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Jornal de Políticas Educacionais

On-line version ISSN 1981-1969

J. Pol. Educ-s vol.17  Curitiba  2023  Epub Oct 11, 2023

https://doi.org/10.5380/jpe.v17i0.86715 

Seção Dossiê

Dimensões da privatização da educação básica no Brasil: um diálogo com a produção acadêmica a partir de 1990

1Pedagogo pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisador junto ao Grupo de Estudos e Pesquisas em Política Educacional (GREPPE). Campinas, SP. Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-7314-254X. E-mail: andrey.mori@gmail.com


Não é novidade na história da educação brasileira os constantes conflitos entre o público e o privado, sendo esta uma chave de análise utilizada diversas vezes para compreender processos políticos decorridos no país (CUNHA, 2007; CURY, 1992; SAVIANI et al, 2004). A despeito disso, com a força do neoliberalismo e o propagado “fim da história” nos anos 1990, e passada a ascensão popular brasileira que resultou na Constituição Cidadã de 1988, verificou-se no país uma série de políticas que buscaram reorganizar os papéis do Estado e do mercado na sociedade, seja no aspecto administrativo (por exemplo o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, de 1995) ou orçamentário (por exemplo a Lei de Responsabilidade Fiscal, de 2000).

Theresa Adrião formou-se nesse período: pedagoga (1988), mestre (1995) e doutora (2001) em educação pela Universidade de São Paulo (USP). Tão logo iniciou a carreira como docente e pesquisadora no ensino superior, junto à Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp) – câmpus de Rio Claro, começou a participar de pesquisas interinstitucionais, em colaboração com pesquisadores de diferentes partes do Brasil, sobre temas relacionados à gestão e ao financiamento da educação básica. Com o desenvolvimento de tais pesquisas, os desdobramentos das políticas de redefinição do papel do Estado iniciadas nos anos 1990 começaram a ganhar contornos mais bem definidos, e a temática da privatização da educação, ainda não entendida nesses termos, passou a fazer parte da agenda da pesquisadora. O Grupo de Estudos e Pesquisas em Política Educacional (GREPPE), coordenado por Adrião, é resultado da necessidade objetiva de articular e catalisar essas pesquisas (ADRIÃO, 2012).

Passados mais de dez anos de amadurecimento teórico e político, com análise comparada dentro do território brasileiro, mas também com outros países (notadamente Chile, Estados Unidos e Portugal), Adrião defende sua tese de livre-docência em 2015 junto à Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), da qual resulta a obra Dimensões da privatização da educação básica no Brasil: um diálogo com a produção acadêmica a partir de 1990, foco desta resenha.

Apesar da publicação alguns anos após a titulação de Livre-Docente, o texto mantém sua atualidade, posto que o resultado é a caracterização de um processo em curso e que ainda não se esgotou, ao contrário, ganhou novos ares nos últimos anos, por exemplo com a Emenda Constitucional 95 de 2016 e com a expansão digital da educação potencializada pela pandemia da Covid-19.

Como o próprio título sugere, o cerne deste trabalho é um diálogo com a produção acadêmica. Trata-se, na verdade, do esforço da pesquisadora em compreender, prática e teoricamente, o que é a privatização da educação básica. Para tanto, elabora um estado da arte sobre o tema, tarefa que exige levantar, sistematizar e analisar artigos, teses e dissertações relacionadas à área. A título de ilustração do esforço, a obra está dividida em 4 capítulos além da introdução, e como resultado apresenta 5 figuras, 4 quadros, 26 tabelas e 54 gráficos, necessários para a apresentação didática dos 224 artigos e 72 teses ou dissertações.

Pesquisas de tipo estado da arte objetivam produzir um panorama do que já foi feito sobre determinado tema, mapeando e caracterizando a produção científica prévia. Neste sentido, a autora buscou artigos em língua portuguesa e inglesa, via Scientific Eletronic Library Online (SciELO) e Web of Science (WoS) respectivamente, e teses e dissertações brasileiras, obtidas a partir do Catálogo de Teses e Dissertações da Capes e do repositório institucional de 8 universidades representativas do país, a saber: as três estaduais paulistas – USP, Unicamp e Unesp – e uma de cada região do país, aquela cujo programa de pós-graduação é o maior – Federal do Pará (UFPA); Federal de Pernambuco (UFPE); de Brasília (UnB); Federal de Minas Gerais (UFMG); e Federal do Rio grande do Sul (UFRGS).

Para a seleção dos trabalhos, os descritores elencados para a busca em língua portuguesa foram: financiamento; escolha parental; subsídio; parceria público-privado; parceria público-privada; gestão privada; privatização; cooperativa; cogestão; quase-mercado; charter; choice. Em língua inglesa, os descritores foram: financing; public private partnership; co-management; aid ou subvention; cooperative; privatization; charter; choice. Interessante notar que a escolha dos descritores evidencia a concepção ampla, que abrange diversos processos, que a autora tem de privatização da educação. O período de interesse do levantamento compreende o intervalo 1990 a 2014. O início do recorte é justificado pela “generalização da agenda reformadora na educação orientada para e pelos negócios” (p. 120-121) e pela aprovação da Declaração Mundial sobre Educação para Todos, na Conferência de Jomtien, e o fim pelo prazo de integralização do estudo.

No primeiro capítulo, intitulado Privatização da educação: dimensões e formas de operacionalização, Adrião afirma que o termo privatização é o que melhor apreende o movimento que direciona a educação básica brasileira ao campo de influência do setor privado, lucrativo ou não, e a subordina a ele. Neste sentido, argumenta que conceitos como mercantilização ou parceria/relações entre o público e o privado não são os mais adequados para caracterizar este processo. As formas de operacionalização são as maneiras pelas quais o Estado, de fato, se desobriga, flexibiliza ou transfere suas responsabilidades ao setor privado, ou seja, tratam-se das formas que a privatização ocorre. A autora ainda organiza estas formas em três dimensões da política educativa, a saber: oferta educacional, gestão da educação pública e currículo.

O entendimento da privatização da educação básica enquanto formas de operacionalização aglutinadas em três dimensões da política educativa é a principal contribuição teórica da pesquisadora neste trabalho. A oferta educacional é privatizada quando organizações privadas são financiadas com recursos públicos, direta ou indiretamente, quando se introduz ou amplia políticas de escolha parental (choice), ou mesmo quando o sistema público de ensino coexiste com um sistema escolar privado. À privatização da gestão da educação pública corresponde a transferência da gestão escolar ou a transferência/delegação da gestão da rede de ensino para atores privados. Por fim, a privatização do currículo compreende a compra ou adoção de desenhos curriculares ou tecnologias educacionais elaboradas pelo setor privado, bem como a aquisição de Sistemas Privados de Ensino (SPE), uma cesta completa que inclui, dentre outras coisas, formação continuada dos docentes e avaliação interna e externa.

Os segundo e terceiro capítulos, intitulados respectivamente Sobre a modalidade de pesquisa estado da arte: do que falam os periódicos na área de educação – SciELO-Br e Web of Science (1990-2014) e Produção da pós-graduação brasileira sobre privatização da educação: 1990-2014 apresentam o tipo de pesquisa desenvolvido e os resultados encontrados a partir da busca pelos trabalhos acadêmicos. A análise realizada pela autora envolve dois aspectos: bibliométricos (ano da publicação; país ou região do Brasil no qual se localiza a instituição de vínculo do autor principal; e periódico ou instituição na qual o trabalho foi publicado/desenvolvido) e qualitativos (campo empírico; natureza da pesquisa; metodologia da pesquisa; dimensão e forma da privatização a que o trabalho se refere; etapa da educação básica focalizada; posição do(s) autor(es) diante do processo analisado; programa/política/ator analisado; e tema/objeto da produção), sendo este último aspecto identificado a partir da leitura do resumo dos trabalhos.

O quarto e último capítulo, intitulado Indicações finais sobre as dimensões de privatização da educação básica no atual contexto brasileiro em diálogo com a produção bibliográfica, apresenta a síntese do trabalho desenvolvido: quais são as nuances da produção acadêmica brasileira se comparada com a literatura internacional? Aqui reside outra potência deste trabalho: lubrificar as engrenagens que movem a pesquisa brasileira, indicando as ênfases e omissões, bem como destacando de que maneira o contexto histórico tem orientado o conteúdo e a forma dos trabalhos. Oferece, portanto, terreno fértil para a continuidade dos trabalhos por outros pesquisadores.

Adrião verifica que, em todas as bases, a dimensão mais focalizada pelas pesquisas é a dimensão da oferta educacional, sobretudo na forma de subsídio público ao setor privado, enquanto o menor foco está na dimensão do currículo. A dimensão da gestão da educação pública é bastante estudada nos trabalhos acadêmicos dos programas pós-graduações brasileiras. Dentre as diversas considerações que a autora faz sobre a produção acadêmica analisada, ressalto três pontos que merecem atenção dos pesquisadores brasileiros: 1) escolas sob contrato ou conveniadas (charter schools em alguns países) apresentam diferenças regionais, dentro e fora do Brasil, que precisam ser levadas em conta, caso contrário corre-se risco de importar acriticamente conceitos que não explicam de maneira satisfatória nossa realidade; 2) aulas particulares ou tutorias digitais configuram-se enquanto privatização da educação e têm relação com o aumento da desigualdade educacional e social, apesar de serem profundamente naturalizadas em nosso país e negligenciada pelas pesquisas; 3) renúncias fiscais são incentivos públicos indiretos ao setor privado, sendo também uma forma de privatização pouco explorada, mesmo em estudos de financiamento da educação.

A obra Dimensões da privatização da educação no Brasil: um diálogo com a produção acadêmica a partir de 1990 chega para o público em oportuna hora. Diante de inúmeros retrocessos e constante avanço do setor privado sobre a educação pública, ter em mãos uma discussão conceitualmente qualificada, amadurecida a partir do diálogo com a produção científica nacional e internacional, é fundamental, tanto para a academia quanto para as políticas educacionais: para a academia, na medida em que organiza o que já foi feito e aponta caminhos que podem ser trilhados; para as políticas educacionais, servindo de guia para elaboração e implementação de propostas contrárias às propostas privatistas, sobretudo ao fornecer conceitos lapidados de acordo com a realidade nacional.

Referências bibliográficas

ADRIÃO, Theresa. Notas sobre o Grupo de Estudos e Pesquisa em Política Educacional – GREPPE. Jornal de Políticas Educativas, n. 12, jul./dez. 2012, p. 51-56. Disponível em: <https://revistas.ufpr.br/jpe/article/view/32275/20495>. Acesso em: 10/07/2022. [ Links ]

CUNHA, Luiz Antônio. O desenvolvimento meandroso da educação brasileira entre o estado e o mercado. Educação & Sociedade, v. 28, n. 100 - Especial, out. 2007, p. 809-829. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/es/a/tcv35NPhMLYGgFjxyhHVRkD/?format=pdf&lang=pt>. Acesso em: 10/07/2022. [ Links ]

CURY, Carlos Roberto Jamil. O público e o privado na educação brasileira contemporânea: posições e tendências. Caderno de Pesquisa, n. 81, maio 1992, p. 33-44. Disponível em: <https://publicacoes.fcc.org.br/cp/article/view/988/998>. Acesso em: 10/07/2022. [ Links ]

SAVIANI, Dermeval et al. O legado educacional do século XX no Brasil. Campinas: Autores Associados, 2004. [ Links ]

Recebido: de 2022; Aceito: de 2022; Publicado: de 2023

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