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Jornal de Políticas Educacionais

versión On-line ISSN 1981-1969

J. Pol. Educ-s vol.16  Curitiba  2022  Epub 30-Mayo-2023

https://doi.org/10.5380/jpe.v16i0.86247 

Resenhas

Ideologia e Currículo

Wilian Carlos Cipriani Barom1 
http://orcid.org/0000-0002-8230-0845

1Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Ponta Grossa. Professor adjunto do Departamento de Teoria e Prática de Ensino da Universidade Federal do Paraná. Curitiba, PR. Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-8230-0845. E-mail: wborientacoes@gmail.com

Resenha da obra Ideologia e Currículo. W. C. C., BAROM. 3º ed.. Porto Alegre: Artmed, 2006.


Em tempos de implementação (ou não) da Base Nacional Comum Curricular no Brasil, onde professores e pesquisadores agora se debruçam sobre como lidar com este documento, é bastante conveniente um retorno ao clássico Ideologia e Currículo, de Michael Apple, publicado pela primeira vez em 1979. A versão aqui resenhada se refere à sua 3º edição, publicada em português em 2006, sob tradução de Vinícius Figueira, que contém o acréscimo de dois novos capítulos escritos por Apple em 2001 e 2004.

Dentre os inúmeros textos publicados pelo autor, Ideologia e Currículo é, seguramente, o seu trabalho mais emblemático sendo até os dias atuais uma referência obrigatória nos estudos de currículo. Apresenta algumas premissas fundamentais do autor e inicia uma discussão densa que será complementada nos seus próximo dois livros, idealizados em formato de trilogia: Ideology and Curriculum (1979) e Education and Power (1982) e Teachers and Texts: A Political Economy of Class and Gender Relations in Education (1986).

Ideologia e Currículo, escrito ainda enquanto lecionava na Escola de Educação da Universidade de Wisconsin-Madison, como professor Emérito de Currículo e Instrução e Estudos de Políticas Educacionais, é um texto bastante rico em influências ao também refletir as suas experiências como docente do ensino fundamental e médio, em New Jersey, e o seu trabalho concomitante enquanto presidente do sindicato dos professores. Deste modo, o livro se apresenta como uma contribuição que transita entre estes espaços, indo do tom acadêmico, no diálogo que faz com os pares da literatura marxista demonstrando apurado rigor conceitual e densidade teórica, ao tom político e formativo, quando se dirige aos colegas da educação básica e atenta para a tradução linguística e sensibilidade para com os temas do cotidiano escolar.

Em direção a um “estudo educacional crítico”, estabelece as bases do que seria a teoria crítica aplicada às pesquisas da área da educação, onde articula sistematicamente um leque de conceitos na intenção de apreender a realidade escolar como um fenômeno social, sendo o currículo escolar um dos seus componentes dinâmicos. Tendo como fundamento os conceitos de Antônio Gramsci e Raimond Williams – ideologia, hegemonia e senso comum –, amplia a noção de currículo para além das compreensões deterministas, tal como postulava a perspectiva das teorias reprodutivistas da correspondência, ao rejeitar a visão simplista da sociedade a partir do modelo base-superestrutura, que reserva à economia o controle quase total dos aspectos culturais. De um modo dialógico e dialético, defende que esta esfera econômica estabelece limites sobre a esfera cultural, mas também sofre as influências desta mesma esfera, o que lhe permite inferir que: as escolas como imersas nesta mesma relação de poder, economia e cultura, ao mesmo tempo em que desempenham funções na reprodução e manutenção de uma dada hegemonia, também são espaços vitais de recriação e reelaboração a partir dos currículos furtivos que desempenham.

Mesmo considerando a possibilidade destas resistências, conflitos e até mesmo tendências contraditórias, a obra gasta pouca energia no esclarecimento destas possíveis ações no ambiente escolar, ou no âmbito das políticas educacionais, o que certamente justifica a publicação futura de Democratic Schools (1995), que pelo tom otimista e esperançoso pode ser um bom complemento. A ênfase específica de Ideologia e Currículo reside na análise não determinista do complexo do papel que cumpre a escola na reprodução cultural, divulgação de valores ideológicos, distribuição desigual do conhecimento (entendido segundo à mesma lógica que rege as distribuições das mercadorias no sistema capitalista), profissionalização seletiva e criação e recriação de formas de consciência que permitam a manutenção do controle social e das relações sociais existentes.

Ou seja, questões como “qual é o conhecimento de maior valor em nossa sociedade?”, “de quem é este conhecimento?”, “Por que decidimos que alguns conhecimentos e saberes são dignos de serem transmitidos às gerações futuras e outros não?”, “Como tornamos um conhecimento legítimo?”, “Como construímos um falso consenso cultural e político como justificativa?”, e “devemos aceitar uma definição de educação na qual nossa tarefa seja preparar os alunos para ‘funcionarem’ facilmente nos ‘negócios’ de uma sociedade ?”, que permitem ao autor problematizar a origem, a distribuição, o acesso, a função e a relação destes conhecimentos, sujeitos e ações com a manutenção dos interesses econômicos, culturais e religiosos da sociedade. Por partir do princípio de que a escola deve ser analisada tal como ela existe, assume que a educação está imersa no mundo das relações de poder, que são cambiantes e desiguais, e que de alguma forma, também participa, está em relação ou sofre com as injustiças desta mesma sociedade.

Esse é o grande esforço da obra, problematizando o papel que cumpre a ideologia na relação entre a economia e a cultura, demonstra o quão complexa, profunda e entranhada é a ideologia (neoliberal) em meio às normas, práticas e crenças que atualmente envolvem e permeiam o ambiente escolar. Uma obra que merece ser revisitada nos dias de hoje pela riquíssima contribuição que traz ao demonstrar que, em países industrializados e de economia neoliberal, existem múltiplas relações de interdependência e influência entre os poderes que fundamentam e preparam as condições prévias para o desenvolvimento do projeto de mercantilização da educação, que solicita a criação de uma base comum curricular e instrumentos nacionais de avaliação. Noção sagazmente percebida pelo autor no final da década de 1970, período de lançamento da obra, e que depois foi reafirmada pelos complementos que a obra recebeu em suas próximas edições.

O conceito de hegemonia fundamenta toda a obra, mas, apesar de ter um significativo destaque no primeiro capítulo, sua definição pouco avança para além “daquilo que é verdadeiramente total”, uma dominação que chega a “saturar a consciência de uma sociedade”, e que também é aquilo que “limita e participa do senso comum”. É o conceito que permite a Apple aproximar sociedade, economia e mundo educacional com a premissa de que compartilham o mesmo mundo, e assim o mesmo conjunto organizado de significados, valores e ações, estando a escola, direta ou indiretamente, também imersa neste processo de saturação. Seria um espaço a mais para circundar os sujeitos em sociedade com o mesmo conjunto de valores, com o agravante de estarem sendo divulgados oficialmente, legitimados pela instituição “competente” e “neutra”. Assim, como constata Apple, existe a possibilidade de professores, manuais, práticas, normas diárias da escola e currículos (oficiais e ocultos), quando não críticos, reproduzirem e amplificarem os discursos hegemônicos de uma dada sociedade.

O autor, ao longo da obra, busca fundamentar essa premissa teórica em suas análises sempre históricas, triangulares e relacionais: a escola como instituição (em relação às outras instituições), as formas de conhecimento (em relação aos interesses econômicos) e o próprio educador (em sociedade e de classe). À exemplo de quando analisa como valores como os de eficiência, produtividade, empreendedorismo, protagonismo, proatividade, habilidade técnica, conhecimento útil e prático, introjetados nas últimas décadas nos ambientes industriais e empresariais, circulam em sociedade e recentemente participam dos vocabulários das legislações educacionais, das formas de controle, das concepções de ciência defendidas pelos órgãos públicos e privados, e das próprias práticas e crenças dos educadores em sala de aula. Quando todos os espaços começam a falar as mesmas coisas e a pautar as categorias que usamos para abordar as nossas responsabilidades, tem-se a produção de um consenso falso, uma “estrutura de sentimentos” que nos incapacita de pensarmos em termos que não sejam individualistas e abstratos.

Segundo Apple, uma saída a esse aparente impasse seria submeter nossas atividades diárias a um exame político e econômico minucioso e considerar a escola como parte – não totalmente determinada – neste mecanismo voltado à reprodução econômica e cultural. Deste modo, o caminho de autonomia da escola passa por um processo mais amplo dos sujeitos, que em sociedade necessitam assumir o compromisso com a criação de uma outra ordem social, expressa nas ideias e ações cotidianas, onde seus fundamentos não sejam a acumulação de bens, lucros e créditos, mas a “maximização da igualdade econômica, social e educacional”. Que o horizonte, crítico aos valores que perpetuem o atual modelo desigual de sociedade, esteja centrado no que o autor chama de “teoria da justiça social”, no combate diário a qualquer situação que promova a desigualdade e no auxílio urgente àqueles que se encontram em situações de injustiça. No âmbito cotidiano das pequenas práticas docentes, no interior dos ambientes escolares: a) que se questione a condução pragmática e utilitarista dos currículos escolares, de forma a atender unicamente aos interesses do mercado, e a forma como as preocupações gerenciais de controle utilizam estes conhecimentos selecionados como critérios aos modelos ao desempenho acadêmico; b) que a equipe gestora e o corpo decente reflitam sobre os alunos egressos e o papel local da instituição na alocação dos indivíduos em um conjunto relativamente fixo de posições na sociedade; c) que a equipe gestora e o corpo docente também reflitam sobre como naturalizam desigualdades sociais ao introjetar valores e crenças nos jovens, muitas vezes de forma oculta, condicionando-os a aceitarem condições e papeis sociais já preestabelecidos – a exemplo das rotulações dos estudantes conforme seus rendimentos e das práticas docentes que acriticamente elegem como finalidade educativa a “adequada participação em aula”, onde os critérios avaliativos apresentam maior peso nas características comportamentais dos estudantes (silêncio, obediência, pontualidade, formação de hábitos, competitividade, adaptabilidade, não-conflito, entusiasmo, perseverança); d) que as práticas docentes e atividades da instituição questionem a ênfase no indivíduo e promovam mais experiências de coletividade e solidariedade; e) que o corpo docente se uma no enfrentamento das decisões políticas e econômicas que indiquem a distribuição desigual do conhecimento, especialmente dos “conhecimentos de alto status”; f) que as práticas docentes trabalhem com a categoria de “conflito”, seja no entendimento da sociedade e dos movimentos sociais, como da própria ciência e sua evolução interna.

Ao reconhecer que o campo do currículo finca suas raízes no próprio solo do controle social, Apple recupera a função histórica da escolarização nos EUA ao longo do século XX, na intenção de demonstrar as ligações que sempre ocorreram – e que atualmente não são tão públicas, mas veladas – entre os currículos nacionais/locais e a cultura, seus papéis no referido à aculturação dos povos imigrantes, na defesa dos valores das pequenas comunidades diante das sociedades industriais emergentes, na construção da identidade nacional norte-americana e não seu ajuste recente aos interesses da economia. Contudo, não é um processo unilateral, que rasteiramente pode ser entendido como organizado por um pequeno grupo que quer manter o controle social, econômico e cultural sobre todos. Mas antes, um processo complexo, onde muitas vezes os teóricos do currículo se contradizem, e que envolve a disputa entre grupos e uma aceitação nem sempre passiva por parte do ambiente escolar. Apple, nos dois últimos capítulos acrescentados à obra, busca novamente fundamentar esta constatação a partir de um diagnóstico dos (atuais) grupos que disputam o poder em torno do currículo escolar. No atual modelo de sociedade neoliberal, que desempenha um processo de “modernização conservadora”, são eles os grupos: I. “Neoliberais”, sujeitos que querem centrar a política educacional nos interesses do mercado e vincular intimamente os objetivos de desempenho dos estudantes ao trabalho remunerado; II. “Neoconservadores”, grupo que busca restaurar a cultura a um momento anterior, de ênfase na tradição ocidental, de um suposto momento onde estudantes, professores e conteúdos escolares eram de níveis de excelência, numa visão romantizada da sociedade e da educação; III. “Populistas autoritários”, recentes fundamentalistas e evangélicos que querem utilizar a escola para conduzir a sociedade ao que eles acreditam ser a tradição bíblica, na defesa dos valores e da família tradicional e no combate às outras denominações religiosas e manifestações de sexualidade; IV. “Profissionais de aluguel” ou “técnicos administrativos”, membros da nova classe média profissional e gerencial que são empregados pelo Estado por causa dos seus conhecimentos técnicos em análise de custos e benefícios, tecnologia aplicada às avaliações e testes, diagnósticos de eficiência e gerenciamento, são as pessoas – nem sempre ideológicas – que tornam possíveis os engates entre currículo, avaliação e mercado.

Uma obra que já tem quatro décadas, um clássico no interior da literatura, mas cujas descrições e análises mantém viva sua atualidade.

Referências

APPLE, Michael. Ideologia e Currículo. 3º ed. Porto Alegre: Artmed, 2006. [ Links ]

Recebido: 01 de Maio de 2022; Aceito: 01 de Junho de 2022; Publicado: 01 de Julho de 2022

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