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Jornal de Políticas Educacionais

versão On-line ISSN 1981-1969

J. Pol. Educ-s vol.18  Curitiba  2024  Epub 15-Jan-2025

https://doi.org/10.5380/jpe.v17i0.95980 

Dossiê: Educação e Formas de Participação no Contexto dos BRICS

Políticas Educacionais no Brasil: CONAEs como modelo participativo para os Planos Nacionais de Educação do BRICS

Políticas Educacionales en Brasil: CONAEs como modelo participativo para los Planes Nacionales de Educación de los BRICS

Luciane Terra dos Santos Garcia1 
http://orcid.org/0000-0003-3089-4263

Rute Regis de Oliveira da Silva2 
http://orcid.org/0000-0002-7483-1419

Antonio Jorge Gonçalves Soares3 
http://orcid.org/0000-0001-7769-9268

1Doutora em Educação. Professora na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal, RN. Brasil. E-mail: luciane.terra@ufrn.br

2Doutora em Educação. Professora na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal, RN. Brasil. E-mail: ruteregis1@gmail.com

3Doutor em Educação Física e Cultura. Professor Visitante Sênior na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal, RN. Brasil. E-mail: ajgsoares@gmail.com


Resumo

O objetivo deste texto é analisar o modelo participativo brasileiro na formulação do Plano Nacional de Educação, destacando o potencial das Conferências Nacionais de Educação (CONAEs) como uma possível inspiração para os países do BRICS. As fontes utilizadas foram os diversos documentos-chave que norteiam as políticas educacionais brasileiras na elaboração dos planos nacionais de educação e discussões internacionais sobre o papel da educação na visão da Unesco. Tais documentos foram analisados a partir dos debates teóricos sobre os impactos do neoliberalismo na educação. Os resultados indicam que, apesar das tensões, limitações e desafios na elaboração do Plano Nacional de Educação, a experiência brasileira oferece um exemplo valioso de participação democrática que visa à construção de políticas que promovam justiça social e equidade. Além disso, o modelo das CONAEs pode servir como contraponto para o avanço das políticas neoliberais nos países do BRICS, propondo uma alternativa focada na inclusão e na superação das desigualdades educacionais.

Palavras-chave: CONAEs; Brics; Políticas educacionais; Participação

Resumen

Este texto tiene como objetivo analizar el modelo participativo brasileño en la formulación del Plan Nacional de Educación, resaltando el potencial de las Conferencias Nacionales de Educación (CONAEs) como una posible inspiración para los países del BRICS. Las fuentes utilizadas fueran los diversos documentos-clave que nortean las políticas educacionales brasileñas en la elaboración de los planes nacionales de educación y las discusiones internacionales sobre el papel de la educación en la visión de Unesco. Esos documentos fueran analizados a partir de los debates teóricos sobre los impactos del neoliberalismo en la educación. Los resultados indican que, a pesar de las tensiones, limitaciones y los desafíos en la elaboración del Plan Nacional de Educación, la experiencia brasileña ofrece un ejemplo valioso de participación democrática que tiene por objetivo la construcción de políticas que promuevan justicia social y equidad. Además, el modelo de las CONAEs puede servir como un contrapunto para el avance de las políticas neoliberales en los países del BRICS, proponiendo una alternativa con enfoque en la inclusión y en la superación de las desigualdades educacionales.

Palabras clave: CONAEs; BRICS; Políticas educacionales; Participación

Abstract

The objective of this study is to analyze the Brazilian participatory model for the formulation of the National Education Plan, highlighting the potential of the National Education Conferences (CONAEs) as a possible inspiration for BRICS countries. The sources used in this analysis were the various key documents that guide Brazilian educational policies in constructing the national education plans and international discussions about the role of education from Unesco’s perspective. These documents were examined considering the theoretical discussions regarding the impacts of neoliberalism on education. The results indicate that, despite the tensions, limitations and challenges involved in the construction of the National Education Plan, the Brazilian experience offers a valuable example of democratic participation to develop policies that promote social justice and equity. Furthermore, the CONAE model can serve as a counterpoint to the progress of neoliberal policies in the BRICS countries by proposing an alternative that focuses on inclusion and overcoming educational inequalities.

Keywords: Conae; BRICS; Educational policies; Participation

Introdução

Em 2008, na Cúpula de Ecaterimburgo, Brasil, Rússia, Índia e China formalizaram a constituição de uma entidade político-diplomática de cooperação mútua, à qual se juntou a África do Sul, em 2009 (GOMES, 2018). Conhecido pelo acrômio BRICS, o grupo inicialmente focou na cooperação econômica e política, mas desde 2013 tem ampliado a colaboração no âmbito educacional e em outros setores4. A partir de 2024, conforme decisão na Cúpula de Joanesburgo, o BRICS integrou Egito, Etiópia, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Irã, representando agora “quase metade da população mundial e cerca de um terço do PIB global, promovendo um mundo multipolar e uma tentativa de ordem internacional mais justa” (RFI, 2024). De fato, esse tipo de alinhamento geopolítico intenciona buscar equilíbrio competitivo nos mercados transnacionais e desenvolvimento sustentável para suas regiões.

O BRICS se posiciona em conjunto para participar da reforma e gestão das normas neoliberais (GOMES, 2018). Esses países buscam acordos de cooperação mútua, levando em conta as intensas desigualdades socioeconômicas e as relações de poder assimétricas, tanto no cenário transnacional quanto entre eles mesmos. Apesar de reconhecer as desigualdades e a necessidade de auxílio mútuo, o BRICS não se compromete com uma cooperação Sul-Sul que promova a autossuficiência e a emancipação dos países coligados por meio da superação das desigualdades com os países do Norte Global (MUHR; AZEVEDO, 2019). Para corrigir os desequilíbrios Sul-Norte, seria necessário intensificar a cooperação com outros países e desafiar os princípios da ordem internacional dominante. No entanto, o BRICS arregimenta outros países e busca, principalmente, ampliar seu acesso e representação no mercado, na ONU e na geopolítica internacional (MUHR; AZEVEDO, 2019).

A partir dessa lógica e das evidentes desigualdades múltiplas (DUBET, 2020) enfrentadas nos países do BRICS, a superação das desigualdades educacionais se tornou também objeto da agenda política. Sob a tutela da UNESCO, em 2013, em Paris - França, e em 2014, em Fortaleza - Brasil, na IV Cúpula do BRICS, discutiu-se a importância estratégica da educação para o desenvolvimento sustentável e o crescimento econômico inclusivo (UNESCO, 2014). O documento "BRICS: Construir a Educação para o Futuro" (UNESCO, 2014) destaca que os cinco países participantes no período compartilhavam da inserção no Movimento Educação para Todos, com capacidade de matricular todas as crianças no ensino fundamental. O escopo do documento indica o reconhecimento da persistência de desigualdades que enfraquecem o crescimento econômico e a coesão social desses países, pois a ênfase desse organismo transnacional recai sobre como a educação pode ser usada como uma ferramenta para promover o desenvolvimento econômico e social sustentável, sem questionar profundamente as estruturas econômicas subjacentes que perpetuam tais desigualdades.

O documento ressalta que a diversidade de experiências políticas permite que os países do BRICS aprendam uns com os outros, adotando políticas bem-sucedidas de um país para outro (UNESCO, 2014). Esses países podem, em tese, compartilhar experiências pedagógicas, de gestão e de avaliação dos sistemas de educação que ajudem a superar desafios educacionais, cooperando para mitigar desigualdades, além de prestar assistência a países de renda baixa e média (UNESCO, 2014). A colaboração acadêmica e o intercâmbio de conhecimentos são vistos como essenciais para enfrentar os desafios globais e regionais.

Entre as iniciativas para melhorar a educação, destaca-se a elaboração de planos para orientar a ação governamental. O documento da Unesco (2014) descreve os planos existentes nos cinco países quanto à periodicidade, objetivos e metas. No entanto, o processo participativo de elaboração do Plano Nacional de Educação (PNE) do Brasil não é mencionado no referido documento. O PNE é gestado por um processo participativo que envolve amplamente o governo, a sociedade e diversos movimentos sociais na definição das políticas educacionais para uma década.

Durante a formulação do PNE, por meio das Conferências Nacionais de Educação (CONAEs) busca-se inserir práticas de democracia direta no modelo de democracia representativa (BODIÃO, 2016) com o objetivo de mitigar desigualdades e aprimorar a qualidade da educação. É relevante questionar por que a Unesco não destacou o modelo participativo e democrático das CONAEs na construção do PNE. Como instituição transnacional, a Unesco propõe soluções para reduzir as desigualdades que afetam de maneira mais intensa os países periféricos dentro da moldura das políticas neoliberais.

Este artigo analisa a experiência brasileira na elaboração do planejamento educacional governamental, destacando as CONAEs como um exemplo de participação democrática na construção de um projeto educacional para o país. Apesar das limitações impostas pelo alinhamento dos governos ao credo neoliberal, esse modelo participativo ainda oferece um caminho promissor para repensar os sistemas educacionais no BRICS.

A hipótese central é que a conjuntura mundial e as relações de poder entre estados e blocos, como G7, G20 e BRICS, são estruturadas sob a lógica neoliberal de governança, contudo, existem movimentos de resistência dentro dos estados democráticos que buscam mitigar os efeitos nocivos das políticas neoliberais em várias esferas sociais. O modelo participativo utilizado na elaboração do PNE, com todos os seus impasses, avanços e retrocessos, alcança significativa capilaridade envolvendo diferentes segmentos da sociedade e, em específico, da educação, para discutir o documento base nas diferentes etapas da CONAE.

Argumentamos que esse modelo de participação pode inspirar os países associados ao BRICS e tensionar ou criar inflexões no curso das políticas neoliberais dominantes no campo da educação. Com a finalidade de pensar os processos participativos nas CONAEs e os efeitos do neoliberalismo na educação, analisamos os seguintes documentos: Constituição da República Federativa do Brasil de 1988; Documento Final da Conferência Nacional de Educação - CONAE 2010; Ministério da Educação. Portaria nº 577 de 27 de abril de 2017; Plano Nacional de Educação 2014-2024: Lei nº 13.005 de 25 de junho de 2014; UNESCO. BRICS: construir a educação para o futuro. França: UNESCO, 2014; Documento Base - Plano Nacional de Educação (2024-2034): política de Estado para a garantia da educação como direito humano com justiça social e desenvolvimento socioambiental sustentável, 2024. Documento Final. Conferência Nacional Popular de Educação. Natal: Fórum Nacional Popular de Educação, 2022; Documento Referência Conferência Nacional Popular de Educação (CONAPE) 2018. A análise dos documentos tomou por base autores que debatem o neoliberalismo e educação.

O artigo está estruturado em dois movimentos: no primeiro, analisamos como a globalização das políticas educacionais, impulsionada por organismos transnacionais e alinhada à lógica neoliberal, tem moldado as reformas educacionais nos países periféricos. No segundo, analisamos como as Conferências Nacionais de Educação no Brasil permitiram a participação ativa de educadores e da sociedade civil na formulação de políticas educacionais que tensionam o debate com o projeto globalizado e hegemônico de educação. Embora esses espaços possibilitem avanços na formulação do PNE, também apresentam dificuldades e limites impostos pela conjuntura política e econômica que, frequentemente, diluem as propostas progressistas. Por fim, apresentamos as considerações finais.

Globalização das Políticas Educacionais: projeto de educação hegemônico

Os processos de globalização da economia, distantes de uma integração e liberdade comercial global, consistem em abertura, subordinação e dependência das economias periféricas e vulneráveis ao capital transnacional, que se movimenta na direção e ao sabor da acumulação ilimitada sob o patrocínio das economias imperialistas de nosso tempo (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2002; WOOD, 2014). As potências imperialistas protegem sua economia, controlam as condições de comércio, conforme interesses próprios, exigindo a abertura de fronteiras ao trabalho, aos recursos e aos mercados das economias periféricas.

Segundo Wood (2014), cabe ao Estados-nação manter as condições de acumulação do capital, protegendo seu equilíbrio de forças, abrir as fronteiras ao capital global e impedir uma integração que poderia equiparar as condições entre trabalhadores mundialmente. Nesse contexto, a ideologia neoliberal tornou-se hegemônica e, em nome do Estado mínimo, abre-se a instância pública à ação mercantil, desregulamentando direitos e proteções da classe trabalhadora, destruindo o pouco de proteção social obtida pela classe trabalhadora no século XX.

Não basta que o neoliberalismo oriente a ação dos governantes para que o sistema capitalista se perpetue; é necessário que seja aceito e incorporado também pelas classes trabalhadoras. Na visão pós-estruturalista de Dardot e Laval (2016), é importante conformar a conduta dos governados para que, usando sua própria liberdade, incorporem naturalmente certas normas funcionais à acumulação capitalista, bem como comportamentos resilientes diante das inúmeras crises geradas pelo capital. Dependendo do contexto e das relações de força, são utilizados métodos como golpes militares, desregulamentação radical das proteções trabalhistas, chantagens econômicas ou reformas estruturais, esvaziamento da democracia mesmo sem extingui-la formalmente, entre outros. Em nome da liberdade, por meio de manobras políticas e concessões, orientam-se "as condutas, as escolhas e as práticas desses indivíduos" (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 21).

Para esse fim, conforme Dale (2004), criaram-se formas de governação supranacional que difundem um projeto de educação global e influenciam as políticas nacionais de educação, visando à manutenção e reprodução do sistema capitalista. Nesse contexto, a educação assume a função de “apoio ao regime de acumulação, assegurando o contexto que não inibe sua contínua expansão e fornecendo uma base de legitimação para o sistema como um todo” (DALE, 2004, p. 437).

Organismos transnacionais como OCDE, Unesco, Banco Mundial e FMI representam os interesses políticos daqueles que concentram o capital, difundindo um projeto de educação globalizado que orienta os Estados-nação na condução de reformas, avançando a despeito das forças contrárias. No Brasil, o projeto globalizado de educação avançou particularmente a partir da contrarreforma neoliberal do Estado na década de 1990, impulsionando o gerencialismo na gestão pública, inclusive no âmbito educacional.

Nesse cenário, cresce a privatização do setor público sob pretexto de incrementar a qualidade educacional, difunde-se uma educação neoconservadora, neotecnicista e funcional, dificultando o desenvolvimento de um projeto de educação nacional comprometido com a emancipação das pessoas como foi idealizado na Constituição Federal de 1988. Segundo Peixoto (2022), a educação brasileira é historicamente marcada pela disputa entre instâncias públicas e privadas, com o setor privado modificando sua atuação política conforme o contexto e as possiblidades de apropriação dos ativos do Estado, dificultando o fortalecimento da educação pública de qualidade.

Apesar de a Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988) estabelecer a educação como um direito público subjetivo, orientada por princípios como qualidade, gestão democrática, igualdade de acesso e permanência, o avanço do neoliberalismo no país tem acirrado a disputa pelos fundos públicos, permitindo que organizações privadas controlem a política educacional e ampliem a financeirização da educação. Conforme Peixoto (2022), essas disputas são acirradas pela financeirização da educação, que permite a atuação de grandes corporações em todos os níveis, modalidades e etapas educacionais. Essas corporações orientam o que, como e quando se deve ensinar, difundem valores e visões de mundo, promovem um projeto de educação globalizado, baseado em tecnologias e em plataformas educacionais, no empreendedorismo e no mérito como caminhos da eficácia escolar.

Nesse modelo, apesar da discursividade redentora, a educação mantém as desigualdades nos sistemas escolares, sem espaço para uma educação unitária pensada como um projeto de emancipação das camadas populares e da classe trabalhadora. Laval (2019) explica que os objetivos clássicos da escola, como emancipação política e desenvolvimento pessoal, são substituídos pela eficiência produtiva e inserção profissional. Isso em um mundo com escassez de empregos formais, com ocupações flexíveis e sazonais, sem as garantias de proteção social que a classe trabalhadora obteve durante o desenvolvimento do capitalismo industrial (CASTEL, 2005). Segundo essa lógica, a escola deve formar trabalhadores flexíveis, autodisciplinados, capazes de resolver problemas sozinhos e ser empregáveis, promovendo a obediência passiva a instruções precisas (LAVAL, 2019).

Consequentemente, cresce a demanda para que a escola forme empreendedores, ensinando como sobreviver na economia capitalista em constante crise, com redução de postos de trabalho e de proteções sociais. Oculta-se, dessa forma, tanto problemas históricos de investimento em infraestrutura escolar, na capacitação e na carreira docente, quanto a forma injusta de distribuição da riqueza acumulada socialmente, cuja concentração aumentou de tal forma que as distâncias econômicas entre pobres e ricos se tornam abissais (PIKETTI, 2014).

Esse movimento transnacional de reforma educacional não tem a participação popular como esteio às suas propostas supostamente voltadas à qualidade, inclusão e equidade. Uma vez que se implementa um projeto de educação transnacional, a despeito das especificidades e demandas de cada país, a participação se restringe ao modo de implementar um projeto generalista de educação, com o claro intuito de responsabilizar os sujeitos pelos resultados de demandas externas.

Essa é a concepção do modelo de gestão gerencial que tem orientado, em grande medida, reformas administrativas em diferentes países, particularmente no Brasil. Proveniente da esfera privada, esse modelo prioriza a eficiência administrativa e as dimensões econômico-financeiras na gestão (PAULA, 2005). Conforme Paula (2005, p. 41) enfatiza, esse modelo é “participativo no nível do discurso, mas centralizador no que se refere ao processo decisório, à organização das instituições políticas e à construção de canais de participação popular”.

A proposta de educação em curso nos países do BRICS, conforme documento da Unesco (2014), não destoa do projeto de educação hegemônico. Tampouco a Unesco se posiciona contrária a essa proposta, visto que é premente a defesa do atrelamento da educação ao desenvolvimento econômico dos países, do incremento da eficiência na gestão; da responsabilização de professores e funcionários por resultados educacionais; da defesa da ação de agentes privados na educação pública, entre outros requisitos (UNESCO, 2014).

As reformas educacionais não ocorrem sem tensões, lutas e resistências por parte da sociedade civil organizada, que instaura debates sobre os caminhos da educação. Esse debate, no Brasil, tem sido travado envolvendo forças distintas e, muitas vezes, com projetos societais e educacionais conflitantes, congregando sindicatos, movimentos sociais e docentes, grupos neoliberais e neoconservadores, entidades científicas, religiosas e partidárias, entre outras. Esse debate marca a elaboração do PNE do Brasil, na qual a sociedade civil é chamada a participar da CONAE. As CONAEs são espaços de disputa sobre os planos nacionais de educação, além de outros, como o parlamento e o Conselho Nacional de Educação.

Conferências Nacionais de Educação no Brasil: participação e contexto

No Brasil, em contraposição ao projeto globalizado de educação, os educadores organizados em instituições sindicais, associações científicas e acadêmicas vêm promovendo debates, conferências, articulações políticas, entre outras ações visando interferir nos rumos da educação nacional em função de um projeto de educação diverso do hegemônico. Entre as bandeiras de luta desses educadores, encontra-se a defesa de uma educação socialmente referenciada, a defesa da educação pública, do recurso público para as instituições públicas, da gestão democrática da educação e de qualidade em todos os níveis e modalidades educacionais.

As CONAEs se descortinam como possibilidade de participação da sociedade civil na elaboração das políticas educacionais do país, discutindo temáticas importantes para a educação nacional. No entanto, a capacidade de influenciar a esfera política e alcançar os propósitos visados ainda se mostra dependente da conjuntura política e socioeconômica.

A criação do Sistema Nacional de Educação (SNE) e a regulamentação do regime de colaboração dos entes federados, considerando a responsabilidade comum que eles têm com a educação, definidas no Art. 211 da CF de 1988 (BRASIL, 1988), foram temas centrais das Conferências Nacionais de Educação Básica, no ano de 2008, como também de três CONAEs, nos anos de 2010, 2014 e 2024, além de duas CONAPEs, nos anos de 2018 e 2022.

O objetivo das Conferências de Educação é contribuir com a construção do PNE a partir da avaliação dos problemas educacionais brasileiros, marcados por fortes desigualdades educacionais e regionais que afetam, sobretudo, a população vulnerável. O baixo NSE (nível socioeconômico) é ainda o fator que mais impacta o sucesso escolar, de modo que a correlação entre renda e desempenho educacional é amplamente tratada pela literatura nacional e internacional (FREITAS, 2005). Assim, as conferências nacionais possibilitam que os diversos segmentos educacionais e setores da sociedade civil participem do debate ressaltando o enfrentamento das desigualdades e a permanente luta para garantir os direitos educacionais da população brasileira.

A primeira CONAE no Brasil, realizada em 2010, teve como tema “Construindo o Sistema Nacional Articulado de Educação: O Plano Nacional de Educação, Diretrizes e Estratégias”. Conforme apontado por Neves (2013), o evento foi precedido pela elaboração de um Documento de Referência, desenvolvido por uma comissão integrada pela Unesco, pelo MEC e por especialistas de universidades brasileiras. Neves (2013) critica a forte ingerência da Unesco nesse processo, observando que a participação da sociedade civil foi restrita aos especialistas acadêmicos e do MEC, o que comprometeu a representatividade mais ampla das demandas populares. Esse documento, elaborado antes da CONAE, reflete a influência considerável dos organismos internacionais na formulação das políticas educacionais no Brasil. Todavia, esse documento é submetido aos processos deliberativos das CONAEs.

Destaque-se o papel do MEC e do Fórum Nacional de Educação na organização das diferentes etapas da CONAE e de conferências livres que subsidiaram o processo de discussão qualificada dos temas que envolvem a formulação do PNE. A partir do documento base, iniciou-se a convocação e mobilização de diversos setores, movimentos sociais, educadores, representantes empresariais, classe trabalhadora, estudantes e outros segmentos da sociedade para debaterem os rumos da educação em conferências municipais, intermunicipais e distritais.

Tais conferências municipais discutiram e aprovaram propostas, bem como elegeram delegados para as etapas estaduais e regionais, até culminar na etapa nacional, quando as propostas foram discutidas, votadas e consolidadas no Documento Final da CONAE. Esse processo, implementado pelos governantes do Partido dos Trabalhadores (PT), Luiz Inácio Lula da Silva, em 2010, e Dilma Rousseff, em 2014, visou integrar diversas perspectivas e necessidades com a perspectiva de contribuir para a formulação de políticas educacionais mais democráticas e eficazes.

Apesar dessa intensa mobilização, as propostas do documento final, entregue ao Ministério de Educação, foram em grande parte desconsideradas na elaboração do Projeto de Lei (PL) nº 8.035/2010, enviado pelo MEC ao Congresso Nacional para aprovação do PNE na época (BODIÃO, 2016). Durante a tramitação no Congresso, no entanto, em grande medida, considerando as propostas da CONAE, o PL recebeu 2.916 emendas, refletindo interesses de grupos sociais antagônicos. Isso demonstra como diferentes orientações influenciaram os objetivos, as metas e os indicadores do PNE 2014-2024, referendados pela Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014 (GOMES, 2015). O PNE foi finalmente aprovado em 2014, com um atraso de três anos e meio, o que impactou o planejamento educacional brasileiro, dadas as dinâmicas das arenas de disputa.

Apesar das críticas ao processo (NEVES, 2013; BODIÃO, 2016), não se pode negar que alguns avanços foram alcançados nos embates durante a aprovação do PNE. O PNE foi composto por 20 metas que convergem na garantia do direito à educação, com metas estruturantes para todos os níveis e modalidades educacionais. No que se refere à educação básica, as metas tratam da qualidade educacional (acesso, universalização da alfabetização e ampliação da escolaridade e das oportunidades educacionais na EJA, no ensino médio e na educação profissional); há metas específicas para a redução das desigualdades e para valorização da diversidade; as que tratam da valorização dos profissionais da educação básica, no que se refere à formação, salário e carreira, da melhoria da qualidade educacional e da gestão democrática da educação pública.

As metas, referentes ao ensino superior, trataram da expansão e da qualidade da graduação e da pós-graduação, da ampliação das matrículas e da titulação dos docentes mestres e doutores que atuam na educação superior. A meta 20 estabelece a ampliação do investimento público na educação pública, de forma a atingir, no mínimo, o patamar de 7% do Produto Interno Bruto (PIB) do país no 5º ano de vigência da lei e o equivalente a 10% do PIB ao final do decênio (BRASIL, 2014).

A disputa política observada na elaboração do referido plano teve continuidade na implementação de cada meta, que dependia, entre outros aspectos, da articulação do planejamento governamental estar concatenando esforços dos entes federados a partir da coordenação da União. A colaboração para a materialização das metas propostas no PNE, ensaiada no governo da Presidente Dilma Rousseff (2011-2014 e 2014-2016), foi impactada pelas mudanças no cenário econômico e político do país, com o fim do projeto neodesenvolvimentista que marcou os governos do PT.

Esse projeto estava pautado no crescimento econômico aliado à inclusão social, sendo abalado, entre outros fatores, pela “conjuntura de crise da economia global, da crise da União Europeia, da desaceleração econômica expressiva da China e da queda dos preços das commodities e do petróleo” (FERREIRA; OLIVEIRA, 2021). Na concepção de Maciel (2021), a repercussão da crise econômica mundial e os embates contrários à concepção neoliberal moderada e ao indutivismo estatal assumidos pelo governo do PT tornaram-se inconciliáveis a partir de 2013, culminando no golpe parlamentar, jurídico e midiático de 2016, que retirou a presidente Dilma Rousseff (2011 a 2014, 2015 a 2016) do poder com o apoio da classe média, do pequeno e médio capital (MACIEL, 2021).

Com a assunção do presidente Michel Temer (2016-2018), que desenvolveu um governo de cariz ultraliberal, foi aprovada a EC. nº 95/16, que implementou um novo regime fiscal para a União, o que significou que, a partir do ano de 2017, os recursos do poder executivo só poderiam ser reajustados pela inflação do ano anterior. Isso contribuiu para a secundarização do PNE/2014. Posteriormente, o governo de Jair Messias Bolsonaro (2019-2022) seguiu essa mesma lógica, impactando o alcance do PNE.

Conforme instituído pela Lei nº 13.005/2014, entre outras instituições responsáveis, competia ao Fórum Nacional de Educação (FNE) realizar as CONAEs com intervalo de quatro anos para acompanhar, monitorar e divulgar o cumprimento das metas do PNE/2014-2024 e, ainda, propor políticas para o alcance dos resultados visados (BRASIL, 2014). Esse fórum foi reformulado pela Portaria 577, de 27 de abril de 2017 (BRASIL, 2017), do então ministro da Educação do Governo Temer, Mendonça Filho, portanto, por decisão unilateral do MEC.

A portaria excluiu determinadas entidades representantes científicas e sindicais, restringiu a participação de outras que teriam que disputar vaga no fórum, concedendo ao ministro a decisão sobre quem compunha o fórum. O FNE se desviou, então, de sua finalidade, sendo posteriormente dissolvido, levando à não realização da CONAE prevista para 2018. A participação da sociedade civil no acompanhamento das metas do PNE, entre outras políticas, foi enormemente comprometida nos governos ultraliberais desse curto período, nos quais se avançou na consecução do projeto hegemônico de educação, acrescido de projetos educacionais com conotação autoritária, a exemplo da militarização de determinadas escolas da educação básica no governo de Jair Messias Bolsonaro (2019-2022).

Em contraposição ao autoritarismo governamental que comprometeu a realização das metas do PNE, a sociedade civil organizada constituiu o Fórum Nacional Popular de Educação (FNPE) em defesa da educação pública, laica, democrática, inclusiva, crítica e de qualidade socialmente referenciada (FNPE, 2018). Esse fórum convocou a sociedade para participar da 1ª CONAPE, em 2018, objetivando “monitorar e avaliar o cumprimento do PNE, corpo da lei, metas e estratégias, propor políticas e ações e indicar responsabilidades, corresponsabilidades, atribuições concorrentes, complementares e colaborativas entre os entes federativos e os sistemas” educacionais (FNPE, 2018).

Seguindo essa mesma lógica, no período de 15 a 17 de julho de 2022, em Natal/RN, último ano do Governo de Jair Bolsonaro, foi realizada a 2ª CONAPE, intitulada “CONAPE da Esperança”. Nessa conferência foi reafirmado o Documento Referência intitulado “Reconstruir o País: a retomada do Estado Democrático de Direito e a defesa da educação pública e popular, com gestão pública, gratuita, democrática, laica, inclusiva e de qualidade social para todos/as/es”, proveniente na CONAPE de 2018 (FNPE, 2022).

Como resultado das discussões realizadas, foi firmada a Carta de Natal, na qual, entre outras bandeiras, os delegados participantes da conferência se contrapuseram à Emenda Constitucional nº 95/2016; à desvinculação dos recursos constitucionais para educação; às privatizações em curso; à reforma tributária, entre tantas medidas opostas à defesa do Estado Democrático de Direito e ao PNE (FNPE, 2022). Na ocasião também se defendeu a auditoria da dívida pública; o monitoramento e consolidação do PNE; a regulamentação do Sistema Nacional de Educação; a expansão do financiamento público para educação.

Também se defendeu o cumprimento da Meta 20 do PNE, que prevê ampliar a complementação de recursos da União no financiamento da educação, destinando recursos públicos exclusivamente para as instituições públicas de educação. A aplicação desses recursos deveria ser acompanhada pelos Conselhos de Controle Social e Popular. Também se enfatizou a importância da educação em tempo integral, da gestão educacional democrática, além da suspensão de contratos profissionais temporários, entre outras medidas relevantes que demonstram a luta histórica da sociedade civil organizada por constituir uma educação de qualidade social no país.

A vitória de Luiz Inácio Lula da Silva nas eleições de 2022 para o seu terceiro mandato presidencial (2023-2026) criou a oportunidade para a recomposição do FNE e a realização da Conferência Nacional de Educação Extraordinária em Brasília de 28 a 30 de janeiro de 2024, como reivindicada na Carta de Natal (FNPE, 2022). Mesmo com as limitações e o possível alinhamento com o modelo econômico neoliberal, os governos do PT, por possuírem uma base partidária enraizada na sociedade e nos movimentos sociais, conseguiram construir canais de diálogo efetivos com a sociedade.

O Documento Referência da CONAE 2024 (FNE, 2024), com o tema “Plano Nacional de Educação (2024-2034) - política de Estado para a garantia da educação como direito humano, com justiça social e desenvolvimento socioambiental sustentável” (FNE, 2024), enfatiza a retomada da participação das diferentes entidades, movimentos sociais e políticos na construção das políticas públicas mediante a discussão do próximo PNE. Para tanto, o Fórum Nacional de Educação congregou um conjunto de associações científicas, políticas e sociais para debater com a sociedade civil as propostas do Documento Referência que definirá os rumos da educação no próximo decênio. Gestores públicos, trabalhadores em educação, conselheiros de órgãos de controle e acompanhamento educacional, pais/mães/responsáveis, estudantes, movimentos sociais diversos, sindicatos e instituições governamentais foram convocados para debater e propor metas e estratégias para o próximo PNE (2024/2035).

Os 7 eixos temáticos o planejamento educacional com a vistas à construção do Sistema Nacional de Educação (SNE), visando garantir o direito de todas as pessoas à educação de qualidade, assegurando equidade e justiça social, com acesso, permanência e conclusão, em todos os níveis, etapas e modalidades, nos diferentes contextos e territórios, considerando a inclusão, a diversidade e o combate às diferentes e novas formas de desigualdade, discriminação e violência. Os eixos propostos pelo documento de referência foram os seguintes:

  • Eixo I - O PNE como articulador do Sistema Nacional de Educação (SNE), sua vinculação aos planos decenais estaduais, distrital e municipais de educação, em prol das ações integradas e intersetoriais, em regime de colaboração interfederativa;

  • Eixo II - A garantia do direito de todas as pessoas à educação de qualidade social, com acesso, permanência e conclusão, em todos os níveis, etapas e modalidades, nos diferentes contextos e territórios;

  • Eixo III - Educação, direitos humanos, inclusão e diversidade: equidade e justiça social na garantia do direito à educação para todos e combate às diferentes e novas formas de desigualdade, discriminação e violência;

  • Eixo IV - Gestão democrática e educação de qualidade: regulamentação, monitoramento, avaliação, órgãos e mecanismos de controle e participação social nos processos e espaços de decisão;

  • Eixo V - Valorização de profissionais da educação: garantia do direito à formação inicial e continuada de qualidade, ao piso salarial, à carreira e às condições para o exercício da profissão e saúde;

  • Eixo VI - Financiamento público da educação pública, com controle social e garantia das condições adequadas para a qualidade social da educação, visando à democratização do acesso e da permanência;

  • Eixo VII - Educação comprometida com a justiça social, a proteção da biodiversidade, o desenvolvimento socioambiental sustentável para a garantia da vida com qualidade no planeta e o enfrentamento das desigualdades e da pobreza (FNE, 2024, p. 15)

Tais eixos foram debatidos amplamente, em “conferências livres, municipais, intermunicipais, distrital e estaduais, além de webnários e audiências” públicas, de modo que o Documento Referência que orientou as discussões recebeu 8.692 emendas (FNE, 2024, p. 12) provenientes de 1.321 conferências municipais, abrangendo 4.437 municípios. A plenária final da CONAE 2024, viabilizada pelo MEC, da qual participaram mais de 2.400 pessoas, referendou a proposta que foi entregue ao ministro da Educação, Camilo Santana, para que seja incorporada ao projeto de lei que originará o novo PNE.

O documento entregue pelo FNE ao MEC afirma o compromisso da educação com o exercício “do respeito, da tolerância, da promoção e valorização das diversidades (étnico-racial, religiosa, cultural, geracional, territorial, físico-individual, de deficiência, de altas habilidades ou superdotação, de gênero, de orientação sexual, de nacionalidade, de opção política, dentre outras)” (FNE, 2024, p. 11). Entre os eixos da CONAE, destaca-se o Eixo III em função de ter uma formulação específica. Tal eixo é estritamente vinculado à desigualdade e é também transversalizado em todo os demais eixos do documento. O debate da inclusão, diversidade, direitos humanos e equidade integra a agenda contemporânea das políticas públicas, em função da mobilização dos diferentes movimentos sociais que lutam por distribuição de recursos, representatividade e reconhecimento das populações e pessoas vulnerabilizadas pelo sistema econômico, cultural e pelos infortúnios da vida. Esse eixo mobilizou diferentes movimentos sociais na definição dos objetivos e metas para as diferentes populações e pessoas que merecem atenção especial na educação no próximo decênio.

Ao integrar políticas que promovem o respeito à diversidade e o combate às desigualdades no sistema educacional, o eixo III do PNE não apenas alinha-se aos princípios constitucionais de direitos humanos e igualdade, mas também contribui para nortear a construção de uma sociedade mais inclusiva e plural. Essas medidas são essenciais para superar barreiras históricas e estruturais que limitam o acesso e a permanência de certos grupos na educação formal, promovendo assim uma educação mais justa e alinhada com os desafios contemporâneos de uma sociedade diversa.

Além disso, ao enfatizar a promoção de ambientes escolares acolhedores e seguros para todos os estudantes, o eixo três do PNE reforça a importância de práticas pedagógicas e políticas institucionais que reconheçam e valorizem as diferenças étnicas (indígenas, quilombolas, ciganos e outros), de gênero, de transtornos globais de desenvolvimento, de deficiências físicas, mentais, superdotações e outras formas de estar no mundo. Isso não apenas beneficia os estudantes diretamente envolvidos, mas também contribui para a construção de uma cultura educacional mais inclusiva, que prepara todos os estudantes para uma participação ativa e responsável na sociedade contemporânea.

Em síntese, a proposta da CONAE foi concebida para indicar ao Congresso Nacional quais são as demandas da sociedade civil para a educação, contendo metas ambiciosas que consideram a dívida histórica existente com a educação nacional (FNE, 2024). Desse modo, há uma perspectiva que o projeto de lei entregue ao Congresso Nacional pelo MEC se insira num contexto de variações territoriais, desigualdades regionais ou mesmo de capacidades locais de implementação. É necessário que o Estado brasileiro assegure um regime de colaboração, de acordo com o pacto federativo, que possibilite a implementação do futuro PNE e consecução de suas metas no que diz respeito à qualidade dos níveis e modalidades de ensino numa perspectiva de aprendizagem com equidade que reduza as grandes desigualdades educacionais e de aprendizagens.

Considerações finais

A análise das CONAEs indica que, apesar dos problemas educacionais históricos do país e da coexistência de projetos educacionais em disputa na arena da política educacional, estamos construindo um modelo de participação democrática e de formulação de políticas educacionais no Brasil. Tal modelo oferece importantes lições para os países do BRICS no enfrentamento ao atual modelo de financeirização da educação neoliberal, que pretende colonizar a educação pública e gratuita. Isso não indica que os movimentos contra-hegemônicos estejam solapando o avanço das grandes corporações privadas no setor da educação pública, mas, sobretudo, que essa é uma arena pública de resistência à conjuntura de privatização e de redução do Estado. A experiência brasileira, caracterizada pela participação ampla de diversos setores da sociedade que intencionam influenciar na construção do PNE, demonstra que é possível criar resistências que promovam a justiça social, a equidade e a inclusão, a despeito da voracidade das políticas neoliberais.

A participação democrática nas CONAEs permite que vozes diversas e muitas vezes marginalizadas sejam ouvidas, resultando em pressão junto ao parlamento brasileiro. Esse processo contrasta com a abordagem neoliberal, que frequentemente prioriza interesses mercadológicos, tecnocráticos e reduz a educação a uma mercadoria ou a processos neotécnicos como solução dos problemas educacionais, sem atacar a dívida histórica de investimento que o Brasil tem com a educação básica. As CONAEs mostram que a educação e seus fóruns de debate podem ser uma ferramenta poderosa de luta, emancipação e desenvolvimento sustentável, promovendo normativa e democraticamente parâmetros para o estabelecimento de uma sociedade mais justa e equitativa.

Para os países do BRICS, adotar um modelo similar ao das CONAEs pode ser um caminho efetivo para resistir às pressões neoliberais e construir sistemas educacionais que reflitam suas realidades socioeconômicas e culturais a partir dos atuais embates que devem ser travados com os organismos internacionais que promovem a entrada dos grandes grupos privados na educação pública. A colaboração e o compartilhamento de experiências entre os países do BRICS podem fortalecer suas capacidades de enfrentar desafios comuns e promover uma educação que contribua para o desenvolvimento de seus cidadãos e da própria integração dos países periféricos.

Assim, os processos democráticos de participação na definição das metas de educação podem não apenas romper com a postura colonizadora das potências mundiais e do capital em relação aos países periféricos, mas também fortalecer a soberania e a autodeterminação desses países e de suas sociedades na definição do tipo de cidadão ou cidadã que pretende formar via escolarização. A educação, quando tratada como um direito fundamental e um bem público, pode ser um instrumento crucial na construção de um futuro mais justo para todos, sem deixar ninguém de fora.

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Recebido: 01 de Junho de 2024; Aceito: 01 de Agosto de 2024; Publicado: 01 de Dezembro de 2024

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