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Educação

versão impressa ISSN 0101-465Xversão On-line ISSN 1981-2582

Educação. Porto Alegre vol.41 no.2 Porto Alegre maio/ago 2018  Epub 04-Jul-2019

https://doi.org/10.15448/1981-2582.2018.2.31930 

Dossiê – Infância e Cidade: Diálogos com a Educação

Apresentação

Infância(s) e cidade(s)

Childhood(s) and citie(s)

Ciudade(s) e infancia(s)

José G. Gondra* 

*Professor titular na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Pesquisador do CNPq e da FAPERJ. E-mail: <gondra.uerj@gmail.com>


Olho o mapa da cidade

Como quem examinasse

A anatomia de um corpo…

(É nem que fosse o meu corpo!)

Sinto uma dor infinita

Das ruas de Porto Alegre

Onde jamais passarei…

Há tanta esquina esquisita,

Tanta nuança de paredes,

Há tanta moça bonita

Nas ruas que não andei

(E há uma rua encantada

Que nem em sonhos sonhei…)

(Mario Quintana, O Mapa)1

Pensar as cidades como lugares de diálogo, segurança, poder e de aspiração à beleza, bem como os processos de reconfiguração do conjunto de suas funções se constituiu em contribuição importante para se compreender a anatomia e modos de funcionamento das aglomerações urbanas, conforme assinalado por Le Goff.2

Os lugares previstos e as funções correlatas frequentemente se deslocam para margens ou para zonas de invisibilidades de muitos habitantes, usuários e produtores das cidades. Uma das populações desconsideradas ao se pensar as cidades, seus lugares e funções é, precisamente, a das crianças. No negativo dessa tradição, é que se inscreve o presente dossiê, pois procura instituir o protagonismo das crianças na trama urbana associado aos diversos modos de se viver e habitar as cidades com outras crianças e adultos.

Os espaços coletivos, sobretudo os de maior densidade populacional, vêm sendo submetidos a racionalizações crescentes, apoiadas na ciência das cidades, isto é, no urbanismo. Com esse tipo de investimento, procura-se reordenar os espaços e tempos em função de uma determinada concepção global de cidade e de novas modalidades de sociabilidade. Trata-se, pois, de pensar as cidades em relação aos espaços que delimitam, os lugares que estabelecem e as funções a serem exercidas. Traços ainda mais marcantes quando se trata das cidades-capital, como é o caso das duas capitais nacionais: Brasília e Maputo, e de duas capitais estaduais: Vitória (Estado do Espírito Santo) e Rio de Janeiro (Estado do Rio de Janeiro), tomadas como referentes em seis dos artigos deste dossiê.

Arquitetar o espaço, pois encontra-se muito associado aos projetos de gestão das populações e às possibilidades de segmentá-lo para assegurar o seu melhor governo. Nessa chave, cabe considerar as cidades e seus (des)encantamentos como parte das técnicas disciplinares. O tratamento disciplinar das multiplicidades no espaço implica, por sua vez, de acordo com Foucault,3 constituir um espaço vazio e fechado no interior do qual se constroem multiplicidades artificiais, organizadas de acordo com os princípios da hierarquização, da comunicação exata das relações de poder, bem como dos efeitos funcionais específicos dessas distribuições como forma de assegurar relações estáveis, regulares, controladas em termos de comércio, produção, circulação de produtos e pessoas, habitação, lazer, escolarização etc. Trata-se, portanto, de reconhecer o contínuo esforço para assegurar a rentabilidade máxima dos coletivos pela via de sua homeostase, recurso mobilizado para se repor o equilíbrio, buscar o ponto ótimo, sem colocar em risco a interrupção do funcionamento do sistema.

A ciência das cidades, ao fim e ao cabo, deseja organizar as circulações, inibindo as que são classificadas como negativas (doenças, criminalidade, lixo, ignorância…), com reforço para o que se considerava positivo (higiene, comércio, indústria, instrução…). É, pois, nesse amplo projeto de racionalização do urbano e da vida que cabe pensar as crianças como fração a ser gerida, o lugar e funções que as cidades lhes reservam, mas também as representações e práticas que elas desenvolvem no interior da malha urbana; nervura central do conjunto dos artigos que integram o presente dossiê.

Em um plano mais aberto, mais geral, os textos de Sarmento e Lopes &Fernandes se ocupam de pensar as relações entre crianças e cidades com foco na complexidade da presença das crianças nos espaços urbanos, considerando as restrições e possibilidades da cidadania para os mais novos, admitindo-se, para tanto, as enunciações das crianças na diversidade dos espaços e tempos como condição para se problematizar as políticas materiais e simbólicas dirigidas para esse fragmento da população.

Ao desenvolverem estudos com foco em cidades-capital de Moçambique e Brasil, Colonna e Muller procuram chamar a atenção para a oferta de serviços voltados para esse público nessas duas capitais. No caso do trabalho de Colonna, ao centrar sua atenção em ações ordinárias de crianças da periferia de Maputo, destaca as situações de exclusão em um ambiente fortemente marcado pela relação hierárquica entre adultos e crianças, flagrando, contudo, experimentações de inclusão social junto aos pares. O estudo sobre as crianças em Brasília incide sobre a problemática da mobilidade – ponto nevrálgico na questão da frequência, permanência e desenvolvimento das crianças nas instituições especializadas no atendimento a esse público. Com isso, demonstra que a mobilidade das crianças se configura como problema bem mais complexo do que sugerido pelas pesquisas quantitativas focadas apenas na identificação da origem/destino das crianças, perdendo de vista os arranjos e mediações ativados para assegurar o ir e vir dos pequenos pelas ruas e esquinas das cidades.

Os dois estudos que focalizam experiências de infância no Estado do Espírito Santo (Araújo et al. e Foerste et al.) operam em dois planos. No primeiro, é a cidade de modo geral que se busca tornar pensável sob a ótica das crianças, operando com suas formas de simbolização acerca de seus mundos, sublinhando alguns constrangimentos pelos quais passam em função de serem frequentemente excluídas do planejamento da cidade e de espaços sociais mais amplos. Destacam, nessa chave, a existência de concepções de cidade estruturadas por e para adultos. Em uma escala mais fechada, no artigo de Foerste et al., o foco incide em experiências de crianças em museus, o modo como são acolhidas e os sentidos conferidos nas visitas a esse tipo de instituição. O constrangimento das crianças é igualmente destacado nesse trabalho, reconhecendo que os espaços visitados não aguardavam crianças; ao mesmo tempo em que percebem o protagonismo dessas crianças ao atribuírem sentidos novos aos espaços expositivos.

Por fim, os dois trabalhos que focalizam a cidade do Rio de Janeiro abordam políticas executadas e projetos para a infância na capital fluminense. Gil e Vasconcellos discutem o direito à educação de bebês no Rio de Janeiro, entre os anos 2009 e 2016, considerando o direito à creche para todos os bebês e crianças pequenas, independentemente de critérios de vulnerabilidade. Para tanto, analisam a legislação brasileira e as ações do Ministério Público em torno dessa matéria. No caso em questão, observaram o crescimento no número de matrículas voltadas para as crianças com mais idade e uma dupla redução: a de vagas nos berçários e de creches municipais em tempo integral. O estudo de Aquino, por sua vez, focaliza a cidade a ser gerida. Nesse exercício, a autora analisa os programas dos candidatos à Prefeitura do Rio de Janeiro no ano de 2016 e o lugar das crianças nos programas de governo dos 11 candidatos que concorreram ao cargo de prefeito da cidade, para a gestão de 2017-2020. Ao trabalhar com essa documentação, Aquino evidenciou a necessidade de se investir na produção de discursos que afirmem o lugar das crianças como sujeitos de direitos, aspecto pouco ressaltado no material analisado.

O conjunto de artigos que integra o presente dossiê permite pensar as cidades e as relações instáveis estabelecidas neste corpo vivo, espécie de mapa em permanente construção. Nas relações complexas contidas no mundo urbano, encontra-se precisamente a das crianças com os mecanismos, instituições, saberes e sujeitos que dão vida às cidades. Relações estas que se encontram profundamente marcadas pelos lugares e funções a serem exercidas pelas cidades, pelos elementos interconectados que se deslocam sem cessar. Neste dossiê, os projetos de racionalização do urbano são exibidos e tensionados pelo lugar reservado às crianças nas cidades, chamando a atenção para o imperativo de se inscrever essa população, com suas características e singularidades, nos modos de se governar a multiplicidade que habita cada cidade, condição necessária para se (re)pensar os espessamentos e sutilezas das relações entre infância(s) e cidade(s).

Boa leitura!

José G. Gondra
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ),Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil

2LE GOFF, Jacques. Por amor às cidades: conversações com Jean Lebrun. São Paulo: Fundação Editora da Unesp, 1998.

3FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

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