Introdução
A cidade de São Paulo tem a maior rede municipal de educação do país (IBGE, 2021). Tem também um dos maiores percentuais de professores(as) com formação superior, aproximadamente 97% (SÃO PAULO, 2021). A carreira é regida pelo Estatuto do Magistério Municipal, que assegura plano de carreira com progressão por tempo de serviço e títulos e garantia de concursos públicos periódicos para provimento das profissionais do magistério, sendo esta a principal forma de contratação de docentes da rede, como constatam Camargo, Jacomini e Minhoto (2014). Também estão garantidos horário de trabalho pedagógico remunerado e formação continuada. O piso salarial, em março de 2021, para a jornada de 40 horas/aula (h/a) semanais do(a) professor(a) com Ensino Superior completo é de R$3.832,37. Esse valor é 32,8% superior ao piso nacional, atualmente de R$2.886,24. Cabe ressaltar, no entanto, que a remuneração dos(as) professores(as) no país é atualmente cerca de 30% mais baixa do que a remuneração média recebida pelos(as) demais profissionais com formação universitária (OLIVEIRA, 2021) e que o custo de vida no município de São Paulo é o mais elevado do país (EXPATISTAN, 2021) (MERCER, 2021). A busca por melhores salários faz com que muitos(as) professores(as) da Rede Municipal de Educação de São Paulo (RME-SP) recorram ao acúmulo de cargos, quer seja com outro cargo na rede municipal ou na rede estadual ou ainda na rede privada, assumindo assim jornadas superiores a 60h/a semanais. A lei municipal nº 14.660/2007 permite que um docente tenha jornada de até 70h semanais, assim como o acúmulo de uma função gestora como direção ou coordenação pedagógica (40 h) com a função docente (30h/a) (SÃO PAULO, 2007).
O montante gasto com a educação básica no município, também vai muito além dos valores mínimos e mesmo das médias nacionais, sendo de R$13.894,82 o investimento anual por aluno da educação básica, estabelecidos pelo governo federal, em 2019 (FNDE, 2021). O valor é superior inclusive às estimativas relacionadas ao Custo Aluno Qualidade inicial (CAQi) (SIMCAQ, 2020), o dispositivo presente na Emenda Constitucional 108/2020, que instituiu o novo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB), com o objetivo de mensurar o montante de recursos necessários à melhoria da qualidade da educação brasileira. Também aqui cabe a ressalva em relação ao custo de vida elevado no município de São Paulo.
Apesar do investimento relativamente alto, a questão da violência nas escolas é pauta constante nas reivindicações dos Sindicatos dos Profissionais de Educação, assim como o elevado número de alunos nas salas de aula. Cabe destacar que as Escolas Municipais de Educação Infantil (EMEIs) atendem até 35 crianças por turma na faixa etária de quatro a cinco anos, com apenas uma professora responsável e sem auxiliar. Esta relação está muito acima da média nacional na esfera municipal, que é de 21 alunos por adulto, considerada boa pelo PNE/2001 (BRASIL, 2001), assim como do limite de 25 alunos por turma, recomendado atualmente pelo próprio Ministério da Educação (MEC, 2020).
A escolas de São Paulo não escapam a um fenômeno mundialmente conhecido: o adoecimento e afastamento de professores(as), quer seja por meio de licenças médicas ou das readaptações funcionais temporárias e definitivas. Evidentemente, esses afastamentos tendem a acarretar muitos transtornos ao cotidiano escolar, prejudicando as atividades educativas e sobrecarregando os(as) demais profissionais das unidades, favorecendo novos adoecimentos, em um aparente círculo vicioso.
Diante desta realidade e com o objetivo de analisar os fatores intervenientes já identificados sobre “Saúde e Adoecimento Docente”, foram feitos levantamentos sobre o tema em produção bibliográfica e nos canais eletrônicos da Prefeitura Municipal de São Paulo (PMSP). Os resultados, com destaque para um relatório sobre o Absenteísmo Docente realizado pela Fundação Carlos Chagas (FCC) com financiamento da SME-SP em pareceria com a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), serão apresentados a seguir.
1. O Adoecimento Docente
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), “a saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não somente a ausência de doença e enfermidade” (OMS, 1946).
De acordo com Andrade (2007), o debate sobre o mal-estar docente inicia-se na Europa entre as décadas de 1970 e 1980, com a constatação da chamada deserção docente. Ainda em 1983, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) constatou que os(as) professores(as) representavam a segunda categoria entre as vítimas de doenças ocupacionais.
Esteve (1999) atribui o mal-estar às modificações no papel do(a) professor(a), escassez de recursos, falta de apoio social, limitações institucionais, aumento da violência nas escolas e esgotamento docente, a chamada Síndrome de Burnout. O termo burnout pode ser traduzido como ‘perder o fogo’ ‘perder a energia’ ou “queimar para fora” (numa tradução mais direta). Refere-se a uma síndrome caracterizada por stress excessivo e prolongado, através da qual o trabalhador perde o sentido da sua relação com o trabalho.
Maslach e Jackson (1981) definem o burnout como uma reação à tensão emocional crônica gerada a partir do contato direto e excessivo com outros seres humanos, particularmente quando estes estão preocupados ou apresentam problemas. O(a) trabalhador(a) se envolve afetivamente com aqueles(as) a quem atende, se desgasta e, num extremo, entra em burnout.
Segundo Codo e Vasquez-Menezes (2000), a síndrome é caracterizada por três componentes: exaustão emocional, despersonalização e falta de envolvimento pessoal no trabalho. Segundo esses autores, estudar o adoecimento da(o) professor(a) requer pensar sobre a objetividade e a subjetividade intrínsecas ao trabalho docente.
Manfré (2014), após analisar 21 teses e dissertações produzidas entre 2001 e 2010 que tinham como temática o mal-estar docente, destaca que refletir criticamente sobre o próprio mal-estar é uma possibilidade de real experiência para o(a) educador(a). Mais do que procurar formas de prevenir ou curar o mal-estar do(a) professor(a) transformando-o em bem-estar, seria importante refletir a partir dele e do que acontece na escola e fora dela, como parte de um processo real de esclarecimento e formação, podendo contribuir à sua subjetivação para além da racionalidade tecnológica.
A partir de levantamento de teses e dissertação posteriores a 2010, na Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD), segundo a palavra-chave “adoecimento docente”, foram encontradas 16 pesquisas relacionadas a questões ligadas ao adoecimento docente na educação básica. Quando realizada na plataforma Coordenação de Aperfeiçoamento do Ensino Superior (CAPES), a pesquisa gera outros 14 resultados. Grande parte dos objetos de estudo está relacionada ao adoecimento e mal-estar docente, à Síndrome de Burnout e suas relações com as condições de trabalho, trabalhos de Bordalo (2014), Carvalho (2014), Mendes (2015), Ozólio (2015), Xavier (2015), Oliveira (2016), Santos M. (2016), Corcher (2017), Groba (2018), Tupinamba (2018), Frota (2019) e Zafalao (2019). Destacam fatores como o acúmulo de funções da escola e do(a) professor(a) a partir do domínio da visão neoliberal nas políticas educacionais e/ou a contextos de violência, utilizando metodologias como entrevistas, questionários, estudos de casos e/ou de documentações quantitativas.
Há pesquisas exclusivamente dedicadas à revisão bibliográfica do assunto Couto (2018) e Sacco (2017), que se dedicam a estudar historicamente, sob referencial freudiano o que chamam de “Renúncia ao Professar”. Neris (2018) dedica-se a analisar a questão de professores readaptados buscando tanto as causas dessa readaptação como os efeitos para esses indivíduos e para a rede de educação em que estão inseridos. Há pesquisas que se dedicam a olhar o impacto de certas políticas e/ou reformas educacionais para a saúde do(a) professor(a), como Cabral (2014) que analisa o impacto da disseminação dos grupos escolares para a saúde dos professores no início do século XX e Reis (2017) que analisa o impacto das Políticas Educacionais Mineiras entre 2003 e 2014, o que representa um “Choque de gestão”.
Estão presentes também pesquisas dedicadas a estratégias de resistência ao adoecimento, como Marcelino (2011), que propõe a produção de narrativas pelos docentes, Gouvea (2015), que analisa as lutas sindicais ligadas ao direito à saúde docente e Fernandes (2015) que estuda a potencialidade do processo grupal. Há ainda pesquisas ligadas a questões específicas da área da psicologia e da saúde, como Lima (2015), que trata dos procedimentos de escrita docente e Gomes (2019), que analisa a recusa de redes de educação em admitir professores obesos e Silva (2017), que estuda a medicalização e a Síndrome de Burnout.
2. Adoecimento docente na Rede Municipal de Educação de São Paulo
Uma busca no portal da BDTD com a palavra-chave “saúde professores rede municipal de São Paulo” gerou 95 resultados enquanto outra a partir de “adoecimento professores rede municipal de São Paulo” gerou 10 resultados. Destaca-se a seguir trabalhos apresentados nestas buscas e em buscas anteriores, cuja relação com essa pesquisa é evidente.
Em sua tese defendida na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSS-USP), Santos(2005) analisa as readaptações e entrevista professores(as) readaptados(as) e conclui que o sofrimento dos mesmos está relacionado com a frustração das necessidades humanas e à falta de realização no trabalho, advinda de situações como classes numerosas, jornadas extenuantes, desvalorização do magistério, excesso de responsabilidades transferidas à escola, conflitos internos a partir da dificuldade de fazer com que o aluno aprenda. A pesquisa conclui que a exposição contínua a essas experiências faz com que o tempo de magistério esteja ligado ao desgaste das capacidades vitais dos(as) professores(as).
Macaia (2014), que em sua tese defendida na FSS-USP faz uma análise sobre o processo de afastamento de docentes por transtornos mentais e comportamentais, o retorno ao trabalho na RME-SP e o processo de readaptação às escolas, concluindo que um projeto multi-institucional deve integrar ações de prevenção ao adoecimento mental e afastamentos e promoção à saúde garantido tanto vigilância em saúde como capacitações ligadas ao processo de readaptação.
Silva (2018), em outra tese defendida na FSS-USP estuda, a partir de pesquisa em escolas municipais e estaduais de São Paulo, o impacto da modificação do trabalho e consequente invasão do trabalho aos espaços e tempos da vida pessoal, gerando sofrimento, precarização e adoecimento.
Alves (2016), em dissertação na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), analisa as correlações entre as condições ambientais de São Paulo e as enfermidades que geraram afastamento de professores(as) na RME-SP, entre os anos de 2006 e 2012, utilizando como fatores sexo, idade, tempo de exercício no magistério municipal, localização das escolas e patologias. A autora conclui que as condições ambientais da cidade e as condições de trabalho merecem atenção quanto às possíveis correlações com o desenvolvimento de patologias por docentes, muitas vezes submetidos(as) ao trânsito de uma escola para outra no meio do dia, por vezes sem horário adequado para refeição e cuidado pessoal e sob o estresse da possibilidade de atraso, assim como por profissionais de outras categorias também submetidas a esses fatores. Os resultados sugerem que ao longo dos anos, com a exposição constante, cresce o risco de adoecimento.
Em sua dissertação de mestrado em fonoaudiologia, pela PUC-SP, Peruchi (2017) analisa as condições de trabalho docente na perspectiva dos professores, a partir de material elaborado por eles(as) em um curso EAD, chamado “Promovendo o Bem-Estar Vocal do Professor”, realizado pela PUC-SP em parceria com a SME-SP. Os fatores ambientais mais levantados foram: ruído, temperatura e limpeza inadequados. Quanto à organização do trabalho destacaram-se a falta de comprometimento e situação de violência.
A partir de dados obtidos pelo Portal da Transparência, o jornalista William Germano, em reportagem publicada pelo jornal Folha de São Paulo, concluiu que a RME-SP teve em média 62 afastamentos devido a transtornos mentais por dia, totalizando aproximadamente 22 mil afastamentos durante o ano de 2018, superando tanto em números absolutos quanto proporcionais à quantidade de servidores, os números do mesmo tipo de afastamento dos profissionais da Segurança Urbana e Saúde (FOLHA DE SÃO PAULO, 2019). A resposta oficial da PMSP afirmava que a Secretaria de Gestão havia constituído um grupo de trabalho intersecretarial para discutir causas e soluções para a diminuição dos afastamentos. Afirmava ainda que a gestão entendia a natureza do trabalho docente e seus desafios e, em decorrência disso, a Coordenação de Gestão de Saúde do Servidor (COGESS) fazia encontros com diretores de escola, programas de promoção à saúde e de orientação aos readaptados.
Ao consultar o portal da COGESS, encontram-se dois programas voltados à prevenção do adoecimento dos(as) servidores(as) municipais: “Programa de promoção à saúde com práticas integrativas e complementares - PROSPIC” e “Saúde Vocal”. O primeiro consiste atualmente na promoção da prática de Lian Gong4 em algumas unidades das secretarias de Educação e Guarda Civil Militar, atingindo em 2018, cerca de 800 servidores(as). O segundo programa é especificamente voltado a educadores(as) e se propõe a dar formação aos(às) professores(as) sobre saúde vocal e também provocar reflexão e controle sobre fatores ambientais que podem trazer risco. As ações do referido programa consistem em curso on-line de dois meses de duração e palestras sobre Saúde Vocal nas escolas, conforme solicitação. O portal também apresenta dados epidemiológicos relacionados à saúde do(a) servidor(a), porém não há divisão por categoria (COGESS, 2020).
Não foi encontrado inicialmente, no portal da SME ou da COGESS, nenhum estudo específico da PMSP que levantasse dados sobre o adoecimento e/ou afastamento docente do trabalho, tampouco sobre as relações entre as condições de trabalho e o adoecimento.
Inicialmente, a presente pesquisa intencionava levantar os dados ligados ao adoecimento docente na RME-SP através da análise dos registros de licenças médicas e readaptações durante os anos de 2016 a 2019. Para tanto, foi feita uma solicitação para SME no dia 19 de abril de 2020, no Portal de Transparência através do Sistema Eletrônico de Informações (e-SIC) de dados detalhados, porém anônimos, acerca das licenças e readaptações de professoras no período compreendido entre 2016 e 2019. Essa solicitação não foi atendida no prazo e passou automaticamente para a segunda instância, com prazo de resposta até 30 de junho de 2020. A resposta só foi recebida em 12 de maio de 2021, quase um ano depois, apenas com quantitativos de readaptações temporárias e definitivas ano a ano e a indicação de que os demais dados requisitados seriam de responsabilidade da Secretaria Executiva de Gestão. Diante da ausência de resposta, foi feita uma segunda solicitação de devolutiva referente ao primeiro pedido, que retornou em 14 de setembro de 2020 informando prorrogação do prazo e finalizando a solicitação no mesmo dia.
Entre as duas solicitações, foi registrada ainda uma reclamação na Ouvidoria do Município e a resposta informou que a segunda solicitação estava dentro do prazo. Tentou-se então solicitar dados junto à Diretoria Regional de Educação da Penha. A Diretora Regional remeteu o pedido à SME e por fim negou a solicitação, justificando negativa de autorização pela SME de fornecer os dados requeridos. No dia 29 de outubro de 2020, foi feita a solicitação dos dados à Secretaria Municipal de Gestão, com a ressalva de que se não fosse possível obter o nível de detalhamento inicialmente requerido, dados mais gerais também seriam bem-vindos. Desta vez a resposta negativa foi dada um mês depois, com a justificativa de que a ferramenta de extração de dados disponível não permite a obtenção da informação e o acionamento da Empresa de Tecnologia de Informação e Comunicação do Município - PRODAM, geraria custos ao município. No entanto, Alves (2016) obteve, para a sua pesquisa de mestrado, através de carta encaminhada ao Departamento de Saúde do Servidor (DSS) responsável à época pela gerência das informações, os dados de 1999 a 2012 extraídos do Sistema Integrado de Gestão de Pessoas e Competências (SIGPEC) mediante o compromisso do envio posterior dos resultados da pesquisa.
A partir da divulgação de evento da Escola do Parlamento, realizado de forma on-line em 21 de outubro de 2020, tomou-se conhecimento do estudo de autoria da FCC encomendado pela SME-SP, em parceria com a UNESCO, que trata do levantamento e estudo de dados do absenteísmo docente, revelando números preocupantes sobre licenças médicas (ESCOLA DO PARLAMENTO, 2020). O relatório completo da pesquisa possui 338 páginas e está disponível para leitura e download no portal da SME através da área “pátio digital”, embora não seja tarefa fácil encontrá-lo (FUNDAÇÃO CARLOS CHAGAS, 2020).
A leitura do relatório final, produzido em julho de 2020 pela FCC, financiado pela SME-SP em parceria com a UNESCO, trouxe muitos dados a que a presente pesquisa não teve acesso inicialmente e possibilitou muitas observações e extrapolações.
A pesquisa da FCC recaiu sobre os anos de 2018 e 2019 em várias frentes: levantamento bibliográfico; pesquisa quantitativa envolvendo análise de dados de 2008 a 2019, já levantados anteriormente pelo Centro de Informações Educacionais (CIEDU) - SME; dados obtidos dos sistemas de controle de frequência da PMSP; e pesquisa qualitativa in loco em escolas selecionadas por estarem entre aquelas que têm mais altos ou mais baixos índices de ausências, com aplicação de questionários a professores(as) e gestores(as) e entrevistas com gestores(as) e professores(as) considerados(as) assíduos(as), direcionados a obter informações sobre o “clima escolar” e os impactos das ausências.
Logo na Introdução do documento, chama atenção a seguinte afirmação:
Na Educação, a ausência dos funcionários ainda é um campo a ser explorado. Parte dos estudos consultados que se referem ao absenteísmo docente na rede municipal de São Paulo possui caráter exploratório, dada a existência de poucos estudos sobre o tema e a falta de acesso a dados sobre as ausências de professores (FUNDAÇÃO CARLOS CHAGAS, 2020, p.15).
Há no relatório uma nota de rodapé relacionada que explica que a SME se mostrou disposta a fornecer os dados aos pesquisadores, porém, encontram-se em diferentes bases de dados dos sistemas administrativos e é preciso solicitar autorizações de instâncias superiores. Ao longo do relatório é explicitado a enorme dificuldade de tabulação de dados de bases distintas, que utilizam muitas vezes nomenclaturas distintas em referência a um mesmo evento ou cargo e também trazem dados repetidos. Ao mesmo tempo em que esta informação condiz com a recebida por esta pesquisa às solicitações realizadas à SME e Coordenadoria de Gestão durante o ano de 2020, por outro lado, ao longo do relatório fica evidente a existência de levantamentos anteriores de afastamentos e licenças produzidos pelo Centro de Informações Educacionais (CIEDU) - SME que poderiam ter sido disponibilizados.
A falta de transparência e dificuldade de acesso aos dados, constatada na pesquisa realizada pela FCC, também é reconhecida em outras instâncias. O Sindicato dos Especialistas de Educação do Ensino Público do Município de São Paulo (SINESP), ante a dificuldade de conseguir dados necessários aos encaminhamentos e formações sindicais e trabalhistas oferecidos aos quadros gestores das unidades educacionais, desde 2007 passou a produzir seus próprios dados disponibilizados todos os anos por meio de um documento denominado Retratos da Rede. A coleta dos dados é realizada anualmente junto aos gestores e são analisadas as seguintes dimensões: gestão de pessoas, apoio técnico da SME, capacitação, ambiente físico e equipamentos, saúde e violência. De posse das informações, o SINESP e o Instituto Cultiva5 criaram o ISEM (Índice SINESP da Educação Municipal de SP) medido em uma escala de 0 a 1, em que valores mais próximos a 1 expressam melhor avaliação da educação paulistana. Observou-se na série histórica de 2013 a 2020 que os piores índices estão relacionados às dimensões gestão de pessoas e saúde, com valores ISEM inferiores a 0,25 (SINESP, 2019).
A ausência de transparência nos dados foi motivo de moção de repúdio publicada no Diário Oficial da Cidade de São Paulo no dia 24 de março de 2021 ante a não divulgação dos índices de contaminação por COVID-19 de profissionais da educação, alunos e prestadores de serviços das unidades escolares da RME-SP. Dentre as considerações para a moção, consta “o direito constitucional de todo cidadão brasileiro receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular ou coletivo”. (SÃO PAULO, 2021) e pede que o prefeito e o secretário da educação sejam notificados pela Câmara Municipal de São Paulo.
O portal Pátio Digital da RME-SP apresenta-se como iniciativa da SME para fortalecimento da transparência, por meio dos dados abertos, colaboração governo-sociedade e inovação tecnológica . Lá, encontra-se o Banco de Desafios que se apresenta como um levantamento de questões identificadas na RME-SP, passíveis de investigação e pesquisa. Este banco, dentre outras coisas, refere-se à evasão e absenteísmo docente e não consta nenhuma vez a expressão adoecimento ou quaisquer questionamentos referentes à saúde das(os) trabalhadoras(es) da educação, o que corrobora com esta pesquisa sobre o uso da expressão que culpabiliza as(os) trabalhadoras(os) mas não considera as condições de trabalho e os possíveis focos para o adoecimento da categoria.
A opção do estudo pelo Absenteísmo docente pela SME, considerando tanto faltas como licenças, revela a visão de que os(as) professores(as) se abstêm de ir ao trabalho, responsabilizando-os(as) pelas ausências. Essa escolha levou os(as) pesquisadores(as) da FCC a buscar por este termo ao realizarem o levantamento bibliográfico:
Mediante levantamento bibliográfico realizado na Scientific Electronic Library Online (SciELO) e no Portal da Coordenação de Aperfeiçoamento do Ensino Superior (Capes) - e também no Google Acadêmico -, constatou-se que a maior parte da produção acadêmica existente sobre o tema do absenteísmo pertence à área da Saúde, particularmente à Enfermagem. São trabalhos que tratam do absenteísmo principalmente de enfermeiros e técnicos dessa área (FUNDAÇÃO CARLOS CHAGAS, 2020, p.17).
A existência de grande número de trabalhos relacionados ao Absenteísmo na enfermagem, categoria também majoritariamente feminina e na qual a falta do profissional acarreta prejuízo imediato aos pacientes e equipe com reduzidas possibilidades de flexibilização de horários - o que difere inclusive da classe médica -, permite a reflexão sobre os pontos em comum entre a enfermagem e a docência, e o que esse absenteísmo pode indicar. Questões relacionadas ao gênero e à maternidade certamente mereceriam estudos específicos neste caso, assim como outros considerando a Síndrome de Burnout, mas essa informação também contribui para a formulação de hipótese de que as faltas de professores(as) podem não ser necessariamente mais numerosas do que as dos(as) demais servidores(as) e funcionários(as). Como a falta de um(a) docente tem reflexo imediato na turma em que é esperado(a), não há espaço para acordos internos de compensação de ausências, como ocorre na maioria das outras profissões, inclusive em outras funções dentro da escola. O que se está levantando aqui é a possibilidade de o mesmo absenteísmo presente na enfermagem e no magistério existir em maior ou menor grau em diversas outras categorias dentro e fora de escolas e hospitais, apesar de não ser visível, porque os casos são resolvidos informalmente com trocas e compensações de horários. Talvez professores(as) e enfermeiras(as) façam mais falta...
A revisão bibliográfica realizada pela pesquisa da FCC, revela importantes resultados:
Em uma revisão integrativa recente (SANTI; BARBIERI; CHEADE, 2018), realizada nas bases de dados eletrônicas Literatura Latino-americana e do Caribe em Ciências da Saúde (Lilacs) e SciELO, foi estudado o absenteísmo-doença no serviço público brasileiro para verificar como, em pesquisas nacionais, esse fenômeno se configurava e quais eram as estratégias propostas para prevenir o adoecimento e a promover a reabilitação do servidor público. Nos oito artigos selecionados, observou-se o predomínio de Doenças Osteomusculares (DOM) e Transtornos Mentais e Comportamentais (TMC) em várias áreas, inclusive entre os servidores da Saúde e da Educação. Os faltosos eram, predominantemente, pessoas do sexo feminino com mais de 40 anos de idade, e o tempo de duração de suas licenças aumentava proporcionalmente ao tempo de carreira (FUNDAÇÃO CARLOS CHAGAS, 2020, p. 21-22).
Mais adiante no referido relatório encontram-se quadros de dados anteriormente compilados pelo CIEDU-SME acerca dos diversos tipos de ausências docentes entre 2009 e 2019. Uma informação considerada especialmente relevante é o fato de as licenças por acidente de trabalho serem evidentemente mais significativas entre os(a)s professores(as) no cargo “Professor de Educação Infantil” (de 9,9% a 20,9% dos dias de ausência por ano) do que entre os(as) professores(as) no cargo “Professor de Ensino Fundamental II e Ensino Médio” (de 5,9% a 8,8% das ausências anuais), ficando os(as) professores(as) no cargo “Professor de Educação Infantil e Ensino Fundamental I” em patamar intermediário (de 8,7% a 14,6% dos dias de ausência por ano), o que pode sugerir uma maior exposição de docentes da Educação Infantil a riscos de acidentes e doenças diretamente ligadas ao trabalho.
É possível verificar que a maior parte das ausências, no ano de 2013, varia de 51,2% entre docentes no cargo “Professor de Ensino Fundamental II e Ensino Médio” (docentes especialistas) a 69,8% entre docentes no cargo “Professor de Educação Infantil” (docentes generalistas que atuam no Centros de Educação Infantil principalmente com crianças de 0 a 3 anos), e são dias de licenças médicas, decorrentes de adoecimento. Nesta conta estão somadas as licenças por acidentes de trabalho, licenças concedidas pelas chefias a partir de requisição médicas e licenças periciais (aquelas avaliadas e concedidas pela COGESS), não estando incluídas as licenças gestante e licenças para tratamento de saúde de familiares.
O relatório categoriza as ausências em “com” ou “sem” perda salarial, colocando em segundo plano a questão do adoecimento docente, revelado pelos números como responsável pela maior parte dos dias de ausência, ainda que não se considere a possibilidade de grande parte das faltas também estarem relacionadas a dias de enfermidade e/ou mal-estar em que se opta por repousar sem procurar um médico.
Ao revelar como fatores importantes para “faltar mais”, a condição de ser integrante do sexo feminino, ter menos de 45 anos, acumular cargos e não ter cargos sobrepostos, a pesquisa possivelmente revela a fragilidade da saúde assim como condições de vida e trabalho da professora. Esse resultado merece uma investigação mais específica das possíveis implicações nele contidas, como a maternidade e tempo de sala de aula.
Optou-se na pesquisa da FCC por entrevistar em cada escola um(a) professor(a) considerado(a) assíduo(a), além de coordenadores pedagógicos, o que pode facilitar a percepção dos impactos das ausências dos(as) colegas no cotidiano escolar, que são muitos. Destacam-se entre os relatados desde a descontinuidade do trabalho pedagógico, a resistência das crianças pequenas a permanecerem com outros(as) professores(as), a sobrecarga para os(as) gestores(as), demais professores(as), funcionários(as) da escola até a necessidade de mudanças em horários de alimentação e limpeza. Por outro lado, a escolha de ouvir somente o(a) professor(a) assíduo(a) compromete o entendimento dos motivos das ausências. No entanto, é importante apontar que o critério de “assiduidade” utilizado pelos(as) gestores(as) que indicaram os(as) professores(as) a serem entrevistados possivelmente não é o mesmo utilizado no próprio relatório.
Embora o processo de escolha das escolas aponte claramente que um maior grau de complexidade de gestão da escola está relacionado a um maior número de ausências, a conclusão do estudo não inclui proposições de mudanças nas estruturas das escolas a fim de reduzir a complexidade da gestão.
Considerações Finais
O fenômeno do adoecimento docente está evidentemente presente no cotidiano das escolas do município de São Paulo estabelecendo desafios cada vez maiores aos(às) gestores(as) e interferindo nas condições de trabalho de todos(as) no ambiente escolar, assim como prejudicando o processo educativo. Sabe-se que este fenômeno é complexo envolvendo aspectos ambientais, condições objetivas e subjetivas relacionadas inclusive com a frustração e resistência dos(as) profissionais perante a pressão das demandas da sociedade por produtividade e resultados.
Considera-se que a amplitude e relevância da questão mereceria a atenção contínua da SME-SP, no sentido de tornar os dados cada vez mais transparentes e em contínua coleta, análise e revisão, orientando inclusive reformas e adequações físicas, redução do número de crianças por sala de aula em consonâncias com as orientações internacionais, intervenções no funcionamento das escolas e na carreira dos(as) professores(as). Porém, os dados e análises, que já foram mais frequentes e disponíveis, são atualmente escassos ou estão indisponíveis para a sociedade em geral.
A flagrante indisponibilidade dos dados sobre o adoecimento docente, assim como a inexistência de estratégias amplas de prevenção ou mesmo do cálculo dos seus impactos revelam muito sobre o tratamento precário recebido atualmente pelos(as) professores(as) do município de São Paulo. O financiamento de uma pesquisa direcionada à investigação do “absenteísmo” em detrimento do “adoecimento”, realizada por instituição externa à gestão pública e portanto por pesquisadores(as) com conhecimento limitado sobre o histórico de funcionamento e gestão dos recursos humanos da RME_SP, é mais uma evidência da estratégia atual da SME-SP de negação do problema perante a sociedade, procurando culpabilizar os(as) professores(as) por um fenômeno do qual são as principais, mas não únicas, vítimas.