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Jornal de Políticas Educacionais

versão On-line ISSN 1981-1969

J. Pol. Educ-s vol.15  Curitiba  2021  Epub 22-Set-2021

https://doi.org/10.5380/jpe.v15i0.77783 

Artigos

Políticas educativas e a avaliação: inflexões do exame PISA

Educational policies and evaluation: inflections of the PISA exam

Políticas educativas y evaluación: inflexiones del examen PISA

Edite Maria Sudbrack1 
http://orcid.org/0000-0002-9591-8038

Dora Maria Ramos Fonseca2 
http://orcid.org/0000-0003-1647-6858

1 Pós-Doutorado em Educação (2020) - Universidade de Aveiro/Portugal, Pós-Doutorado em Educação (2016) - UFRGS, Doutorado em Educação (2002) - UFRGS, Mestrado em Educação (1995) - UFRGS. Pró-reitora de Ensino da URI. Líder do GPE - Grupo de Pesquisa em Educação: políticas públicas e gestão. Professora do PPGEDU da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões - URI/Câmpus de Frederico Westphalen. Frederico Westphalen, RS. Brasil. E-mail: sudbrack@uri.edu.br

2 PhD in Educational Sciences and a post-doctorate in Educational Administration from the University of Aveiro. She is an integrated researcher at the Research Center "Didactics and Technology in the Training of Trainers" (CIDTFF) and Assistant Professor in the Department of Education and Psychology. In terms of research, in the field of Educational Policies and Educational Administration, She has been developing studies (in Portugal and in Brazil) within the scope of the processes of decentralization of education, of organizational assessment and of educational regulations between the central Powers / Local power (s), issues on which it has published nationally and internationally (book chapters, articles in national and international magazines, minutes of congresses and others). She is a reviewer / evaluator of several national and international magazines. Universidade de Aveiro, PT. Aveiro, PT. Orcid: E-mail: doracastro@ese.ipp.pt


Resumo

Este ensaio considera que a regulação supranacional operada pelo PISA (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes, tradução de Programme for International Student Assessment) é uma força indutora de políticas educativas no Brasil e em Portugal. O estudo tem abordagem qualitativa, seguindo os pressupostos da pesquisa sociocrítica. O enquadramento metodológico tem como baldrame a ótica da política educacional, no caso, o projeto neoliberal, cujos reflexos impactam na vida das pessoas. O projeto neoliberal, tornado hegemônico pela globalização da economia, afigura-se, segundo Dardot e Laval (2016), como uma nova racionalidade, uma “nova razão do mundo”, a fabricar o esgotamento da democracia liberal e a determinar novas formas de ver o mundo. Estarmos à mercê de uma Regulação Transnacional, operada por organismos multilaterais, entre os quais a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), coordenadora do Programa PISA. A gramática do PISA difunde normativas e prescrições, mormente num contexto de influência de grande impacto e credibilidade. Sob tal ângulo, anunciamos o propósito que movimenta este artigo, qual seja, o de analisar a regulação supranacional operada pelo PISA e suas influências no campo. Para o alcance de tal propósito, apontamos a tese da regulação supranacional, enquanto possibilidade de compreensão que essa categoria permite (Afonso; Costa; Autor; Carvalho). Essa visão apresenta a política educacional, demandada por uma agenda estruturada externamente aos estados nacionais.

Palavras-chave: Regulação Transnacional; PISA; Avaliação em Larga Escala; Indução de Políticas

Abstract

This essay considers that the supranational regulation operated by PISA (Programme for International Student Assessment) is a driving force in educational policies in Brazil and Portugal. The study has a qualitative approach, following the assumptions of sociocritical search. The methodological framework is based on the optics of educational policy, in this case, the neoliberal project, whose effects impact on people's lives. The neoliberal project, made hegemonic by the globalization of the economy, appears, according to Dardot and Laval (2016), as a new rationality, a “new reason of the world”, fabricating the exhaustion of liberal democracy and determining new ways of seeing the world. Being at the mercy of a Transnational Regulation, operated by multilateral organizations, including the Organization for Economic Cooperation and Development (OECD), coordinator of the PISA Program. The grammar of PISA disseminates norms and prescriptions, mainly in a context of influence of great impact and credibility. In this sense, we announce the purpose of this article, which is to analyze the supranational regulation operated by PISA and its influences in the field. To achieve this purpose, we point to the thesis of supranational regulation, as a possibility of understanding that this category allows. (Afonso; Costa; Autor; Carvalho). This view presents the educational policy, demanded by structured agenda, externally to the national states.

Keywords: Transnational Regulation; PISA; Large Scale Evaluation; Policy Induction

Resumen

Este ensayo considera que la regulación supranacional operada por PISA (Programa Internacional de evaluación de Estudiantes), traducción del Programme for International Student Assessment, es una fuerza inductora de las políticas educativas en Brasil y Portugal. El estudio tiene un enfoque cualitativo, siguiendo los presupuestos de la investigación sociocrítica. El marco metodológico se basa en la visión que la política educativa, en este caso el proyecto neoliberal, repercute en la vida de las personas. El proyecto neoliberal, hegemónico por la globalización de la economía, aparece, según Dardot y Laval (2016), como una nueva racionalidad, una “nueva razón del mundo”, fabricando el agotamiento de la democracia liberal y determinando nuevas formas de ver el mundo. Estamos a merced de un Reglamento transnacional, operado por organismos multilaterales, incluida la Organización para la Cooperación y el Desarrollo Económico (OCDE), coordinadora del Programa PISA. La gramática PISA difunde normas y prescripciones, especialmente en un contexto de influencia de gran impacto y credibilidad. Desde este ángulo, anunciamos el propósito que impulsa este artículo, que es analizar la regulación supranacional que opera PISA y sus influencias en el campo. Para lograr este propósito, señalamos la tesis de la regulación supranacional, como posibilidad de entender que esta categoría permite (Afonso; Costa; Autor; Carvalho). Esta visión presenta la política educativa, demandada por una agenda estructurada externamente a los estados nacionales

Palabras clave: Regulación transnacional; PISA; Evaluación a gran escala; Inducción de políticas

Introdução

O texto considera a tese da macrodeterminação que a OCDE opera, por meio do PISA, nos países envolvidos nesta pesquisa. Eis que o certame revela-se uma vigorosa influência internacional pela sua credibilidade, maleabilidade e aceitação dos países.

Reitera-se que a OCDE vale-se de condições sociopolíticas favoráveis, que impulsionam a robustez dos inquéritos internacionais, dentre os quais denota-se o contingente de sistemas educativos na área de abrangência da citada organização, os modelos educativos mais homogêneos, além da separação entre propósitos científicos e políticos (SOUSA; OLIVEIRA, 2003). A relação entre a avaliação de largo espectro e as políticas públicas encontra eco na teoria do capital humano e da eficiência e eficácia, propaladas pela ótica da globalização neoliberal.

Estêvão (2002) alerta que, frequentemente, somos levados a crer em ideologias que parecem ter todas as respostas à problemática educativa. Nessa acepção, o autor (ESTÊVÃO, 2002) menciona o que denomina de “ideologias de conveniência” em educação, sobressaindo-se a modernização, a qualidade, a equidade, a autonomia e a democratização, bem como o paradigma da avaliação. Nesse caso, sublinha Estêvão (2002), o Estado pode parecer mais sutil na proposição, mas não prescinde do controle e da regulação das Políticas Educacionais, como se fosse um “controle sem mãos” ou, nas palavras de Ball (2001, p. 86), “é o panóptico da moderna organização educativa”. Assim, a avaliação quer prestar-se a todas as respostas. Estêvão (2002) denomina tal movimento de “avaliaçonite aguda”, que engendra a adaptação aos padrões internacionais de regulação.

Neste artigo, sublinha-se a necessidade de desvelar as desigualdades educacionais dos sistemas, assim como a inadiável promoção da equidade da educação. Apoiamo-nos em Estêvão (2002), em sua análise da justiça complexa, sua pluralidade, levando em conta a escola como estrutura organizada, bem como a ética que preside a escola e seus atores. Com efeito, há que denunciar a exclusão e hierarquização do conhecimento que os exames padronizados têm produzido nos países eleitos para análise. Nesse contexto, o alerta de Carvalho (2013) segue a perspectiva de evitar reverenciar os resultados, mas voltar-se aos seus impactos políticos. E adianta: os cristalinos e robustos números servem para legitimar o mantra da aprendizagem do século XXI. Nesse particular, acolhe-se a noção de empreendedorismo, formação para toda a vida, utilitarismo, bem ao gosto do projeto neoliberal e da constituição de um “neossujeito” de que falam Dardot e Laval (2016).

2. O desvendar do caminho

O texto orienta-se pela compreensão de que a avaliação converte-se na grande protagonista no quadro das políticas educacionais. Seu escopo parece destinar-se à maior regulação e ao controle dos governos nacionais e dos sistemas educativos, em âmbitos nacional, local e transnacional. Sob a égide da autonomia e da qualidade, a avaliação vai sendo galvanizada como grande narrativa do planejamento educacional.

Assim, a retórica das avaliações transnacionais procura reduzir o discurso democrático às formas gerencialistas (AUTOR; COSTA, 2018). A avaliação configura-se, pois, como um guia de padronização e homogeneização. Na acepção de Autor (2011, p. 16):

A mudança transnacional circunscreve a modelos institucionais padronizados, enquadrados pelas ideologias da sociedade da informação, do conhecimento e das novas competências e regulados por procedimentos de gestão administrativa.

Em termos de abordagem, este estudo inscreve-se como um estudo de natureza qualitativa, pela abordagem sociocrítica, nomeadamente a dos Estudos Comparados de natureza crítica. A perspectiva sociocrítica ampara-se nas ideias da Escola de Frankfurt e no neomarxismo, e, ainda, na narrativa de Habermas. Essa perspectiva epistemológica, ultrapassa o olhar conservador na interpretação da realidade e considera os posicionamentos dos pesquisadores. Com efeito, não há neutralidade na ciência, já que o pesquisador professa determinadas ideologias e visões de mundo (COUTINHO, 2011). Sob tal direção, o trabalho ensaiou um olhar analítico acerca do fenômeno PISA, emprestando uma visão que tensiona a ideia de objetividade, ou de verdade, uma vez que estamos implicados com determinado segmento social e falamos de um determinado “lugar”.

Os estudos comparados levam em conta a influência da globalização sobre os sistemas de ensino nos distintos países, neste caso, entre Portugal e Brasil. Sabe-se que não é possível estabelecer uma relação casual à moda das agências internacionais com o processo de globalização. Essas agências têm presente os princípios da teoria econômica, ou seja, de que a educação é fator de competitividade internacional. Assim, para Autor (2016, p. 56) “os dispositivos de avaliação que, nestes últimos anos, foram implementados na área da educação [...] obedecem a referenciais predefinidos por entidades externas ou muito controlados por elas”. A uniformização dos discursos passa a exigir “a necessidade de ver reconhecidos e tomados em consideração espaços identitários mais restritos que o espaço nacional” (MALLET, 2004, p. 1313).

Ao categorizar a educação como um serviço, a OCDE, contribui para ampliar sua subserviência ao mercado, traduzindo-se num processo de internacionalização, o qual amplifica a responsabilização dos sistemas e dos atores, via avaliações em larga escala. Nesse contexto, os estudos comparados são chamados a rever suas óticas de escrutino, eis que, tais espaços, pelo volume de dificuldades, tencionam para novos posicionamentos.

3. A grande política educacional: a avaliação

3.1. A avaliação globalizante

Na avaliação de grande espectro “as teorias de avaliação, tal como muitas práticas avaliativas democráticas, comportam uma multiplicidade de alternativas, capazes de desafiar o senso comum dominante” (LIMA 2015, p. 1350). Tal repto impõe-se para não secundarizar a educação e a cultura, reduzindo os saberes da escola apenas à sua contagem numérica. A parametrização acaba por constituir a avaliação como artefato mensurável, contaminando, inclusive, a nossa imaginação e criatividade. O autor (LIMA, 1996) desconstrói tal máxima nominando a avaliação como um dispositivo não apenas técnico-instrumental, mas político e ético, que empodera seus propositores.

Nessa direção, a globalização, ao tempo em que aproximou países, também aprofundou o fosso entre os Estados nacionais, desencadeando desigualdades e exclusão não imaginadas. Em publicação recente, Castells (2018, p. 07) assevera: “sopram ventos malignos no planeta azul. Nossas vidas titubeiam no turbilhão de múltiplas crises”. O autor (CASTELLS, 2018) menciona a crise econômica, de segurança, ambiental, de violência, de comunicação dominada de “Fake News” e pós-verdades, assim como a cultura rebaixada ao nível de mero entretenimento3.

No seio de todas as crises, assiste-se ao “colapso gradual de um modelo político de representação e governança: a democracia liberal que se havia consolidado nos dois últimos séculos, à custa de lágrimas, suor e sangue, contra os Estados autoritários e o arbítrio internacional” (CASTELLS, 2018, p. 04). Não é uma rejeição à democracia, garante Castells (2018), mas à democracia liberal, que por vezes, transparece no slogan “Não nos representa”, ao citar determinados partidos políticos no sistema atual.

Da rejeição que se menciona, aparecem líderes que rechaçam os modelos dos partidos políticos e parecem ganhar escala no mundo, tais como Trump, Le Pen, Macron, os quais representam uma veia pós-liberal. A corrosão da ordem política no Brasil também é tributária dessa nova racionalidade ou irracionalidade. No âmago da crise, emerge a crise maior que é a democracia liberal (CASTELLS, 2018).

Ao encararmos a globalização enquanto um processo que gera maior interdependência e competividade entre as nações, avistamos a redução dos espaços de decisão dos atores nacionais. Ademais, convindo com Estêvão (2002), que o evento da globalização não seja um processo único, mas que assume várias faces, para além da dimensão econômica; nesse sentido, a educação pode ser encarada como um vetor contra-hegemônico ao impacto da globalização. O mecanismo da regulação transnacional empreendido pelos países centrais impele à desigualdade e à dominação do neoliberalismo e da competição. Para Estêvão (2002, p. 95),

[...] ela é sobretudo uma força corrosiva; capaz de dissolver a topografia convencional dos Estados, a interação comunicativa, atentar contra os direitos humanos e à justiça, criando novas divisões (a divisão digital, por exemplo), novas fronteiras (centro-periféricas, norte-sul, por exemplo), novos centros e novas margens de poder e de controlo, novos “apartheids sociais”.

No contraponto, a globalização proposta por Arruda (2000) pode ser desencadeada pelas bases, pela globalização da consciência humana, da solidariedade e cooperação, da diversidade, da ética, estabelecendo novos diálogos, novas posturas, ao encalço “dos deveres e direitos de uma cidadania global” (ESTÊVÃO, 2002, p. 56).

O que vimos assistindo, por conta da lógica de mercado, é o enfraquecimento do Estado-Nação, a racionalidade empresarial na gestão dos governos, fragilizando os direitos dos cidadãos, numa posição ambígua do Estado que, ao tempo em que parece propiciar a defesa dos direitos, inviabiliza o alcance universal de tais direitos. Essa posição convida a refletir, com Carvalho (2011, p. 17), que “as políticas de educação não se circunscrevem às medidas políticas ou às decisões dos governantes e da administração”. Há, portanto, segundo o autor, além do Estado, várias interfaces que se cruzam, que são espaços de produção via narrativas oficiais, legislações, documentos, relatórios, entre outros, bem como por “uma teia complexa de interações, tendo a matriz da ação pública vindo a caracterizar-se por vários princípios de atuação, provenientes de redes de interesses, alguns fora do domínio do Estado-Nação” (AUTOR, 2015, p. 70).

As determinações da globalização para a educação são cada vez mais atuantes, já que, tendo impactado na dimensão econômica, ampliam sua teia para enredar as esferas políticas e sociais, incluindo a retórica própria da esfera mercadológica. A perversidade do fenômeno sinaliza para as dimensões da justiça e dos direitos humanos, na dependência dos grandes mercados e sua ideologia. O alerta de Shiva (2004) é para o risco da corrosão dos direitos e até das liberdades civis. Sob esse cenário, importantes desafios são postos à educação, na perspectiva de uma globalização humanizadora, assentada na solidariedade, diversidade, cooperação internacional, entre outros elementos.

Cabe registro de que a globalização hegemônica produziu uma macroeconomia pautada no exacerbado individualismo, no endeusamento do mercado, gerando grande contingente de excluídos numa relação pautada pela competitividade em todos os níveis. Segundo Bauman (1999), é o destino irremediável do mundo, um processo irreversível; é também um processo que nos afeta, a todos. De acordo com Santos (2004), o que caracteriza os tempos globalizados é a confusão dos espíritos que fragilizam o entendimento do mundo, do lugar, da sociedade e de cada um de nós mesmos.

O individualismo arrebatador presente nas ordens social e individual acaba por construir o outro como objeto. Instaura-se uma nova lei sobre o valor das coisas, em que vai desaparecendo o apreço por saúde, emprego, educação, dentre outros, enquanto bens inalienáveis do ser humano. Ao referir-se à globalização, Santos (2004, p. 18) evidencia a influência de três mundos em um só: “O primeiro seria o mundo tal como fazem vê-lo: a globalização como fábula; o segundo seria o mundo tal como ele é: a globalização como perversidade; e o terceiro, o mundo como ele pode ser: uma outra globalização”.

Em face de tantos reptos impostos às políticas educacionais, novas exigências são dirigidas à educação, fragilizando-a para acolher as avaliações em larga escala, nomeadamente, as legitimadas pela OCDE e suas narrativas.

Assim, o projeto social transforma-se e influencia as políticas educacionais de maneira insofismável. Tributário da globalização hegemônica, amplia a financeirização da economia enquanto modelo socioeconômico e cultural, cuja agenda determina novos sentidos à cultura e à educação, alçando-as à condição de mercadoria, cujo compromisso maior está no lucro de quem a gerencia. O incremento da globalização econômica, política e cultural exerce controle sobre a avaliação da educação e sugere maior relação entre o setor produtivo e suas necessidades. Tal ambiente busca modelos comparativos entre países. Assim, a OCDE apela para as reformas nos serviços públicos, calcadas no desempenho eficaz (CURY, 2017).

A agenda neoliberal situa-se na esteira de Dardot e Laval (2016), quando afirmam que “o neoliberalismo, antes de ser uma ideologia ou uma política econômica, é em primeiro e fundamentalmente uma ‘racionalidade’ e, como tal, tende a estruturar e organizar não apenas a ação dos governantes, mas a própria conduta dos governados” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 17). A globalização, no entender de Estêvão (2002), é multifacetada, mormente sobressaia-se a perspectiva econômica neoliberal. No caso da OCDE, por meio do PISA, acentua-se o seu caráter vertical, e o poderio das nações dominantes transnacionalizando ascendência. Eis que a “globalização competitiva” (ARRUDA, 2000) encaixa-se hermeticamente nos propósitos do Inquérito internacional, enredando as nações em seus valores e na homogeneização de políticas e discursos.

3.2. A Avaliação como Política

A avaliação não tem promovido a equidade na ótica da justiça social que se acolhe, mas acirrado a desigualdade entre países e sistemas escolares. O endurecimento da competição entre nações ofereceu terreno propício ao adensamento de um levante nominado de Movimento de Reforma Educacional Global (SAHLBERG, 2011), expandindo-se para todos os países. O padrão de reforma mencionado (Reforma Educacional Global) ancora-se em resultados padronizados, a partir de provas standards, cujo foco é o desempenho comparado entre países. Paralelamente aos sistemas de avaliação em larga escala, há uma crescente influência das narrativas da Nova Gestão Pública (NGP), denominada gerencialismo4.

A defesa do gerencialismo no setor público ou NGP (Nova Gestão Pública) tem início no ano de 1980, com os primeiros acordes da globalização econômica. Em que pese o fato de alguns países não terem se submetido integralmente ao processo reformista, este é um fenômeno global. Com efeito, a progressiva interdependência entre territórios também leva à competição e subsidia a desterritorialização das políticas educacionais. (VERGER; PARCERISA; FONTDEVILA, 2018). Assim, “as organizações internacionais e as redes transnacionais de especialistas têm apresentado uma capacidade cada vez maior de determinar as agendas educacionais e definir prioridades dos países por meio de seus recursos materiais e discursivos. (VERGER; PARCERISA; FONTDEVILA, 2018, p. 62).

O ideário neoliberal faz surgir, pois, uma nova “ortodoxia” das reformas, que é transmitida mundialmente, independente do padrão de desenvolvimento econômico-social das nações. No bojo das Reformas anunciadas, a medição da qualidade da educação, via testes de larga escala, tem sido considerada um mecanismo apropriado para indicar a qualidade educativa, na esteira de que, por serem quantificáveis, seriam mais “concretos” (VERGER; PARCERISA; FONTDEVILA, 2018). Evidentemente, os indicadores estão balizados por política de gestão com base na NGP ou novo gerencialismo, inclusive em outros segmentos, para além da educação, como saúde e segurança. As avaliações de amplo espectro desempenham, sobre esse viés, grande protagonismo nas Políticas Educacionais, abrangendo, segundo Verger; Parcerisa e Fontdevila (2018), vários elementos que mantêm semelhança na política dos países, tais como “padrões, descentralizações e responsabilização” (VERGER; PARCERISA; FONTDEVILA, 2018, p. 63). A padronização, notadamente do Currículo, leva à definição de standards de aprendizagens considerados mensuráveis e essenciais via avaliações padronizadas. No que se refere à descentralização, esta, por sua vez, confunde-se com democratização, mas oculta a transferência de responsabilidade do ente central aos entes subnacionais, às escolas e à sociedade. A avaliação em tal cenário parece um mecanismo de dicotomia “à luz de uma concepção gestionária, orientada para a informação dos gestores políticos e para alocação diferenciada de recursos considerados escassos” (LIMA, 2015, p. 1343).

O monitoramento da Reforma Educacional Global agrega, ainda, a responsabilização, via de regra, atribuindo às escolas e docentes a obrigação/dever pelo resultado do processo avaliativo. Por essa via, vincula a aprendizagem aos incentivos financeiros ou sanções, sob a bandeira da meritocracia.

Quadro 01 Regulação Supranacional das Políticas Educacionais (a) 

Categorias/Ciclo de Políticas Característica Políticas Educacionais/Funções da Avaliação
Hierarquização do Conhecimento Padrões de qualidade PISA Avaliação Nacional
Legitimação do Discurso Veiculação dos discursos Controle e regulação
Indução de Políticas Credibilidade e maleabilidade Governar a distância; gestão por resultados
Pilotagem/aparelhamento Monitoramento; dos resultados; desempenho Implementação de Reformas
Contexto de Estratégia Política Monitoramento; Proposição de Políticas Controla desempenhos

Fonte: Elaborado pela autora (2018) com base em Verger; Parcerisa e Fontdevila (2018); Carvalho (2013); Afonso e Costa (2009)

As faces da Regulação Supranacional apresentadas indicam algumas categorias presentes na Suprarregulação efetivada pelos organismos multilaterais, nomeadamente, a OCDE sobre as Políticas Educacionais dos países e o papel conferido à avaliação de grande espectro, denominado PISA. Conforme previsto neste estudo, a Regulação Supranacional é a categoria-guia desta análise. A regulação supranacional opera pela veiculação de um discurso em que o gestor é um solucionador de problemas, o aprendente, o decisor que governa com e por meio do monitoramento. As categorias que se elegem fazem eco ao que Autor (2011, p. 225) alude, ou seja, que fomos transbordados de conceitos que passam por “qualidade”, “prestação de contas”, a “competência”, entre outros, em suas ambiguidades de matriz gestionária. Ou, como afiança Autor (2019, p. 134), “estamos à mercê de uma concepção [...] gerencialista e tecnocrática”.

Enfocando a Hierarquização do Conhecimento, alimenta-se o discurso de que o bom gestor não gere, muda, transforma a educação do “modelo industrial” para “pós-industrial”, como interpreta Carvalho (2011), deixa transparecer qual o conhecimento que vale mais. Vale dizer, o conhecimento que é tomado como legítimo, bem como qual o melhor modo de construí-lo, que a OCDE concebe, organiza e divulga. A atribuição de notas em áreas como matemática, ciências e leitura demonstra quais habilidades e competências a reforçar, esquecendo das humanidades5 como necessárias à formação integral. De forma análoga, as hierarquias entre países, no momento em que o conhecimento se torna a grande moeda do mundo globalizado, são reforçadas pelos rankings que os resultados do PISA produzem, a par do que a própria OCDE produz e monitora seus indicadores, sem depender dos estados nacionais.

A categoria denominada Legitimação do Discurso da Necessidade de Avaliação é vertida no contexto do Comitê do PISA existente na OCDE, o qual veicula livros, papers, bancos de dados variados, entre outros textos, que vão compondo uma trama de influência altamente sofisticada e convincente. A validação de sua narrativa é atestada pela adesão dos países-membros e convidados ao Inquérito, bem como na sua relevância simbólica e maleabilidade. Elementos que lhe ratificam a força científica e política, enquanto mecanismo de regulação ideológica (AUTOR, 2019).

Outro descritor tomado como relevante é o da Indução de Políticas Educativas. Pelas suas características de credibilidade, maleabilidade e relevância simbólica (AFONSO; COSTA, 2009), o PISA revela seu caráter de adaptabilidade de diferentes formas e contextos. Sua capacidade de influência guarda relações com a indução de medidas decisórias pelos países, a partir dos escores aferidos. Nessa perspectiva, o PISA produz sentidos, já que suas decisões são baseadas em dados objetivos, as decisões são assentadas no conhecimento. (AFONSO; COSTA, 2009).

Aparelhamento/Pilotagem é uma subcategoria que se entende como oportuna para esta investigação. Com efeito, o sofisticado aparato da OCDE, em termos burocráticos e de produção científica na área, impulsiona sua expansão e credibilidade. A OCDE detém um território político conquistado, aliado ao saber que armazena/detém, que são representativos para pilotar, conduzir e controlar os desempenhos dos sistemas escolares em diferentes estados nacionais. Afirma-se, com efeito, a sua capacidade de construir um saber específico sobre competências necessárias aos estudantes. Vale dizer que o PISA “procura tornar-se no instrumento de referência e que sua capacidade de expansão é uma das chaves para o seu sucesso” (CARVALHO, 2013, p. 67). O Comitê do PISA mobiliza debates públicos, nos quais supervaloriza os dados quantitativos; tecendo críticas ao currículo ou à gestão da escola, notadamente na relação despesa versus desempenho dos alunos; apesar das críticas, os atores em cena geralmente enaltecem a importância do Certame, no sentido de fotografar os resultados obtidos pelos alunos. Dito de outro modo, valoriza-se “um componente externo e quantitativo” (AUTOR, 2018, p. 134.).

4. A avaliação em larga escala e o PISA

À semelhança do fetichismo do mercado, expressão cunhada por Karl Marx, de que a mercadoria opera como se fosse portadora de vontade própria, a avaliação parece ter-se transmutado em alvo de adoração dos planejadores das políticas educacionais dos países, como se fosse detentora de um poder mágico de, por si só, atribuir qualidade à educação.

A avaliação transfigura-se em fenômeno político, eis que envolve programas, redes de ensino, projetos, faz uso de recursos públicos. Seu impacto político nos sistemas educacionais se alarga para a sociedade como um todo. Apoia-se em reformas educacionais, seja nos currículos, na gestão, no financiamento, na assistência técnica, nas políticas e programas, entre outros. Convindo com Ventura (2016a, p. 19), pode-se sublinhar a lógica de que [...] “a avaliação das políticas educacionais deveria ter como preocupação fundamental em que medida estas políticas contribuem substancialmente para o aprimoramento da ação dos profissionais da educação e das escolas, que compreendem a desigualdade estrutural da sociedade”.

As características da avaliação em larga escala dizem respeito a planos de longo prazo, aplicados em períodos de tempo delimitados, que permitem a análise temporal de evolução ou não evolução. Mais do que produzir novos dados, os sistemas de ensino devem gerar debates e reflexões sobre os indicadores existentes, na perspectiva da tomada de decisões, de interpretação dos resultados, não se detendo apenas no produto, mas no processo. Há que se imprimir significação a esses elementos, à luz das realidades vividas. Nessa perspectiva, pode inserir-se a promoção da equidade da oferta educativa, induzindo novas políticas ou programas para fazer frente às necessidades diagnosticadas.

A carga de intervenção nos Estados nacionais se dá pelo uso das informações praticadas, redundando em uma “forma de governação” (AFONSO; COSTA, 2009, p. 140). De modo análogo, os dados estatísticos, os ranqueamentos e os comparativos publicados são meios de pressão sobre os sistemas, exigindo-lhes a prestação de contas, compondo, a partir da instrumentação abundante, um quadro de interpretação do mundo, segundo sua ótica.

As reflexões levadas a termo pela academia e pelo coletivo dos docentes podem imprimir tensões às visões dominantes, por meio da proposição de avaliações que envolvam múltiplas dimensões. Para Afonso (2009), sublinha-se a construção de modelos democráticos e transparentes de avaliação, prestação de contas e de responsabilização (accountability); implica, igualmente, a valorização social, cultural e política dos processos de participação, negociação e justificação, bem como adesão de modelos exemplificados de justiça e equidade social, educacional e avaliativa.

Ventura (2016b, p. 15) refere que a avaliação deve ser um meio de “partilhar e transferir conhecimento, competência e poder”. O autor prossegue na assertiva de que a avaliação converteu-se num fim em si mesma, propondo que se catalise energia e inteligência para aspectos mais fundamentais da educação, tais como [...] “formação inicial e continuada de professores, bem como a promoção de práticas de ensino diferenciado em sala de aula”. (VENTURA, 2016b, p. 28).

O Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA), criado em 1997 e aplicado em 2000, afere conhecimentos e habilidades dos alunos na faixa etária de 15 anos de idade, 7ª série ou 8º ano. Realizado nos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e em países convidados, acontece a cada três anos, avaliando as áreas de leitura, matemática e ciências. A agência situa o PISA como um serviço que oferece, aos países que a integram, a possibilidade de terem à disposição dados e indicadores fidedignos de desempenho da educação de seus países. Sob tal vértice, o PISA impõe-se como gerador de conhecimento para a política educativa, revertendo-se em poderoso instrumento de regulação supranacional.

O cenário que engendra o Inquérito remete, segundo Carvalho (2011), já na década de 1950, às pesquisas internacionais sobre avaliação do desempenho de estudantes. Posteriormente, o panorama, sob a influência da OCDE, prossegue com a aferição quantitativa, diagnosticando a eficácia dos sistemas (CARVALHO, 2011). Em perspectiva semelhante, Nóvoa (1999) elucida que há uma relação simbiótica entre os indicadores escrutinados via avaliações e as políticas educacionais e, ainda, credita à avaliação uma falta de modernização e inovação.

A estratégia avaliativa do Exame parece desconhecer os Programas Curriculares dos países participantes do Certame, seu foco reside em literacia da leitura, literacia científica, e literacias matemáticas, com monopólio de abordagens dirigidas aos jovens de 15 anos. Para Carvalho (2011, p. 52), “o que parece estar em causa é o governo da educação, enquanto fator gerador de vantagens na competição global e a comparatividade dos sistemas educativos de produzirem uma força de trabalho ‘flexível’, capaz de responder eficazmente às necessidades do mercado de trabalho”. Assim, sob a bandeira da qualidade, propõe-se a monitorar os países, recorrendo a ferramentas diversas, estatísticas, comparações internacionais, identificações de boas práticas e boas políticas. (CARVALHO,2011, p. 62).

O Inquérito constitui-se em dispositivo internacionalmente aceito, que compara desempenhos escolares entre países, revelando-se num importante mecanismo de ações da OCDE, que se justifica, segundo seus argumentos, para medir a qualidade da educação. Para a OCDE, “o PISA é um esforço colaborativo, que reúne a expertise científica dos países participantes”. Além da dimensão técnica, o PISA amealha capital político, pela validação internacional que lhe é conferida, não só pelos que participam do certame como membros, mas também como convidados. Nas palavras de Carvalho (2011, p. 69), “fabricam agendas para o governo da educação em nome de um conhecimento pericial”.

Ainda que a OCDE não expresse literalmente em sua missão institucional a funcionalidade da regulação (JAKOBI, 2012), são visíveis suas interferências na regulação das políticas públicas, notadamente, as educativas, nas duas últimas décadas. Entre as Políticas Públicas, a educação tem recebido profunda carga de influência dos organismos internacionais, acentuando-se a regulação que opera em caráter transnacional (LEMOS, 2014). Seu escopo, inequivocamente, é a regulação política e social dos sistemas de educação. Não por acaso, a definição de políticas públicas de educação tem interessado a esses organismos, deixando de ser atributo exclusivo dos estados nacionais. Com efeito, os grandes destinos da educação são gestados em nível supranacional, além fronteiras. No momento em que o conhecimento é a grande moeda, passa a ocupar um lugar no coração da competição econômica e - por extensão - a transmissão desses conhecimentos, designadamente, a educação (MOUTSIOS, 2009).

Torna-se, assim, estratégico para as agências multilaterais participarem tão avidamente na produção de diretrizes para conduzir a educação. Para Carvalho (2011, p. 15), o PISA configura-se como um dispositivo técnico e social, pelo fato de que “associa (i) procedimentos de medida e meios de conhecimentos a (ii) interpretações acerca do campo educacional e da ação educativa, bem como acerca dos modos através dos quais devem ser regulados”. O autor (id) prossegue, afirmando que o PISA não apenas aponta as capacidades de aprendizagem dos países, mas, sobretudo, sinaliza para quais modos de aprender, os que possuem potencial competitivo mundial. Fabrica e circula, portanto, uma determinada tecnologia de conhecimento e políticas. Tal contexto, para a política, objetiva designar que saberes podem orientar os gestores em seu planejamento e ação.

A racionalidade demonstrada evidencia um conhecimento gerado pelo PISA, segundo Carvalho (2011), como “transgressivo” e que “autoriza a si mesmo” e avança:

No processo de produção do conhecimento transgressivo e que se autoriza a si mesmo, encontramos uma manifestação da regulação transnacional que se exerce sob as relações entre produtores de conhecimento político; por um lado, as autoridades públicas outorgam o estatuto de experts a certos atores sociais, bem como selecionam e determinam que conhecimento é válido para ser usado no campo político; por isto, as autoridades aceitam [...] orientação e controlo do sector educativo; finalmente, as relações entre as autoridades públicas e os peritos nacionais e internacionais são geradas e geridas sob a égide da OCDE (CARVALHO, 2011, p. 72-73).

Carvalho e Costa (2011, p. 41) advertem que o PISA é muito mais do que um grande Inquérito. Ou seja: Programa é um espaço de organização que põe em cooperação mundos sociais muito diversos - investidores de centros de pesquisas públicos ou privados, peritos, profissionais da OCDE, decisores políticos, burocratas e tecnoestruturas da administração - e que recorre a sofisticados meios de coordenação entre produtores de conhecimento pericial e entre estes e os atores que operam nos campos da política, da administração, da educação e da investigação. Estas alianças atuam no sentido de que o PISA não só se mantenha em evidência e com prestígio, como faz ampliar seu raio de ação, desencadeando um evento de intensificação e sofisticação dos processos de regulação transnacional e educacional (CARVALHO; COSTA, 2016).

A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, cujo foco destacamos, é uma organização com alto grau de sofisticação. Em tese recente, Lemos (2014) descreve o grau de aprimoramento da direção de educação da OCDE, a qual, por exemplo, é composta por vários programas, entre os quais o Comitê do PISA (OCDE, 2012). A manutenção de sua influência se dá também pela literatura que produz. Os discursos da OCDE são veiculados por meio de documentos, textos, livros, bases de dados, papers, entre outros, destacando-se como uma das maiores editoras do mundo neste campo. Essa dinâmica contribui para tornar a OCDE credível cientificamente, já que tais documentos podem ser acessados por diferentes consumidores, sejam gestores, famílias, pesquisadores etc.

A Organização tem consciência dessa ingerência que causa e a monitora por meio de levantamentos, que apontam seus impactos nas políticas educativas dos países. No caso deste estudo que envolve o PISA, o exame é legitimado, pela adesão dos países-membros, como Portugal, e dos países convidados, como o Brasil, os quais levam em conta seus resultados na formulação de medidas educacionais. A influência da OCDE, por meio do PISA, revela sua multirregulação, já que cria ideias, agrupa realidades distintas e difunde o conhecimento.

As críticas dirigidas ao PISA, pelo seu caráter estandardizado, são resumidamente apontadas por Fernandes (2004), quando assinala os contextos, os currículos, o tipo de amostragem, entre outras discrepâncias entre países, como dificuldades em estabelecer comparativos entre realidades distintas.

São muitas as ressalvas atribuídas ao Certame. Para efeito deste trabalho, concentramos o esforço na análise da regulação supranacional, que, sem minimizar outras interferências, representa uma lente de análise, em consonância com nossos objetivos, de que esta parece estabelecer uma nova governação, uma influência supranacional. A avaliação em Larga Escala, denominada PISA (Programme for International Student Assessment), idealizada pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) acontece a cada três anos nos países-membros da organização. Na construção da proposta, vislumbra-se uma resposta da OCDE às próprias exigências/necessidades dos países-membros de disporem de dados sobre conhecimentos e competências dos sistemas educacionais (AFONSO; COSTA, 2009).

Para alguns, essa avaliação tem o mérito de divulgar uma base de dados e informações sobre o desempenho cognitivo, propiciando o cruzamento de indicadores entre estados nacionais, escolas e estudantes testados, acompanhando, assim, a evolução das performances dos países envolvidos. Fica visível a diferença entre os melhores e os piores desempenhos, acirrando as desigualdades educacionais (BRASIL, 2010). Segundo a mesma fonte (BRASI, 2010), no Brasil, a média do exame está em ascensão, a evolução mais positiva foi obtida por Portugal, Itália, entre outros países.

O PISA inscreve-se na perspectiva da regulação da educação como política pública, atendendo aos propósitos de uma economia baseada no conhecimento. Nesse particular, combinam-se a regulação e os elementos de mercado ao domínio público, que, segundo Afonso (1999), aumenta o controle sobre as escolas, bem como insere dispositivos de publicização dos resultados, promovendo a competitividade entre as redes de ensino. Para Carvalho (2011), o PISA mantém-se e se fortalece alargando seu território de influência, seja ampliando seu poder argumentativo. Tais características alongam sua influência na decisão das Políticas Educacionais.

O uso do Indicador Internacional, enquanto processo de decisão política, difunde um tipo especial de conhecimento, no caso do exame de avaliação de desempenho, na leitura, nas ciências e na matemática e suas literacias. Assim, a OCDE acaba por regular a política educativa, a partir de instrumentos de avaliação em larga escala, como o PISA, comparando desempenhos entre países e sistemas de ensino. O programa denominado PISA, bem como outras avaliações dos Estados Nacionais, tem um caráter indutor de Políticas Educacionais, levando os sistemas à tomada de decisões baseadas nos índices apurados no exame.

Pelo fato de ser coordenado pela OCDE e sua experiência em estudos comparativos, é portador de uma lógica que o legitima. Assim, segundo Afonso e Costa (2009), essa visão legitimadora é veiculada pela credibilidade, pela maleabilidade, pela relevância simbólica e pela pertinência aos diferentes sistemas educativos (AFONSO; COSTA, 2009. p. 143).

Conforme já mencionado, segundo os mesmos autores, a OCDE apresenta grande credibilidade de seus métodos; a maleabilidade envolve a possibilidade que o instrumento possui de ser adaptado a diferentes contextos, a relevância simbólica reside no simbolismo dos processos de adesão dos países, dando-lhes visibilidade e integração às agendas internacionais; a pertinência dá ao PISA grande relevância política, já que conscientiza, indica problemas e valoriza os bons indicadores dos sistemas avaliados. Para Afonso (1999), essa modalidade de avaliação estandardizada é congruente com o mercado, de caráter normativo e não formativo ou emancipatório.

Autor (2019, p. 129) elucida que “a avaliação das organizações em geral, e das organizações educativas, em particular, torna-se um importante instrumento de controlo e regulação”.

Considerações finais

O ensaio em tela balizou-se pela influência do Inquérito sobre as políticas educacionais dos distintos países, no caso deste estudo, a regulação sobre as Políticas Educacionais de Portugal e Brasil.

O propósito-guia da pesquisa pretendeu examinar a tese da regulação supranacional das políticas educativas, operada pela OCDE, via PISA, de modo comparado entre Portugal e Brasil. No marco desse propósito, objetivou-se a reflexão sobre as evidências existentes nas políticas educacionais em nível supranacional; o reconhecimento do PISA como instrumento que hierarquiza o conhecimento, legitimando-o pela competitividade entre países; a atribuição de rankings; além de reflexões acerca do monitoramento e pilotagem da OCDE, por meio do PISA, induzindo políticas.

A construção do percurso metodológico buscou fundamentação na teoria sociocrítica, nomeadamente, dos estudos comparados de natureza crítica. Revisitando os objetivos previstos e sua interface com as categorias eleitas para análise dos autores timoneiros do estudo, algumas reflexões podem ser emanadas, conforme se sublinha a seguir.

A decisão política acerca das medidas educativas é pressionada pela velocidade das mudanças. Tal cenário potencializa a influência dos organismos multilaterais, que, em escala transnacional, reduzem a autonomia dos Estados-Nação que, em dimensão planetária, são instados a acatar as recomendações supranacionais. Pode-se afirmar, com base em Antunes (2006), que há um “deslocamento” da construção de políticas pelos estados nacionais, que demandam pelas avaliações, parecendo estabelecer uma governação padronizada. A perspectiva da regulação supranacional, protagonizada pelo Inquérito, inicia-se pela determinação econômica, consubstanciando a edificação de uma lógica de mercado. Essa retórica, que é alheia à argumentação derivada da cultura filosófica e científica, é sobreposta por uma linguagem que apresenta a ciência, no ideário do Exame Internacional, “como uma espécie de máquina de produzir progresso” (BART; DAUNAY, 2018, p. 10).

Este estudo convoca a refletir sobre a influência e o protagonismo do PISA, ao atribuir-se o éthos de ator científico na educação comparada, hierarquizando os países pelo conhecimento, numa escala de vasta amplitude, desconsiderando que os mecanismos externos à escola - como a ordem social, econômica e cultural - também impactam nos resultados. Reitera-se que seu discurso tem a presunção de tornar universal a sua narrativa, fazendo uso, por sua vez, do texto literário, como metáfora para legitimar-se e fabricar realidades. Desconhece a necessidade de políticas sociais assertivas, além de outros mecanismos.

Enquanto ator transnacional, a OCDE se firma em face de sua expansão territorial (75 países), bem como de sua continuidade em um espaço de tempo (desde os anos 2000). Tal expansão, nomeadamente em Portugal e Brasil, ao produzir indicadores estatísticos, produz também, segundo Carvalho (2011), um efeito de desalinhamento em nível metodológico. Nos casos brasileiro e português, não espelha as desigualdades do contexto educacional desses países, sendo, portanto, uma visão parcial.

Há que se ponderar que não se rechaça a importância da avaliação, mas que se enseja a reflexão acerca de suas escolhas metodológicas, os fundamentos de seu discurso, entre outros traços que dão credibilidade, e, em certa medida, de suposta infalibilidade do PISA.

Ademais, o apelo recorrente à educação não retira a clivagem econômica da OCDE, agência econômica e não educacional, denotando seus interesses e ideários voltados à dimensão econômica, que não podem ser obliterados. Com efeito, o indicador quantitativo fica sujeito a distorções e perde confiabilidade.

Este artigo não esgota a reflexão, outros estudos poderão deslindar ângulos de análise de diferentes clivagens para compreensão do tema. Convindo-se com Bart e Daunay (2018), toma-se de empréstimo a pergunta: “Pode-se levar a sério o PISA?”.

3No momento em que realizamos este estudo, o mundo vive uma pandemia mundial de coronavírus (COVID-19).

4Modo de gestão empresarial, com reforma do Estado, repercutindo nas políticas sociais, reorientando as práticas de gestão da educação com base em eficiência, eficácia, produtividade, dentre outros fatores.

5Esse movimento ganha força no Brasil, no momento das novas forças políticas que estabelecem metas para a educação.

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