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Educação

versão impressa ISSN 0101-465Xversão On-line ISSN 1981-2582

Educação. Porto Alegre vol.41 no.3 Porto Alegre set./dez 2018  Epub 05-Jul-2019

https://doi.org/10.15448/1981-2582.2018.3.26091 

Outros Temas

As cotas étnico-raciais nas universidades federais brasileiras e o imperativo da inclusão

The ethnic-racial quotas in brazilian federal universities and the imperative of inclusion

Las cuotas étnico-raciales en las universidades federales brasileñas y el imperativo de la inclusión

Mozart Linhares da Silva1 
http://orcid.org/0000-0001-9838-5436

Marisa Fernanda da Silva Bueno2 
http://orcid.org/0000-0003-2588-2890

1Doutor em História pela PUCRS, com extensão na Universidade de Coimbra, Pós-doutor em Educação pela UFRGS, Professor do Programa de Pós-graduação em Educação (mestrado e doutorado) e do Departamento de História e Geografia da UNISC. Universidade de Santa Cruz do Sul. E-mail: <mozartt@terra.com.br>.

2Doutorado em andamento em Educação (UNISC), bolsista PROSUC/CAPES, Mestrado em Educação (UNISC), Mestrado em Ciências Criminais (PUCRS). Universidade de Santa Cruz do Sul. E-mail: <marisabueno62@hotmail.com>.


Resumo

Analisa-se neste artigo o programa de cotas étnico-raciais nas universidades federais brasileiras como um dispositivo de in/exclusão, a partir das teorizações de Michel Foucault sobre a governamentalidade neoliberal e sobre os dispositivos de segurança. A proposta é problematizar o sistema de reserva de vagas nas universidades brasileiras, considerando o imperativo da inclusão como estratégia neoliberal de gestão da liberdade e de controle social. Na contemporaneidade, a gestão dos desejos da população, de sua capacidade de optar livremente e de requerer a sua participação nos jogos do mercado é considerada, neste caso, efeito dos dispositivos de segurança, o que aponta para a maneira como a governamentalidade neoliberal atua nos processos de subjetivação. É nesse sentido que a inclusão se torna a tônica dos preceitos sociais atuais e se traduz no discurso de que todos devem estar incluídos e podem lançar mão das possibilidades ofertadas pelo Estado. No entanto, a inclusão não garante a participação igualitária de todos e, por isso, não é necessariamente o oposto da exclusão, mas compõe a dinâmica da inclusão exclusiva.

Palavras-chave: Cotas étnico-raciais; Educação; Neoliberalismo; Dispositivo de segurança

Abstract

We analyze in this article the ethnic-racial quota program in the Brazilian Federal Universities as a in/exclusion dispositive from the theories by Michel Foucault about neoliberal governmentality and the security dispositive. The proposal is to problematize the system of quota reservation in Brazilian universities, considering the imperative of inclusion as a neoliberal strategy in the freedom management and social control. Nowadays, the population desire management, of its capacities to opt freely and require its participation in the market strategies is considered, in this case, under the effect of a safety dispositive, which highlights the way neoliberal governmentality works on the process of subjectivity. It is in this sense that the inclusion becomes nowadays the tonic of social rules and ensures the speech that every citizen must to be included and may use the possibilities offered by the State. However, the inclusion doesn't assure the equalitarian participation of all, therefore, inclusion, in this case, is not necessarily the opposite of exclusion, but it is part of the inclusion-exclusion dynamics.

Keywords: Eethnic-racial quota; Education; Neoliberalism; Security dispositive

Resumen

Analizamos en este artículo el programa de cuotas étnico-raciales en las universidades federales brasileñas como un dispositivo de in/exclusión a partir de las teorizaciones de Michel Foucault sobre la gubernamentalidad neoliberal y los dispositivos de seguridad. Se propone problematizar el sistema de reserva de vacantes en las universidades brasileñas considerando el imperativo de la inclusión como estrategia neoliberal de gestión de la libertad y control social. En la contemporaneidad, la gestión de los deseos de la población, de su capacidad de optar libremente y requerir su participación en los juegos del mercado es considerada, en este caso, como efecto de los dispositivos de seguridad, lo que señala hacia la manera como la gubernamentalidad neoliberal actúa en los procesos de subjetivación. En ese sentido la inclusión resulta la tónica de los preceptos sociales actuales y se traduce en el discurso de que todos deben estar incluidos y pueden echar mano de las posibilidades ofrecidas por el Estado. Sin embargo, la inclusión no garantiza la participación igualitaria de todos y, por eso, no necesariamente es el opuesto de la exclusión, pero compone la dinámica de la inclusión-exclusiva.

Palabras clave: Cuotas étnico-raciales; Educación; Neoliberalismo; Dispositivo de seguridad

Introdução

Este artigo tem por objetivo problematizar, a partir das teorizações foucaultianas, a governamentalidade neoliberal e o sistema de cotas étnico-raciais nas universidades federais brasileiras; e abrir, considerando a perspectiva da in/exclusão, a discussão sobre as estratégias do Estado de trazer para a educação superior populações tradicionalmente excluídas desse espaço social, como é o caso da população negra.

Para além da tomada de posição política sobre as cotas, a ênfase da análise se coloca na possibilidade de demonstrar a forma como o “dispositivo” de in/exclusão pode funcionar também para incluir o sujeito negro nos objetivos estratégicos da governamentalidade neoliberal.

1 Governamentalidade biopolítica e a lógica da in/exclusão neoliberal

Inicia-se esta análise com a descrição de algumas ferramentas foucaultianas indispensáveis para a problematização que interessa fazer aqui. Não é o caso de realizar uma análise exaustiva dessas teorizações, mas, de forma interessada, pontuar algumas categorias ou ferramentas que se utilizam para as problematizações feitas neste texto. Entende-se que, desde Vigiar e punir (2002) – obra que inaugura a chamada fase genealógica1 ou, ainda, arqueogenealógica, pois Foucault não rompe com a arqueologia2 (perspectiva metodológica que caracteriza as obras anteriores) –, o autor mostra três formas assumidas pelo poder: o soberano, o disciplinar e o biopolítico, ou os dispositivos de segurança. Segundo Foucault (2008a, p. 15-16), “a soberania se exerce nos limites de um território, a disciplina se exerce sobre o corpo dos indivíduos e, por fim, a segurança se exerce sobre o conjunto de uma população”. Interessa, neste artigo, esse último deslocamento do poder, da anátomo-política do corpo do indivíduo para a gestão da população a partir dos dispositivos de segurança.

Nos séculos XVII e XVIII, as técnicas relacionadas à disciplina eram aplicadas sobre o corpo-indivíduo e eram chamadas de anátomo-políticas. Então, com o fim de se obter a máxima potência produtiva dos corpos, eram empregados métodos de controle e de ortopedia disciplinar, como uma “arte do corpo humano” (FOUCAULT, 2002, p. 119), para se obter um máximo de aproveitamento desses corpos. E, assim, ocorre o processo pelo qual o corpo é docilizado, é atravessado pelo poder para tornar-se obediente e potencialmente útil: “A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos ‘dóceis’. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência)” (FOUCAULT, 2002, p. 119).

A partir da segunda metade do século XVIII, ocorre uma mudança na forma de atuação do poder, os métodos percebidos por Foucault (1997) nesse período são diferentes das técnicas disciplinares de outrora, pois o alvo não é mais o indivíduo. Nesse momento, o foco se torna o homem-espécie, e ocorre um deslocamento na forma de exercício do poder.

O que Foucault visualiza é uma mudança na operação do poder; já que o olhar está direcionado para a população (como homem-espécie), as estratégias de controle são ampliadas. Esse é o contexto, pois, em que a população, pelo seu adensamento, apresenta-se como problema e, por decorrência, objeto do saber-poder, fenômeno que ocorre, sobretudo, a partir do século XVIII, quando o desenvolvimento do liberalismo econômico e a expansão urbana são percebidos no ocidente. Conforme o autor, “depois da anátomo-política do corpo humano, instaurada no decorrer do século XVIII, observa-se, no final do mesmo século, algo que já não é uma anátomo-política do corpo humano, mas que se pode chamar de uma ‘biopolítica’ da espécie humana” (FOUCAULT, 1997, p. 289).

Então, o que se percebe é o surgimento da biopolítica como uma nova forma de atuação do poder e que opera com um novo objeto: a população. “A biopolítica lida com a população, e a população como problema político, como problema a um só tempo científico e político, como problema biológico” (FOUCAULT, 1997, p. 292-293). A vida do ser humano torna-se o novo foco, as técnicas relacionadas ao poder têm como objetivo potencializar a vida da melhor maneira possível.

Em Segurança, território e população, no Curso do Collège de France (1977-1978), Foucault se dedica ao fenômeno da população e demonstra como esta é o objeto da biopolítica e o centro da nova arte de governar (FOUCAULT, 2008a, p. 90). Nas palavras do autor, a população é “uma espécie de objeto técnico-político de uma gestão e de um governo” (FOUCAULT, 2008a, p. 92). Nesse sentido, representa o interesse do governo, aponta os caminhos e a direção a se seguir, por meio de tecnologias, como cálculos e reflexões, e o exercício do poder será direcionado com a intenção de se atuar sobre a população (FOUCAULT, 2008a, p. 92).

Essa nova engrenagem e forma de conduzir a política possibilitou a sobrevivência do Estado ao longo dos anos, já que a nova diretriz era a de um governo não mais preocupado exclusivamente com a sua territorialidade, porém com o olhar direcionado, sobretudo, para a massa populacional, governada pelos dispositivos de segurança,

A massa da população, com seu volume, sua densidade, com, é claro, o território no qual se estende, mas que de certo modo não é mais que um componente seu. E seu Estado de governo, que tem essencialmente por objeto a população e que se refere e utiliza a instrumentação do saber econômico, corresponderia a uma sociedade controlada pelos dispositivos de segurança (FOUCAULT, 2008a, p. 145-146).

Os dispositivos de segurança atuam na regulação ou, melhor, na modulação da liberdade, inferindo na realidade e possibilitando que os sujeitos façam as suas escolhas livremente, pois o que se tem como alvo de regulação é a própria realidade a partir da qual o sujeito pode exercer sua liberdade. Não é sem sentido que Foucault (2008a, p. 63) alerta que a liberdade, grosso modo, “nada mais é que o correlativo da implantação dos dispositivos de segurança”. Portanto, o poder, na perspectiva da governamentalidade biopolítica, sustenta-se na liberdade dos “homens”, na capacidade de possibilitar a circulação dos homens, mas também, e efetivamente, em possibilitar a circulação dos objetos, dos bens, das mercadorias, dos desejos e utopias. A liberdade, nesse sentido, deve ser entendida como a “liberdade de circulação”, tanto das pessoas como das coisas (FOUCAULT, 2008a, p. 64).

É preciso notar que essa concepção de liberdade – que, vale dizer, é a insígnia do liberalismo setecentista – emerge a partir do deslocamento de um poder sustentado na soberania que entendia o território, a riqueza e a população, sobretudo essa população, como força produtiva, como elementos do poder do Estado. A relação aqui é entre soberano e súditos, ou, ainda, conforme Foucault (2008a, p. 92), “entre a vontade do soberano e a vontade submissa das pessoas”.

A partir do século XVIII, o poder passa a se apoiar não mais nessa relação de subordinação direta e legal entre súdito e soberano, mas entre o Estado e a população. O poder, no liberalismo, atua, doravante, na regulação da população, e essa regulação não está posta apenas na disciplina, na lei ou nos mecanismos coercitivos, mas, sim, no desejo, ou seja, nos meios criados para que os interesses dos indivíduos sejam a maneira com que se possa gestar a própria população.

O desejo, sendo assim, é uma estratégia que faz com que a liberdade possa e deva ser estimulada, pois é partir desta que se gesta a dinâmica da população. Segundo Foucault (2008a, p. 95), “é o desejo que marca ao mesmo tempo a naturalidade da população e a artificialidade possível dos meios criados para geri-la”. A gestão do desejo marca um deslocamento importante do poder soberano, calcado numa negatividade em que o soberano regula seu poder a partir do cerceamento e do “não” ao desejo dos súditos, para uma forma de governo em que a anuência e o “sim” possam ser elementos de “controle” e regulação da população. É a partir do pensamento econômico-político dos fisiocratas que esse deslocamento se torna evidente.

Com efeito, “o problema dos que governam não deve ser absolutamente o de saber como eles podem dizer não, até onde podem dizer não, com que legitimidade eles podem dizer não; o problema é o de saber como dizer sim, como dizer sim a este desejo” (FOUCAULT, 2008a, p. 96). O poder no liberalismo tem sua eficiência, nessa direção, no deslocamento da população, entendida como conjunto de súditos, para a população, constituída em sociedade civil, sociedade dos indivíduos, “conduzidos” ou gestados pela liberdade.

A sociedade civil surge com um importante papel – unida por indivíduos cujos interesses e desejos estão relacionados –, qual seja, articular as suas demandas e exigir do poder público a sua efetivação, a partir de um “equilíbrio funcional do conjunto” (FOUCAULT, 2008b, p. 414). Nessa realidade, os indivíduos se constituem como homo oeconomicus, pois os seus papéis estão alinhados e de acordo com a perspectiva de um governo cujo parâmetro é o laissez-faire, assim, o homo oeconomicus

(…) é aquele cujo interesse é tal que, espontaneamente, vai convergir com o interesse dos outros. O homo oeconomicus é, do ponto de vista de uma teoria do governo, aquele em que não se deve mexer. Deixa-se o homo oeconomicus fazer. É o sujeito ou o objeto do laissez-faire. É, em todo caso, o parceiro de um governo cuja regra é o laissez-faire (FOUCAULT, 2008b, p. 369).

Diante dessa realidade, como destaca Foucault (2008b, p. 369), o homo oeconomicus, “é aquele que é eminentemente governável”, que responde aos estímulos do meio e do mercado, já que – subjetivado pelos dispositivos de segurança – age por conta própria, a partir de uma lógica que está de acordo com os princípios da governamentalidade e da razão de Estado, e busca a sua participação, inclusive em parceria com o governo. Os dispositivos de segurança, ao atuarem não diretamente sobre os indivíduos, mas sobre o meio em que esses indivíduos vivem, criam as condições de governamentalidade liberal, pois atuam conectados à sua liberdade. Para tanto, há, também, uma mudança das estratégias de governo que não se apoiarão apenas na lei, mas em táticas e estratégias que “por um certo número de meios, esta ou aquela finalidade possa ser alcançada” (FOUCAULT, 2008a, p. 132).

Complementando, André Duarte explica como o homo oeconomicus está perfeitamente conectado ao mercado e às regras de circulação: diferentemente da lei que obriga, de maneira impositiva ou coercitiva, a razão governamental e os dispositivos de segurança regulam os preceitos da sociedade de forma sutil, pela subjetivação; os indivíduos desejam o seu pertencimento ao espaço público, querem sua inclusão na dinâmica do mercado e lutam por esta:

(…) o homem passou a ser compreendido e determinado como Homo oeconomicus, isso é, como agente econômico que responde aos estímulos do mercado de trocas, muito mais do que como personalidade jurídico-política autônoma ou como mera peça necessária para a constituição de um mercado de trocas (DUARTE, 2009, p. 46).

Então, governar a população é uma forma de suscitar nessa população desejos e anseios participativos, o que se traduz como potência para as estratégias de governamentos biopolíticos. Mas como ocorre a gestão desses desejos? Como se dá o processo de querer pertencer às ofertas estatais e aos cálculos do poder?

Como se viu, a população é normalizada pelos dispositivos de segurança que mobilizam os indivíduos a pensar de acordo com as necessidades do mercado e com a dinâmica de troca e circulação de bens, saberes e pessoas. Dessa forma, a inclusão aparece como um instrumento de inserção social, econômica e política cujo dispositivo mobiliza a população para se fazer presente na governamentalidade neoliberal. O Estado age de maneira coadjuvante, recua do seu papel principal (como ocorria no poder soberano) e deixa que a própria sociedade se mobilize, pois, quando a sociedade exige do poder público políticas de inclusão, está a exigir, de fato, a sua participação nos objetos de controle. É nesse sentido que, na perspectiva da governamentalidade, “vai ser preciso manipular, vai ser preciso suscitar, vai ser preciso facilitar, vai ser preciso deixar fazer, vai ser preciso, em outras palavras, gerir e não mais regular” (FOUCAULT, 2008a, p. 474).

Para a manutenção desse controle, é imprescindível que os indivíduos “não escapem do olhar do mercado” (LOPES, 2009, p. 165), e isso se dá, sobretudo, pela concepção do homo oeconomicus e por sua ligação com os pressupostos da dinâmica da sociedade liberal e mesmo neoliberal. A tônica, aqui, é se manter ativo, apto para o mercado, em constante processo de aprendizagem. A educação funciona, pois, como mecanismo de manutenção do desejo e subjetivação dos indivíduos, já que o “Estado e o mercado estão cada vez mais articulados e dependentes um do outro, na tarefa de educar a população, para que ela viva em condições de sustentabilidade, de empresariamento, de autocontrole” (LOPES, 2009, p. 155).

De acordo com essas ferramentas foucaultianas – cujo objetivo é auxiliar na proposta de análise das cotas étnicoraciais como estratégia da governamentalidade biopolítica –, pode-se pensar no dispositivo de in/exclusão como instrumento neoliberal de promoção dos mecanismos de subjetivação em que o imperativo da inclusão social se torna o norte da contemporaneidade.

As estratégias biopolíticas de gestão e controle da população impõem, portanto, que se problematize o chamado imperativo da inclusão a partir de uma dinâmica que contorna possíveis binarismos, como inclusão versus exclusão, dentro versus fora, dentre outros. A perspectiva que pode contribuir para a problematização das cotas étnico-raciais nas universidades, que é o caso analisado neste artigo, diz respeito aos processos contemporâneos de in/exclusão. De acordo com Veiga-Neto e Lopes,

Grafar in/exclusão aponta para o fato de que as atuais formas de inclusão e de exclusão caracterizam um modo contemporâneo de operação que não opõe a inclusão à exclusão, mas as articulam de tal forma que uma só opera na relação com a outra e por meio do sujeito, de sua subjetividade (VEIGA-NETO; LOPES, 2011, p. 130).

Seguindo nesse raciocínio, in/exclusão aparece como uma estratégia relacional não fixa, mas faz com que os sujeitos estejam posicionados em determinadas situações ou espaços sociais e institucionais a partir “de suas incapacidades e/ou capacidades limitadas de entendimento, participação e promoção social, educacional e laboral” (VEIGA-NETO; LOPES, 2011, p. 131).

A partir do dispositivo da in/exclusão, as diferenças podem ser gestadas, o que, conforme Veiga-Neto (2011, p. 114), “implica trazer essas múltiplas cabeças para bem próximo, incluí-las e ordená-las num novo e cada vez maior e mais matizado campo de saberes”. É essa a perspectiva que orienta as problematizações que se passam a enfrentar a seguir.

2 As cotas étnico-raciais analisadas como dispositivo de in/exclusão da população negra

As políticas atinentes às cotas étnico-raciais são recentes no Brasil, mas remetem a históricos movimentos sociais antirracismo que conduziram à criação da Frente Negra Brasileira, em 1931, ao ativismo do movimento “Teatro Negro”, nos anos 1950, sob a liderança de Abdias do Nascimento, ou ainda, à criação do Movimento Negro Unificado (MNU), em 1978, para citar alguns importantes marcos dessa trajetória.

Foi a partir da criação do MNU que se iniciou um processo de recrudescimento das lutas dos movimentos antirracismo, com pautas e reivindicações que pontuaram questões como a necessidade do reconhecimento por parte da sociedade e, sobretudo, por parte do Estado, do racismo no país. Esse processo de mobilização dos movimentos antirracismo tomou como alvo o desmonte do pensamento norteado pelo chamado “mito” ou “ideologia” da democracia racial, concepção que sustentava a percepção de não conflitualidade étnico-racial no Brasil.

Vale frisar que esse movimento apontou a necessidade de políticas de ações afirmativas ou discriminação positiva, como é o caso das cotas étnico-raciais, nomeadamente – para o acesso ao sistema superior de ensino – legitimadas em 2012 pela Lei nº 12.711. Esta estabeleceu o programa de reserva de vagas para negros nas universidades federais brasileiras (BRASIL, 2012a).

As demandas dos movimentos negros que exigiram a atuação do Estado em prol das reivindicações inclusivas para o ingresso da população negra no sistema superior de ensino permitem questionar os mecanismos e processos de subjetivação relacionados à dinâmica “do querer pertencer” a determinado grupo étnico-racial e de exigir do poder público a sua participação nos espaços institucionais (BUENO, 2015, p. 10), que funcionam, vale notar, como campos de saber-poder e controle social.

A Lei Federal nº 12.711, de 2012 (BRASIL, 2012a), com o objetivo de incluir parcela da população tradicionalmente excluída do sistema superior de ensino, demonstra uma alteração na forma como o legislador brasileiro opera com as questões étnico-raciais, que se dá, a partir desse momento, por políticas de inclusão.

Então, ao incluir, a Lei nº 12.711, de 2012, amplia o controle do Estado e possibilita o acesso ao sistema superior de ensino para aqueles historicamente marginalizados e impedidos de usufruir das ofertas estatais. Com efeito, tanto as demandas da sociedade, representadas pelos movimentos sociais, quanto a legislação que as legitimou atuam como dispositivo de in/exclusão e funcionam no sentido de organizar as forças disponíveis. Lopes chama a atenção para essa dinâmica do poder, em que o papel do Estado muda, não há a necessidade de sua presença em todos os momentos, já que cada sujeito representa os seus interesses nas suas exigências:

O abrandamento da presença do Estado não significa seu enfraquecimento; ao contrário, significa a sua presença em cada prática institucionalizada ou não. Em cada sujeito está o Estado; não há como fugir à sua captura, cada vez mais sutil e eficiente (LOPES, 2009, p. 166).

Seguindo nesse raciocínio, Bueno (2015), explica como a inclusão ocupa um lugar privilegiado no discurso contemporâneo, já que aparece como um princípio marcante, inserido na organização do Estado na atualidade: o que se busca é a possibilidade de que todos tenham acesso aos benefícios de viver em sociedade, que possam usufruir das ofertas estatais, como saúde, educação, política. O que se pode perceber é a maneira como os sujeitos, subjetivados, lutam pela sua participação e requerem que sejam inseridos nos cálculos e operações do poder.

A inclusão, que é representada pela possibilidade de livre circulação e mobilidade social, aparece nas narrativas sociais e nos discursos contemporâneos como exigência de participação dos sujeitos – subjetivados – nas possibilidades sociais ofertadas (MACHADO; MENEZES; TURCHIELLO, 2012). Nesse sentido, a inclusão é um instrumento da governamentalidade, pois permite o controle e a mudança em relação aos pensamentos dos indivíduos e às suas atitudes, ou seja, age de forma individualizada e subjetiva para a gestão da população (SILVA, 2005, p. 43-44) e como forma de positivação do saber-poder.

Ao incluir o indivíduo, é possível capturá-lo, apreender as suas ideias e transformá-las em saber para a produção de determinado tipo de poder. Como explica Veiga-Neto (2011, p. 113), “a inclusão pode ser vista como o primeiro passo numa operação de ordenamento, pois é preciso a aproximação com o outro, para que se dê um primeiro (re)conhecimento, para que se estabeleça algum saber, por menor que seja, acerca desse outro”.

Inserida nessa lógica, a Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 5 de outubro de 1988 (CRFB/1988), estabeleceu uma série de princípios, cuja análise integradora dá coerência ao ordenamento jurídico e norte para interpretações legislativas e decisões judiciais (GRAU, 2005, p. 74). A inclusão, a partir da CRFB/1988, passou a ser um imperativo de orientação jurídica e social, contribuindo, assim, para a efetivação de ações afirmativas, como é o caso da política de cotas nas universidades federais brasileiras. Com a implantação da política de cotas étnico-raciais nas universidades públicas, tornou-se possível uma aproximação com parte da população tradicionalmente excluída do ensino público superior e, assim, possibilitou-se a circulação do poder para a formação de certos tipos de saber.

A CRFB/1988 estabelece, no artigo 1º, os fundamentos da República Federativa do Brasil e, no inciso III, o princípio da dignidade da pessoa humana como um dos pilares do Estado Democrático de Direito, cuja concepção, conforme Silva (1996, p. 105), deve orientar todo o ordenamento jurídico, no sentido do incondicional respeito à vida do ser humano, à sua integridade física e mental, à sua liberdade, ao seu direito de autodeterminação e ao seu direito à igualdade perante os demais seres humanos.

Com efeito, o enunciado da dignidade humana orienta a interpretação de todos os direitos fundamentais, possibilitando, pois, o seu amplo aspecto normativo constitucional e promovendo a interpretação e aplicação dos direitos sociais, da ordem econômica, da justiça social e da educação para o respeito à dignidade da pessoa humana (SILVA, 1996, p. 105). Isso quer dizer que o princípio da dignidade é o fio condutor de todos os demais princípios e preceitos constitucionais, daí o seu caráter jurídico-normativo, fundamento da Constituição (CRFB/1988) e norteador para a sociedade. O seu papel instrumental, integrador e hermenêutico serve de direção para a aplicação e interpretação do ordenamento jurídico brasileiro.

Vale destacar que o princípio da dignidade da pessoa humana está profundamente relacionado com o princípio da igualdade – pois todos têm a mesma dignidade, por isso é importante discorrer sobre a concepção do direito de igualdade, estabelecido no caput do art. 5º da CRFB/1988 (BRASIL, 1988) e, em especial, sobre o deslocamento da concepção de igualdade formal para a igualdade material. No mesmo sentido do princípio da dignidade da pessoa humana, o princípio da igualdade tem uma função informativa e imperativa na interpretação e aplicação do Direito (TERRA, 2014).

O princípio da igualdade foi sacramentado com o fim de abolir os privilégios de determinados grupos e segmentos sociais, o que ocorreu, sobretudo, a partir das revoluções dos Estados Unidos (1776) e da França (1789). Quando foi estabelecido, esse princípio possuía uma conotação de igualdade perante a lei (igualdade jurídico-formal); justamente porque era preciso acabar com as distinções para favorecimento de poucos, a lei deveria ser igual para todos. A esse respeito, Joaquim Barbosa Gomes ressalta:

Concebida para o fim específico de abolir os privilégios típicos do ancien régime e para dar cabo às distinções e discriminações baseadas na linhagem, no rang, na rígida e imutável hierarquização social por classes (classement par ordre), essa clássica concepção de igualdade jurídica, meramente formal, firmou-se como ideia-chave do constitucionalismo que floresceu no século XIX e prosseguiu sua trajetória triunfante por boa parte do século XX (GOMES, 2003, p. 18).

No entanto, o princípio da igualdade formal precisou de uma adaptação, pois permitia, tão somente, que não ocorressem discriminações de julgamento ou de concessão de direitos, já que a igualdade formal trata todos igualmente, porém de uma forma mecânica, sem analisar o contexto histórico-existencial dos indivíduos ou grupos sociais.

Diante da percepção da ineficácia do princípio da igualdade formal, foi necessária uma transformação no entendimento desse princípio, com o intuito de promover a proteção de direitos; a ideia de igualdade foi deslocada para a noção de uma igualdade que operasse a partir de diferentes posições sociais, econômicas, de gênero dos indivíduos, por exemplo, principalmente a partir de diferentes formas de vulnerabilidades.

Para além da ideia de igualdade formal, é preciso ressaltar a igualdade material, cuja concepção está ligada ao papel atuante do Estado na busca pela justiça social e de acordo com o Estado Democrático de Direito (estabelecido expressamente no artigo 1º da Constituição Federal de 1988) (BRASIL, 1988).

O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Luiz Fux, em seu voto na Ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 1863, identifica exatamente a necessidade de mudança no desenvolvimento do conceito da igualdade:

A mera proclamação normativa da igualdade não tem qualquer valor sem a sua implementação fática. Com o tempo, percebeu-se que a Constituição não poderia mais ser um conjunto de promessas inconsequentes, sendo imperiosa a sua efetividade social. A transformação da igualdade formal, de cunho liberal clássico, em uma igualdade material, partiu de uma necessidade ética (FUX, 2012, p. 109).

Há, portanto, uma diferença entre as concepções de igualdade material e igualdade formal, a primeira busca a “igualação dos desigualados na sociedade (conceito dinâmico e transformador de uma realidade injusta, desigual) ” (ROCHA, 1996, p. 283), enquanto a igualdade formal tem um caráter mecânico e estático, pois não avalia as vulnerabilidades dos diversos grupos sociais.

A igualdade material, dessa forma, avalia “as desigualdades existentes na sociedade, de sorte que as situações desiguais sejam tratadas de maneira dessemelhante, evitando-se, assim, o aprofundamento e a perpetuação de desigualdades engendradas pela própria sociedade” (GOMES, 2003, p. 19).

Partindo para uma análise constitucional do direito à educação, a CRFB/1988 proclama, no artigo 205, que a educação é direito de todos e dever do Estado e da família (BRASIL, 1988). No entendimento de Walber de Moura Agra (2002, p. 598), “trata-se de um direito subjetivo público dos cidadãos, isto é, uma prerrogativa que pode ser exigida do Estado diante do seu inadimplemento”, ou seja, o direito à educação é um direito de todos, independentemente da cor ou posição social.

A análise do artigo 205 e do artigo 3º, também da CRFB/1998, com previsão dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil – erradicação da pobreza e da marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais, além da promoção do bem de todos sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade ou qualquer outra forma de discriminação (BRASIL, 1988) –, permite a constatação da orientação constitucional de uma igualdade material, de acordo com os pressupostos das ações afirmativas. Estas, no que se refere à política de cotas étnico-raciais, possibilitam a inclusão de grupos tradicionalmente afastados do espaço público de ensino superior e a atuação dinâmica e ativa do Estado, na qual se inscreve a igualdade material.

Percebe-se um direcionamento constitucional para a ideia de inclusão, ou seja, o Direito funciona como um dispositivo biopolítico estratégico, cujo mecanismo de atuação promove a participação de todos nas possibilidades ofertadas pelo Estado neoliberal. De acordo com esse entendimento, as leis e o discurso jurídico expressam as razões governamentais de determinado período. “Fazem ecoar os princípios e fundamentos de dada sociedade para tornarem-se um discurso vigente e uma razão de ser e pensar no mundo” (BUENO, 2015, p. 49), além de garantir a subjetivação dos sujeitos para uma lógica neoliberal em que é exigida a participação e inclusão de todos.

O protagonismo do Direito nesse processo de dinamização do princípio da igualdade material emerge como uma ferramenta biopolítica, com o objetivo de constituir uma nova narrativa nacional na qual o negro, ou a população não branca no geral, vai se constituir como incluída. Nesse sentido, nas palavras de Bueno (2015, p. 53), o discurso jurídico reflete “um longo processo social, capaz de reproduzir os discursos existentes na sociedade e de espelhar a formação de uma série de enunciados que se cruzam e formam um conjunto de verdades”.

É importante contextualizar o Direito e os dispositivos de in/exclusão presentes na Constituição Federal (1988) como estratégias relacionadas ao neoliberalismo, cujo sentido está ligado ao “conjunto de práticas que constituem formas de vida cada vez mais conduzidas para princípios de mercado e de autorreflexão, em que os processos de ensino/aprendizagem devem ser permanentes” (LOPES, 2009, p. 154). Por isso a figura do homo oeconomicus é tão importante na lógica neoliberal, pois ele próprio requer a sua inclusão nos dispositivos de controle, condição para que, na ambiência da liberdade, possa se governar numa dinâmica relacionada ao mercado. Na lógica do laissez-faire, é o sujeito eminentemente governável, que está sempre em busca de aperfeiçoamento e inclusão.

Complementando, Lopes (2009. p. 156) explica que a participação do outro no jogo é fundamental, justamente para que a competição seja possível. É importante que todos estejam incluídos e que sejam bons jogadores, o que possibilita o entendimento e a problematização da inclusão como um imperativo neoliberal, pois, para fazerem parte do jogo, todos devem participar e estar aptos para a competição.

Embora a tônica do mercado seja a inclusão, a exclusão é a outra face da lógica includente, já que muitos ficarão de fora desse processo, em especial, do ingresso no ensino superior pelo mecanismo das cotas, pois é inevitável a falta de acesso de muitos. Nesse sentido, “o mesmo espaço considerado de inclusão pode ser considerado um espaço de exclusão. Conclui-se que a igualdade de acesso não garante a inclusão e, na mesma medida, não afasta a sombra da exclusão” (VEIGA-NETO; LOPES, 2007, p. 958).

A partir dessas considerações, é preciso tematizar as cotas étnico-raciais como uma modalidade de ação afirmativa cujo discurso está inserido na lógica da inclusão como um imperativo social da atualidade. Realizar essa abordagem é o objetivo do próximo item.

3 As cotas étnico-raciais, as ações afirmativas e o imperativo da inclusão

O papel das ações afirmativas está relacionado ao princípio constitucional da igualdade material e à sua concepção de movimento, de ação, portanto, elas são um instrumento que possibilita uma resposta à desigualdade (IKAWA, 2008, p. 12). Nesse sentido, as cotas étnico-raciais são ações afirmativas e buscam a igualdade de acesso à educação (GOMES, 2003, p. 27).

Nas Américas, os Estados Unidos foram o primeiro país a implementar um programa de cotas para negros. A consolidação das cotas nos Estados Unidos foi o resultado das demandas dos movimentos pelos direitos civis nos anos 1960, cuja grande luta foi pelo fim da segregação racial instituída e, ainda, pela alteração do padrão de racismo no imaginário coletivo da sociedade. Gomes (2003, p. 31) explica que os norte-americanos chamam de glass ceiling os obstáculos artificiais e invisíveis que atuam como impossibilidade de crescimento profissional de negros e mulheres. É justamente nessa direção que as ações afirmativas cumprem um papel de mudar o padrão e a lógica desses obstáculos, pois atuam na esfera de igualdade de oportunidades e de inclusão de grupos marginalizados. O sistema de cotas norte-americano busca a igualdade de oportunidades, com um desdobramento relacionado à forma de atuação do Estado, que se coloca em ação, cujo sentido está de acordo com a noção de igualdade material.

É por esse motivo que a finalidade das ações afirmativas é a intervenção nas esferas públicas e privadas a partir de dispositivos legais, com o objetivo de minimizar as diferenças existentes entre os indivíduos e de atuar, a partir do princípio da igualdade material, na mudança da realidade e nos padrões subjetivos da sociedade. A política de cotas étnico-raciais, portanto, torna-se uma ferramenta afirmativa, com o objetivo de equilibrar a balança social e incluir parcela da população historicamente excluída do espaço universitário (BUENO, 2015, p. 51). Para além das diferenças históricas e culturais, a política de cotas norte-americana se tornou modelar, sendo influente nos movimentos sociais antirracismo no Brasil, suscitando demandas do Estado e da sociedade civil, como se viu anteriormente.

No caso brasileiro, a publicação da Lei nº 12.711, de 2012 (BRASIL, 2012a), faz parte de um movimento mais amplo de reconhecimento e inserção da população negra (ou não branca) nos direitos à educação, tal como ocorreu com a inclusão no currículo oficial da rede de ensino da temática “história e cultura afro-brasileira”, conforme a Lei nº 10.639, de 2003 (BRASIL, 2003).

Nesse sentido, o que se percebe é uma nova estratégia nos rumos do cenário das políticas públicas e das políticas de inclusão no Brasil (SIQUEIRA, 2015, p. 43), em especial, no que se refere às situações relacionadas ao racismo. Essas medidas que visam ao combate ao racismo e à inclusão efetiva da população negra na sociedade brasileira impuseram uma nova narrativa nacional, calcada até então na ideologia da não conflitualidade sociorracial, corolário da democracia racial, que interditou o racismo como fenômeno reconhecível pelo Estado e pela sociedade civil.

O sistema de cotas étnico-raciais nas universidades federais brasileiras, com obrigatoriedade determinada pela Lei nº 12.711, de 2012 (BRASIL, 2012a), demonstra uma mudança tanto na maneira de atuação do Estado quanto nas exigências da própria população, pois tem uma configuração diferente das leis que criminalizam condutas racistas, nas quais a resposta do Estado é puramente emergencial. Aqui há a possibilidade de transformação da realidade e do imaginário coletivo. Na leitura de Gomes (2001, p. 41), as ações afirmativas promovem uma ruptura na produção do discurso: transformam a lógica do racismo na sua origem, onde ele é produzido.

A proposta das políticas afirmativas é atuar na produção do discurso e das narrativas sociais que fazem o racismo se perpetuar e, por isso, têm como objetivo romper com os discursos ordinários e alterar a realidade. Carmen Lúcia Rocha (1996, p. 285) aborda a questão da seguinte forma:

(…) a exigência de favorecimento de algumas minorias socialmente inferiorizadas, vale dizer, juridicamente desigualadas, por preconceitos arraigados culturalmente e que precisam ser superados para que se atingisse a eficácia da igualdade preconizada e assegurada constitucionalmente na principiologia dos direitos fundamentais.

O que se percebe é um discurso de circularidade nacional, calcado na lógica da inclusão como imperativo social, com desdobramentos implicados em uma legislação que efetiva a inclusão do sujeito negro nos espaços de educação superior. Possibilita, assim, que um grupo de pessoas que não era capturado pelos agenciamentos biopolíticos seja incluído, a partir de sua própria exigência e de suas próprias demandas. É nessa direção que os sujeitos tocados pelos dispositivos de segurança exigem a sua inclusão nos espaços sociais – nesse caso, especialmente nos espaços públicos educacionais – e, portanto, são suscitados a participar do jogo da competição neoliberal. Para isso, devem estar aptos quando forem chamados para ingressar na lógica do mercado.

Reflexões finais

O programa de cotas étnico-raciais nas universidades federais brasileiras foi problematizado no texto a partir do imperativo da inclusão. E o discurso de que todos devem participar e estar incluídos nas redes de possibilidades neoliberais se torna a tônica de uma sociedade que – normalizada pelos dispositivos de segurança – exige do poder público a sua participação nos espaços sociais, e, dessa forma, nas ações de agenciamentos biopolíticos.

Problematizar a política de cotas a partir desse contexto, como uma forma de inclusão para um maior controle da população, no sentido de aproximar, contabilizar, suscitar, instigar, e, especialmente, trazer determinado grupo da população para um espaço onde tradicionalmente há maior circulação entre poder e saber, tal como é o caso da universidade, significa, como explica Veiga-Neto (2011, p. 110), tematizar sobre: “Elementos que, muitas vezes, são tomados e pensados tranquilamente nesse debate porque advêm de relações que são construídas social e discursivamente”. O que coloca em dúvida aquilo que está posto de uma forma tão natural que não se questiona, pois faz parte do imaginário coletivo e representa a tônica do discurso atual vigente.

Pensar no dispositivo da inclusão pelo viés da inclusão exclusiva significa problematizar as muitas faces da inclusão, como é o caso do questionamento sobre quem de fato é incluído e se é possível a inclusão de todos. Isso porque a ordem do discurso é possibilitar o acesso ao ensino público superior de uma parcela da população social e historicamente vulnerável, normalmente excluída desse espaço social.

Outro desdobramento interessante das políticas de discriminação positiva é o processo de “normalização”, que ocorre nessas práticas de inclusão. Esta (mencionada por Foucault em Segurança, território, população (2008a, p. 75), como o mecanismo operatório a partir do qual é possível integrar as diferentes curvas de normalidades e, assim, constituir os indivíduos através de narrativas que os marcam, subjetivando-os) tem como estratégia a captura desses sujeitos, para que sejam regulados a partir de uma lógica neoliberal, possibilitando que cada um se torne um agente empreendedor de si mesmo.

1Genealogia é o caminho metodológico percorrido por Foucault no segundo momento da sua obra, que vai desde 1970 até 1984. Nessa fase, Foucault direciona a sua atenção para as relações entre saber, poder e verdade, e questiona o porquê dos saberes e quais condições possibilitaram o surgimento desses saberes, situando-os como dispositivos políticos, formados a partir de sua relação com o poder (MACHADO, 2005).

2Arqueologia é a perspectiva metodológica que marcou o primeiro momento da obra de Foucault (1961 a 1969), com destaque para História da loucura na idade clássica, Nascimento da clínica, As palavras e as coisas e Arqueologia do saber. Na fase da arqueologia, Foucault se preocupa com os discursos relacionados às ciências e com as formas como se constituem em discursos científicos e não científicos, assim como com a maneira pela qual o conhecimento se formou, ou seja, é uma busca pela constituição dos saberes (VILAS BOAS, 2002, p. 11).

3Em 2012, o Supremo Tribunal Federal julgou totalmente improcedente a ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 186, ajuizada pelo Partido Democratas (DEM) no dia 20 de julho de 2009, cujo pedido está relacionado à declaração de inconstitucionalidade de atos da Universidade de Brasília (UNB), a qual implementou um sistema de reserva de 20% das vagas no vestibular de julho de 2009 para alunos negros (BRASIL, 2012b).

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Recebido: 20 de Dezembro de 2016; Aceito: 26 de Junho de 2018

Endereço de correspondência: Mozart Linhares da Silva, Rua Dr. Leopoldo Morsch, 285 – Bairro Linha Santa Cruz, 96822-550 Santa Cruz do Sul, RS, Brasil

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