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Jornal de Políticas Educacionais

On-line version ISSN 1981-1969

J. Pol. Educ-s vol.16  Curitiba  2022  Epub May 30, 2023

https://doi.org/10.5380/jpe.v16i0.83554 

Artigos

“É muito triste isso, cara, ver uma criança não entrar por causa de 100g!”: Decisões discricionárias na implementação de uma política intersetorial de combate à fome

"It is very sad, man, to see a child excluded because of 100g!": discretionary decisions in the implementation of an intersectoral policy to reduce child malnutrition.

“¡Es muy triste, hombre, ver a un niño no entrar por 100g!”: Decisiones discrecionales en la implementación de una política intersectorial para combatir el hambre.

Leane Rodrigues Martins1 
http://orcid.org/0000-0002-6272-1626

Rodrigo Rosistolato2 
http://orcid.org/0000-0002-4025-0632

Ana Pires do Prado3 
http://orcid.org/0000-0002-5897-6503

Maria Comes Muanis4 
http://orcid.org/0000-0001-5187-6545

Diana Gomes da Silva Cerdeira5 
http://orcid.org/0000-0002-3623-4672

1Doutoranda em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-6272-1626 E-mail: leanermartins@gmail.com

2Doutor em antropologia. Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-4025-0632 E-mail: rodrigo.rosistolato@gmail.com

3Doutora em Antropologia. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-5897-6503 E-mail: anapprado@yahoo.com

4Doutora em Sociologia. Professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-5187-6545

5Doutora em Educação. Professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-3623-4672. E-mail: dianacerdeira@yahoo.com.br


Resumo

O artigo analisa o acesso às Creches e Centros de Atendimento à Infância Caxiense. São escolas para crianças desnutridas ou em risco nutricional. Oferecem educação infantil, assistência social e alimentação. Trata-se de uma política intersetorial do município de Duque de Caxias/RJ. Observamos a pesagem das crianças e mapeamos as ações e decisões discricionárias dos gestores escolares, nutricionistas e assistentes sociais envolvidos no processo. As interações entre os profissionais e as famílias definem a ocupação das vagas, sobretudo quando a demanda é maior do que a oferta.

Palavras-chave: política intersetorial; desnutrição; discricionariedade; crianças; educação

Abstract

The article analyzes access to Child Care Centers in Caxias (CCAICs). They are schools designed to care for children malnourished or at nutritional risk. They provide early childhood education, social assistance and food. This is an intersectoral policy in the municipality of Duque de Caxias / RJ. We observe the weighing of children and the discretionary actions and decisions of school managers, nutritionists and social workers involved in the process. The interactions between professionals and families define the occupation of vacancies, especially when the demand is greater than the supply.

Keywords: intersectoral policy; malnutrition; discretion; children; education

Resumen

El artículo analiza el acceso a los Centros de Atención a Infancia de Caxias (CCAICs). Son escuelas que ofrecen educación infantil, asistencia social y alimentación para niños desnutridos o con riesgo nutricional. Se trata de una política intersectorial del municipio de Duque de Caxias / RJ. Observamos el pesaje de los niños y mapeamos las acciones y decisiones discrecionales de los directores de escuela, nutricionistas y trabajadores sociales. Las interacciones entre profesionales y familias definen la ocupación de vacantes, especialmente cuando la demanda es mayor que la oferta.

Palabras Clave: política intersectorial; desnutrición; discreción; niñez; educación

INTRODUÇÃO

Este artigo descreve e analisa as políticas de acesso às Creches e Centros de Atendimento à Infância Caxiense (CCAICs), voltadas para a garantia dos direitos das crianças e ao combate à vulnerabilidade infantil causada pela fome. Analisamos as ações dos agentes responsáveis por selecionar as crianças que ingressam nos CCAICs, apontando os dilemas vividos por eles - burocratas de nível de rua no sentido proposto por Lipsky (1980) - no momento em que definem quais crianças ocuparão as vagas ofertadas.

Os CCAICs compõem uma política intersetorial das áreas de educação, saúde e assistência social. Foi implementada no início dos anos 2000. Eles – sete ao todo - atendem crianças em risco nutricional e desnutrição. Fazem parte da rede municipal de ensino de Duque de Caxias, mas o acesso se dá por critérios específicos. É condicionado ao estado nutricional das crianças (de um a cinco anos), avaliado através de pesagem e medida de altura realizada por nutricionistas da Secretaria Municipal de Saúde, na presença de assistentes sociais e dos gestores das escolas.

Descreveremos a política dos CCAICs, abordando o processo histórico de implementação e seu caráter intersetorial. Traremos as discussões teóricas sobre implementação de políticas públicas, burocracia e discricionariedade, que pontuaram as questões e ancoraram a análise. Apresentaremos os dados mapeados no primeiro ano da investigação.

1 - HISTÓRICO E CARÁTER INTERSETORIAL DAS CCAICs

Inspirada nas ações nacionais dos Programas Ação Cidadania e do Programa Fome Zero, parte da sociedade civil, liderada por Dom Mauro Morelli6, lançou, no município de Duque de Caxias, o projeto “Mutirão Contra a Desnutrição Materno-infantil e Pelo Direito à Infância”. As equipes do Mutirão eram compostas por voluntários da Pastoral da Criança, universitários de Cursos de Nutrição e funcionários da Secretaria Municipal de Saúde. Em 2001, cerca de 23.000 crianças com até 5 anos de idade foram pesadas em visitas domiciliares. Constatou-se que mais de 70% dessas crianças estavam desnutridas ou em risco nutricional; seus pesos e/ou estaturas eram inferiores aos índices estabelecidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como saudáveis.

Esses dados foram apresentados à Câmara Municipal de Vereadores e utilizados na formatação do primeiro Projeto de Combate à Desnutrição Infantil no município. Originalmente pensado como Casa de Passagem, apenas para recuperação nutricional das crianças e apoio social às famílias, o projeto foi transformado em uma unidade escolar. Quando passou a atender às crianças desnutridas de até cinco anos, com educação, saúde e assistência social foi denominado de Portal do Crescimento.

O Programa Portal do Crescimento7 foi inaugurado no quarto distrito de Duque de Caxias, no bairro Amapá, local com maior número de desnutridos. Previa atendimento educacional, ações sociais voltadas para as famílias, com cursos profissionalizantes e entrega de cestas básicas. Em 2004, outras seis unidades denominadas "Portais do Crescimento" foram implementadas em bolsões de pobreza do município, onde havia números elevados de crianças desnutridas.

O Portal do Crescimento deu origem à criação do Conselho Municipal de Notáveis8, com objetivo de monitorar e avaliar a política, articulando a intersetorialidade que o projeto requeria.

Atualmente, os CCAICs preservam do desenho original somente as quatro refeições diárias na unidade escolar. O atendimento médico que acontecia dentro da unidade, tornou-se hoje encaminhamento aos Postos de Saúde. Já as cestas básicas que eram distribuídas às famílias foram suspensas em 2016, mesmo ano em que a SME passou a disponibilizar transporte escolar gratuito para as unidades. Embora o desenho original da política tenha se modificado, os CCAICs consolidaram-se como um espaço pedagógico, em meio ao desafio de recuperar a saúde das crianças, afetadas em seu desenvolvimento pela desnutrição.

As ações intersetoriais visam evitar que a desnutrição dos alunos se agrave ou retorne nos finais de semana, feriados prolongados e férias.

A intersetorialidade e, por conseguinte, a perspectiva de integralidade nela implícita, busca o estabelecimento de parcerias entre segmentos institucionais; neste caso saúde-educação-assistência social, no sentido de trabalharem juntos para o alcance de objetivos e metas comuns. Segundo Azevedo, Pelicioni e Westphal (2012), a intersetorialidade consiste na obtenção de certa unidade, apesar dos diferentes setores envolvidos, tentando estabelecer vínculos que superem a fragmentação e a especialização de cada instituição.

A intersetorialidade que marcava o primeiro projeto em uma série de ações articuladas, reduz-se hoje ao momento de seleção para a matrícula no CCAIC, quando há a presença de nutricionistas, assistentes sociais e gestores escolares na pesagem das crianças. A concepção de que a desnutrição precisava ser combatida através de ações frequentes que articulavam vários aspectos, voltadas não apenas às crianças, mas também às suas famílias, parece limitar-se atualmente ao atendimento ofertado pela unidade escolar e SME: o direito à educação infantil, às quatro refeições diárias e ao transporte escolar.

2 - A BUROCRACIA E AS AÇÕES DISCRICIONÁRIAS

Os estudos de implementação de políticas públicas envolvem uma série de ramificações analíticas relevantes e pertinentes. PRESSMAN e WILDAVSKY (1984) indicam o início do processo de implementação como o momento da mudança da “política” para “programa; quando uma autoridade, um gestor, cria as "condições iniciais" à implementação. Eles também destacam as dificuldades em se distinguir a implementação da política da própria política ou programa. HUPE; HILL; BUFFAT (2015) apontam que as interações desenvolvidas no decorrer da implementação não ocorrem de forma neutra exatamente porque há espaços decisórios completamente imprevisíveis no momento do desenho da política, de forma que a implementação revela-se como um espaço redefinidor do que fora prescrito nos momentos anteriores, da discussão pública e do desenho. Logo, os espaços de implementação consolidam-se como locus de pesquisa para questões ligadas à efetivação das políticas.

Nesse artigo, seguimos a linha interpretativa inaugurada por Lipsky (1980). O autor argumenta que os agentes de implementação, aqueles que são responsáveis pelo contato direto com os beneficiários das políticas, por ele chamados de – street level bureaucracy, burocratas em nível de rua em tradução livre, realizam leituras particulares e conjecturais de todos os protocolos desenvolvidos para o ordenamento do acesso à política.

Cada política pública tem um desenho específico, com foco em um conjunto de beneficiários elegíveis como escopo da política e ela também contém critérios e protocolos para avaliação e seleção dos beneficiários. A questão é que por mais que tais critérios sejam objetivos e pré-definidos, a vida social é sempre mais complexa de forma que ao mesmo tempo em que os burocratas em nível de rua encontram pessoas absolutamente elegíveis para uma determinada política e outras totalmente inelegíveis, há também um conjunto de pessoas que estariam – por conta de suas características sociais – nos limites das fronteiras entre os elegíveis e os não elegíveis. Esse grupo coloca dilemas para os burocratas, que não são necessariamente dilemas legais, mas por vezes dilemas morais. Tal cenário ganha ainda mais complexidade quando a demanda pela política é maior do que a oferta existente, o que obriga os burocratas a tomarem decisões considerando cada caso, e sem que os critérios objetivos definidos pelo desenho de implementação sejam suficientes para orientar as decisões.

Os profissionais da linha de frente das políticas públicas – conforme também descrito pelo estudo de Maynard-Moody; Musheno (2000) – trabalham por vezes em uma zona cinzenta, com clareza de que suas ações terão impacto direto na vida dos beneficiários das políticas públicas. Os níveis de discricionariedade variam em cada caso e em relação com as funções exercidas, mas a presença de ações desenvolvidas durante as interações com os beneficiários, independentemente dos saberes técnicos e organizacionais é, na perspectiva dos autores, indiscutível.

No Brasil, Lotta (2010; 2015; 2018a) tem desenvolvido análises articuladas aos modelos interpretativos pontuados por Lipsky (1980). A autora desenvolveu uma pesquisa sobre o trabalho dos agentes comunitários de saúde do programa Saúde da Família. Ela argumenta que no decorrer das interações entre os agentes e os beneficiários do programa há, inclusive, mudanças nos modos como as políticas foram concebidas. Decisões de todos os tipos – organizacionais e individuais – com níveis específicos de discricionariedade fazem com que os rumos da implementação da política ganhem outras ramificações impossíveis de serem pensadas por quem elaborou o desenho.

Além dela, esse tipo específico de decisão foi analisado por Oliveira; Paes de Carvalho (2017) em seu estudo sobre a lógica do merecimento que perpassa a implementação de políticas públicas. O mesmo fenômeno aparece na investigação realizada por Almeida (2019) sobre as interações entre gestoras e famílias no cotidiano de uma escola. Todos esses trabalhos revelam as peculiaridades e as especificidades dessas interações que envolvem lógicas jurídico-legais e morais. Eles indicam a presença de decisões absolutamente contextuais, realizadas no plano específico da interação desenvolvida no tempo e no espaço em que os burocratas e os beneficiários da política se encontram. Tais ações convivem com outras, protocolares, regulares. Tal convivência ocorre exatamente porque ambas as formas de ação não são mutuamente excludentes.

Há uma conexão direta – em termos teóricos e metodológicos – do estudo que realizamos com aquele desenvolvido por Lotta (2010; 2015; 2018a). Além de partimos dos modelos e argumentos trazidos por Lipsky (1980), nós também optamos pela etnografia como forma de produção de conhecimento sobre a política pública analisada. Entendemos, em convergência com a autora, que o olhar etnográfico permite o mapeamento das minúcias de cada interação desenvolvida entre os burocratas em nível de rua e os beneficiários da política. No nosso caso, em específico, trabalhamos em equipe e organizamos todos os procedimentos relacionados às observações em conjunto, algo que tem sido uma das marcas9 das investigações que temos realizado. A abordagem etnográfica permitiu que acompanhássemos os burocratas antes, durante e depois das atividades de pesagem das crianças e das decisões relacionadas à ocupação das vagas disponibilizadas em 2020.

Os sete CCAICs, no organograma da SME, são vinculadas à Coordenadoria de Educação Infantil (CEI), que pertence ao Departamento de Educação Básica (DEB), ligado à Subsecretaria Pedagógica (SP), cuja função primordial é acompanhar, supervisionar e garantir a distribuição equânime das oportunidades educacionais em todas as escolas da rede. Nesse contexto é fundamental compreender as ações e as interações desenvolvidas pelos implementadores de políticas que representam o Estado (LOTTA, 2010; 2015; 2018a). Nosso foco de análise é justamente a ação dos burocratas responsáveis pela pesagem das crianças, com vistas a compreender os espaços de ação individual e seus constrangimentos estruturais.

A SMS possui uma equipe de nutricionistas que é responsável pelo atendimento à população nas Unidades Básicas de Saúde (UBS), Postos de Saúde (PS), Clínicas da Família e o Hospital Municipal Moacyr do Carmo. Para atendimento aos alunos dos CCAICs, nas datas de pesagem inicial de acesso, ocorre um rodízio conforme a escala funcional desses servidores. Na SMASDH (Secretaria Municipal de Assistência Social e Direitos Humanos) há servidoras que atuam diretamente na SME, mais precisamente no DEB e na própria CEI. Esses profissionais formam uma Comissão Permanente de Acompanhamento de Acesso aos CCAICs e são acionados pelas Gestoras para validação da matrícula no caso de alguma criança em estado de desnutrição que busque a unidade fora do período regular de pesagem ou quando há vagas ociosas.

Esses profissionais são responsáveis pela definição dos destinos e trajetórias das crianças candidatas às vagas, pois interagem diretamente com elas e suas famílias, podendo, como argumentamos, ser classificados como “burocratas de nível de rua". (LIPSKY, 1980; HUPE, HILL e BUFFAT, 2015, LOTTA, 2010; 2015; 2018a). Por tratar-se de uma política com um processo seletivo específico para os beneficiários, há espaços de ação discricionária (LIPSKY, 1980) por parte dos agentes implementadores. Por isso, buscamos compreender as ações dos agentes da linha de frente da implementação dos CCAICs, destacando as potenciais consequências da sua atuação nos resultados objetivos da política. Considerando que a demanda por vagas tende a ser maior do que a oferta, criase uma situação em que cada grama de peso das crianças importa. Entretanto, com exceção das gestoras escolares, os servidores lidam com o público alvo apenas em um momento pontual da política - a pesagem de classificação para ingresso na CCAIC. Além disso, o rodízio de profissionais nas pesagens das diferentes unidades nos permite argumentar que os graus de apreensão dos limites estruturais e dos espaços de ação discricionária no âmbito dessa política são reconstruídos a cada pesagem.

3 - A PESAGEM DE 2020

Observamos todas as pesagens para acesso aos sete CCAICs no ano de 2020. Cada unidade tinha um dia e horário determinado e o processo durou duas semanas10. Realizamos uma etnografia da pesagem, mapeando os processos decisórios vivenciados pelas nutricionistas, assistentes e gestoras, ao definirem quais seriam as crianças consideradas aptas e inaptas para a matrícula nos CCAICs. Nosso método consolidou-se mais como “participação observante” do que como “observação participante” (WACQUANT, 2002).

Algumas pesquisadoras foram até os CCAICs no carro oficial da SME, junto com as assistentes sociais e nutricionistas responsáveis pela pesagem. O trajeto também foi alvo de observação e interação com as profissionais antes e depois da pesagem: ao todo foram 3 assistentes sociais e 3 nutricionistas, algumas novatas e outras veteranas nessa atividade. Já as gestoras escolares aguardavam nas respectivas unidades.

Enquanto esperavam, os responsáveis pelas crianças preenchiam uma ficha com dados pessoais. Alguns deles relataram ter chegado horas antes do horário marcado. As pesagens ocorreram em locais indicados pelas gestoras: salas de aula, de enfermagem ou na sala da direção. As salas tinham maca ou algo improvisado como tal, balança pediátrica e balança plataforma com medidor de altura. Em algumas salas havia uma régua de medição na parede, mas sem possibilidades de uso pela restrição do espaço11. Antes da pesagem a equipe organizava o espaço e os equipamentos. Posteriormente eram registradas nas fichas das crianças informações sobre a vacinação, o sexo, a idade, o peso, altura, os percentis, o diagnóstico nutricional e a definição que informava se aquela criança estaria apta ou inapta para a vaga.

Por ordem de chegada, as crianças entravam na sala com seus responsáveis, sendo orientadas a tirarem a roupa para a pesagem. As nutricionistas orientavam para a retirada da fralda devido ao peso da urina. As crianças com até 1 metro de altura eram medidas na maca e pesadas na balança pediátrica, os maiores eram medidos e pesados na balança plataforma. Os dados eram falados em voz alta para serem anotados na folha de registro. A assistente social verificava se as vacinas estavam em dia, se o nome do pai constava na certidão de nascimento da criança e se a família recebia bolsa família. As pesquisadoras auxiliaram em algumas situações, como por exemplo, o registro dos dados nas fichas. Já as diretoras não participavam do processo, mas presenciaram algumas pesagens. O resultado não é divulgado imediatamente e os pais são orientados a aguardar a comunicação da escola.

Ao final das pesagens, as nutricionistas compararam os registros de peso e altura de cada criança com uma tabela da OMS. Assim, classificaram as crianças como "desnutrição”, "risco nutricional" ou "adequação", indicando se estão aptas, não aptas ou em lista de espera para ingressar naquela CCAIC. Adiante veremos que essas indicações variam de acordo com o número de vagas de cada unidade e a possibilidade ou não de ampliá-lo, definida pela gestora no momento imediatamente posterior à pesagem.

Os CCAICs foram instalados em locais classificados pelo poder público como bolsões de pobreza e vulnerabilidade social e/ou pela presença de baixos índices de desenvolvimento humano e altos índices de violência. Observamos a vulnerabilidade social das famílias a partir e alguns relatos nas salas de pesagem: situações de perda de documentos por enchentes, perda de mercadorias que garantiriam alguma renda, casos de crianças sem a carteira de vacinação atualizada por ausência de vacinas nos postos ou por impossibilidade dos responsáveis levarem as crianças, casos de ausência de certidão de nascimento.

Ao mesmo tempo em que os agentes implementadores reconhecem as questões sociais envolvidas, tendem a julgar as famílias por, nas suas visões, deixarem as crianças de lado, malcuidadas. Há falas obtidas no trabalho de campo12 que reforçam essa percepção sobre as famílias.

O problema aqui são as drogas, né. A violência do morro (...), as famílias são muito envolvidas em coisas ruins e acabam deixando as crianças prá lá. (Gestora)

Se deixar a gente fica aqui até 17 horas! Não é justo. Tem mãe que chegou aqui cedinho! Traz a criança em jejum que é pra pesar menos. Você sabe que eles fazem isso? [pergunta para a pesquisadora] (Assistente social)

Quem trouxe foi a tia do pai. A mãe da criança é “solta no mundo”. Mas eu avisei que para matricular só pode ser pai ou mãe. (Gestora)

A seguir, descreveremos as ações dos burocratas, inclusive aquelas realizadas em vácuos presentes nas regulamentações de matrículas. Suas atuações ocorrem em contextos de desequilíbrio entre oferta e demanda, portanto tomam decisões que definem o destino nutricional e educacional das crianças. Tais decisões não são isentas de dilemas morais. Nosso foco não está direcionado para a denúncia e/ou culpabilização das agentes e sim para a compreensão dos seus limites e possibilidades de ação.

3.1 – OFERTA, DEMANDA E AÇÕES PRÉVIAS DAS GESTORAS

Em 2020, os CAICCs ofereceram 120 vagas que foram distribuídas entre 318 candidatos. A tabela 2 descreve a quantidade de vagas disponibilizadas em cada unidade, o número de candidatos que compareceram à pesagem e os autorizados a efetivar a matrícula. Também indicamos o número de candidatos que foram avaliados pelas nutricionistas com quadro de desnutrição aguda ou crônica e não foram atendidos por falta de vagas e a quantidade de vagas ociosas por ausência de candidatos considerados aptos para a faixa etária oferecida.

Tabela 1 Relação Candidatos x Vagas x Matrículas Efetivadas13  

CCAIC Vagas Candidatos Matrículas Candidatos aptos não atendidos Vagas ociosas
1 20 63 23 0 0
2 19 29 16 0 3
3 23 15 14 0 9
4 16 29 13 0 3
5 25 73 23 0 2
6 12 44 25 0 0
7 5 65 5 9 0

Fonte: Elaboração dos autores com dados da SMS e do trabalho de campo.

No tocante aos CCAICs, as Resoluções de Matrícula 2018, 2019 e 2020 não especificam o número de vagas. Portanto, devem seguir a regulamentação geral para as creches do município. A resolução de matrícula do município no ano em que realizamos o campo, determina um número de 20 estudantes por turma na educação infantil (creche e pré-escola)14. No entanto, o número de vagas nos CCAICs é definido pelas diretoras em função da quantidade e tamanho das salas15, organização interna e do pessoal de apoio disponível em cada unidade.

Lispky (1980) argumenta que em toda política há ações discricionárias por parte dos burocratas de nível de rua porque há dissonâncias entre a regulamentação e o plano da ação do burocrata. No caso específico das vagas, conforme relato das gestoras, a legislação referente ao número de estudantes por sala de aula é incompatível com os espaços disponíveis nas escolas e com o corpo de funcionários.

Há também disparidade de candidatos às vagas em cada CCAIC: há unidades com mais de 50 candidatos e outras com menos de 30. Deve-se considerar a existência de diferenças populacionais e estruturais entre os bairros de Duque de Caxias, como por exemplo, a existência ou não de creches e pré-escolas regulares na região dos CCAICs, que permitem explicar parcialmente a variação no número de demanda.

As interações com as gestoras permitiram perceber que esta variação também pode ocorrer por sua atuação discricionária em momento anterior ao do dia da pesagem. Identificamos três situações: 1- triagem prévia baseada em medidas de peso e altura aferidas pelas gestoras em dias anteriores ao da pesagem oficial; 2- orientação aos familiares para que crianças de determinada idade não comparecessem à pesagem porque não havia vagas para aquela turma e; 3- divulgação realizada propositalmente com pouca antecedência, de forma que as famílias não ficavam sabendo da pesagem.

Na primeira situação, ao ser questionada sobre a demanda reduzida em sua unidade, a gestora explicou que realizava uma triagem com as famílias que a procuravam, ou seja, ela mesma pesava e media, dizendo à família se a criança estava apta ou não para entrar. Caso fosse considerada "apta", a gestora entraria em contato para informar o dia da pesagem para ingresso no CCAIC.

Ela afirma que:

“De que adianta fazer o pai vir aqui à toa? Pesar uma criança gordinha...”

A gestora mostrou um caderno onde havia informações de cerca de 20 crianças "aptas" em sua percepção. Ela afirmou que esse procedimento não é orientação da SME, mas as nutricionistas presentes se mostraram favoráveis. Gestoras de outras unidades também indicaram que faziam ou já fizeram triagens prévias.

Para Lipsky (1980), essa é uma ação discricionária de adequação da clientela atendida. O atendimento ao público não ocorre de forma equânime e sim pautado nas relações, que favorecem determinados indivíduos, podendo existir troca de favores, conveniência ou repasse de informações específicas. Já Andrade (2006) argumenta que a intersetorialidade é marcada pela existência de “um consenso discursivo e um dissenso prático”. Ambos os autores nos permitem compreender as interações prévias às ações de implementação da política. Nesse caso, as ações da gestora antecederam os rituais de implementação, e pré-definiram quem poderia ou não participar da pesagem. Essa ação mascara a relação entre demanda e oferta de vagas porque não se sabe ao certo quantas crianças deixaram de ser pesadas e/ou foram previamente "eliminadas" pelas gestoras. Depois da pesagem realizada pela gestora, a criança pode ter entrado em estado de desnutrição, mas esse dado inexiste para além do caderno guardado na secretaria da escola.

Em outras unidades observamos a segunda situação que consiste na triagem prévia em função da idade. Em uma delas, a gestora avisou às nutricionistas que havia realizado essa triagem e que não seria necessário "usar balança pediátrica porque não fizeram fichas de crianças para turma de 1 ano, pois não há vagas". A opção, nesse caso, foi por impedir a pesagem, o que em certa medida também mascara a demanda. Não obstante, a Resolução de matrículas nos CCAICs garante o atendimento às crianças com déficit nutricional.

Por fim, a terceira situação consiste nos casos de unidades cuja informação e divulgação do dia de pesagem foi propositalmente limitada. Uma gestora afirmou não avisar com antecedência para evitar que a mãe/responsável deixasse a criança sem comer no intuito de baixar o peso intencionalmente para garantir uma vaga. Nesse caso, por conta de expectativas relacionadas aos comportamentos das famílias, a gestora delimita o acesso à informação, o que pode vir a limitar o acesso dessas mesmas mães à pesagem por simples desconhecimento sobre os dias e horários. Desta forma, é preciso assinalar que a demanda apresentada na tabela 2 representa um número já reduzido por conta de ações discricionárias que antecedem a pesagem.

3.2 OS DILEMAS DOS BUROCRATAS DE NÍVEL DE RUA NAS MATRÍCULAS PARA OS CCAICs

Além de ações discricionárias, foi possível observar os dilemas vividos pelos atores envolvidos no processo de pesagem e seleção das crianças para ingressar nos CCAICs. O primeiro conjunto de dilemas refere-se às três unidades em que havia um número menor de vagas do que o de crianças desnutridas. O segundo conjunto ocorreu em quatro unidades, quando havia mais vagas do que crianças classificadas como desnutridas. Nestes casos, o documento de orientação da secretaria16 indica que as vagas devem ser preenchidas por crianças em risco nutricional.

Nas duas situações, os dilemas vividos pelas gestoras escolares, nutricionistas e assistentes sociais envolviam a escolha das crianças que ocupariam as vagas. Contudo, quando a demanda era maior que a oferta, a definição final era da gestora da unidade. Já na segunda situação, eram as nutricionistas e assistentes sociais que atuavam mais diretamente na escolha das crianças. Embora a política esteja regulamentada e estabeleça protocolos, a realidade de extrema pobreza e vulnerabilidade social apresentada aos agentes naquele cenário de decisão extrapola as previsões e normativas legais.

3.2.1. QUANDO NÃO HÁ VAGAS PARA AS CRIANÇAS DESNUTRIDAS

O número das vagas por idade é fornecido pela diretora à equipe de pesagem, de forma que é possível sobrar vagas em uma turma e faltar em outra. Em uma das unidades a gestora disponibilizou 3 vagas além do que havia previsto inicialmente. Em outra, a gestora permitiu a matrícula de mais que o dobro de vagas. Inicialmente eram 12 vagas, mas permitiu a matrícula de 25 crianças.

Em uma dessas unidades, observamos que após as nutricionistas classificarem todas as crianças, havia 19 consideradas em desnutrição crônica, grave ou aguda e 10 em risco nutricional. Alguns casos, contudo, deixam as nutricionistas em dúvida sobre como agir. Neste CCAIC, três casos foram trazidos para debate ao final dos procedimentos de pesagem: (i) uma menina que não tinha certidão de nascimento, pois o pai não a assumia (ii) um menino que, ao ver a garrafa de água da nutricionista, pediu água e, posteriormente, pediu pão; (iii) um menino que por 400g não era enquadrado como desnutrido.

A nutricionista pergunta o que faz com uma criança que falta 400g para entrar na faixa de p3 (percentil que equivale a desnutrição crônica). A Assistente Social responde:

  • - Coloca!! É o caso da irmã sem certidão!

  • - Ah, então vou botar o outro irmão também. Nem que eu tenha que passar esse a limpo, porque sei lá vai que algum pai questiona e a diretora tem que mostrar, aí vai ver rasurado.

A diretora intervém:

  • - Não se preocupe, nos outros anos têm sempre rasura. Normal!

De novo a nutricionista pondera sobre outros casos, o de um menino que pediu pão na sala de pesagem e sobre o caso de dois irmãos em que um foi considerado desnutrição crônica e outro não:

  • - Falta 1 cm pra entrar! Ah, eu vou botar! (sobre o menino que pediu pão)

  • - Vou dar uma roubadinha também pra irmã entrar...

Após os ajustes de "repescagem", mais 4 estudantes são inseridos no perfil e, no total, 23 estudantes são considerados aptos. A diretora afirma que trabalhará com turmas mistas (de idades variadas), para não deixar de matricular nenhum aluno. Em outra unidade, no final da pesagem, 4 candidatos foram diagnosticados com desnutrição. Diante das vagas restantes, a nutricionista afirma que irá avaliar as 25 crianças em risco nutricional.

A diretora olha a listagem, diz que fará turmas mistas, pergunta as idades, diz que consegue atender mais 22 alunos. A nutricionista corta 3 estudantes. A diretora se arrepende e diz:

  • - Deixa, eu dou um jeito. Pode mandar, faço três turmas de 16 alunos, todas multi-idade.

Euforia na sala e a diretora pede que se ela for fuzilada pelas professoras que a ajudem por favor. Ela menciona a dificuldade do trabalho com turmas multi-idade.

Há CCAICs que não alteram o número original de vagas. Isso ocorreu em uma unidade em que a nutricionista identificou 9 crianças com desnutrição grave ou crônica e 7 crianças em risco nutricional na faixa etária de 1 a 2 anos. Ela então chama a diretora que reafirma só ter 5 vagas para estas idades. A partir de então a conversa revela a tensão e as negociações:

"A nutricionista é incisiva e afirma que não está falando em risco nutricional.

São diagnósticos de desnutrição(...)

A diretora pondera, olha listagem de dados e diz:

  • - Olha, essa que está com 2 anos e 9 meses e essa outra que está com dois anos e 10 meses dá para eu matricular na turma de 3 anos, mas só isso.

A diretora explica que as salas são pequenas e teve redução do pessoal de apoio. Afirma ainda que tem percebido o aumento do número de crianças desnutridas.

Contrariada, a nutricionista decide usar o requisito de baixo peso e baixa estatura concomitantes para decidir quem ficará com as duas vagas conseguidas pela diretora. Sendo assim, as duas crianças que haviam sido classificadas como desnutridas apenas pelo peso ou pela estatura ficaram de fora.

Para além dos dados objetivos registrados na tabela, nota-se que há casos que chamam a atenção das nutricionistas por outros aspectos de vulnerabilidade social evidenciados no momento da pesagem, resultando em ações discricionárias. Além disso, as decisões das gestoras sobre o número e expansão das vagas e da formação de turmas multi-idade são discricionárias e envolvem tensões com a equipe de profissionais que atuam nos CAICCs.

3.2.2 QUEM MERECE OCUPAR AS VAGAS?

Observamos que há um dilema relacionado a como preencher as vagas restantes com os candidatos em risco nutricional. São unidades em que há mais vagas do que crianças em níveis de desnutrição. Em uma das unidades, das 15 crianças avaliadas, 9 estavam no percentil p3, de desnutrição, e a nutricionista informou que todas as outras, com exceção de uma, estavam em risco nutricional, aptas para a efetivação da matrícula no CCAIC. A candidata considerada inapta tem uma irmã que já está no CCAIC e este foi um critério considerado para inclusão em outras unidades. Neste caso, deve-se ainda assinalar que, no momento da pesagem desta criança, a diretora entrou na sala dizendo que fazia uma triagem prévia e sabia que aquela criança não entraria porque já havia medido, pesado e avisado à mãe, que mesmo assim insistira na pesagem.

Em outra unidade, a pesagem era monitorada de perto pela diretora, que entrava constantemente na sala, olhava para a planilha de peso e altura ainda sem os percentis e saía da sala. Quando a nutricionista inseriu os percentis, a diretora entrou na sala e ouviu os dados de p 50 e p 85, o que indica crianças fora do perfil da política. Ela exclamou: “Meu Deus” e saiu da sala.

Assistente social (fala baixo): Estranho essa diretora! Tá muito perto, deve ter alguma prioridade. Mas a gente não pode atender não, hein!

Nutricionista: Como assim?

Assistente social: Ela tá muito aqui dentro, deve ter alguma mãezinha pra entrar, mas aí é com a nutricionista...

Nutricionista: Eu nem lembro! Da última vez que foi, que foi também a minha primeira, eu fiquei muito abalada de ver um irmão entrar e outro não.

Assistente social: E quando são gêmeos!? Já aconteceu com você? Entra um e o outro não.

Nutricionista: Não.

Assistente social: Ah, a gente tem que ter esse olhar! Eu pedi a [cita o nome da coordenadora da CEI]: Tem que ajudar! Tem que ajudar essa mãe!

Nutricionista: E aí?

Assistente social: Conseguimos! Colocamos os dois!

Após a análise final de peso e alturas das crianças, a diretora é chamada para a divulgação do resultado. 8 crianças estavam aptas.

Diretora: Agora a gente ajusta as vagas.

Nutricionista: Quais as vagas?

Diretora: 10 para a turma de 1 ano e 2 anos; 6 para a turma de 3 anos.

A nutricionista fala em voz alta analisando as tabelas de dados: de imediato entram 4 crianças. Todas de 1 ou 2 anos. Agora, se seguir o procedimento da outra vez, seguimos para avaliação de risco.

A diretora pede para anotar quantas crianças de 3 anos estão em risco, caso passe do número de vagas ela diz que tem que avaliar quem está mais vulnerável.

A assistente social intervém: Gente o caso dos irmãos, dá prioridade! Têm mais alunos que vagas?

A diretora pergunta diretamente à nutricionista: na sua opinião, pra recuperar o peso é melhor mais novo ou mais velho?

A nutricionista diz que não pode responder, que depende do caso e da gravidade da desnutrição. E sugere que entre quem está em risco em ambas as medidas: peso e altura, porque isso caracteriza uma desnutrição crítica. São 5 crianças a mais para a turma de 1 ano. 15 para 10 vagas.

Diretora: Nossa, só apareceram 2 crianças de 3 anos!

Nutricionista: Gente, não dá pra ficar avaliando e reavaliando. A questão social a gente não vê, né? Só a nutricional.

Assistente social: Não, não vê!

A diretora pede que a nutricionista faça uma varredura na tabela pra ver se não tem nenhuma criança de 3 anos que possa ser aceita, pois ela só tem 11 alunos! Tinha 9 do ano passado, mais 2 dessa avaliação, e diz que não conseguirá manter uma turma tão pequena (...) E fala: será que eu consigo uma turma mista de 2/3 anos? Vê aí? E pega a tabela das mãos da nutricionista, olhando com atenção.

A nutricionista conclui: entraram 12 crianças no total. Das 16 vagas disponíveis, ficaram 4 ociosas.

Após a negociação e definição das crianças aptas, a diretora avisa que chegou mais uma criança de 3 anos para ser pesada. A assistente social reclama do horário, mas a nutricionista faz a pesagem. A criança tem desnutrição crônica e entra. A diretora diz: “Vai entrar! Logo vi! Por isso eu deixei entrar, eu tô precisando também, né? Preencher as vagas! ”. No total são matriculadas 13 crianças. 3 vagas ficam ociosas.

Os trechos acima indicam que os burocratas de nível de rua são conscientes das ações discricionárias dos agentes envolvidos no processo. Há tanto a possibilidade de ação por parte da gestora, pedindo para colocar um ou outro aluno na creche ou mesmo solicitando que alguém seja pesado fora do horário, como a ação das nutricionistas e assistentes sociais, analisando o perfil das crianças e famílias no momento da pesagem.

Em outra unidade, observamos uma situação semelhante. Há primeiro um impasse entre as duas nutricionistas, pois uma quer definir a vaga a partir do percentil e a outra não.

Nutricionista 1: Não dá pra ficar olhando assim não, muita criança! Vamos diagnosticar tudo e depois se sobrar vagas a gente vê o que pode fazer. O manual diz que quem está baixo do peso entra de imediato, os que estiverem em risco, tendo vaga, a gente bota também.

Nutricionista 2: Só lembro de um caso de irmãos, caso um entre a gente bota os dois, pronto.

Após a análise das 73 crianças, as nutricionistas completaram 13 das 25 vagas existentes. Com a conclusão de que possuem 12 vagas ociosas, decidem verificar novamente. Começam a análise relembrando que uma criança havia chamado a atenção da nutricionista 2 no momento da pesagem, pois chorava e a mãe a amamentou em seguida. A mãe tinha 5 filhos.

Nutricionista 2: Ah é, ela, peraí, tem vaga? Tem. Então [...] ela vai entrar.

Ao observarmos as interações entre os agentes implementadores da política percebemos visões e críticas ao desenho geral da política e aos processos de implementação. As nutricionistas perguntam se não há critérios sociais para entrada de crianças muito carentes nas creches municipais comuns, diferentes dos CCAICs e a Assistente Social afirma que não.

A nutricionista 1 faz os cálculos de peso e altura e percebe que para a turma de 2 anos já tinha passado muito o número de vagas: ela já tinha 14 nomes para 4 vagas.

A nutricionista 2 ouve e responde contrariada: - Não vai dar...

- E o que vc pensa em fazer? Deixar as vagas ociosas com esse monte de gente precisando?

- Não, mas não dá pra atender todo mundo, então a gente vai ter que fazer um ranking de um por um desses aí que você achou perto no limite de risco de baixo peso ou altura...

Nutricionista1: repescagem

m 2 anos:

Enrique: 300g

Luis Fabiano: 900g

Letícia: 700g

Como tem 4 vagas, as três crianças acima entram e as 10 que estavam pelo menos com 1000g a mais perdem a vaga.

Nutricionista 1: turma de 4 anos:

Antônio: 100g

Nutricionista 2: -Nossa, isso eu tinha visto, 100g cara!

Nutricionista 1: - É muito triste isso, cara, ver uma criança não entrar por causa de 100g! É muito pouco! Fez cocô perdeu 100g[..]

Nutricionista 2: Mas não adianta.... Se não tiver vaga.... Não adianta...

A interação acima demonstra que as nutricionistas entendem a importância da política, como forma de salvaguarda da vida das crianças e se preocupam por deixarem tantas crianças fora da política por poucas gramas de peso, às vezes 100 gramas. Ao mesmo tempo, têm plena noção dos limites de suas ações.

A observação das pesagens nas diferentes unidades identificou, pelo menos, três critérios utilizados pelas burocratas nesse momento de alocação de vagas. Um deles é realizado pelas nutricionistas que analisam os dados de peso e altura das crianças e os seus percentis. Esse critério é objetivo, mas quando há mais vagas do que crianças elas negociam com a assistente social para indicar a vaga para uma ou outra criança. Nesse caso o critério é a percepção das agentes no curto período de interação com a família e as crianças. Entram em análise a situação da família e as visões sobre cada criança - se “parecia” desnutrida, feridas na pele, cáries nos dentes e o peso - e esses critérios definem quem fica com a vaga. O terceiro critério é o da gestora, que pode “olhar” para uma criança e “achar ela magrinha” e por isso solicitar que ela seja pesada mesmo tendo chegado fora do horário.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os dados deste artigo resultam do primeiro ano de investigação. Em nossa proposta de pesquisa, acompanharíamos as crianças após a pesagem inicial, considerando sua entrada no CCAIC e seu desenvolvimento – educacional e nutricional. Esse método foi interrompido por conta da pandemia de COVID-19. Com o fechamento e a proibição de circulação nas unidades escolares interrompemos o trabalho de campo. Utilizamos esse período para sistematizar e analisar os dados iniciais. Conforme deixamos claro no decorrer do texto, algumas considerações aqui realizadas ainda estão no terreno das hipóteses, que serão testadas na sequência da investigação.

Desde já podemos afirmar que as pesagens são realizadas por profissionais – com exceção das diretoras das unidades – que têm baixa aderência à política. O caráter sazonal das pesagens e o rodízio entre as profissionais de assistência social e saúde fazem com que o contato com as crianças e as famílias por parte desses profissionais seja reduzido, o que talvez explique a liderança das diretoras nos momentos decisivos da distribuição das vagas.

As diretoras também aparecem como agentes definidores da política nos momentos prévios à pesagem. Há diretoras que realizam pesagens não oficiais, e já naquele momento excluem crianças. Não tivemos acesso a essas pesagens esporádicas e a todos os registros feitos pelas diretoras, mas o caráter discricionário dessa ação foi evidenciado no trabalho de campo.

6Bispo da Diocese de Duque de Caxias entre os anos de 1981 e 2005.

7Lei nº1686/2003.

8Lei nº 1720/2003.

9Para um detalhamento dos trabalhos coletivos de observação, ver Rosistolato & Pires do Prado (2015).

10Uma pesquisadora observou as pesagens de todas as unidades. Em seis unidades as observações foram feitas por pelo menos três pesquisadoras.

11Em algumas creches as pesagens foram realizadas em salas de 2mx2m, entre mesas, cadeiras e armários.

12Considerando o tamanho do município de Duque de Caxias e as especificidades da política analisada, optamos por não nomear e/ou descrever os perfis dos profissionais observados, fazendo referência somente às suas funções para preservar o anonimato dos participantes.

13Observamos que: 1) nem todos as crianças consideradas desnutridas tinham vaga garantida nas CCAICs. 2). Algumas CCAICs efetivam mais matriculas do que as vagas disponíveis.

14Resolução de Matrícula da Rede Municipal de Duque de Caxias, anos 2018, 2019,2020.

15Os CCAICs funcionam, em sua maioria, em espaços adaptados.

16Manual de Acesso às Creches e Centro de Atendimento à Infância Caxiense

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Recebido: 01 de Outubro de 2021; Aceito: 01 de Fevereiro de 2022; Publicado: 01 de Março de 2022

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