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Jornal de Políticas Educacionais

versão On-line ISSN 1981-1969

J. Pol. Educ-s vol.15  Curitiba  2021  Epub 03-Set-2021

https://doi.org/10.5380/jpe.v15i0.78619 

Artigos

Entre deslocamentos e sedimentações: trajetória de institucionalização do Programa Nacional de Alimentação Escolar

Among displacements and sedimentations: institutionalization path of the National School Food Program

Entre desplazamientos y sedimentaciones: camino de institucionalización del Programa Nacional de Alimentación Escolar

1Doutor em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento pela UFRJ. Atua no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada -IPEA. Brasilia, DF. Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-8836-0128. E-mail: sandroecbr@yahoo.com.br


Resumo

O objetivo deste estudo foi analisar as dinâmicas políticas que desencadearam mudanças fundamentais na trajetória institucional da política de alimentação escolar no Brasil, bem como diferenciar as fases que o programa assumiu em sua história e os processos de mudança ocorridos entre elas. Nesse sentido, o esforço dispendido visou identificar os principais determinantes (políticos e econômicos) da institucionalização (processo de formação dos padrões normativos) do PNAE, ressaltando suas especificidades conjunturais quanto aos padrões de intervenção assumidos, sobretudo no tocante às estratégias de financiamento, coordenação interfederativa e definição de fornecedores. Foram identificadas quatro fases marcantes desde os anos 1950, quando o tema adentrou pela primeira vez a agenda federal. As mudanças institucionais ocorridas seguiram uma trajetória incremental, associada a fatores endógenos e exógenos que incidiram sobre sua dinâmica regulatória. O aporte teórico do institucionalismo histórico possibilitou um refinamento do enquadramento analítico dos processos de mudança entre cada uma das fases indicadas.

Palavras-chave: políticas públicas; alimentação escolar; segurança alimentar; institucionalismo histórico; mudança institucional

Abstract

The objective of this study was to analyze the political dynamics that triggered fundamental changes in the institutional path of school feeding policy in Brazil, as well as to differentiate the phases that the program has assumed in its history and the processes of change that have occurred among them. In this sense, the effort spent aimed at identifying the main determinants (political and economic) of the institutionalization (process of formation of normative standards) of the PNAE, emphasizing its conjunctural specificities regarding the assumed intervention patterns, especially regarding financing strategies, interfederative coordination and definition of suppliers. Four remarkable phases have been identified since the 1950s, when the subject first entered the federal agenda. The institutional changes that occurred followed an incremental path, associated with endogenous and exogenous factors that focused on its regulatory dynamics. The theoretical contribution of historical institutionalism allowed a refinement of the analytical framework of the processes of change between each of the indicated phases.

Keywords: public policies; school feeding; food safety; historical institutionalism; institutional change

Resumen

El objetivo de este estudio fue analizar la dinámica política que desencadenó cambios fundamentales en la trayectoria institucional de la política de alimentación escolar en Brasil, así como diferenciar las fases que el programa ha asumido en su historia y los procesos de cambio que se han producido entre ellos. En este sentido, el esfuerzo realizado tuvo como objetivo identificar los principales determinantes de la institucionalización (proceso de formación de estándares normativos) del PNAE, enfatizando sus especificidades coyunturales con respecto a los patrones de intervención asumidos, especialmente con respecto a las estrategias de financiamiento, la coordinación interfederativa y definición de proveedores. Se han identificado cuatro fases desde la década de 1950, cuando el tema entró en la agenda federal. Los cambios institucionales que tuvieron lugar siguieron una trayectoria incremental, asociada con factores endógenos y exógenos que afectaron su dinámica reguladora. El apoyo teórico del institucionalismo histórico permitió un refinamiento del marco analítico de los procesos de cambio entre cada una de las fases indicadas.

Palabras clave: políticas públicas; alimentación escolar; seguridad alimenticia; institucionalismo histórico; cambio institucional

1 Introdução

O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) é uma das políticas nutricionais mais antigas do Brasil. Sua capilaridade territorial (presente em todos os municípios) e magnitude (atende diariamente mais de 40 milhões de estudantes) permitem referi-lo também como um dos maiores programas de alimentação do mundo. Tal dimensão exige do Estado considerável conjunto de capacidades instrumentais (recursos orçamentários, humanos e tecnológicos) para garantir sua efetivação em todas as unidades federativas, o que o torna um campo de disputas entre distintos interesses públicos e privados em mais de 60 anos de inserção do tema na agenda governamental. Contudo, há uma carência de estudos que se aprofundem na determinação dessa trajetória e na caracterização das reformas em torno do seu aparato regulatório para além do mero encadeamento dos acontecimentos que marcaram sua evolução.

Este estudo surge como uma tentativa de apresentar novos aportes analíticos para compreender a complexa dinâmica institucional que envolveu o PNAE em sua história. O objetivo foi analisar as dinâmicas políticas que desencadearam mudanças fundamentais na estrutura regulatória, bem como diferenciar as fases assumidas e os padrões de ocorrência entre elas. Nesse sentido, o esforço dispendido visou identificar os principais determinantes da institucionalização do PNAE, ressaltando suas especificidades conjunturais quanto aos padrões normativos assumidos, sobretudo no tocante ao financiamento, coordenação interfederativa e definição de fornecedores.

Para tanto, optou-se pela abordagem do institucionalismo histórico (HALL; TAYLOR, 2003), com destaque para o modelo de mudança institucional desenvolvido por Mahoney e Thelen (2010), conforme apresentado na seção 2. Na dimensão empírica foram consultadas informações de diversas fontes bibliográficas e documentais, bem como bancos de dados do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), além de revisão da legislação, que permitiram a caracterização de quatro fases marcantes na evolução do programa, discutidas na seção 3. Na seção 4 há uma síntese do enquadramento analítico dos processos de mudança institucional do PNAE. Por fim, seguem algumas considerações conclusivas.

2 Instituições e mudança institucional

As instituições são definidas, em termos gerais, como regras que condicionam o comportamento dos atores sociais, restringindo suas opções de escolha por meio de mecanismos distintos de estímulos e coerção (North, 1990; Hodgson, 2006). Elas se tornam estáveis à medida que estruturam o comportamento coletivo e propiciam maior grau de previsibilidade da ação humana, estabelecendo contornos dentro dos quais as decisões são tomadas.

Um conceito importante para explicar a tendência à estabilidade das instituições é o de “dependência da trajetória” (path dependence), que representa o caráter inercial das instituições por meio de mecanismos pelos quais elas tendem a se enraizar na vida social e nas práticas econômicas e políticas em particular, de modo que as escolhas futuras são fortemente influenciadas pelas escolhas do passado. Dois desses mecanismos explicam como as instituições se valem de efeitos “auto-reforçantes”: lock in, associado à maneira como determinadas regras são “alocadas” às práticas sociais a ponto de gerar uma série de rotinas que inibem sua alteração; e feedback, que representa processos de realimentação causal resultantes do comportamento dos agentes enquadrados em determinado arranjo institucional (PIERSON, 2015). Um terceiro elemento refere-se à “complementaridade institucional” (HALL; SOSKICE, 2001), pelo qual duas instituições podem ser complementares quando a atividade de uma aumenta a eficiência ou as possibilidades para o surgimento e manutenção de outra. A combinação desses efeitos induz o estabelecimento de compromissos específicos, ampliando os custos associados à adoção de alternativas (MENICUCCI, 2010).

Mas se as instituições são dotadas da presunção de durabilidade e compartilhamento, por que elas são susceptíveis a mudanças?

De acordo com Mahoney e Thelen (2010), as instituições são formadas em contextos carregados de tensões devido às inevitáveis consequências distributivas que elas acarretam, pois os resultados dificilmente expressam todos os interesses envolvidos. Qualquer conjunto de regras que busque padronizar a ação de indivíduos e organizações terá implicações desiguais para a alocação de recursos. Por isso, os atores são normalmente motivados a perseguir arquétipos alternativos que melhor reflitam suas motivações.

Essa possibilidade de conflito abre espaço para coalizões e acordos ambíguos que se formam e se rompem com o tempo, fazendo com que os arranjos institucionais não sejam envolvidos apenas por mecanismos automáticos de autoperpetuação. Ademais, limites cognitivos dos agentes também geram aberturas para mudanças, já que as regras dificilmente são precisas o suficiente para cobrir a complexidade de situações possíveis no mundo real. Quando novos acontecimentos se chocam com regras e estruturas vigentes, as instituições podem ser reformadas para acomodar uma nova realidade. Nesse caso, os atores exploram as ambiguidades para estabelecer precedentes para a ação transformadora.

Mahoney e Thelen (2010) desenvolveram um modelo analítico para identificar e comparar padrões de mudança a partir das características endógenas do ambiente político e do enquadramento institucional. Os autores apontam quatro formatos: i) mudança por deslocamento: incorre necessariamente na remoção de regras existentes, substituídas por novos modelos que competem com o conjunto anterior; ii) mudança por sedimentação: consiste na introdução de novas regras na estrutura normativa como “camadas” adicionais, sem, contudo, introduzir completamente novas instituições; iii) mudança por flutuação: alterações no ambiente e na estrutura de comando das regras, que permanecem formalmente as mesmas, mas seu impacto muda devido a alterações nas condições externas; e iv) mudança por conversão: estratégias de reconversão institucional, com as regras permanecendo formalmente as mesmas, mas interpretadas e operacionalizadas de maneira diferente.

O quadro 1 traz um resumo das características de cada um dos tipos de mudança com base em suas relações com as regras anteriores (que sofrem alteração) e as novas (a serem implementadas). Cada tipo representa uma relação específica entre as regras (remoção, negligência ou mudança no impacto) envolvidas no processo.

QUADRO 1 Tipos de mudança institucional incremental 

  Tipos de mudança
Deslocamento Sedimentação Flutuação Conversão
Remoção de regras anteriores Sim Não Não Não
Negligência das regras anteriores - Não Sim Não
Mudança no impacto das regras - Não Sim Sim
Introdução de novas regras Sim Sim Não Não

Fonte: Mahoney e Thelen (2010)

Dadas essas características, o modelo apresentado por Mahoney e Thelen (2010) desponta como um instrumental relevante na avaliação do processo de construção institucional do PNAE. Para isso, é necessário compreender como o Estado dotou-se das capacidades e estruturas normativas necessárias que lhe permitiram inserir essa temática em sua agenda e torná-la exequível em todo o território nacional.

3 A trajetória institucional do PNAE

No intuito de organizar uma abordagem analítica dentro dos parâmetros teóricos adotados, a trajetória institucional do PNAE foi dividida em quatro fases. Segue então uma discussão sobre cada uma dessas fases.

3.1 Institucionalização subordinada (1955-1973)

A história das políticas alimentares brasileiras origina-se no início do século XX com base em experiências marcadas por baixo grau de institucionalização e pouca efetividade. Somente no contexto do primeiro governo de Getúlio Vargas é que surgiram as primeiras ações mais estruturadas sobre o tema. O recém-criado Ministério da Educação e Saúde Pública realizou, em 1935, a Campanha Nacional pela Alimentação da Criança (CNAC). Em 1939, foi criado o Serviço Central de Alimentação (SCA). No ano seguinte, surgiu o Serviço de Alimentação da Previdência Social (Saps), cujo primeiro presidente foi Josué de Castro (SILVA, 2014a). O Saps tinha entre suas atribuições, além da promoção da alimentação dos trabalhadores, programas de alimentação aos estudantes da rede pública, como o desjejum, o copo de leite e as sopas escolares. É nesse momento também que se dissemina o conceito de merenda escolar, definido como uma pequena refeição, de digestão fácil e valor nutritivo realizada no intervalo da atividade escolar (PEIXINHO, 2011).

O cenário pós-Segunda Guerra trouxe novos impulsos para o desenvolvimento de estratégias de segurança alimentar no Brasil. Vale destacar nesse período as Conferência sobre os Problemas de Nutrição na América Latina, que ocorreram em Montevidéu (1948), Rio de Janeiro (1950) e Caracas (1953), realizadas pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação (FAO). Os números apresentados pelo Brasil nessas conferências indicam que apenas cerca de 10% dos escolares primários do país se beneficiavam de alguma espécie de alimentação escolar. Contudo, o acesso à educação básica em 1950 era de apenas 36% das crianças de 7 a 14 anos, o que torna essa oferta ainda mais marginal (BONDUKI, 2017).

No segundo governo de Getúlio Vargas (1951-1954) houve o lançamento do I Plano Nacional de Alimentação. Entre os objetivos estava o combate à desnutrição infantil, através de programas de assistência e educação alimentar. O plano propunha a formulação de um Programa Nacional de Merenda Escolar, previsto para os dois anos seguintes (PEIXINHO, 2011).

No âmbito internacional, o governo dos Estados Unidos sancionou em 1954 a Public Law (PL) 480, conhecida posteriormente como programa Alimentos para Paz (Food for Peace). Por esse mecanismo, o governo regulamentou a compra dos excedentes de seus produtores para doação ou venda subsidiada (a preços módicos ou mediante empréstimos) a países pobres considerados parceiros comerciais. Na prática, a PL 480 representava um subsídio ao agricultor doméstico via mercado institucional de compras públicas, visando estabilizar os preços internos (BELIK; SOUZA, 2009).

O Brasil foi um dos alvos desse programa. Entre os itens havia produtos agroindustrializados, como leite em pó, margarina, óleo de soja, além de cápsulas de vitamina e até produtos não alimentícios, como o tabaco. A partir de 1961, a intermediação ficou por conta da Agency for Internacional Development (USAID). Com isso, além de manter sua influência geopolítica na região, os Estados Unidos garantia a formação de mercados consumidores para seus produtos da cadeia agroindustrial em franca expansão.

Os acordos no âmbito da PL 480 foram utilizados pelo presidente brasileiro Café Filho para a assinatura do Decreto nº 37.106/1955, que instituiu a Campanha da Merenda Escolar (CME). Esse decreto é reconhecido como o marco de origem da política de alimentação escolar no Brasil (COIMBRA, 1982; ARRETCHE, 2000).

No ano seguinte, o presidente Juscelino Kubitscheck editou o Decreto nº 39.007/1956, que alterou o nome para Campanha Nacional de Merenda Escolar (CNME), com a intenção de centralizar e nacionalizar o atendimento (aquisição e distribuição dos alimentos). Também criava um fundo especial, com recursos da União, estados e municípios, além de doações.

Como a maioria dos alimentos distribuídos originava-se dos acordos internacionais, essa primeira fase de inserção da alimentação escolar na agenda governamental brasileira foi caracterizada neste estudo como “institucionalização subordinada”, dada a subordinação do governo federal a interesses estrangeiros no mercado de alimentos. (BONDUKI, 2017)

No tocante à cobertura alcançada pelo programa em seus anos iniciais, Abreu (2014) verificou duas tendências: i) expansão, com a ampliação anual do fornecimento da merenda, chegando a 58% dos municípios brasileiros em 1959; ii) retração, especialmente entre 1960 e 1963, quando o programa chegou a apenas 30% dos municípios. Após o golpe militar de 1964, houve uma recuperação do atendimento. Ainda assim, os alimentos chegavam somente à metade dos municípios no final da década, o que demonstra “a pouca capacidade do governo federal em dispor de recursos necessários, estando dependente de agências internacionais” (ABREU, 2014, p. 44).

Com o Decreto nº 56.886/1965, a CNME passou a ser chamada de Campanha Nacional de Alimentação Escolar (CNAE), incorporando a educação alimentar entre suas atribuições. Com essa mudança, foi lançado o Programa Almoço Escolar, visando alterar a noção de merenda para verdadeiras refeições aos estudantes da rede pública. Entretanto, a participação dos organismos internacionais foi caindo gradativamente ao longo da segunda metade dos anos 1960. O governo federal enfrentava sérias dificuldades em atingir suas metas, pois a CNAE atendia somente 28% dos 176 dias planejados (NOGUEIRA, 2005). Isso exigiu a definição de novas estratégias para assegurar o abastecimento.

3.2 Nacionalização concentrada (1973-1994)

O governo militar manteve relação bastante estreita com o setor empresarial agrícola, com o lançamento de políticas que favoreceram a formação de um complexo agroindustrial no país, como a criação do Sistema Nacional de Crédito Rural (1965) e de agências estatais de pesquisa, assistência técnica e comercialização (DELGADO, 1985). Com isso, a abertura de um canal institucional de comercialização surgiu como uma janela de oportunidades para o setor. Ademais, a estrutura centralizada de compras para a merenda escolar, além de desconsiderar a diversidade alimentar regional, favorecia o surgimento de cartéis, sem um controle da qualidade nutricional dos alimentos oferecidos aos alunos (COIMBRA, 1982).

Em 1972, o governo federal criou o Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição (Inan), com a função de formular o Plano Nacional de Alimentação e Nutrição (Pronan). A primeira versão foi lançada via Decreto nº 72.034/1973, com propostas de combate às carências nutricionais da população. Apesar do período curto de vigência (1973-1974), a o Pronan deve ser considerado um marco institucional importante por inserir de vez a temática da alimentação escolar como domínio de intervenção governamental.

Como desdobramento, foi lançado o II Pronan (Decreto nº 77.116/1976), mais detalhado e com vigência até 1979. Entre as diretrizes gerais estava “a racionalização da assistência e da educação na área da alimentação e da nutrição”. Também constava a inserção de produtos in natura para a merenda escolar, com a previsão de apoio ao “pequeno produtor” para uma gestão regionalizada das compras públicas (SILVA, 2014a). Contudo, as ações que compunham o II Pronan passaram por seguidos cortes orçamentários, inviabilizando sua efetividade (PELIANO, 2001).

O desenho geral manteve a centralização das decisões sobre aquisição e distribuição de alimentos na União, e o controle do fornecimento dos produtos ficou por conta de grandes empresas do complexo agroindustrial. Em 1978 e 1979, apenas doze empresas forneceram para a CNME, sendo que a soma das quatro maiores respondeu por 55,6% e 70,4% do total das vendas, respectivamente, demonstrando o quão concentrado era o mercado (Coimbra, 1982). A conjugação desses fatores (centralização operacional e oligopolização no fornecimento) permite considerar a segunda fase do programa como de “centralização concentrada”, que caracteriza pela substituição de boa parte das regras anteriores, baseadas em acordos internacionais que perderam sua vigência sob a nova conjuntura institucional.

Em termos de cobertura no território nacional, os dados desde o lançamento da CME em 1954 - ano que o programa atendeu 340 escolas em 137 municípios - até o término do II Pronan demonstram uma ascensão que se aprofundou justamente nos anos 1970, alcançando em 1979 cerca de 110 mil escolas e 14 milhões de escolares, em 3.549 municípios (Costa, 2013). No final do II Pronan (1979), o governo federal passou a adotar a nomenclatura de Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Nele previa-se uma refeição diária durante o período letivo (180 dias/ano) a todos os alunos matriculados na rede pública e filantrópica de ensino fundamental, com valor nutricional mínimo de 15% das recomendações nutricionais diárias (NOGUEIRA, 2005).

Nos anos seguintes, o programa esteve suscetível ao cenário de crise econômica que afrontou o país. Soma-se a isso o momento político conturbado, marcado pela transição do governo militar para uma nova experiência democrática. Em razão desse contexto de instabilidades, foi necessária maior mobilização dos governos subnacionais para o abastecimento das escolas, culminando no aprofundamento das desigualdades no território brasileiro. Isso também prejudicou a produção de estatísticas agregadas sobre o gasto e a cobertura do PNAE no Brasil, o que explica certo vácuo de estudos referentes a essa temática nos anos 1980.

Paralelamente, estava em curso o debate para a construção de uma nova sistemática de implementação descentralizada de políticas sociais, com a União provendo os instrumentos para um atendimento mais uniforme, com regras claras e estruturas dotadas das capacidades necessárias para seu acompanhamento (ARRETCHE, 2000; LOTTA; GONÇALVES; BITELMAN, 2014). As mudanças no arcabouço institucionais do PNAE seguiram nesse rumo.

3.3 Descentralização federativa (1994-2009)

O conceito de descentralização no âmbito da prática da administração pública tem sido objeto de contínuos debates, envolvendo distintos níveis de análise (REZENDE; AFONSO, 2004; FALETTI, 2005; ARRETCHE, 2012). Conforme pontuado por Braga (2020, p. 5), o termo pode ser compreendido sinteticamente em sua dimensão operacional da seguinte forma:

A descentralização da execução é uma das características do federalismo, em especial por aproximar a implementação da população, e no caso da Política Educacional, no contexto da chamada municipalização, em sua estrutura definida no Art. 211 da Constituição Federal de 1988, que fala de um regime de colaboração entre os entes, com a União com uma função redistributiva e supletiva, de forma a garantir equalização de oportunidades educacionais e padrão mínimo de qualidade do ensino mediante assistência técnica e financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios.

No caso da política de alimentação escolar, o processo de descentralização se deu a partir de um conjunto de alterações incrementais no arcabouço legislativo brasileiro. A CNAE foi extinta em 1981, substituída pelo Instituto Nacional de Assistência ao Educando (Inae), responsável pela normatização e administração financeira do PNAE. Em 1983, o Inae foi incorporado à Fundação de Assistência ao Estudante (FAE), que comandou o Programa de Municipalização da Merenda Escolar (PMME), entre 1986 e 1988, com o objetivo de dividir as atribuições para a aquisição de alimentos com os municípios por meio de convênios.

Segundo Bonduki (2017), houve uma tímida adesão, alcançando apenas 184 municípios em 1988, quando a experiência foi extinta e as compras voltaram a ser centralizadas. Em parte, essa baixa adesão deveu-se ao esvaziamento técnico e financeiro das estruturas estatais responsáveis por sua gestão, além de pressões de empresários da indústria alimentícia (Costa, 2013). O PMME foi desativado em 1989, mas essa experiência gerou alguns resultados importantes, tais como: redução na perda de alimentos, adequação dos cardápios, participação da comunidade e aproveitamento dos recursos locais (Abreu, 2014).

Com a aprovação da Constituição Federal de 1988 (CF/1988), a alimentação escolar foi incluída entre os programas suplementares por meio dos quais se efetiva o direito à educação (Brasil, 1988, art. 208). A CF/1988 também reestabeleceu o compartilhamento de responsabilidades entre União, estados e municípios em diversas áreas de política pública. Com isso, ganhou destaque a atuação de algumas entidades, como o Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Educação (Consed), a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) e a Frente Municipalista de Prefeitos para a municipalização da alimentação escolar, em suas reivindicações por maior protagonismo das instâncias subnacionais na implementação de programas educacionais.

Porém, o início do governo do presidente Fernando Collor, em 1990, trouxe uma série de mudanças nas políticas sociais em geral, e de alimentação em particular.

Já no início do governo, uma cadeia de ações contribuiu para a fragilização da política de alimentação escolar: nomeou presidente do Inan um representante da Associação Brasileira da Indústria de Nutrição (Abin), o qual passou a priorizar, nitidamente, os interesses dos produtores de alimentos formulados; o Programa de Suplementação Alimentar (PSA) substituiu os tradicionais alimentos básicos por produtos industrializados (fiambre bovino, macarrão de milho, leite desnatado enriquecido); o PNAE interrompeu o processo de municipalização, voltando a distribuir produtos formulados (COSTA, 2013, p. 57).

Após o impeachment de Collor no final de 1992 e a consequente ascensão de Itamar Franco à presidência, o contexto se alterou. Muito em função da forte mobilização popular em torno da temática da fome -destaque para a Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e pela Vida - foi criado o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), em 1993, dando novo impulso ao debate sobre as possibilidades de atuação governamental (SILVA, 2014b).

Nesse cenário, o princípio da descentralização voltou a se fortalecer enquanto orientador dos programas de alimentação escolar. No primeiro semestre de 1993, foram firmados convênios com 26 estados e 24 capitais - exceto São Paulo e Rio de Janeiro, que já haviam municipalizado. No semestre seguinte, a possibilidade foi estendida a todos os municípios com mais de 50 mil habitantes.

Por fim, a Lei nº 8.913/1994 sacramentou a passagem para uma fase de “descentralização federativa” do PNAE, ao permitir a todos os municípios firmarem convênio para receber recursos do governo federal e distribuí-los nas suas redes de ensino. A adesão foi imediata: em 1994, havia 1.532 municípios conveniados; em 1998, o número quase triplicou, chegando a 4.314; e, em 2012, já eram 5.526 municípios conveniados, mais de 99% do total (BONDUKI, 2017).

Esse movimento é apontado na literatura como um exemplo de descentralização exitosa de política pública no Brasil, permitindo enfrentar diversos problemas estruturais que caracterizavam o PNAE até então, tais como: racionalizar a logística e os custos de distribuição dos produtos em todo o território nacional; enfraquecer o poder de monopólio de fornecedores; facilitar o controle por parte do órgão gerenciador; e viabilizar uma alimentação escolar condizente com os hábitos da população (ARRETCHE, 2000).

A Lei nº 8.913/1994 também exigiu a instalação dos Conselhos de Alimentação Escolar (CAE) nas unidades federativas para o recebimento e acompanhamento da aplicação de recursos. Cada CAE é composto por sete representantes: um do poder Executivo, um do Legislativo, dois de professores, dois de pais de alunos e um da sociedade civil.

Vale ressaltar que a descentralização do PNAE ocorreu somente na distribuição de recursos, ou seja, foi uma descentralização financeira que gerou maior autonomia e mais responsabilidades para as unidades operativas nos seus respectivos “territórios de incidência” (SILVA, 2014b; 2016). O poder normativo (regras de repasse) manteve-se centralizado na União (BONDUKI, 2017).

Em 1997, no governo do presidente Fernando H. Cardoso, a FAE foi extinta e suas funções incorporadas pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). Desde então, cabe ao FNDE prestar assistência financeira a programas do ensino básico das escolas públicas brasileiras, dentre os quais o PNAE. Para efetuar os repasses, o FNDE baseia-se nos dados anuais do Censo Escolar, para auferir o montante de alunos. As transferências são realizadas de maneira automática em contas específicas das unidades executoras (estados e municípios), sem a necessidade de convênio, que também podem alocar recursos próprios para a complementação na aquisição de gêneros alimentícios e outras despesas, como recursos humanos, construções e reforma de escolas, cozinhas, equipamentos, etc.

Com o governo do presidente Luís I. Lula da Silva, em 2003, a temática da segurança alimentar ganhou nova centralidade no plano federal. Destaca-se o lançamento do Programa Fome Zero, que englobou distintas ações governamentais para o enfrentamento da fome e da desnutrição. Entre as decisões estava a retomada do Consea. Nele foi criado um Grupo de Trabalho para discutir o tema específico da alimentação escolar.

Em 2006, a Portaria Interministerial no 1.010 instituiu as diretrizes para a “Promoção da Alimentação Saudável nas Escolas de educação infantil, fundamental e nível médio das redes pública e privada, em âmbito nacional” (art. 1º). Esta portaria partiu de uma análise da situação dos hábitos alimentares brasileiros, na qual foram constatados: estados preocupantes de desnutrição na população socialmente desfavorecida combinado com excesso de peso entre crianças e adolescentes, muito em função da predominância de alimentação densamente calórica, rica em açúcar e gordura animal, e reduzida em fibras e carboidratos complexos. A portaria assumiu a função pedagógica da alimentação escolar, além de reconhecer a escola como um espaço propício para a formação de hábitos saudáveis. Como desdobramento, foram instituídos os centros colaboradores em alimentação e nutrição escolar (Cecanes), a partir de convênios com instituições federais de ensino superior (Ifes) localizadas em estados das cinco regiões brasileiras, formando uma rede de “apoio técnico na implementação e monitoramento da alimentação saudável nas escolas” (art. 8).

3.4. Descentralização desconcentrada (2009-atual)

Como desdobramento das estratégias contidas no Programa Fome Zero, o governo federal brasileiro enviou ao Congresso Nacional a MP nº 455/2009, posteriormente convertida na Lei nº 11.947/2009, com uma ampla reformulação no PNAE. A minuta inicial do projeto de lei foi construída por um grupo de trabalho do Consea, passando por debates com outros órgãos federais e subnacionais (PEIXINHO, 2011).

Em seu artigo 2º, a execução do PNAE passou a ser nacionalmente orientada por seis diretrizes: i) emprego da alimentação saudável e adequada; ii) inclusão da educação alimentar no processo de ensino e aprendizagem; iii) universalidade do atendimento aos alunos da rede pública de educação básica; iv) controle social com participação da comunidade; v) apoio ao desenvolvimento sustentável, com incentivos para a aquisição de alimentos diversificados, produzidos preferencialmente pela agricultura familiar; e vi) direito à alimentação escolar com acesso igualitário.

Esse novo arcabouço acarretou uma remodelação da implementação do PNAE no território nacional, reforçando seu caráter intersetorial. Entre as exigências instituídas está a obrigatoriedade de todas as unidades federativas destinarem uma fração mínima de 30% dos recursos repassados pelo FNDE para a aquisição de gêneros alimentícios diretamente da agricultura familiar (art. 14). Contudo, a Lei nº 11.947/2009 também estabeleceu flexibilizações para o caso de municípios que não alcançassem o patamar indicado de compras da agricultura familiar, como por exemplo, quando houver situações de inviabilidade de fornecimento regular e constante dos gêneros alimentícios.

O segmento socioprodutivo da agricultura familiar, contemplado por essa lei, envolve um amplo contingente de trabalhadores brasileiros que guardam entre si significativas especificidades associadas ao contexto territorial no qual se inserem. O primeiro programa voltado a esse público foi o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), em 1996. Uma década depois foi aprovada a Lei nº 11.326/2006, conhecida como Lei da Agricultura Familiar, que estabeleceu conceitos, princípios e instrumentos destinados à formulação de políticas públicas direcionadas a esse público (Silva, 2014a).

Uma das motivações para a inclusão da agricultura familiar na Lei nº 11.947/2009 foi tornar o PNAE um vetor de inclusão produtiva e desenvolvimento local, algo que já era mencionado desde o II Pronan nos anos 1970. Para viabilizar a execução dessa nova regra, a Lei nº 11.947/2009 definiu que a aquisição dos produtos pode ser realizada via chamada pública, dispensando-se o modelo de licitação previsto na Lei Geral de Licitações e Contratos. Com isso, houve uma ampliação das oportunidades de participação de agricultores familiares nos processos licitatórios para o atendimento a esse mercado, sem que as exigências burocráticas fossem eliminadas totalmente. O credenciamento dos agricultores é feita pela Declaração de Aptidão ao Pronaf (DAP), emitida por entidades públicas de assistência técnica e extensão rural.

Vale destacar ainda dois pontos importantes acionados pela Lei nº11.947/2009. Primeiro, o atendimento do PNAE foi estendido a todos os alunos da educação básica, incluindo estudantes do ensino médio e da educação de jovens e adultos (EJA), e a todas as unidades da rede pública, incluindo escolas federais, filantrópicas e comunitárias, o que elevou consideravelmente o público beneficiário. Segundo, o valor médio por refeição para o montante dos repasses foi reajustado, representando um aumento na margem de 36% para as modalidades de ensino básico. Posteriormente, os valores de referência tiveram um novo reajuste, definido pela Resolução CD/FNDE nº 1/2017, conforme tabela 1. A combinação desses dois fatores acarretou considerável elevação dos recursos destinados ao programa. O valor real dos repasses chegou próximo a R$ 4,8 bilhões em 2010, 83,7% superior a 2008, e o número de estudantes beneficiados cresceu 31,8% no mesmo período (gráfico 1).

TABELA 1 Valor per capita para repasse do PNAE por modalidade de ensino (2000-2018) 

Ano Modalidade de Ensino
Creche Pré-escola Ensino Fund. Indígena Quilombola Ensino Médio EJA
2008 0,22 0,22 0,22 0,44 0,44 - -
2009 0,44 0,22 0,22 0,44 0,44 0,22 0,22
2010 0,60 0,30 0,30 0,60 0,60 0,30 0,30
2011 0,60 0,30 0,30 0,60 0,60 0,30 0,30
2012 1,00 0,50 0,30 0,60 0,60 0,30 0,30
2013 1,00 0,50 0,30 0,60 0,60 0,30 0,30
2014 1,00 0,50 0,30 0,60 0,60 0,30 0,30
2015 1,00 0,50 0,30 0,60 0,60 0,30 0,30
2016 1,00 0,50 0,30 0,60 0,60 0,30 0,30
2017 1,07 0,53 0,36 0,64 0,64 0,36 0,32

Fontes: FNDE (2018).

Fonte: Dados abertos/FNDE. Elaboração do autor.

GRÁFICO 1 Repasses financeiros do PNAE e público beneficiário (2000-2018 - valores dez/2018) 

Se o PNAE já vinha crescendo consideravelmente em termos de agentes executores, com a quase totalidade de estados e municípios da Federação conveniados, após a Lei nº 11.947/2009 houve uma expansão também entre os fornecedores dos gêneros alimentícios, com o favorecimento da agricultura familiar. Com isso, o programa adentrou uma nova fase de institucionalização, caracterizada neste estudo como “descentralização desconcentrada”, isto é, descentralização relacionada ao avanço na distribuição de competências operacionais entre as unidades federativas, e desconcentrada em função da ampliação dos fornecedores de produtos alimentícios para atender o alunato.

Apesar de tornar mais complexa a execução do programa, ao incluir novos atores em suas etapas, os números recentes indicam elevação crescente do percentual de compra da agricultura familiar nos municípios. Após atingir, apenas 4,9% dos repasses previstos para esses produtos em 2010, primeiro ano da nova lei, o percentual foi se elevando até atingir 25,1% em 2016, o que representa algo em torno de R$ 900 milhões. Nesse sentido, pode-se considerar que a evolução desses indicadores denota um esforço por parte dos gestores locais em caminhar na direção prevista pela Lei nº 11.947/2009.

4 Síntese da trajetória institucional do PNAE

Conforme demonstrado, o PNAE passou por uma trajetória de seguidas mudanças em sua estrutura normativa desde os anos 1950, quando o tema da alimentação escolar foi alçado à agenda do governo federal. Contudo, não houve uma grande quebra ou ruptura nas regras de execução, mas, sim, alterações graduais derivadas dos diferentes contextos políticos que o programa atravessou nesses mais de 60 anos. O quadro 2 sintetiza as principais características de cada uma das fases elencadas neste texto.

QUADRO 2 Fases da trajetória institucional do PNAE 

Fases I
Institucionalização subordinada
II
Nacionalização concentrada
III
Descentralização federativa
IV
Descentralização desconcentrada
Período 1955-1973 1973-1994 1994-2009 2009-atual
Marco legal Decreto no 37.106/1955, instituiu a CME Decreto no 72.034/1973, instituiu Pronan Lei no 8.913/1994, estimulou a adesão de municípios para firmarem convênios no âmbito do PNAE Lei no 11.947/2009, estabeleceu novas normativas para o PNAE
Quem compra Governo federal Principalmente governo federal Estados e municípios Estados e municípios
Quem fornece Basicamente agroindústrias norte-americanas Concentrada em poucas indústrias de capital nacional e internacional Alguns milhares de produtores agrícolas e industriais, com ênfase em grandes empresas nacionais Dezenas de milhares de produtores, com a entrada de agricultores familiares locais

Fonte: Elaboração do autor.

O instrumental teórico-analítico adotado permitiu uma caracterização mais refinada sobre as dinâmicas institucionais que incorreram nas mudanças entre cada uma das fases identificadas.

A primeira mudança (fase I=>II), foi marcada por uma retirada gradual dos programas de auxílio internacional no final dos anos 1960. Isso fez com que o governo brasileiro alterasse a estratégia de aquisição dos bens alimentícios, revertendo a relação de dependência dos produtos externos. As regras anteriores de funcionamento deixaram de ter validade. Foi um passo fundamental em direção à nacionalização da política de alimentação escolar, cujo marco foi o I Pronan. Sua continuidade seguiu com base em duas características marcantes: a centralização do poder regulatório e do controle das etapas de implementação na esfera federal; e a concentração do fornecimento de alimentos em poucas empresas. Por esses fatores, essa passagem pode ser caracterizada como “mudança por deslocamento”, pois parte das regras anteriores foram removidas para a introdução de um novo padrão de intervenção.

A segunda mudança (fase II=>III) se originou no contexto de redemocratização no Brasil, que abriu espaço para a descentralização do poder estatal. No caso do PNAE, após as primeiras experiências em 1986, a consolidação da descentralização só foi possível com a Lei nº 8.913/1994, que estabeleceu regras e instrumentos que facilitaram a adesão massiva dos entes federativos, sem que a União perdesse seu monopólio sobre as diretrizes operacionais. Dessa forma, a passagem entre as fases II e III é indicada como “mudança por sedimentação”, isto é, por meio da introdução de novas camadas normativas em um arcabouço institucional que permaneceu vigente.

Por fim, a terceira mudança (fase III=>IV) expressa um aprofundamento da descentralização, expandindo para uma desconcentração entre os fornecedores. O marco institucional foi a Lei nº 11.947/2009, que sacramentou uma ampla reformulação do PNAE, estabelecendo entre outras coisas a regra de compra mínima da agricultura familiar, como consequência de um fortalecimento da temática da segurança alimentar e nutricional na agenda do governo federal. Como ocorrido na mudança anterior, as novas regras foram inseridas no arcabouço normativo vigente, o que permite classificar essa passagem também como “mudança por sedimentação”.

O quadro 3 traz uma síntese desse processo de mudança institucional entre as quatro fases que constituíram a trajetória de operacionalização do PNAE identificadas neste texto.

QUADRO 3 Tipos de mudança institucional entre as fases do PNAE 

Critérios Mudanças de fases
I=>II II=>III III=>IV
Remoção de regras anteriores Sim Não Não
Negligência das regras anteriores - Não Não
Mudança no impacto das regras anteriores - Não Não
Introdução de novas regras Sim Sim Sim
Tipo de mudança Deslocamento Sedimentação Sedimentação

Fonte: Elaboração do autor.

5 Conclusão

A experiência histórica do PNAE é rica em termos de elementos analíticos no campo da administração pública. As informações analisadas permitiram identificar quatro fases peculiares ocorridas desde que a temática adentrou a agenda do governo federal em 1954, sem haver um momento que pudesse ser caracterizado como disruptivo. O que se observou foi a ocorrência de mudanças graduais, cujo acúmulo levou a transformações significativas em sua estrutura regulatória. Por isso, foram adotados os marcos normativos considerados mais relevantes para indicar a sequência cronológica das fases, embora seja difícil estabelecer o momento exato em que cada uma iniciou e terminou. O que há são zonas temporais de interseção, onde as regras antigas estão se dissipando e as novas ainda estão sendo absorvidas.

Para melhor compreensão, foram indicados padrões de mudança institucional. Entre as fases I e II, o programa passou por uma mudança por deslocamento, com a necessidade de alteração da estratégia operacional de aquisição dos alimentos, dado o encerramento dos acordos internacionais que tinham viabilizado as campanhas de merenda escolar desde os anos 1950, e outro bloco de interesses - o complexo agroindustrial brasileiro - passou a influenciar a tomada de decisões sobre fornecimento. Entre as fases seguintes, o tipo de mudança foi por sedimentação, com a inserção de novas regras na estrutura normativa (primeiramente com o aprofundamento da descentralização administrativa, posteriormente com a desconcentração entre os ofertantes e elevação do público beneficiário).

Nesse sentido, a análise dos tipos de mudança pelos quais o PNAE passou auxilia na compreensão sobre os fatores que determinam a tomada de decisão por parte das instâncias decisórias do Estado em setores específicos de política pública, uma vez que cada um deles possui diferentes combinações de interesses e de rotinas operacionais que podem bloquear (efeitos lock in e feedeback) ou potencializar reformas sob determinadas conjunturas.

Paralelamente, a pesquisa permitiu ainda observar o processo pelo qual o Estado foi construindo suas capacidades instrumentais para operacionalizar uma política que envolve uma extensa cadeia de comando, exigindo canais próprios de coordenação federativa para sua viabilização, o que pode vir a ser objeto de aprofundamento em futuras investigações.

2O Consea havia sido extinto no início do governo FHC, em 1995, substituído pelo Comitê Executivo do Programa Comunidade Solidária. Ver: Silva (2014a; 2017).

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Recebido: Janeiro de 2021; Revisado: Março de 2021; Aceito: Abril de 2021

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