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Educação

Print version ISSN 0101-465XOn-line version ISSN 1981-2582

Educação. Porto Alegre vol.41 no.3 Porto Alegre Sept./Dec 2018  Epub July 05, 2019

https://doi.org/10.15448/1981-2582.2018.3.26054 

Outros Temas

A literatura infantil entre a experiência estética e a educação moral

The children's literature between the aesthetic experience and moral education

La literatura infantil entre la experiencia estética y la educación moral

Gomercindo Ghiggi1 
http://orcid.org/0000-0001-9722-2424

Priscila Monteiro Chaves2 
http://orcid.org/0000-0002-3986-6157

Daniela da Cruz Schneider3 
http://orcid.org/0000-0001-5359-666X

1Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor Titular do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Pelotas. E-mail: <gghiggi@terra.com.br>

2Doutora em Educação pela Universidade Federal de Pelotas. Licenciada em Letras Português-Francês pela mesma Universidade. Professora Permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Oeste de Santa Catarina. E-mail: <priscila.chaves@unoesc.edu.br>

3Doutora em Educação na Universidade Federal de Pelotas. Mestra em Educação e Licenciada em Artes Visuais pela mesma Universidade. Professora Adjunta da Universidade Federal do Tocantins. E-mail: <danic.schneider@gmail.com>


Resumo

O presente artigo tem por finalidade propor uma problematização acerca da dimensão moral abordada pela literatura infantil na educação escolar, entrecruzada com a formação do leitor, enquanto sujeito no ato pedagógico. Interroga-se aqui a intensificação da moral nas práticas educativas em que a literatura infantil perde sua potência ética-estética para alinhar-se com uma proposição de doutrina moral. Por meio de uma pesquisa teórico-bibliográfica, de cunho filosófico, a argumentação é estruturada pela perspectiva de Walter Benjamin – pela referência ao conceito de experiência – e Michel Foucault – no que tange à compreensão de moral como contraponto à ética e à conjugação com a noção de tecnologias do eu, bem como a apropriação de Jorge Larrosa do mesmo conceito.

Palavras-chave: Literatura infantil; Experiência; Sujeito moral; Tecnologias do eu

Abstract

This article aims to propose a questioning about the moral dimension addressed by the children's literature in school education, intercrossed with the formation of the reader, as a subject in the educational act. It interrogates here the intensification of moral, in educational practices in the children's literature loses its ethical-aesthetic potency to align with a proposition of moral doctrine. Through a theoretical-bibliographic research, philosophic, the argument is structured by Walter Benjamin's perspective – through reference to the concept of experience – and Michel Foucault – with the understanding of moral as opposed to ethics and the o the conjunction with the notion of the Technologies of the Self, and the appropriation of Jorge Larrosa of the same concept.

Keywords: Children's literature; Experience; Moral subject; Technologies of the self

Resumen

Este trabajo pretende proponer un cuestionamiento sobre la dimensión moral por la literatura infantil en la educación, entrecruzada con la formación del lector, mientras que sujeto en el acto pedagógico. Pregunta aquí que la intensificación de las prácticas morales, la educación en la literatura infantil pierde su potencia ética-estética para alinearse con una propuesta de la doctrina moral. A través de una investigación teórica de la literatura filosófica, el argumento se estructura desde la perspectiva de Walter Benjamín – por referencia al concepto de experiencia – Michel Foucault – con respecto a la comprensión de la moralidad como un contrapunto a la ética y a la conjunción con la noción de tecnologías del yo, así como la apropiación de Jorge Larrosa el mismo concepto.

Palabras clave: Literatura infantil; Experiencia; Sujeto moral; Tecnologías del yo

Da biblioteca da escola recebe-se um livro. Nas classes inferiores é feita uma distribuição. Só uma vez e outra ousa-se um desejo.” (BENJAMIN, 2000a, p. 37)

Introdução

Ao longo do tempo, a leitura foi se consolidando como prática em suas diversas significações. Foi se tornando atividade da escola e critério rigoroso para acesso e participação do indivíduo no contexto social. Segundo Zilberman, a leitura veio a ser apreciada inclusive por discernir o sujeito que é alfabetizado e “culto” daquele que é considerado analfabeto e ignorante. Reforçando o quadro, a leitura passou a distinguir, afastou o homem comum da cultura oral e, nesse sentido, “cooperou para acentuar a clivagem social, sem, contudo, revelar a natureza de sua ação, pois colocava o ato de ler como um ideal a perseguir”1.

Considerando que, conforme denunciam Palo e Oliveira, falar para a criança é dirigir-se a uma minoria que, como as demais, não enuncia seus valores, essa minoria carece ser conduzida por aqueles que têm autoridade para tanto, isto é, os adultos. Acaba sendo a eles conferida a função de detentores de uma vivência suficiente para que a sociedade lhes outorgue o posto de condutores daqueles que nada sabem (PALO; OLIVEIRA, 2006).

Há muito se sabe que o contato da criança com o texto literário transcende a atividade de compor “frases, decifrar seu significado de acordo com o dicionário” (MACHADO, 2002, p. 77). Ainda que, segundo Ana Maria Machado, o texto literário devesse ser “um transporte para outro universo, onde o leitor se transforma em parte da vida de um outro, e passa a ser alguém que ele não é no mundo quotidiano” (2002, p. 77), o livro infantil vem sendo usado como mais um produto por meio do qual valores sociais são veiculados. Isto é, uma trivial mediação que cria “para a mente da criança hábitos associativos que aproximam as situações imaginárias vividas na ficção a conceitos, comportamentos e crenças desejados na vida prática” (PALO; OLIVEIRA, 2006, p. 8).

Considerando a referência a Antônio Candido proposta pelo texto apresentado pelo Plano Nacional do Livro e da Leitura em 2007, é avigorada a capacidade que a literatura tem de atender à imensa necessidade de ficção e fantasia; sua natureza, essencialmente formativa, que toca o consciente e o inconsciente dos leitores de maneira complexa e dialética, como a própria vida, em oposição ao caráter pedagógico e doutrinador dos demais textos; seu potencial de oferecer ao leitor um conhecimento profundo do mundo, tal como faz, por outro caminho, a ciência (2007).

Analisando também a pesquisa Retratos da leitura no Brasil (2012)2, é facilmente notada a institucionalização que a literatura vem sofrendo, uma vez que, quando confrontada aos dados encontrados em tais resultados, quase sempre está atrelada somente ao tempo escolar do indivíduo. Pode-se chegar a essa denúncia através de um recorte dos questionamentos que expõe o fato de grande parte dos entrevistados afirmar que não leem ou não vão a bibliotecas, pois não estão estudando (2012). Da mesma forma,

[…] o uso da biblioteca pública parece também feito em função da escola: sua frequência é maior nas faixas etárias de 5 a 17 anos, e tem como objetivos principais pesquisar e estudar. E com relação à frequência da leitura de diferentes tipos de livros, os didáticos e universitários são os únicos lidos mais frequentemente (68%) do que ocasionalmente (32%) (CUNHA, 2008, p. 55).

Outros especialistas da área corroboram que “a escola é a instituição que há mais tempo e com maior eficiência vem cumprindo o papel de avalista e de fiadora do que é literatura” (LAJOLO, 2001, p. 19). Uma questão ainda e sempre em curso para os profissionais da área, que configura “uma das maiores responsáveis pela sagração ou pela desqualificação de obras e de autores. Ela desfruta de grande poder de censura estética – exercida em nome do bom gosto – sobre a produção literária” (2001, p. 19). Assim, do mesmo modo que tem o poder de dizer o que deve ou não ser lido, a partir de um conjunto de preceitos, tem cumprido a função de “instrumento para a Educação Moral à medida que sensibiliza a criança para os dilemas morais vividos pelos personagens e suscita, num ambiente escolar democrático, a reflexão sobre os valores e sentimentos inerentes às suas condutas” (RAMOS; CAMPOS; FREITAS, 2012, p. 149).

Segundo Marisa Lajolo, um texto pode vir a ser ou deixar de ser literatura ao longo do tempo (2001), e essa definição acontece sempre carregada de interesses e disputas, ocorrendo em meio a lutas e conflitos. Lajolo apontou que sua conceituação “depende do ponto de vista, do significado que a palavra tem para cada um, da situação que se discute o que é literatura” (2001, p. 16). Para além dos consideráveis aspectos por ela apresentados, os preceitos morais abordados por uma obra, sobretudo em se tratando de literatura infantil, compactuam com a função de fazer perdurar ou não uma narrativa. Critério esse que não abstém que seja considerada sua função utilitário pedagógica, que ainda configura “a grande dominante da produção literária destinada à infância, e isso desde as primeiras obras surgidas entre nós” (PALO; OLIVEIRA, 2006, p. 8). Nas palavras das autoras, a literatura infantil segue atendendo a uma demanda “da própria estrutura da cultura ocidental em relação a seu tradicional conceito de ser infantil”. Mas a literatura, enquanto arte, “tem outros desígnios e desejos. A criança também” (PALO; OLIVEIRA, 2006, p. 8).

A partir do contexto apresentado, busca-se, por meio de uma problematização, “mostrar que aquilo que é nem sempre foi, isto é, que é sempre na confluência de encontros, acasos, ao longo de uma história frágil, precária, que se formaram as coisas que nos dão a impressão de serem as mais evidentes” (FOUCAULT, 2003, p. 325). E, por estarem fossilizadas essas evidências, no que compete à finalidade da literatura infantil, é que se torna válido – em vez de convalidar o já legitimado, aquilo que tradicionalmente compreende-se como “objetivo” da literatura infantil – buscar aqui caminhos outros para problematizar essa utilidade com que ela tem sido compreendida quando institucionalizada. Isto é, questionar a finalidade didático-pedagógica que tem sido conferida à literatura.

Para tanto, essa proposta ancora-se, de modo mais enfocado, na perspectiva de Michel Foucault – a partir de uma possível distinção de ênfase na moral e na ética na constituição de si, assim como na noção de tecnologia do eu, que é trabalhada também através da apropriação feita por Larrosa – e Walter Benjamin – pela referência ao conceito de experiência. Coligando duas teses de doutoramento em Educação, que abordam Ensino da Arte e da Literatura, o presente estudo foi desenvolvido por meio de uma pesquisa teórico-bibliográfica (GIL, 2010), de cunho filosófico (SEVERINO, 2002), problematizando perspectivas e apontando pressupostos éticos e morais no contato com a literatura infantil.

Experiência e literatura infantil: notas a partir de Walter Benjamin

Ao falar da sua experiência com gravuras na infância, Benjamin relatou que misturava seu corpo por entre os móveis, desfigurava-se a criança que fora e as palavras também, criando raízes na vida e se embrulhando nos vocábulos como se fossem nuvens. No mesmo texto, Walter Benjamin fala acerca do dom de reconhecer semelhanças enquanto traços da antiga coerção da condição judaica, pela necessidade de, na esfera pública, comportar-se de modo semelhante. Coerção análoga sofria ele com as palavras; entretanto, ele não se sentia convocado a ser semelhante a modelos de virtude, mas a móveis, roupas, objetos (BENJAMIN, 2000b).

“Os livros infantis não servem para introduzir os seus leitores, de maneira imediata, no mundo dos objetos, animais e seres humanos, para introduzi-los na chamada vida”, foi o que afirmou Walter Benjamin em suas Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação (2002, p. 61-62) (grifos dos autores do artigo). Para ele, a criança consegue entrar nas palavras como se entrasse em cavernas nas quais faz criar suspeitos caminhos. “Em vez de temer as sombras da noite” – assim dizia seu livro de jogos –, “as crianças alegres as usam como divertimento” (BENJAMIN, 2000b, p. 110). Diferentemente de uma ingenuidade infantil, para Gagnebin, essas atitudes testemunham a importância da relação que se estabelece com o aspecto material3 da linguagem, que os adultos esquecem em nome de seu aspecto conceitual “e que só a linguagem poética ainda lembra” (2005, p. 98). Essa linguagem poética, para Benjamin, é intrínseca às experiências da infância que, branda e secretamente, envolve o leitor, conforme sua imagem de Criança Lendo, traçada em Rua de mão única:

Muitas vezes vêem-se livros cobiçosamente desejados chegar a outras mãos. Por fim, recebia o seu. Por uma semana estava-se inteiramente entregue ao empuxo do texto. […] Dentro dele se entrava com confiança sem limites. Quietude do livro, que seduzia mais e mais! […] Seus caminhos semi-encobertos de neve a criança rastreia. Ao ler, ela mantém as orelhas tapadas; seu livro fica sobre a mesa alta demais e uma das mãos fica sempre pousada sobre a folha. Para ela as aventuras do herói são legíveis ainda no redemoinho das letras como figura e mensagem no empuxo dos flocos. Sua respiração está no ar dos acontecimentos e todas as figuras lhe sopram. Ela está misturada entre as personagens muito mais de perto que o adulto. É indizivelmente concernida pelo acontecer e pelas palavras trocadas e, quando se levanta, está totalmente coberta pela neve do lido (BENJAMIN, 2000a, p. 37).

A neve do lido, a qual se refere o autor, decorre da experiência, no sentido benjaminiano, do momento da leitura. Para Benjamin, o termo experiência possui uma carga semântica que o difere de vivência. Enquanto esse foi alvo de sua crítica à sociedade organizadamente hierárquica, na qual os mais vividos possuem a sabedoria, aquele se refere à potência sensível de cada momento, de modo que cada experiência possui efetivamente conteúdo. Segundo o filósofo judeu, é o próprio indivíduo que lhe confere conteúdo a partir do seu espírito. De nada serve, pois, a quantidade de vivências daqueles irrefletidos que se acomodam no erro, em seu cotidiano sucessivo e petrificado, reafirmando a ordem. Tal inferência é pelo autor introduzida pelas seguintes questões: “Mas vamos agora levantar essa máscara. O que esse adulto experimentou? O que ele quer nos provar?” (BENJAMIN, 2002, p. 21).

Para quem acredita na potência da experiência sensível, segundo Benjamin, o erro é apenas um novo sustento, que aumenta a coragem para a busca da verdade. A experiência somente é desprovida de acepção para aqueles que já são carentes de espírito, que muito pouco ou quase nada experimentaram além da brutalidade e da falta de sentido da vida. Isso é o que faz com que o filisteu4 transforme o vulgarizado uso do termo experiência em seu evangelho. “Talvez a experiência possa ser dolorosa para a pessoa que aspira por ela, mas dificilmente a levará ao desespero” (BENJAMIN, 2002, p. 23). Diferentemente do filisteu, que, segundo a crítica benjaminiana, nada lhe é mais perturbador que os sonhos de juventude.

Pois o que lhe surgia nesses sonhos era a voz do espírito que também o convocou um dia, como a todos os homens. A juventude lhe é a lembrança eternamente incômoda dessa convocação. […] O filisteu lhe fala daquela experiência cinzenta e prepotente […]. Sobretudo porque “vivenciar” sem o espírito é confortável, embora funesto (2002, p. 24). 5

Benjamin reconhece uma experiência diversa daquela proposta por Kant e Hegel, mas não despreza seus principais elementos, ainda que os transborde. Segundo ele, esta pode ser contrária ao espírito e assoladora de sonhos primaveris. Para Benjamin, a experiência seria, todavia, bela, intocável e espontânea, uma vez que é a experiência do espírito, de modo que o homem só é capaz de experienciar a si mesmo ao enfrentar suas errâncias. Compreende-se, portanto, que, de maneira mais sintética, esse conceito significaria um comportamento sensível e qualitativo do homem em relação às coisas.

A experiência benjaminiana procurava preservar um contato imediato com o comportamento mimético, preocupando-se com um saber sensível, que não apenas se alimenta daquilo que se apresenta sensível aos olhos, mas também consegue apoderar-se do simples saber e mesmo de dados inertes como de algo experienciado e vivido (BENJAMIN, 2009). Esse conceito circunda inclusive os escritos propostos pela teoria adorniana – que se consolidou também por interlocução com Benjamin –, para quem “a relação com a experiência […] é uma relação com toda a história; a experiência meramente individual, que a consciência toma como ponto de partida por sua proximidade, é ela mesma mediada pela experiência mais abrangente da humanidade histórica” (ADORNO, 2003, p. 26).

É a carência dessas relações consigo mesmo no espaço institucional que os escritos de Benjamin manifestam. Ao falar dos momentos de enfermidade na infância, o autor os apresenta como uma oportunidade de produção de significados e de constituição da sua própria experiência a partir dos enigmas que podia produzir com as mãos, com a luz e com uma parede, que então se tornara próxima, até que a febre acabasse.

Do mesmo modo que se metera comigo, a doença se despedia. Porém, quando eu estava a ponto de esquecê-la de novo por completo, me alcançava sua derradeira saudação impressa em meu boletim. A soma das horas de aula perdidas estava registrada ao pé desse atestado. Jamais me pareceram cinzentas ou monótonas como as que eu vivera; ao contrário, estavam como que enfileiradas no busto de um inválido tal qual uma listra de cores. Sim, uma longa fileira de condecorações era simbolizada pela notificação: Perdidas cento e setenta e três horas de aula (BENJAMIN, 200, p. 111).

Além de contrapor o momento de criação vivido com o espaço monótono da escola6, Benjamin reforça sua crítica à noção de tempo cronológico (chrónos) em nome de uma outra proposta de leitura do tempo, que considera sua intensidade (kairós). Com isso, problematiza o complexo das relações das experiências humanas e essa frágil ideia de ordenação temporal, enfileirada, em listras, através da qual não se vê um jogo criativo e sensível, mas uma enganosa ampliação de sua compreensão do mundo que a quantificada perspectiva progressista busca constantemente afirmar.

Para Benjamin, a potencialidade mimética está atrelada à concepção aristotélica, por abordar o aprendizado em estreita relação com o prazer de conhecer. Seguindo essa vertente, a teoria benjaminiana rechaça a noção pedagógica de que um presumido conteúdo imaginário, seja do brinquedo, seja do livro infantil, estabelecido de antemão, conduza a imaginação da criança. Ancorando-se ainda na potencialidade do que é mimético e, consequentemente, daquilo que é estético, grande parte da obra benjaminiana encontra-se alicerçada em uma crítica, de base hegeliana (HEGEL, 2005), à não mediação entre o sujeito e as coisas mundanas, expressa também pelo texto Teoria do progresso, teoria do conhecimento (2009).

Ambas as influências fundem-se na crítica à educação na contemporaneidade, que tenta considerar tudo o que existe e foi extraído de sua formação como simples meios à sua disposição, meios de fazer com que o sujeito seja reconhecido socialmente, adquira uma técnica, transmita valores morais e tenha uma utilidade social através das mais diferentes ferramentas. A partir da aquisição desse reconhecimento e instrumentos, em suas diversas apresentações, o indivíduo formado por esse modelo de educação se servirá de um conhecimento que, por vezes, é tomado como legítimo e com fim em si mesmo, que será extremamente útil para a obtenção de outras coisas e de outras escolhas ao longo da vida.

Elucubrar pedantemente sobre a fabricação de objetos – material educativo, brinquedos ou livros – que fossem apropriados para crianças é tolice. Desde o Iluminismo essa é uma das mais bolorentas especulações dos pedagogos. Seu enrabichamento pela psicologia impede-os de reconhecer que a Terra está repleta dos mais incomparáveis objetos de atenção e exercício infantis (BENJAMIN, 2000a, p. 18).

Objetos esses que, por criarem condições de experiência e constituição de si, por não as interromper como matéria principal dessa formação, seduzem, por aquilo que transcorre dos resíduos enquanto possibilidade de atividade sobre as coisas. Walter Benjamin prossegue:

Em produtos residuais, reconhecem o rosto que o mundo das coisas volta exatamente para elas, e para elas unicamente. Neles, elas menos imitam as obras dos adultos do que põem materiais de espécie muito diferente, através daquilo que com eles aprontam no brinquedo, em uma nova, brusca relação entre si. Com isso, as crianças formam para si seu mundo de coisas, um pequeno no grande, elas mesmas (2000a, p. 19).

O sujeito moral e o eu ético: notas a partir de Michel Foucault e Jorge Larrosa

Michel Foucault, na fase tardia de seu pensamento, tratou dos modos de subjetivação da antiguidade greco-romana, interessado na genealogia da ética, com vistas à constituição moral do sujeito. Foucault estava interessado – desde suas pesquisas para a obra História da sexualidade – no modo como o sujeito é levado a reconhecer-se como sujeito de moral, mais especificamente, de uma moral sexual. De modo geral, é possível afirmar que Foucault (1984) faz uma diferenciação entre o eu ético, da antiguidade, e o sujeito moral, herdeiro da moral cristã de renúncia de si. A diferença estaria em uma compreensão da moral como codificação de interdição, que consistiria na mediação da elaboração de si, em contraponto à elaboração ética, em que a ênfase é na elaboração de si por meio da experimentação de si. Enquanto o primeiro modelo opera por meio de uma moral impositiva, o segundo é mais propositivo, uma vez que não havia a proibição. Segundo Foucault, de um modo de existência baseado em preceitos estéticos e de uma atitude afirmativa e ativa perante a vida – incentivados na antiguidade grega –, com o surgimento do ascetismo cristão passou-se a um modelo moral preconizado por certa forma de renúncia de si.

Há, assim, contrastando esses dois modelos, uma diferença de ênfase em uma prescrição do código moral como imposição e da elaboração ética como experimentação de si, quando por moral entende-se “um conjunto de valores e regras de ação propostas aos indivíduos e aos grupos por intermédio de aparelhos prescritivos diversos, como podem ser a família, as instituições educativas, as Igrejas, etc” (FOUCAULT, 1984, p. 33). A referida concepção endereça a uma discussão acerca da dimensão moral que determinados modelos pedagógicos privilegiam, que legitimam socialmente determinado ideal humano, determinados modos de vida, e os validam em detrimento de outros conjuntos de conhecimentos. De outro modo, por ética pode-se entender uma espécie de atitude do sujeito perante a moral, ou ainda, “a maneira pela qual o indivíduo deve constituir tal parte dele mesmo como matéria principal de sua conduta moral” (FOUCAULT, 1984, p. 34).

No modelo moral, a elaboração de si é proposta por meio das interdições. As proibições, os cerceamentos e as punições operam como crivos na experiência da constituição da verdade do sujeito por ele mesmo. Em diversas vezes, essas regras e valores são apresentados de maneira explicitamente formulada, como em um preceito coerente. Segundo o autor, pode também ocorrer de serem transmitidas de maneira difusa e, longe de formarem um conjunto sistemático, constituírem um jogo complexo de elementos que se compensam, corrigem-se, anulam-se em certos pontos, permitindo, assim, compromissos ou escapatórias (FOUCAULT, 1984). Por outra via, Foucault caracteriza o comportamento real dos indivíduos em relação a tais regras e valores que lhes são indicados:

Designa-se, assim, a maneira pela qual eles se submetem mais ou menos completamente a um princípio de conduta; pela qual eles obedecem ou resistem a uma interdição ou a uma prescrição; pela qual eles respeitam ou negligenciam um conjunto de valores; o estudo desse aspecto da moral deve determinar de que maneira, e com que margens de variação ou de transgressão, os indivíduos ou os grupos se conduzem em referência a um sistema prescritivo que é explícita ou implicitamente dado em sua cultura, e do qual eles têm uma consciência mais ou menos clara (FOUCAULT, 1984, p. 26).

A constituição da moral, por meio da codificação impositiva, faz-se por meio de uma objetivação do sujeito moral, que deve constituir uma verdade acerca de si, mediada por um aparato normativo que lhe é, ao mesmo tempo, normativo e constituinte. É por meio das interrogações de uma gramática moral que o sujeito torna-se sujeito de uma moral.

Essas interrogações do eu, sobretudo no que diz respeito às práticas pedagógicas, entram em consonância com aquilo que Foucault chamou de tecnologias do eu. Segundo o filósofo, são quatro as tecnologias que representam a razão prática:

1) Tecnologias de produção, que nos permitem produzir, transformar e manipular coisas; 2) tecnologias de sistemas de signos, que nos permitem utilizar signos, sentidos, símbolos ou significações; 3) tecnologias de poder, que determinam a conduta dos indivíduos, os submetem a certo tipo de fins ou de dominação, e consistem em uma objetivação do sujeito; 4) tecnologias do eu, que permitem aos indivíduos efetuar, por conta própria ou com a ajuda dos outros, certos números de operação sobre seu corpo e sua alma, pensamento, conduta, ou qualquer forma de ser, obtendo assim uma transformação de si mesmos com o fim de alcançar certos estado de felicidade, pureza, sabedoria ou imortalidade (FOUCAULT, 1990, p. 48).

Essas quatro tecnologias, embora digam respeito a suas especificidades, não estão dissociadas. Porém, para os fins da discussão aqui empreendida, cabe atenção às últimas: as tecnologias de poder e as tecnologias do eu. As práticas pedagógicas coincidem com as tecnologias do eu, no sentido em que propõe Jorge Larrosa (2010). Para esse teórico e filósofo da educação, as práticas pedagógicas transcendem a caracterização mais correntemente tomada como meios que possibilitam a aquisição de certos conjuntos de conhecimentos. A pedagogia configura-se como campo produtivo de sujeitos, como um mecanismo de subjetivação, no qual as tecnologias do eu desempenham fundamental importância. Larrosa conceitua as práticas pedagógicas como “entorno organizado ou oportunidades favoráveis para o desenvolvimento da autoconsciência, da autonomia ou da autodeterminação, mas como mecanismos de produção da experiência de si” (2010, p. 44). Quanto a isso, o autor está referindo-se às posições que as pessoas estabelecem consigo mesmas. Isto é, como dispositivos “nos quais se constitui uma vinculação entre certos domínios de atenção (que desenhariam o que é real de uma pessoa para si mesma) e certas modalidades de problematização” (2010, p. 44). Para tanto, olhando para esses mecanismos, Larrosa diz ser necessário dedicar “atenção às práticas pedagógicas nas quais se estabelecem, se regulam e se modificam as relações do sujeito consigo mesmo e nas quais se constitui a experiência de si” (2010, p. 44).

As tecnologias do eu atuam diretamente sobre a experiência de si, fornecendo os meios de interrogação do eu, uma gramática do eu e o próprio conjunto de valores validados pela sociedade. E, com isso, estabelecem um tipo ideal de sujeito a ser formado. Larrosa sugere como objetivo das práticas pedagógicas, conforme a referência supracitada, “o desenvolvimento da autoconsciência, da autonomia ou da autodeterminação” (2010, p. 44), pressupostos que estão afinados a uma certa concepção de sujeito. Esse sujeito autônomo, racional, centrado e unitário é, conforme discurso mais corrente no campo educacional, a base para a formação do sujeito pedagógico.

Em outro texto – A construção pedagógica do domínio moral e do sujeito moral (1998) –, Larrosa propõe uma análise de produções textuais de crianças. Tais textos têm proposições explicitamente comprometidas com interrogações do tipo moral. É possível perceber três dimensões nessas práticas pedagógicas voltadas para o desenvolvimento e/ou aquisição da moral. A primeira delas diz respeito a como ela é aprendida. O foco está na maneira como essas práticas de educação moral são administradas. Centra-se na observância dos procedimentos específicos que regulam e controlam a atividade, pois, conforme aponta Larrosa, “as coisas que são aprendidas dependem de como uma prática comunicativa específica é organizada e administrada” (1998, p. 51). A segunda trata especificamente do caráter pedagógico: é preciso ter claro que algo é transmitido e adquirido nas práticas de educação moral, não se trata de um momento que se limita à reflexão e ao diálogo. E, por fim, a terceira revela que estas são práticas de significação. Há um significado ou vários significados em jogo na educação moral, que precisam ser transmitidos e adquiridos. A própria significação do que vem a ser moral, do que é agir moralmente, deve ser construída. Assim,

O que se aprende é produzir significados. Ao aprender isso, ao aprender a significar no interior dessa ordem comunicativa específica, o/a aluno/a aprende simultaneamente as características essenciais dessa ordem moral pedagogicamente construída, aprendendo a constituir sua própria experiência em relação a essa ordem moral. As práticas pedagógicas circunscrevem a forma da ordem moral, mas também a forma e o conteúdo da experiência moral individual (LARROSA, 1998, p. 52).

A última frase, na citação acima, encaminha para outra dimensão da educação moral, se não a mais importante para os fins deste artigo. Até aqui, é possível gerir uma concepção ampla de educação moral: uma atividade, ou série delas, que está comprometida com a transmissão e aquisição de significados morais e, sobretudo, com a regulação dos procedimentos que garantem a compreensão e aquisição da concepção do que é uma ação moral. A transmissão da ordem moral, dos códigos que qualificam uma ação como moral, tem por finalidade última uma alteração nas atitudes dos alunos. Intenta uma mediação na experiência de si, ou seja, na relação do sujeito com ele mesmo, quando ele está em processo de formação/transformação.

Esse trabalho de si sobre si mesmo adquire caráter moralizador quando a mudança que o sujeito engendra sobre si mesmo tem uma finalidade fora dele. Em outras palavras, essa transformação do eu, por meio de tecnologias do eu, orienta-se para uma determinada finalidade, tais como a construção de um sujeito capaz de relacionar-se harmonicamente, um trabalhador consciente de seus direitos e deveres, um cidadão capaz e responsável pelo desenvolvimento social, entre outros exemplos. Uma educação moral age sobre a conduta do sujeito ao lhe oferecer as significações do código moral (ser tolerante é ser assim e não de outro jeito); ao lhe proporcionar as formas pelas quais é possível mudar sua conduta (para ser responsável, é preciso que se proceda de determinada forma); e, ainda, ao lhe dizer como deve ser (é preciso ser responsável, é preciso ser tolerante).

Escolarização da literatura infantil

Conforme sustenta Foucault (1990), referenciado na seção que antecede a esta, as tecnologias do eu consistem em mecanismos práticos que geram, regulam e alteram as experiências subjetivas de si mesmo. Larrossa se apropria e amplia essa ideia, argumentando que, além disso, “essa experiência subjetiva de si mesmo pode ser moldada a partir de um ponto de vista moral, na medida em que pode ser enquadrada por um código normativo de conduta ou por um conjunto axiológico de valores a serem alcançados” (1998, p. 64).

Larrosa afirma que, mais do que significar uma ação moral, na educação moral, trata-se mais de transmitir uma gramática moral, de garantir que os sujeitos apreendam os procedimentos que os permitam agir em conformidade com determinada moral. A aquisição dessa gramática medeia diretamente as tecnologias de relação do sujeito com ele mesmo. Tomando essa gramática como verdadeira, como conjunto prescritivo de normas de conduta, o sujeito interroga-se e transforma-se.

Essas oportunidades têm sido cada vez mais reguladas pelas crianças, a de constituírem-se sujeitos de sua moral, ainda que sejam, conforme defendeu Arendt, seres novos em um mundo velho (ARENDT, 1997). Isso é também corroborado por meio da utilização da literatura infantil que, na maioria das vezes, desempenha a função de doutrina moral e tenta apresentar um conjunto de valores que são preferencialmente seguidos pela sociedade, conforme manifestado pelas palavras introdutórias deste texto. Historicamente, a literatura infantil é objeto de veiculação das práticas morais e constitui um aliado instrumento de efetivação, administração, regulação e controle daquilo que pelas crianças deve ser tomado como correto.

Para fins dessa discussão, é ainda relevante referenciar Tzvetan Todorov, no que compete ao reconhecimento da experiência estética e singular que consiste a leitura literária. Essa carência de experiência, inclusive, é o que impede a produção de novas singularidades, de outras formas de agir e de pensar. Nas palavras do autor:

Il faut insister là-dessus et ne pas négliger ce point de vue subjectif: pour l'individu, l'expérience est forcément singulière, et, du reste, la plus intense de toutes. Il y a une arrogance de la raison, insupportable à l'individu, qui se voit dépossédée de son expérience et du sens qu'il lui accordait au nom de considérations qui lui sont étrangères7 (TODOROV, 2004, p. 35).8

A literatura infantil labora no como dessa razão sobre a qual fala Todorov. Garantindo a transmissão e aquisição das práticas de educação moral, ela tem uma serventia, uma utilidade e um significado, que funciona de modo muito mais eficaz porque age por meio do prazer que é inerente à narrativa. Em meio a essa atividade, esses significados são conduzidos àqueles que, em tese, ainda não possuem experiência, conforme critica Benjamin, e posteriormente confirmados, atestados quanto a sua aquisição, por meio das perguntas diretivas, na maioria das vezes disfarçadas de conversa em roda. O que facilita até mesmo a própria significação para a criança do que vem a ser moral, para que, na posterioridade, quando se torne um cidadão de direitos e deveres, saiba como e o que é agir moralmente, pois isso já lhe foi ofertado.

Cada singularidade que vem sendo compreendida como meio de identificação de uma conduta moral, de um modo de agir, consiste em uma tentativa de obtenção dos fins preestabelecidos sem passar pela experiência estético-formativa – os meios. Assim, a captação ou identificação de condutas, seguidas da tentativa de adequação a elas, afastadas da experiência estética, dos caminhos a serem percorridos por ela, é um dos estratagemas para a composição da sociedade que não tem espaço para a constituição de si, criticada por Foucault e Larrosa.

Carregada de estereótipos heroicos, a literatura infantil remete-se a questões de higiene e de sexualidade, remete-se igualmente a padrões de beleza e modos da constituição do núcleo familiar. Isso para citar apenas algumas temáticas que constituem os modos de interrogação de si. Há, por vezes nas histórias, por vezes na escolarização delas, uma polarização entre bem e mal, que se remete ao código moral como classificatório normatizador – definições de bem e mal, certo e errado, normal e anormal, que são constituídos na relação de adequação ou desvio à norma. O governo moral da infância tem na literatura infantil – e também nos artefatos culturais midiáticos voltados para a infância – uma forma de proposição de tecnologia do eu, dando ênfase na constituição de um sujeito de certa moral – limpo, honesto, generoso – que na maioria das vezes é a conformação a um projeto de desenvolvimento social e não formação, no sentido amplo do termo.

Considerações finais

O ato de se inquietar com a experiência estética advinda da literatura não pode se assentar na escolarização por vias da tentativa de ensinamentos de princípios morais ou da demonstração de como se deve ser, como têm preconizado os modelos formativos contemporâneos e os manuais que insistem em utilizar a literatura infantil para fins de desenvolvimento da razão, para fins instrumentais. O artigo contrastou a diferença de ênfase em uma prescrição do código moral como imposição e na elaboração ética como experimentação de si.

Nesse sentido, reside a distinção entre a fundamentação moral e ética no ensino de literatura, pela interdependência que há entre esta e a experiência estética enquanto experiência eminentemente humana. Interdependência essa que fomenta a própria sensibilidade e a percepção que os sujeitos têm de si mesmos, de se compreenderem enquanto humanos, pois estão em contato com seus desejos, dúvidas e angústias. Nos termos de Foucault, isso estaria atrelado à elaboração de uma estética da existência, uma ontologia crítica dos homens de si mesmos, que, quanto mais se confunde com a ideia de doutrina de como se deve ser, mais perde daquilo que caracteriza seu éthos.

Voltando ao extrato epigrafado, poucos são os momentos em que, na escola, a literatura infantil é compreendida em afinidade com os desejos e sensações. A sua instrumentalização – seja para dar conta de conteúdo, seja para distração, seja para condução do sujeito moral – acaba por interromper a sua potência enquanto formação ética e estética. A literatura infantil é amiga do lento e inimiga da obediência aos costumes, da precisão, do provável e da crença em certezas imediatas. “Antes nenhum fim do que o fim moral” (2014, p. 345), já exclamava Nietzsche em O crepúsculo dos ídolos. O combate contra a finalidade da literatura é sempre contra a sua tendência moralizante, contra a sua subordinação à moral (NIETZSCHE, 2014).

Do contrário, a experiência com a literatura acaba domesticando ainda mais a linguagem, em virtude das exigências de informação e comunicação de valores preestabelecidos. Isto é, atendendo a outras finalidades que não a de uma formação estética voltada para a experimentação de si, para a elaboração de uma sensibilidade mais inventiva e para a construção de ideias que sejam capazes de recuperar uma dimensão inaudita, em contraponto a um tempo de reproduções cíclicas e repetitivas.

1In ZILBERMAN, Regina. A leitura no Brasil: sua história e suas instituições. Disponível em: <http://www.unicamp.br/iel/memoria/Ensaios/regina.html>. Acesso em: 29 abr. 2016.

2Disponível em: <http://www.prolivro.org.br/ipl/publier4.0/dados/anexos/1815.pdf>. Acesso em: 13 fev. 2016.

3“Numa conversa relatada por um amigo, Benjamin teria mesmo defendido a hipótese, à primeira vista grotesca, de que ‘todas as palavras de qualquer língua são parecidas na sua figuração escrita […] com as coisas que elas designam” (GAGNEBIN, 2005, p. 98).

4Termo bastante empregado no meio universitário alemão do século XX, mas que, na mesma perspectiva benjaminiana, foi mais detalhadamente abordado por Hannah Arendt, fazendo referência a uma “mentalidade que julgava todas as coisas em termos de utilidade imediata e de valores materiais e que, por conseguinte, não tinha consideração alguma por objetos e ocupações inúteis, tais como os implícitos na cultura e na arte” (ARENDT, 2007, p. 253). De modo que os bens culturais se convertiam em uma ferramenta para o progresso e para a aquisição de uma falsa e superficial formação que se justificava por uma polidez validada perante a sociedade burguesa. O que Benjamin criticava, ao perceber o comportamento do filisteu que se dizia detentor de uma formação estética, não era que ele tomasse partido e lesse os clássicos literários, por exemplo, “mas que ele o fizesse movido pelo desejo dissimulado de autoaprimoramento, continuando alheio ao fato de que Shakespeare ou Platão pudessem lhes dizer coisas mais importantes do que a maneira de se educarem” (2007, p. 255). Dessa forma, o filisteu fazia parte de um nicho da sociedade que “sentia necessidade de cultura, valorizava e desvalorizava objetos culturais ao transformá-los em mercadorias e usava e abusava deles em proveito de seus fins mesquinhos” (2007, p. 257).

5Ainda que existam algumas alterações na abordagem do conceito de experiência proposto por Walter Benjamin ao longo de seus escritos – contraponto entre escritos da juventude e escritos nos anos finais de sua vida –, foi encontrada uma nota escrita provavelmente em 1929, em que o autor manifesta uma reflexão acerca desse texto aqui referenciado, que foi escrito em sua juventude, em 1913, conforme segue: “Num de meus primeiros ensaios mobilizei todas as forças rebeldes da juventude contra a palavra ‘experiência’. E eis que agora essa palavra tornou-se um elemento de sustentação em muitas de minhas coisas. Apesar disso, permaneci fiel a mim mesmo. Pois o meu ataque cindiu a palavra sem a aniquilar. O ataque penetrou até o âmago da coisa” (BENJAMIN, 2002, p. 21). Essa informação é relevante para que se compreenda que as raízes de sua crítica não foram enfraquecidas, e sim cotejadas mais estreitamente tanto ao aspecto político que o termo vai ganhando quanto às relações com a arte, de um modo geral, nos textos finais, tais como Experiência e pobreza, O narrador e A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (BENJAMIN, 1994).

6Na mesma obra, ao falar da biblioteca da escola, Benjamin manifesta o descontentamento em outro extrato: “Enquanto esse livro, que se intitulava Por seus Próprios poderes, permaneceu na biblioteca da sala do primeiro ano do liceu, o corredor que saía pelos fundos daquele quarto em Berlim representou a comprida galeria percorrida à noite pela mulher do castelo. Porém, fossem esses livros agradáveis ou medonhos, aborrecidos ou excitantes – nada podia aumentar ou diminuir-lhes o encanto. Pois este não dependia do conteúdo, mas sim do fato de me garantirem um quarto de hora que tornasse mais tolerável toda a miséria da monotonia das aulas” (BENJAMIN, 2000, p. 116).

7Tradução livre: “É preciso insistir nisso e não negligenciar esse ponto de vista subjetivo: para o indivíduo, a experiência é sempre única e, de fato, a mais intensa de todas. Há uma arrogância da razão, insuportável para o indivíduo, que se percebe desapropriado de sua experiência e do significado que ela lhe deu em nome de considerações que lhe são estranhas”.

8Texto de Tzvetan Todorov apresentado primeiramente no congresso organizado pela Fundação Auschwitz, “Histoire et mémoire des crimes et génocides nazis”, na década de 1990, em Bruxelas, no qual o conceito de experiência aparece atrelado ao conceito de memória, como “qualité singulière” (2004, p. 39).

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Recebido: 15 de Dezembro de 2016; Aceito: 28 de Junho de 2018

Endereço para correspondência: Gomercindo Ghiggi, Rua Getúlio Vargas, 2125 – Bairro Flor da Serra, 89600-000 Joaçaba, SC, Brasil

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