos a jornadas maiores.

O segundo ensaio tem como título “Alfabetização, PNE e BNCC” e é de autoria de Márcia Aparecida Jacomini, Natália Francisca Cardia e de Paula Mangolin de Barros. As autoras refletem sobre o Movimento Todos Pela Educação (MTPE), criado por empresários em 2005 e responsável pelo projeto Compromisso Todos Pela Educação, que, dentre suas cinco metas, tem a de toda criança plenamente alfabetizada até os 8 anos. Embalado num discurso sobre o direito dos educandos à aprendizagem, o MTPE tem uma prática que mira o controle externo da atividade docente, a retirada da produção intelectual do professor, o rebaixamento dos Projetos Pedagógicos à repetição de matrizes de avaliação externas e o desrespeito às necessidades de cada criança e ao seu tempo de aprender. Nessa perspectiva, o conceito de alfabetização presente na BNCC “reduz os objetivos ressaltados no PNE 2014-2024 de empreender forças para a alfabetização plena, enquanto fonte de ampliação do repertório de informações e reflexões do sujeito. O modelo de alfabetização do MTPE – e por sua vez, hegemônico na BNCC – reduz no sujeito a consciência de seus direitos e deveres impossibilitando desse modo que ele exerça sua cidadania com atuação ativa no movimento de transformação das condições sociais e de sua própria condição.

O terceiro ensaio, escrito por Antônio José Lopes Bigode, intitulado “Base, que Base? O caso da Matemática”, discute como a Matemática é apresentada na BNCC. A crítica feita por Lopes é de que o documento não consegue esconder sua orientação ideológica expressa numa visão que reduz a Matemática a uma coleção estanque de itens que não passam de descritores de avaliação, agora rebatizados de habilidades. Enfatiza que o processo de construção da Base foi sem transparência e que a percepção que se tem é que a democracia do processo de construção foi intencionalmente desprezada. Dessa forma, a BNCC de Matemática não passou de um arremedo das bases australianas e norte- americanas, não apenas pelo modelo de códigos que engessa conteúdos por ano, mas também pelo conteúdo em si. A Base não apresenta de forma explícita as tendências da Educação Matemática, tais como o enfoque histórico, cultural, comunicacional e lúdico, e o mesmo ocorre com as novas tecnologias, que, quando presentes, são marginais e alegóricas. Por último, o autor sintetiza, dizendo que o foco da Base está no ensino e não na aprendizagem, cujas características principais são a prescrição fragmentada de tópicos, o engessamento e a pasteurização dos sistemas de ensino.

O quarto ensaio intitulado “Língua Inglesa na BNCC” é de Fabiana de Lacerda Vilaço e de Gabriela Claudino Grande. As autoras criticam o suposto caráter democrático na elaboração da BNCC e atribuem isso ao fato de terem sido desconsideradas muitas diferenças econômicas, culturais e regionais. O impacto dessa construção que não levou em conta as diferenças regionais é visto na seção da BNCC dedicada ao ensino de Língua Estrangeira Moderna (LEM). A primeira questão avaliada pelas autoras é: Por que Língua Inglesa? Diante disso, a BNCC apresenta um grande retrocesso, pois não deixa espaço para outra opção se não o ensino de inglês como língua estrangeira exclusiva no Ensino Fundamental no Brasil. Em seguida, são analisados os dados para o componente das contribuições recebidas na consulta pública da BNCC, e, por último, as autoras comentam sobre a parte final da BNCC de Língua Inglesa para o ensino fundamental, que define as habilidades do componente. Em síntese, a BNCC aparece como uma imposição feita por agentes que querem apenas bons usuários de língua estrangeira no Brasil e seu objetivo principal é atender às demandas do mercado de trabalho.

O quinto ensaio, “BNCC de Educação Física: caminhando para trás”, é de autoria de Marcos Garcia Neira. O autor submete a BNCC de Educação Física ao confronto com a teorização curricular e denuncia o retrocesso que ela representa. Ao abordar de forma precisa as habilidades previstas, a BNCC de Educação Física no Ensino Fundamental retrocede pedagogicamente ao se aproximar da proposta de Bloom inspirada na racionalidade tyleriana. Tal racionalidade adota a terminologia “dimensões do conhecimento” para orientar a redação das aprendizagens essenciais e estruturar a progressão tão desejada pelo MEC. Neira também ressalta que a opção anacrônica por um currículo baseado em competências e habilidades prescritas reduz em demasia as possibilidades pedagógicas do professor e formativas dos estudantes. Por último, conclui que a BNCC sugere ao professor a direção oposta daquela que vem sendo tomada pela Educação Física contemporânea. A ausência de criticidade é alarmante. O currículo apresentado volta-se para a conformação e a aceitação de um desenho social injusto.

A temática “BNCC e a História na Educação Básica: um pouco mais do mesmo” é abordada por Roberto Catelli Jr. O autor ressalta que a reforma do ensino médio (lei n.13.415/2017) definiu de uma vez que as disciplinas da área de Ciências Humanas têm um lugar de segunda classe no currículo, deixando de ser obrigatórias em parte significativa do curso. Assim, se confirma na publicação da BNCC para o ensino médio, na qual a Língua Portuguesa e a Matemática ganham mais centralidade. O autor destaca que “as unidades temáticas” são apenas uma roupagem que tenta atribuir um título para um agrupamento de eventos históricos organizados cronologicamente e não associados por sua conexão temática. Com isso, Catelli ressalta o fato de que se perdeu a oportunidade de renovar o ensino de História e pondera que a carga horária estabelecida na maioria das escolas públicas brasileiras para a disciplina parece insuficiente para dar conta do que está proposto na BNCC.

O sétimo ensaio, de autoria de Eduardo Donizeti Girotto, aborda o tema “Da Geografia da BNCC às geografias das escolas: tensões e resistências”. Girotto aponta que estamos diante de uma Base que pouco reconhece a complexidade da geografia da escola pública brasileira e dos seus sujeitos. Nesse texto, parte do pressuposto de que a Geografia expressa na BNCC oculta as Geografias desiguais da escola pública brasileira e de que no documento apresentado há um esvaziamento da relação de geografia enquanto condição de existência dos fenômenos e como conhecimento disciplinar sistematizado. O autor descreve que a BNCC apresenta uma Geografia que hegemoniza a visão ocidental de mundo, ocultando as outras geografias produzidas e ressignificadas a partir do debate descolonial.

Débora Cristina Goulart escreve o ensaio “A Sociologia da BNCC: nem estudos, nem práticas”, no qual analisa a obliteração da sociologia escolar, como forma de anulação da sociologia científica, a relação entre currículo, escola e a crise atual do capitalismo, bem como sua dinâmica em países periféricos como o Brasil. A autora propõe pensar o lugar da sociologia na BNCC partir de dois pontos de vista: o primeiro é a própria existência da Base e sua rápida construção; e o segundo em vínculo mais específico com os debates do campo do ensino de Sociologia. Descreve que a reforma do Ensino Médio representou para Sociologia e a Filosofia o retorno à condição de dispersão, uma vez que aparecem obrigatórias, mas na forma de “estudos e práticas”, juntamente de Artes e Educação Física. Dessa forma, conclui que todos os esforços recentes do campo do ensino da Sociologia – o fortalecimento das licenciaturas, o investimento da área no Pibid Ciências Sociais, a insistência de professores e professoras em construir nas escolas a comunidade de uma disciplina específica, dentre outras iniciativas – não foram observados na BNCC, que se nega a dialogar com todo esse campo ativo e criativo.

O nono ensaio, intitulado “Filosofia de Base: o ensino filosófico em um Currículo Fragmentado”, é escrito por Silvio Carneiro. Nesse texto, é apresentado o retrocesso da proposta do MEC que está na visão curricular que é imposta. No caso da Filosofia, seus conteúdos serão aprofundados em área denominada Ciências Humanas e Sociais Aplicadas. Carneiro discorre sobre os efeitos dessa proposta na Filosofia, primeiramente, porque restringe os conteúdos filosóficos às ciências humanas, quando esse é um saber que interage com as diversas frentes do conhecimento. Em segundo lugar, a reforma reduz a Filosofia a um modelo de ciências aplicadas, limitando assim o exercício de pensamento a um único modelo, ao passo que contraria absolutamente todos os documentos que defendem o retorno da Filosofia ao EM. O texto continua fazendo uma retomada do contexto do ensino de Filosofia no Brasil e, ao final, aborda a temática sobre a Filosofia e o currículo, evidenciando uma experiência filosófica que atravessa a fantasmagoria curricular, fragmentação que se apresenta como novidade.

Patrícia Sessa aborda a temática da BNCC relacionada ao ensino de ciências no contexto da sala de aula, com o objetivo de “contribuir para as discussões que precisam acontecer nas redes de ensino e nas escolas, identificando elementos para a prática docente no cotidiano das aulas de Ciências, organizando ideias para a construção de currículos e propostas pedagógicas. A autora destaca no ensaio a importância do desenvolvimento do letramento científico como princípio nuclear de uma educação científica, bem como a ideia de que aprender Ciências não é finalidade última da educação científica, mas meio para que os estudantes tenham um novo olhar sobre o mundo que os cerca. Para isso, é necessário planejar e executar atividades escolares que agreguem não apenas as diretrizes para o ensino de ciências, mas, sobretudo, estar atentos aos princípios propostos nas competências gerais indicadas pela BNCC. Assim, é possível dizer, nas palavras de Sessa, que sua implantação ocorrerá progressivamente em nossas salas de aulas a medida em que nos concentraremos em três campos principais: a formação de professores, os materiais didáticos e o currículo.

Fernando Cássio e Ronaldo Spinelli Jr. assinam o ensaio intitulado “O encontro entre a BNCC e os professores de Química, ou centralização curricular e a falácia do professor malformado”. Os pesquisadores objetivam desfazer alguns equívocos e investigar se os dados gerados na consulta pública da BNCC realmente permitem fazer afirmações generalizadoras sobre a má formação dos professores no Brasil. Os autores ressaltam que o diagnóstico, muitas vezes correto, de que a Química ensinada nas escolas é ultrapassada não pode ser utilizado para defender a supressão desse componente nas escolas de ensino médio brasileiro. Seria como prescrever uma cirurgia de amputação para tratar a dor na perna. Não há dúvidas de que a formação docente no Brasil é um problema real, mas isso não pode ser simplificado como sendo o escoadouro de todos os problemas da educação. Por fim, os autores denunciam que a Base não fará nada diferente do que as atuais políticas de centralização curricular e as avaliações de larga escala já fazem: engessar práticas pedagógicas e ferir diuturnamente a autonomia profissional dos professores.

No ensaio “Por um ensino de física que promova um conhecimento científico escolar menos desigual e mais complexo”, as professoras Giselle Watanabe e Graciela Watanabe discutem alguns aspectos que podem levar a uma formação científica escolar capaz de dar espaço para reflexões mais complexas, abertas e críticas. Para tanto, na avaliação das autoras, a escola deveria ir além de ser um espaço da mera aquisição de conceitos para se tornar um espaço de abertura para outros conhecimentos que possibilitam “saber” e “saber para o que se sabe”. As autoras defendem no ensaio que estudar Física no contexto da formação na Educação Básica implica não somente compreender aspectos estritamente conceituais e da cultura local, mas também a sua interação com o mundo social, a historicidade do grupo a que pertence e a reflexão sobre ciência como fator importante para a luta por uma sociedade mais igualitária. Pensar o ensino nessa perspectiva possibilita aos estudantes darem-se conta de que a desigualdade social gera impactos na própria ciência e permite o desvelamento dos problemas que nos cercam, possibilitando uma tomada de consciência acerca dos diferentes atores que participam desse processo. Além disso, permite que se reconheça o saber escolar da Física como um instrumento potente de argumentos e de defesa das causas sociais e democráticas.

“Inconstitucionalidade, ilegalidade e retrocesso na previsão do Ensino Religioso na BNCC” é o título do ensaio assinado por Salomão Ximenes. Para o autor, a incorporação do conteúdo do ER nas escolas públicas do Ensino Fundamental, longe de representar uma demanda autêntica do campo educacional, é resultado de uma imposição ideológica sobre a escola pública, uma medida de força do campo religioso cristão e de sua visão singular sobre a natureza e os objetivos da educação escolar. No decorrer do ensaio, analisa os diversos movimentos ocorridos desde a Constituição de 1998 até chegar a forma como a BNCC induziu os sistemas de ensino a transformarem o ER, de forma ilegal e abusiva, numa disciplina institucionalizada no conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais da educação. Ximenes ressalta que a base do discurso de legitimação do ER nas escolas está ancorada em dois mitos: 1) a maioria das religiões defende a presença do ER nas escolas públicas; 2) o ER seria necessário para a disseminação da tolerância, do respeito e da liberdade religiosa, da convivência pacífica entre as diferentes manifestações religiosas ou não religiosas. Ambos os mitos são indicativos de que a BNCC promoveu um retrocesso ao que havia sido aprovado na conferência Nacional de Educação (Conae) de 2014, que incluiu em seu documento final a substituição da disciplina de ER por uma disciplina laica de Ética e Cidadania. Ximenes também critica o monopólio do Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso (Fonaper) na produção da BNCC, uma vez que os quatro especialistas do ER nomeados em 2015 eram integrantes desse Fórum. Nas considerações finais, o ensaio ressalta que a BNCC vai na contramão dos esforços de um projeto educacional laico nas escolas públicas e também de milhares de sistemas e redes municipais e estaduais de educação, pois, valendo-se de diversas estratégias, explícitas e dissimuladas, busca esvaziar o sentido facultativo constitucional e realizar sua crença religiosa sobre a necessidade do ER para a formação do cidadão.

A terceira parte da coletânea é dedicada a indicar as “ausências da BNCC” e é composta por dois ensaios. No primeiro, “Qual o lugar da educação especial na BNCC?”, Claudia Regina Vieria critica a BNCC, mostrando que há uma confusão de conceitos ao alimentar a ideia de deficientes sob a lógica da falta, tratando educação especial como sinônimo de educação inclusiva a atirando às escolas, e principalmente aos professores, a responsabilidade do “tal” projeto inclusivo.

O segundo, “O não-lugar da Educação de Jovens e Adultos na BNCC”, assinado por Roberto Catelli Jr., denuncia a ausência de qualquer formulação referente à EJA nas três versões da BNCC e questiona: como se espera sanar essa grande dívida social sem que se estabeleça uma política pública para a modalidade? Catelli Jr. ressalta também que não é possível avançar na Educação de Jovens e Adultos sem que se avance na construção de um currículo identificado com a diversidade de sujeitos demandantes da modalidade. Por fim, ressalta que é necessário que educadores dessa modalidade se mobilizem e tomem posição para construir uma Educação de Jovens e Adultos que esteja a serviço do desenvolvimento de jovens e adultos com aspirações diversas, a fim de confrontar o descaso com uma fatia enorme da população que, historicamente, vem tendo cerceado o seu direito à educação em algum momento da vida.

A BNCC constitui-se num documento que produzirá mudanças no atual cenário da educação brasileira e que irá interferir nos rumos da organização curricular da educação básica, bem como na definição das políticas públicas para os próximos anos. Assim uma leitura atenta dos distintos ensaios que compõem a coletânea “A educação é a base?” não só coloca os professores da educação básica em contato com argumentos qualificados para construir uma visão crítica sobre o referido documento, como possibilita que eles tenham um referencial teórico para refletir sobre os avanços e os retrocessos que tal documento representa na produção do currículo escolar. As reflexões e análises contidas nos distintos ensaios dos 23 educadores que discutem a BNCC darão amparo a um suporte teórico para posições mais efetivas e conscientes na construção de uma educação de qualidade.

A coletânea “Educação é a base”? aqui resenhada apresenta um amplo e consistente arsenal de argumentos qualificados para construir uma visão crítica sobre a BNCC, assim como para refletir sobre os avanços e os retrocessos que esse importante documento pode representar. Sem dúvida, a BNCC representa uma indução de currículo e sua reprodução no contexto escolar vai além da mera aplicação de um referencial curricular oficial nas salas de aula. Não seria possível construir uma educação democrática, como tantas vezes expressou nosso patrono da educação Paulo Freire, sem passar pelo processo indagação, questionamento, inquietude. A obra “Educação é a base?” certamente traz contribuições importantes nessa direção.

Recebido: Fevereiro de 2020; Aceito: Março de 2020; Publicado: Abril de 2020

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