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Jornal de Políticas Educacionais

versión On-line ISSN 1981-1969

J. Pol. Educ-s vol.17  Curitiba  2023  Epub 11-Oct-2023

https://doi.org/10.5380/jpe.v17i0.90820 

Seção Artigos

Sentidos da Democracia no Espaço Escolar1

Significados de la Democracia en el Espacio Escolar

Inalda Maria dos Santos2 
http://orcid.org/0000-0002-5520-2668

Alice Miriam Happ Botler3 
http://orcid.org/0000-0001-5654-3248

2Doutora em Educação. Professora associada do Centro de Educação no Curso de Pedagogia e no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Alagoas; líder e pesquisadora do Grupo de Pesquisa Gestão e Avaliação Educacional (GAE) e Editora da Revista Debates em Educação vinculada ao PPGE/UFAL. Maceió, AL. Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-5520-2668 E-mail: inalda.santos@cedu.ufal.br

3Doutora em Sociologia. Professora titular da Universidade Federal de Pernambuco, vinculada ao Curso de Pedagogia e do Programa de Pós-Graduação em Educação; vice-coordenadora do Fórum de Coordenadores de Programas de Pós-graduação em Educação – FORPRED Nacional; líder do Grupo de Pesquisa Estudo das Organizações Educativas. Recife, AL. Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-5654-3248 E-mail: alice.botler@ufpe.br


Resumo

A presente pesquisa objetivou apreender as concepções e práticas de democracia/democratização que emergem no cotidiano da escola. Metodologicamente, realizamos entrevista semiestruturada com integrantes do Conselho da Escola, ou seja, sete entrevistados de uma escola pública da Rede Municipal de Educação de Maceió/Alagoas, com o propósito de perceber as concepções de democracia e participação. Assim sendo, para tratamento e análise dos dados, utilizamos a análise de conteúdo, de acordo com as sugestões que são encontradas em Bardin (1977). Os resultados da pesquisa apontaram que temos caracterizado na escola alagoana e, em geral, brasileira, uma democracia institucionalizada que é a democracia representativa, modelo criticado por Rancière (2014) e que gera na sociedade um conformismo, distanciando-se da democracia como dissenso.

Palavras-chave: Democracia; Participação; Escola

Resumen

Esta investigación tuvo como objetivo aprehender las concepciones y prácticas de democracia/democratización que emergen en la vida cotidiana de la escuela. Metodológicamente, realizamos entrevistas semi estructuradas con miembros del Consejo Escolar, es decir, siete entrevistados de una escuela pública de la Red Municipal de Educación de Maceió/Alagoas, con el propósito de percibir las concepciones de democracia y participación. Por lo tanto, para el tratamiento y análisis de los datos, se utilizó el análisis de contenido, de acuerdo con las sugerencias que se encuentran en Bardin (1977). Los resultados de la investigación señalaron que hemos caracterizado en la escuela de Alagoas y, en general, brasileña, una democracia institucionalizada que es democracia representativa, un modelo criticado por Rancière (2014) y que genera en la sociedad un conformismo, distanciándose de la democracia como disidencia.

Palabras Clave: Democracia; Participación; Escuela

Abstract

This research aimed to apprehend the conceptions and practices of democracy / democratization that emerge in the daily life of the school. Methodologically, we conducted semi-structured interviews with members of the School Council, that is, seven interviewees from a public school of the Municipal Education Network of Maceió/Alagoas, with the purpose of perceiving the conceptions of democracy and participation. Therefore, for treatment and analysis of the data, we used content analysis, according to the suggestions that are found in Bardin (1977). The results of the research pointed out that we have characterized in the Alagoas school and, in general, Brazilian, an institutionalized democracy, which is representative democracy, a model criticized by Rancière (2014) and that generates in society a conformism, distancing itself from democracy as dissent.

Keywords: Democracy; Participation; School

Considerações Iniciais

A sociedade brasileira, desde a sua origem, vem sendo marcada pela experiência conservadora e autoritária nas relações sociais, ainda que estabelecidas no decorrer de processos de construção do regime democrático e da cidadania.

Tal trajetória histórica implica na formação do povo e da cultura brasileiras, o que tem ocorrido por meio de mecanismos democratizadores, que, no entanto, não produziram efeitos suficientes para solucionar os problemas de exclusão e desigualdades sociais que vêm se agravando.

O consenso proclamado de que é preciso construir formas mais participativas de articulação dos interesses e concepções dos diferentes segmentos sociais, inclusive dentro da escola, não parece ser consistente para a consolidação da gestão democrática em curso nas escolas. Esse esforço se reflete no planejamento de políticas públicas, na legislação e na implementação de um conjunto de políticas educativas a partir da década de 1990 que, a nosso ver, esbarram na tradição política do país, marcada por forte cultura paternalista. Dessa forma, experimentam-se relações sociais que se acomodam ao mandonismo, ao invés de ressonar por meio da participação ativa da população.

Diante dessa problemática, justifica-se a motivação para se refletir sobre a democracia na realidade da escola pública, por entendê-la não apenas como princípio, mas como prática que deve ser resultante da conquista dos cidadãos como um direito. Consolida-se, na prática, uma democracia formal, cujos mecanismos não se consolidam ainda enquanto democracia substantiva.

Na escola brasileira temos implantado legalmente os instrumentos democráticos de participação e tomada de decisão coletiva, como o colegiado ampliado, a presença da comunidade nas instâncias da escola, o projeto político-pedagógico e a eleição direta na escolha dos representantes de direção e conselho escolar, o que implica aceitar e trabalhar com as diferenças e com as vozes discordantes.

Assim sendo, partimos do pressuposto de que a democracia é um bem público e cultural, embora o aparato legal seja necessário para a sua instalação. Mas a legitimação de práticas democráticas requer um processo amplo de disputas e consenso, de diálogos e conflitos em prol de um projeto de sociedade.

Tais aspectos instigaram o seguinte questionamento: De que forma os sentidos atribuídos à democracia contribuem para a transformação das práticas? Qual a contribuição da cultura política local na construção de práticas democráticas no espaço da escola pública?

Nessa perspectiva, a pesquisa buscou apreender concepções e práticas de democracia que emergem no cotidiano da escola. Para tanto, o artigo se inicia com breve caracterização da investigação empírica, cujos dados exigem uma reflexão teórica sobre os conceitos de democracia e participação na prática cotidiana dos sujeitos no espaço público da escola.

Definição do Campo e método da pesquisa

O tipo de pesquisa que desenvolvemos foi de natureza qualitativa, do tipo estudo de caso. Desenvolvemos pesquisa bibliográfica para a compreensão do objeto de estudo, uma vez que é importante mergulhar sobre a literatura que retrata os pressupostos da democracia/democratização da sociedade e da educação. A escolha por este tipo de pesquisa se assenta no entendimento de que esta é

realizada para fundamentar teoricamente o objeto de estudo, contribuindo com elementos que subsidiam a análise futura dos dados obtidos. Portanto, difere da revisão bibliográfica uma vez que vai além da simples observação de dados contidos nas fontes pesquisadas, pois imprime sobre eles a teoria, a compreensão crítica do significado neles existente (LIMA; MIOTO, 2007, p. 44).

Desta forma, oferecemos subsídios para a elaboração dos instrumentos de coleta de dados, bem como para sua análise. Realizamos entrevista semiestruturada com integrantes do conselho da escola, buscando apreender suas concepções de democracia e participação. A definição pelo conselho da escola justifica-se por este ser um instrumento de participação e decisão política no seu interior e porque os integrantes são escolhidos na perspectiva da gestão democrática, ou seja, por meio da eleição direta.

Selecionamos uma escola pública municipal em Maceió, Alagoas, por se tratar de uma realidade social permeada por contrastes sociais e em que a participação social encontra muitas barreiras de cunho social, político e cultural.

A escola foi escolhida por estar localizada num bairro nobre que, do ponto de vista geográfico, social e político, dispõe de boa organização do ponto de vista da oferta de bens de cidadania, como transporte coletivo, iluminação, saneamento, asfalto, (bem organizado) e com um nível educacional da população considerado mais elevado, condições que, hipoteticamente, favorecem o desenvolvimento de um senso crítico mais apurado acerca da realidade.

Para efeito da apresentação dos dados a denominamos de Escola da Sereia, identificando, assim, as belas praias que caracterizam o local. Esta escola apresenta os mecanismos básicos de promoção da participação da comunidade, como eleição para a escolha do gestor escolar, o conselho de classe e da escola, regimento escolar e assembleia geral, configurando-se, portanto, como democrática.

Os sujeitos entrevistados foram a diretora geral, a diretora adjunta, um funcionário, uma professora, uma mãe e dois alunos, totalizando sete sujeitos. Salienta-se que todas as entrevistas foram gravadas com o consentimento dos entrevistados, resguardando o sigilo e o anonimato das informações.

Para o tratamento e análise dos dados, utilizamos a análise de conteúdo, de acordo com as sugestões que são encontradas em Bardin (1977), tendo por referência as categorias inicialmente privilegiadas pela pesquisa (democracia, participação e gestão democrática).

Limites da democracia na escola

Na defesa da educação para a democracia, Teixeira (1994, p. 99) busca romper com um modelo de sociedade marcada pelas desigualdades sociais e educacionais, baseada no privilégio de poucos, apontando para a educação escolar laica e para o fortalecimento do ensino público.

Numa sociedade como a nossa, tradicionalmente marcada de profundo espírito de classe e de privilégio, somente a escola pública será verdadeiramente democrática e somente ela poderá ter um programa de formação comum, sem os preconceitos contra certas formas de trabalho essenciais à democracia (TEIXEIRA, 1999, p. 99).

O autor defende a ampliação de uma “consciência democrática", num esforço de estender a educação para todos. Para tal propósito, alerta à necessidade de uma nova política educacional fundamentada no princípio democrático, o que exige “sólida educação comum, a ser dada na escola primária, de currículo completo e dia letivo integral” (TEIXEIRA, 1994, p.104). Afirma, assim, que a educação é a base para a cidadania e igualdade de oportunidades, de forma a se tornar autônoma em relação à herança familiar.

Para melhor esclarecimento, Teixeira (1994) alertava sobre a importância do direito à educação para todos, começando pelo acesso ao ensino primário (hoje definido como ensino fundamental), mas ampliando a necessidade de uma política educacional universalizante, ou seja, de garantia de acesso à educação para toda a população, fortalecendo, assim, os princípios democráticos de cidadania e igualdade.

O alcance de tais ideais, no entanto, ainda parece distante da realidade, mas permanece no discurso de diversos pesquisadores, que acrescentam suas justificativas, a exemplo de Benevides (1996), para quem a educação política é fundamental para o desenvolvimento de uma nação, o que relaciona a duas dimensões: “a formação para os valores republicanos e democráticos e a formação para a tomada de decisões políticas em todos os níveis” (p.226). Essa autora destaca a distinção entre educação democrática e educação para a democracia:

a educação para a democracia não se confunde nem com democratização do ensino – que é certamente, um pressuposto – nem com educação democrática. Esta última é um meio necessário, mas não suficiente, para se obter aquela. A verdade é que, sem dúvida, uma organização democraticamente constituída pode desenvolver-se, no plano pedagógico, sem incluir a específica educação para a democracia (BENEVIDES, 1996, p. 227).

Percebe-se que a educação política constitui a premissa de um processo amplo, político e social que envolve a formação do cidadão livre e democrático, o que, em síntese, resulta na educação para a democracia. Além disso, enfatiza que a educação para a democracia deve acontecer na escola, como locus privilegiado de educação/formação.

Apesar de sua defesa ecoar por tantos autores, uma das fragilidades da democracia no Brasil diz respeito aos direitos sociais que foram reduzidos a direitos políticos, mais especificamente o direito ao voto distante da experiência democrática relativa aos aspectos econômicos e sociais concernentes ao projeto de sociedade. Lima (2008, p. 93) esclarece que “isto ocorre porque a democracia foi sempre uma ameaça ao projeto do capital (mesmo se tratando da democracia burguesa)”.

Lima (2013) compreende que a democracia e a gestão democrática são construções da classe trabalhadora.

A democracia se faz presente com a participação institucionalizada na escola, através de eleições de diretores, dos Conselhos Escolares e das Associações de Pais e Mestres. Por outro lado, a desmobilização, a desmotivação da participação e consequente esvaziamento da democratização faz parte das práticas capitalistas conservadoras (LIMA, 2013, p. 36).

Estevão (2004) apresenta alguns desafios postos para a educação, dentre os quais a ideia de que a tomada de opção política pela democracia exige privilegiar o referencial crítico que remete ao compromisso com a justiça social. Isto requer, entre outros aspectos, a reintrodução da preocupação pela ética e por uma pedagogia “que resgate o outro” e que trave a “luta para ocupar um espaço de esperança (p.128)”.

O autor relaciona democracia ao Estado de direito, argumentando que a dimensão normativa da justiça é uma questão fundamental que envolve a relação entre Estado e Justiça:

Estado continua a ser um instrumento necessário da justiça e o lugar por excelência do qual os cidadãos esperam justiça e um tratamento igualitário em todas as esferas do domínio social, independentemente do lugar que ocupam na estrutura social. Compete, então, ao Estado que se queira democrático, intervir no sentido de a sociedade se instituir como uma comunidade política adulta, contribuindo antes de mais para que ela seja justa, solidária e livre (ESTEVÃO, 2004, p. 125).

Estes desafios exigem mudanças na forma de organização e nos acordos que se fazem necessários numa organização complexa como a escola. Nessa direção, Santos e Botler (2013, p. 05), discorrendo sobre as políticas de democratização da educação no âmbito escolar, apontam a educação como uma das políticas de corte social:

[...] estão marcadas pela presença de discursos variados em disputa, uma vez que a cada nova gestão, seja municipal, seja estadual, assistimos continuamente a movimentos de reformulação de propostas, alterações teórico-metodológicas que buscam imprimir a marca dos governos a cada período, o que, a nosso ver, dificulta a consolidação de políticas de Estado, deixando-as à mercê dos governos, desfavorecendo a continuidade.

No contexto da problemática do que se entende como democracia na escola, os autores ainda defendem que “democratização não se define por força de decreto, ou simplesmente pela adoção de mecanismos como o voto, por exemplo, mas se consolida com as práticas cotidianas inscritas na ação dos gestores” (SANTOS; BOTLER, 2013, p. 07) e de todos os sujeitos sociais participantes do espaço escolar. Concebe-se a escola como espaço público em que emergem discussões em torno de questões políticas e educacionais que envolvem direta ou indiretamente todos os seus segmentos, ampliando a visão de educação e conhecimento produzidos coletivamente nas práticas sociais vivenciadas no seu cotidiano.

Partimos do entendimento de que a materialização da democracia tem uma correlação direta com a cultura social e política instituída historicamente na sociedade brasileira, a qual se modifica mediante as experiências vivenciadas pelos sujeitos sociais e o seu grau de organização/reivindicação nos espaços públicos no exercício da democracia. Neste sentido, há uma relação tênue entre valor democrático e a prática (compromisso) com a democracia no cotidiano da escola. Essa relação pode ser observada no caso da escola, por exemplo, quando

[...] alguns sujeitos demonstram que a responsabilidade administrativa é do gestor, justificando, dessa forma, certo descompromisso, que pode ser interpretado como distância do valor democrático. Por outro lado, sujeitos engajados, atentos aos comportamentos das pessoas, buscam fazer valer seus próprios princípios (BOTLER, 2010, p. 191).

Esse movimento no âmbito da participação e engajamento concreto na escola pode sinalizar que “as relações de poder se constituem em cada contexto, em cada cultura, sendo que elas podem configurar, ou não, a escola democrática” (BOTLER, 2010, p. 192).

No que se refere à participação nas escolas, o conceito vem sendo associado à gestão participativa como um mecanismo para a sua democratização, o que demanda “maior participação de todos os interessados no processo decisório da escola, envolvendo-os também na realização das múltiplas tarefas de gestão” (LÜCK et al., 1998). Neste sentido, a amplitude que a perspectiva da gestão democrática traz para o cotidiano da escola provoca mudanças substanciais nas relações sociais estabelecidas no espaço público escolar.

Paro (1997) acrescenta que a gestão democrática na escola não deve se limitar à participação nas decisões, já que “isto não elimina, obviamente, a participação na execução; mas também não a tem como fim e sim como meio, quando necessário, para a participação propriamente dita, que é a partilha do poder, a participação na tomada de decisões” (p.16). Participar, portanto, traz subjacente a ideia de “partilhar” e, quando a referência é a máquina governamental, supõe a possibilidade de interação entre atores da sociedade civil e o Estado, o que pode assumir diferentes dinâmicas, que geram resultados distintos (JACOBI, 1990).

Bordenave (1987), ao chamar a atenção para as diversas maneiras de participar, se refere à participação imposta, que é aquela em que os indivíduos são obrigados a fazer parte de grupos e a realizarem tarefas consideradas indispensáveis. Refere-se, também, à participação dirigida, que é provocada por agentes externos, que manipulam os participantes no sentido de atingirem seus próprios objetivos, previamente estabelecidos, bem como da participação concedida, que é representada por parte do poder de influência exercido pelos subordinados e que legitima as práticas de quem lhes delega esse poder, ao mesmo tempo em que cria uma “ilusão” de participação.

Ao discorrermos a respeito de alguns limites da democracia na escola com o apoio destes autores, destacamos que a participação implica em práticas democráticas experienciadas pela comunidade no mundo externo à escola, e que encontram nos mecanismos democratizadores, a exemplo dos conselhos, mais um canal de atuação. Ao mesmo tempo, em se tratando de um espaço público vinculado ao poder político municipal ou estadual, as escolas têm que ter suas decisões reconhecidas e respeitadas por esse poder, segundo as normas do jogo democrático, pois só assim nela brotarão e se enraizarão práticas democráticas na gestão pública da educação.

Gestão escolar democrática na realidade brasileira: discurso ou prática?

Uma das referências que assumimos para a discussão sobre educação e democracia refere-se às ideias de Elie Ghanem (2004), que consideramos pertinentes para a reflexão sobre o campo da política e gestão escolar.

A tentativa de relacionar educação escolar e democracia vai se confundir com a história da educação escolar brasileira ao longo do século XX, principalmente como forma de pensar a instauração do sistema público de ensino (GHANEM, 2004). Neste sentido, o autor justifica o estudo afirmando que:

Originalmente, a ideia em torno da qual se realizaria o estudo era a de verificar se a participação na gestão escolar poderia ser considerada uma via aceitável de melhoria da educação pública. Parecia natural e até automático responder afirmativamente a essa questão, uma vez que a expressão “gestão escolar democrática” já havia se incorporado ao jargão dos meios universitários e das autoridades públicas responsáveis por redes escolares. Mas as práticas escolares recorrentes não indicavam caminhar no mesmo sentido dessa linguagem. Além disso, diversas pesquisas vieram insistentemente mostrando as dificuldades de democratizar a gestão das unidades escolares e, mais ainda, dos sistemas que elas compõem. Por isso, tornou-se relevante examinar as possíveis contribuições que um enfoque político (partipacionista) traria para a qualidade das atividades educacionais e, assim, compreender a importância desse enfoque no quadro dos desafios propriamente escolares do País (GHANEM, 2004, p. 15).

Uma questão que vale a pena destacar é o próprio conceito de democracia elaborado pelo autor, o qual acreditamos ser pertinente quando ele afirma que:

[...] a democracia é uma cultura e não somente um conjunto de garantias institucionais, uma vez que é um sistema institucional que permite a uma sociedade ser simultaneamente una e diversa (GHANEM, 2004, p. 22).

O autor apresenta três dimensões que constituem a democracia e que contêm em si uma interdependência, quais sejam: o respeito pelos direitos fundamentais, a cidadania e a representatividade dos dirigentes. Para o autor, a democracia exige mudança no próprio modelo de educação escolar republicana que foi implantado no século XX no Brasil (e que prevalece até hoje – grifo nosso) e, que, portanto, precisa ser revisto se de fato ele quer dar conta das necessidades atuais de formação e de cultura.

Noutra perspectiva de análise, Oliveira (2009) parte do entendimento de que a democracia não consiste apenas em um regime político, mas num sistema social em que deve haver o reconhecimento e o respeito mútuo dos diferentes grupos sociais. Partindo dessa premissa, para que tenhamos uma ação efetiva na construção da democracia social no conjunto de suas exigências, é necessário “não apenas a socialização dos meios de produção econômica, como também dos meios de decisão política, além da democratização dos sistemas de autoridade em todas as esferas da vida social” (p. 26).

Oliveira (2009), ao discorrer sobre a produção da democracia na escola, chama atenção que, se não é a partir da escola que a sociedade se transforma, certamente “as mudanças que podemos produzir dentro da própria escola já modificam o sistema social ao ampliar a democracia efetiva e modificar aspectos institucionais que dele fazem parte” (p.28).

Para que isso aconteça, é preciso haver uma participação autônoma dos diversos segmentos nos processos de decisão e, portanto,

[...] é preciso que os membros destes diversos grupos sociais possam ter desenvolvido alguma autonomia enquanto indivíduos, o que torna o processo de construção da democracia um permanente enredamento entre conquistas individuais e avanços sociais, mutuamente influentes uns pelos outros (OLIVEIRA, 2009, p.26).

Outra análise que consideramos interessante sobre Democracia no Brasil se baseia nos argumentos desenvolvidos por Cervi (2013), a qual destaca a centralidade que a democracia assumiu no debate junto à sociedade na década de 1980 e a exigência da “escola como um lugar para aprender a exercer a democracia” (p. 107), bem como a estreita relação entre esta e a função social da escola.

A autora busca problematizar as práticas discursivas sobre gestão escolar democrática sem a pretensão de criticar e apontar o que é gestão democrática ou o que é ser gestor democrático, mas pensar sobre “o que somos a partir da escola e como nos reconhecemos como gestores democráticos (CERVI, 2013, p.183)”.

Em síntese, conclui que:

Em nome da autonomia, liberdade, participação, democracia, vai-se escolarizando todos para sermos bons, dóceis, úteis e participativos, passivos, gestores. A promessa de gestão democrática, cujas condições não existem, aparece como a salvação da escola. Gestão democrática funciona para capturar, para controlar aquilo que a administração escolar não deu conta de disciplinar (CERVI, 2013, p.187).

Assim, o intuito da autora não foi a simples crítica ao modelo de gestão escolar democrática, mas pensar as práticas de gestão e de escola que estão se produzindo em nome da democracia.

Diante do exposto, cabe salientar que não somos contrários à gestão escolar democrática, mas é importante desmistificar que aquilo que ora denominamos de gestão democrática pode estar mascarando uma prática conservadora, paternalista e de interesse privado em nome da democracia. É preciso cuidado, pois os discursos de descentralização, participação, autonomia e democracia podem ser falaciosos, quando estes podem revelar o contrário, ou seja, a centralização de decisões, o controle, a participação tutelada e a restrição a uma democracia representativa.

Jacques Rancière esclarece que a “democracia, no estrito senso desse termo, é o poder do povo, o poder de qualquer um, dos que não estão destinados ao exercício do poder por nascimento, riqueza, conhecimento científico ou qualquer qualidade especial (JORNAL O GLOBO).

Ao apresentar a sua concepção de democracia, Rancière (2014), na sua obra O ódio à democracia, em que apresenta críticas à democracia representativa, parte de uma posição contrária a ideia minimalista de democracia atual:

As democracias realmente existentes não fazem a menor questão de que sejam construídas vontades coletivas. Para elas, é suficiente admitir formalmente que os parlamentos são locais onde o pluralismo político tem o seu lugar. Os cidadãos estão acostumados a acreditar no bordão democrático de que as assembleias representativas são o reflexo da sociedade (MENDONÇA; VIEIRA JÚNIOR, 2014, p.112).

A partir dessa crítica à democracia representativa, Rancière parte da concepção de democracia como dissenso, ou seja, “a experiência da distância das coisas. Tal distância representa o momento em que o homem age para que sua voz possa ser ouvida, mas sempre permanecendo a uma distância adequada” (MENDONÇA; VIEIRA JÚNIOR, 2014, p.113). É por meio do dissenso que a política ocorre. Neste sentido, a democracia para Rancière assim pode ser expressada:

A democracia se origina na manifestação dos sujeitos na ruptura produzida pelo dissenso. Na cena do dissenso, política toma seu lugar enquanto subjetivação do rompimento da significação comum do espaço social pela ordem policial. No conflito que caracteriza a política, na tensão entre o corpo social estruturado, onde tudo tem seu lugar previamente determinado pela ordem policial, e o que foge a esse ordenamento (que não está estruturado), ocorre a perturbação da ordem social até então estabelecida. No choque entre a estrutura do corpo social e uma singularidade que desestabiliza seu sentido de universalidade, tem lugar a política enquanto consequência da democracia oportunizada pelo dissenso” (MENDONÇA; VIEIRA JÚNIOR, 2014, p. 120).

A democracia, entendida como ação política do demos, se dá num processo de argumentação, por um lado e, por outro, de dramatização. A argumentação refere-se ao sujeito da fala, que consegue ser ouvido e, portanto, apresenta um poder de argumentação, de convencimento. Por outro lado, a dramatização (ou cena teatral) concerne aos sujeitos que podem ser quem são, mas podem ser outra coisa, o que implica que esses sujeitos vão para além do nome e do lugar a que foram atribuídos pela ordem consensual. Em outras palavras, para atuar no campo da política ou exercer o poder, necessariamente não se tem que ser um especialista ou alguém que domine todo o processo administrativo. Qualquer pessoa pode exercer esse lugar.

Não há vida política, mas cena política. A ação política consiste em mostrar como político o que é visto como social, econômico ou doméstico. Ela consiste em borrar as fronteiras. Isso é o que acontece quando agentes “domésticos” – trabalhadores ou mulheres, por exemplo – reconfiguram sua luta/disputa como luta concernente ao comum, ou seja, concernente a qual lugar pertencem ou não e quem é capaz ou incapaz de proferir enunciados e fazer demonstrações sobre o comum (RANCIÈRE, 2011ApudLELO; MARQUES, 2014, p. 351).

Rancière chama atenção também para o que está em jogo na democracia e na política, além de abarcar o conceito de igualdade e o de emancipação. A emancipação é entendida, de acordo com ele, da seguinte maneira:

[...] aqueles que se emancipam o fizeram, e o fazem, ao reivindicar e praticar uma forma de pensar, falar e de viver, que não foi ou não é “deles”, que não foi ou não é apropriada, que não corresponde a seu nascimento, seu destino, sua natureza apropriada. O ato da emancipação é a decisão de falar e pensar a partir do pressuposto da igualdade de inteligências, a decisão de que a pessoa tem a capacidade e o tempo que não se tem propriamente, de acordo com a ordem vigente e a partilha do sensível (MASSCHELEIN; SIMONS, 2014, p. 87).

Trazendo mais elementos para o entendimento de democracia, Masschelein e Simons (2014, p. 139-140) ressaltam que, para Rancière:

Democracia é o poder dos que não têm poder, daqueles que não tem qualificação4 em uma determinada ordem social ou governamental, daqueles que não compartilham o que deve ser compartilhado na sociedade, comunidade, sociedade ou ordem social. Quando esses “não qualificados” intervêm, eles instalam um dissenso, isto é, demonstram e verificam que eles são intelectualmente iguais no próprio ato da intervenção, e competentes em vista do bem comum do qual, no entanto, são excluídos.

Em outras palavras, democracia é o sentido atribuído à expressão vita democrática, ao que acrescentamos a questão: A escola está preparada para o exercício da vita democrática? Rancière auxilia a construir a resposta:

Se considerarmos a democracia como o processo pelo qual cada um pode afirmar sua igualdade sem a necessidade de uma qualificação especial ou de certo nível de inteligência, então as escolas como fábricas de qualificação (que consideram as diferenças de qualificação como a verificação da desigualdade) parecem articular uma lógica completamente oposta. A democracia dissocia os conceitos de capacidade e inteligência do conceito de qualificação, a lógica da escola parece fazer o contrário [...] há um medo de que as escolas possam realmente se tornar locais onde a democracia ocorre, ou seja, um lugar onde não há nenhuma razão natural (a inteligência, por exemplo) ou social (condição financeira, por exemplo) em que o exercício do poder ou a justificação das diferenças possa ser baseado (MASSCHELEIN; SIMONS, 2014, p. 145-146).

A partir dessa perspectiva, compreendemos que na realidade da escola brasileira, fortemente guiada pela meritocracia, pela inteligência como algo dado (natural) e na lógica da explicação de alguém que sabe e outro que não sabe, segundo Rancière essa escola produz desigualdades e se distancia de ser um lugar de democracia.

Assumindo a escola para a democracia como sendo a escola da igualdade, assim é definido:

A escola da igualdade não é uma escola igualitária ou uma escola meritocrática; não é nem uma escola que visa resultados iguais, nem uma escola que oferece oportunidades iguais. A forma da escola inclui um pressuposto ou opinião de igualdade ao colocar os alunos em um novo tempo, e novamente em uma posição igual para se começar. É a escola na qual diríamos que momentos “democráticos” podem surgir, onde professores e alunos estão expostos uns aos outros como iguais em relação a um livro, um texto, uma coisa (MASSCHELEIN; SIMONS, 2014, p. 119).

Enfim, gestão escolar democrática distancia-se da escola da igualdade, uma escola irreal em que apenas podem surgir momentos “democráticos”, se pensarmos a realidade brasileira, que ainda apresenta traços de práticas clientelistas oriundas do processo de sociabilidade na sociedade e na educação.

Democracia e participação a partir do olhar dos sujeitos da escola

Passamos a apresentar neste item as concepções dos sujeitos escolares, o que se delineia a partir das suas experiências de democracia no cotidiano, descortinando o teor das práticas ali efetivadas.

A problemática central que buscamos apreender dos sujeitos da pesquisa consistiu em saber o que entendem por democracia e como ela é percebida/vivenciada no cotidiano da escola e sociedade.

A percepção sobre a democracia entre os sujeitos foi variada e revelou o nível de maturidade e experiência que têm com a democracia e sua materialização. Neste sentido, cabe aqui ressaltar que não temos a pretensão de fazer julgamento de valor sobre o que é certo ou a melhor definição. A ideia é perceber, a partir da sua vivência/experiência com a democracia, o que ela representa frente aos desafios de uma instituição como a escola.

Nesse sentido, a principal questão que permeou toda a pesquisa diz respeito à compreensão que os sujeitos têm da democracia e as suas formas de manifestação na prática escolar. Quando questionamos sobre o que entendem por democracia, assim declararam:

Eu entendo que ela é favorável porque a partir do momento que eu tenho direito, vez e voz, eu posso escolher o que é melhor, eu posso opinar. Eu não preciso apenas receber determinações unilateralmente. Então existe essa via de mão dupla. Eu trabalho aqui em prol da escolha da maioria com a visão coletiva (Gestora).

Em si a democracia é o que seria o nosso país, um país democrático. Infelizmente, a gente tá vendo que na prática é bem diferente, mas a democracia é como se você tivesse a sua opinião, pudesse se defender sem sofrer nada, não é isso? E ter o livre arbítrio de você dar a sua opinião (Professora).

Eu entendo que a democracia é quando podemos participar, né? É um conjunto de pessoas participativas. Então isso, a somatória disso dá a democracia (Funcionário).

A democracia no dia de hoje, eu acho assim, sabe, tem tudo a ver com a política (Mãe).

O meu direito começa quando o dele acaba, né verdade? A democracia é essa porque a gente acha isso que cada um tem o seu direito, né?

(Aluno).

Percebe-se que a noção de democracia que perpassa o discurso dos sujeitos é a democracia representativa como aquela em que a participação está assegurada como direito legal de todos. A democracia como política (entendida como política partidária), sintetiza a ideia de que a manifestação da cidadania ocorre nesses momentos “democráticos” em que escolhemos os nossos representantes, garantindo o direito de voz e voto.

A concepção de democracia predominante nos discursos dos sujeitos da pesquisa, se define pela gestão escolar democrática institucionalizada, ou seja, aquela que prescinde de uma participação por meio da representação dos segmentos da comunidade escolar, que decide sobre processos administrativos, financeiros e pedagógicos na escola.

Numa posição crítica, Rancière adverte que a democracia representativa leva as pessoas ao comodismo, e não necessariamente a uma atuação resultante de um posicionamento crítico sobre a sociedade/educação.

Uma questão importante que procuramos saber dos sujeitos da escola é o que eles entendem por participação. Sobre isso, destacamos os seguintes extratos:

Participação, teoricamente ela é muito agradável aos nossos olhos, a gente lendo, vendo a teoria, as instâncias que participam, onde o diretor, ele sozinho, não toma as decisões, ele sozinho não gere a unidade, ele conta com a parceria dos diversos segmentos da comunidade escolar que, com isso, não fica uma posição unilateral, as determinações, mas, na teoria é uma coisa e na prática outra (Gestora).

A gente procura buscar justamente essa participação, não só dos funcionários, a direção, os pais responsáveis e os próprios alunos (Professora).

Eu tento muito envolver os pais dos alunos na escola porque eu sou comprometido com a escola (Funcionário).

A participação aqui eu gosto e sempre que tem a reunião eu tô dentro e eu gosto. Eu gosto sempre de participar (Mãe).

Eu, quando vejo as coisas erradas, eu falo, né? (Aluno).

A partir dos extratos acima, verifica-se que há um consenso sobre a importância da participação de todos os segmentos na escola. De um modo geral, nos discursos, os sujeitos se colocam disponíveis a participar na escola. A questão que fica é a qualidade dessa participação. Ou seja, a participação reflete uma prática espontânea dos sujeitos, sua vontade/interesse em acompanhar os projetos na escola, ou se trata de uma questão mais formal, burocrática?

Parece-nos que a participação/presença tão propalada nos discursos se constitui mais em atender aos requisitos da gestão democrática, como a formação do conselho escolar e uma atuação pontual, do que mesmo uma participação crítica e propositiva dos sujeitos diante dos desafios cotidianos.

Analisando mais detalhadamente essa questão, também aparecem outros elementos sobre como se dá a participação no dia a dia da escola, como, por exemplo, a participação no entendimento do segmento aluno, que associa participar a reclamar e demandar para a gestão da escola a resolução de problemas. Tal postura reforça a ideia e a prática impregnada no imaginário social brasileiro da democracia representativa, em que delego para outrem a solução de uma situação.

Eu fui várias vezes também reclamar fatos ocorridos e eles iam naquela data marcada, eles iam na diretoria pra poder repassar o que a gente tava reclamando, ventilador, tomada, aluno que não quer estudar, aí a gente tem que fazer alguma coisa (Aluno).

No entanto, o segmento da gestão da escola expõe as contradições da democracia que requer participação, engajamento no debate e na resolução dos problemas enfrentados cotidianamente na escola.

A prática é bastante distante dessa teoria. Porque as pessoas que compõem esses segmentos, elas não são tão disponíveis. Elas querem a democracia, elas querem ter o direito de vez e voz, mas elas não disponibilizam de si o tempo necessário para se fazer presentes nas decisões, na organização, nas atividades cotidianas (Gestora).

Ainda reforçando a ideia de democracia representativa impregnada fortemente nas pessoas, o depoimento da mãe vai nessa direção, de que cabe ao Estado (escola) o governo das coisas.

Democracia, minha filha, o desemprego tá lá pra baixo e isso tudo por causa de quem tá lá dentro e não sabe governar as coisas. [...] Eu creio que a democracia, ela se baseia no que a gente quer, alguém na nossa frente, aquela pessoa que vai falar pela gente, certo? (Mãe).

Os extratos acima revelam que a compreensão/vivência da democracia se materializa com base na necessidade de resolução dos problemas cotidianos que se apresentam na realidade social. Os fragmentos de falas da mãe e do aluno se colocam na direção da democracia representativa presente na cultura política brasileira, em que são delegados aos eleitos a resolução dos problemas.

Numa outra dimensão, a ideia de participação foi associada à possibilidade de promoção de uma escola que, além da aprendizagem e cidadania, busca atingir metas:

Eu vejo uma participação atuante, engajada na causa, né? Porque o que a gente quer é uma escola que tenha resultados, né? Não só em termos de aprendizagem, mas também a questão da cidadania, passar pros alunos, né? (Professora).

Esse discurso reforça a política educacional vigente que defende a política de resultados como indicador de qualidade, ou seja, o envolvimento dos atores escolares na busca por desempenho de alunos, docentes e gestão. Não se percebe nenhuma forma de questionamento sobre essa prática escolar.

Embora a participação como sinônimo de democracia esteja muito presente nos discursos dos sujeitos da escola, há também na visão da gestora certa resistência à participação mais ampla por parte dos alunos e pais na decisão de questões importantes para a escola, assinalando a noção de reciprocidade.

Essa resistência da participação, eu acho que é ser disponível. Ser disponível ao serviço público. [...] Muita dificuldade, resistência. Ninguém quer porque é uma responsabilidade a mais, inclusive sugestões a gente recebe de que esse trabalho ele seja gratificado, porque é um tempo que se disponibiliza a mais (Gestão).

Ressaltamos o uso da palavra “gratificação”, que indica a noção de retribuição pela participação, como se pais esperassem receber algo em troca da sua presença na escola, como se tal presença fosse um favor, não um direito! A resistência, portanto, é associada à ideia de pais e alunos como pessoas desinteressadas pela escola, o que não é verdade, pois há, muitas vezes, uma falta de diálogo, de entendimento, de aproximação com esses segmentos para saber o que eles esperam da escola, bem como, acrescentamos, certa formação política na escola, com esclarecimento da importância de sua presença para a educação de seus filhos.

O funcionário apresenta uma visão mais crítica e realista, expondo a necessidade de mais participação na escola como condição importante para a melhoria da qualidade do ensino, inclusive uma postura mais exigente dos pais em relação à aprendizagem dos seus filhos.

A escola certamente ia mudar em vários aspectos, especialmente no que diz respeito a qualidade de ensino porque se os pais fossem participativos, eles iam exigir dos professores. Aí pressão sobre os professores, aí vem a qualidade, mas os pais eles não têm interesse em participar. Na minha visão, a escola deveria trabalhar mais essa questão e motivar especialmente os pais de alunos a serem participativos. Isso ia fazer toda a diferença na escola (Funcionário).

A presença dos pais na escola é fundamental quando queremos o acompanhamento no processo ensino-aprendizagem e a participação destes nos processos decisórios na escola; porém, nos discursos dos gestores e professores tem sido uma queixa recorrente a pouca presença dos pais na escola. No entanto, é preciso cautela para compreendermos as razões dessa ausência, pois nem sempre a política de participação dos pais na escola caminha na direção dos interesses dos pais. Conforme alerta Carvalho (2004), estudiosa do tema,

além de condições e disposições dos pais para participar da política de incentivo a sua participação na escola (particularmente no contexto da escola pública), pressupõe aquilo que ela quer construir: continuidade cultural e identidade de propósitos entre famílias e escolas (p.44).

Sobre a possibilidade de vivenciar a gestão democrática na escola, os segmentos alunos e pais (mãe) disseram que já ouviram falar sobre isso, mas não sabem dizer o que é. Assim sendo, apresentamos como os segmentos se expressam sobre essa questão.

A gestão democrática, eu considero ela muito favorável, né? Foi algo que veio para tirar um pouco o domínio político de dentro da unidade escolar. Então, a comunidade, aqueles que estão nesse convívio diário, eles podem fazer a sua escolha, daqueles que irão comandar, liderar por determinado tempo a unidade escolar (Gestora).

Eu acho que, apesar das dificuldades, a gente tá caminhando pra isso porque quando a gente assume uma posição, é justamente pra melhorar, não só para os funcionários, mas também para os alunos e até também para a família. Acho que é todo um conjunto (Professora).

Gestão democrática ainda está engatinhando. Não só aqui no nosso estado, mas em todo o país. Partindo mesmo da questão dos diretores, muitos diretores não sabem o que é uma gestão democrática. Percebo que assume essa responsabilidade pela gratificação. Antigamente a gratificação era só duzentos reais, aí ninguém queria ser diretor. Quando foi ano passado, aumentou pra mil e duzentos. [...] Mas a questão da gestão democrática tá muito longe da realidade, muito longe da realidade, pouquíssimos diretores sabem o que realmente é isso (Funcionário).

Em relação aos depoimentos acima, tanto os discursos da professora como do funcionário afirmam que, apesar das dificuldades cotidianas da escola, a gestão democrática está caminhando. Entretanto, o funcionário chama atenção para a falta de interesse de professores em quererem ser gestores, o que mudou apenas devido ao incentivo da gratificação.

Um discurso que se diferencia é o da gestora em que faz alusão ao período em que era muito presente o domínio político dentro da unidade escolar, o que remete à força política na história alagoana dos grupos/famílias tradicionais no comando da vida pública. Cabe lembrar que, segundo pesquisa de Macena e Prado (2014), por meio de questionário aplicado aos secretários de educação de Alagoas sobre as formas de provimento ao cargo de gestor escolar, constatou-se que 78% ocorriam por indicação/nomeação política, 15% por eleição direta, 1% por concurso, 3% por outras formas (não informadas), e 1% não respondeu. Conclui-se, a partir dos dados, que nos municípios alagoanos a indicação política é a forma predominante na escolha dos gestores escolares, reforçando em pleno século XXI a presença do domínio político na educação.

Muito embora tenhamos a eleição para a composição do Conselho, na prática, o processo de escolha deste sofre influência daqueles que detêm o poder do convencimento. Isso pode ocorrer porque, muitas vezes, os jovens estudantes e os próprios pais, por terem pouca escolarização, reforçam práticas tradicionais em detrimento de uma formação mais ampla, que possibilite adquirir ferramentas para analisar criticamente a realidade social em que estão inseridos.

É importante investir na formação dos membros do Conselho para que este tenha uma ação eficaz e para que possa atuar com conhecimento técnico e dentro de uma ética que prime pela transparência e lisura no seu trabalho de acompanhamento, fiscalização e prestação de contas acerca do uso dos recursos por parte do Poder Público (TEIXEIRA, 2000).

Considerações Finais

O objetivo da pesquisa no âmbito do estágio pós-doutoral buscou apreender as concepções e práticas de democracia/democratização que emergem no cotidiano da escola, de modo a compreender qual a contribuição da cultura política local na construção de práticas democráticas no espaço da escola pública.

Compreender a cultura política brasileira implica necessariamente ir além do debate sobre a democracia, abarcando com a história a forma como as elites locais conseguiram se perpetuar enquanto tais por meio das relações de poder implantadas, e que tem como marcas o coronelismo. Este ainda reverbera nas práticas sociais, apesar dos avanços da democracia, o que também interfere no âmbito educacional. Isso se reflete nas práticas cotidianas na sociedade e na escola, bem como permeia o imaginário coletivo na forma de pensar/desenvolver a ação pública.

A importância da reflexão sistemática sobre a experiência democrática permite perceber/analisar criticamente os limites e alcances da democracia no âmbito da escola como esta vem sendo vivenciada, bem como auxilia a superar os entraves no cotidiano escolar que impedem a busca de uma prática social calcada na participação, no debate coletivo e nos processos de decisão. Partimos do pressuposto de que a democracia é um princípio e prática, e precisa ser exercitada e conquistada diariamente no enfrentamento dos problemas da vida em sociedade.

As possíveis razões explicativas para o tipo de democracia presente como concepções dos sujeitos e sua expressão no contexto alagoano, tomando por base a realidade analisada pode assim ser enumerada: 1) Que não temos nenhuma pretensão de afirmar se existe ou não gestão democrática. Esse não é o nosso objetivo; 2) Com base na literatura estudada e na análise de dados coletados, podemos inferir que existe atualmente uma desmobilização, uma desmotivação para participar na escola e até mesmo descrédito na gestão democrática.

Vivemos numa sociedade impregnada de ideias e valores capitalistas em que impera a lei do mercado e a satisfação material a todo custo, uma sociedade extremamente consumista, numa busca desenfreada em atender aos interesses individuais em detrimento do coletivo. Essa realidade também se reflete na dinâmica da escola, onde os sujeitos se encontram sobrecarregados, levando-os a um trabalho exaustivo, sem o planejamento e estudo devido para a melhoria da sua qualidade, isolados e muitas vezes sem se comprometer com o coletivo e a escola, restringindo a materialização de práticas que potencializem a efetivação da democracia.

Rancière nos auxilia a compreender este aspecto, ao chamar de democracia como dissenso, a democracia como igualdade, essa nós não temos concretizado nas práticas sociais. O que temos caracterizado na escola brasileira e alagoana é uma democracia institucionalizada, que é representativa, sobre a qual o autor faz críticas e que gera na sociedade um conformismo.

Ainda sobre os mecanismos da democracia na escola, concordamos com Botler (2013) quando afirma que a democracia não acontece meramente por decreto, porque está na Constituição Brasileira e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. A democracia e a participação acontecem nas relações cotidianas, na construção dos objetivos do bem comum, enquanto uma cultura dinâmica, que se constrói em cada coletivo, conforme as singularidades locais.

O discurso de gestão escolar democrática em torno do qual há um consenso de que esta é a melhor forma de se organizar a escola/sociedade (que difere da noção de dissenso de Rancière) se perde, uma vez que a sua prática se revela distante da teoria, conforme os dados nos revelaram.

E por fim, a participação enquanto prática social também se distancia, porque é sempre uma participação tutelada, condicionada a alguma coisa, não aquela participação no sentido pleno da palavra como conquista, como expressão do direito do sujeito de se expressar e decidir.

1Pesquisa desenvolvida no âmbito do estágio pós-doutoral, com financiamento da CAPES.

4Qualificações específicas referem-se a riqueza, sabedoria, saber ou nascimento

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Recebido: de 2023; Aceito: de 2023; Publicado: de 2023

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