SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.41 número3Una mirada sobre la producción científica nacional acerca de la financiación de la educaciónSubjetividad en la y pela linguage: la construcción de la identidad docente índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Compartir


Educação

versión impresa ISSN 0101-465Xversión On-line ISSN 1981-2582

Educação. Porto Alegre vol.41 no.3 Porto Alegre set./dic 2018  Epub 05-Jul-2019

https://doi.org/10.15448/1981-2582.2018.3.27831 

Outros Temas

Uniforme escolar: regulando os modos de vestir para a produção de um/a aluno/a “boa pinta”

School uniform: regulating dress modes to produce a “good looking” student

Uniforme escolar: regulando los modos de vestir para la producción de un/a alumno/a “guapo”

Suelén Teixeira da Silva1 
http://orcid.org/0000-0001-8853-0855

Angela Dillmann Nunes Bicca2 
http://orcid.org/0000-0003-3187-0976

1Graduada em pedagogia; Mestre em Educação; Prefeitura Municipal de Pelotas. E-mail: <suelentxsilva@gmail.com>

2Licenciada em Física e Especialista em Lógica e Filosofia da Ciência; Mestre e Doutora em Educação, IFSUL. E-mail: <angela.bicca@hotmail.com>


Resumo

Objetiva-se, a partir dos estudos culturais pós-estruturalistas articulados ao campo da Educação, compreender como o Manual do Uniforme Escolar do “Projeto Boa Pinta – Uniforme Escolar” participa da produção de sentidos sobre as vestimentas para ir à escola na rede municipal de ensino da cidade de Pelotas. Para cumprir tal objetivo, analisou-se o Manual do Uniforme Escolar, distribuído juntamente com os kits de uniformes da rede municipal de Pelotas, a partir do conceito de representação cultural. Essa discussão focalizou como a vestimenta pode disciplinar e regular os indivíduos, instaurando compreensões acerca de igualitarismo, de higiene e de segurança, que, por sua vez, funcionam para produzir modos específicos de vestir-se para ir à escola e, ao contrário do que possa parecer, valorizam a aparência.

Palavras-chave: Estudos culturais; Uniformes escolares; Disciplinamento; Regulação

Abstract

It is aimed, from the post-structuralist cultural studies articulated to the Education field, to understand how the School Uniform Manual the “Boa Pinta (good-looking) Program – School Uniform” takes part in the production of senses on the garments to go to school in Pelotas city schools. In order to fulfill this goal, we have analyzed the School Uniform Manual, distributed along with the uniforms of the Pelotas city schools, from the concept of cultural representation. This discussion focused how the clothes can discipline and regulate individuals establishing understandings about egalitarianism, hygiene and security, which work to produce specific ways to dress up to go to school that, on the contrary to what may seem, appearance is valued.

Keywords: Cultural studies; School uniforms; Discipline; Regulation

Resumen

Objetivamos, a partir de los estudios culturales post-estructuralistas articulados al campo de la Educación, comprender como el Manual del Uniforme Escolar del “Proyecto Boa Pinta (guapo) – Uniforme Escolar” participa de la producción de los sentidos sobre las vestimentas para irse a la escuela en la red municipal de enseñanza de la ciudad de Pelotas. Para cumplir tal objetivo analizamos el Manual del Uniforme Escolar, distribuido juntamente con los kits de uniformes de la red Municipal de Pelotas, a partir del concepto de representación cultural. Esta discusión enfocó como la ropa puede disciplinar y regular los individuos instaurando comprensiones acerca de igualitarismo, de higiene y de seguridad que, por su vez, funcionan para producir modos específicos de vestir para ir a la escuela que, a diferencia de lo que pueda parecer, valoran la apariencia.

Palabras clave: Estudios culturales; Uniformes escolares; Disciplinamiento; Regulación

Introdução

A reflexão sobre o uso de uniformes escolares possibilita levar em consideração que essa prática promove aprendizagens que dizem respeito a quem deve ou não usá-lo; quem tem vários deles à sua disposição e quem não; quem são os sujeitos parecidos conosco e quem são diferentes; quem é limpo e quem não é; qual o modo de vestir-se que significa dar atenção ao pudor e o que deve ser considerado uma boa aparência!

Dussel (2005), ao analisar a adoção de uniformes escolares em diversos países da América Latina, mostrou que essas vestimentas estão conectadas aos modos como a escola moderna configura um regime de aparências singular. Por esse motivo, participa da rede de poderes e saberes que regulam e disciplinam os corpos de diferentes indivíduos. Tal situação possibilita questionar a compreensão, aceita no senso comum, de que as aparências sempre enganam e de que se preocupar com elas significa ater-se, necessariamente, ao que é frívolo. Há regimes de aparências em diferentes situações e não apenas naquelas em que a preocupação com ela significa buscar o luxo e a suntuosidade. A escola moderna, como também pontuou Dussel (2005), tem seu próprio regime de aparências, que inclui a construção de seus edifícios, a disposição das pessoas e dos objetos no espaço, a produção de materiais didáticos, além dos uniformes e códigos sobre as vestimentas a serem nela usadas. Um regime de aparências, aliás, atrelado à construção do mundo moderno e, por esse motivo, relacionado a um projeto civilizador que pressupôs a docilização dos corpos.

Considerando as profundas ligações entre os ideais civilizatórios e a escola, é importante indicar que os uniformes escolares podem ser pensados como parte de uma grande maquinaria destinada a promover as condutas necessárias aos objetivos do tipo de sociedade que foi projetada. Conforme Dussel (2005), o uso dos uniformes escolares tem feito parte de políticas de regulação dos corpos instauradas a partir do higienismo, que, por sua vez, promulgava a pureza moral e racial como ideal civilizatório. Um exemplo disso foi o uso, por estudantes argentinos, de aventais brancos com a finalidade de estabelecer uma unidade estética visual do espaço escolar. De forma semelhante, no Brasil, o uso de uniformes escolares vem engendrando formas de regular os corpos de alunos e alunas.

Elencam-se essas informações para refletir a respeito da implementação do “Projeto Boa Pinta – Uniforme Escolar”, pela Prefeitura Municipal da cidade de Pelotas, situada no estado do Rio Grande do Sul, entre os anos de 2014 e 2016. Esse projeto foi colocado em ação a partir da publicação do Decreto nº 5.726 (PELOTAS, 2014), com a criação e distribuição de um kit de uniformes cujas peças de roupa foram acompanhadas do “Manual do Uniforme”. Material que chamou a atenção em função de ter sido o único material impresso produzido pelo “Projeto Boa Pinta” e pelo modo como contribui para a instauração de um regime de aparências relacionado ao uso do uniforme escolar.

Dessa forma, a partir dos estudos culturais de vertente pós-estruturalista articulados ao campo da Educação, objetiva-se compreender como o Manual do Uniforme que compõe o “Projeto Boa Pinta – Uniforme Escolar” participa da produção de sentidos sobre as vestimentas para ir à escola na rede municipal de ensino da cidade de Pelotas.

Costuras metodológicas

O campo dos estudos culturais, associado às discussões pós-estruturalistas, é caracterizado pela não rigidez de uma concepção metodológica única, mas está longe de ser um lugar onde cabe qualquer coisa ou quase tudo. Isso significa dizer que, nesse campo acadêmico, não possuem uma metodologia específica que necessita ser obrigatoriamente acionada. O/a pesquisador/a tem autonomia para buscar ferramentas e técnicas de pesquisa que se adaptem ao objeto de análise a ser abordado. Fazer pesquisa numa perspectiva pós-estruturalista implica não partir de método que já se saiba seguro para realizar aquela investigação. É necessário elaborar a própria metodologia ao desenvolver a pesquisa. Por esse motivo,

[…] dedicamos esforços para construirmos nossas metodologias, então, porque sabemos que o modo como fazemos nossas pesquisas vai depender dos questionamentos que fazemos das interrogações que nos movem e dos problemas que formulamos (PARAÍSO, 2012, p. 24).

Há necessidade de dedicar tempo para a elaboração dos modos de pesquisar. Busca-se afastamento

[…] daquilo que é rígido, das essências, das convicções, dos universais, da tarefa de prescrever e de todos os conceitos e pensamentos que não nos ajudam a construir imagens de pensamentos potentes para interrogar e descrever-analisar nosso objeto. Aproximamo-nos daqueles pensamentos que nos movem, colocam em xeque nossas verdades e nos auxiliam a encontrar caminhos para responder nossas interrogações (MEYER; PARAÍSO, 2012, p. 16-17).

Nessa perspectiva, apresentam-se os procedimentos que possibilitaram a análise do Manual do Uniforme Escolar do município de Pelotas, apontando-o como um livreto que contém, no seu interior, seis páginas com informações sobre o Projeto “Boa Pinta – Uniforme Escolar”. Optou-se por analisar o referido manual porque foi o único material impresso produzido na implantação do uso de uniformes na rede de ensino já referida, tendo sido distribuído juntamente com cada kit de roupas.

Como objeto de análise foram utilizadas aquelas páginas do Manual do Uniforme que acionaram explicitamente argumentos relacionados à facilitação da segurança, à promoção da igualdade e ao estimulo às práticas de higiene relacionadas ao uso do uniforme escolar. Destaca-se que esses pontos serviram como critério temático indicativo dos trechos de texto verbal e elementos visuais que foram abordados na análise, espaço onde se dispôs a reprodução das páginas do manual.

Logo ao abrir o livreto, observa-se a presença de indicações sobre as “Vantagens e benefícios do uniforme escolar”, argumentos relacionados à segurança, à igualdade, ao combate à violência dentro da escola (bullyng), ao apoio às famílias carentes e à possibilidade do fortalecimento de vínculo da escola com a família. Em outra página do manual, aparecem detalhes relativos ao investimento realizado para a execução do “Projeto Boa Pinta – Uniforme Escolar”. Na sequência, o manual contém algumas “Perguntas e Respostas” sobre o uniforme escolar, enfatizando detalhes relativos ao uso e conservação das peças do kit. Essas perguntas e respostas focalizaram, mais particularmente, a forma de distribuição e gratuidade dos uniformes escolares, a necessidade de padronizar a vestimenta dos/as estudantes, o processo de aquisição das vestimentas pelo município, a não obrigatoriedade do uso do uniforme, o destino de peças que deixam de servir durante e ao final de cada ano letivo. Além disso, compondo o folheto explicativo, foram fornecidas “Dicas para cuidar bem do seu uniforme”, nas quais são abordadas as maneiras de conservar suas peças para garantir maior durabilidade, indicando, inclusive, como lavá-las e passá-las.

Selecionadas as páginas do Manual do Uniforme a serem analisadas, realizou-se uma descrição minuciosa e detalhada de cada uma a fim de estabelecer as relações entre o texto verbal e as imagens apresentadas que se conectam com as temáticas da igualdade, da segurança e da higiene. A descrição de que se fala é um exercício importante para o desenvolvimento da análise de artefatos culturais, porque explicita os modos como a linguagem age para constituir o mundo. Ou seja, a descrição das páginas do Manual do Uniforme elencadas para análise ajudou a compreender a produção de significados sobre vestimentas escolares de que o referido manual participa.

Dessa forma, o material pode ser analisado a partir da noção de representação cultural elaborada por Hall (1997). Compreensão que não visa a procurar o que está oculto nem o verdadeiro e único sentido em algum texto, seja ele verbal ou visual. A noção de representação cultural tem a ver com o uso da linguagem para a produção de significados. Por esse motivo, leva em consideração a maneira pela qual os entes do mundo são constituídos, estruturando a forma como algo é pensado e os modos como se age a partir de tais formas de pensar. Trata-se de uma compreensão sobre representação que se afasta de sua noção clássica, aquela que a associa com a verbalização dos indivíduos a respeito de sua compreensão sobre o mundo, isto é, da descrição precisa e fiel das coisas. Como registou Kindel (2003 p. 17), “na […] visão clássica, a representação é o espelho do mundo, um retrato fiel daquilo que naturalmente já existe”.

Para os estudos culturais, em contraste, como explicou Wortmann (2001), a representação é uma das práticas centrais na produção de significados sobre as coisas do mundo que são culturalmente produzidos e postos em circulação através de diversos processos e práticas. É a ênfase na construção linguística que faz a noção de representação cultural afastar-se da noção clássica. Sendo assim, a representação constitui as coisas e não apenas faz um mero reflexo do que existe no mundo. Isso significa que ela não espelha uma realidade, mas institui significados e os coloca em circulação. Por isso, nos estudos que abordam a representação, busca-se compreender a sua ação na constituição social das coisas e dos sujeitos.

A representação cultural, entre outras significações, diz respeito ao

[…] que se diz sobre o “outro”, em quaisquer que sejam os circuitos de significação: filmes, revistas, desenhos, pinturas, fotografias, brinquedos, programas televisivos, blogues, Orkut. Através da representação, podemos produzir a identidade social e cultural do “outro” e ao mesmo tempo produzir também a nossa própria identidade (BRANDÃO, 2009, p. 45).

O conceito de representação, dessa forma, pode ser visto como um conjunto de práticas de significação e não mais como um conjunto de imagens que estariam simplesmente substituindo as coisas e os entes do mundo. Ponto que se relaciona à compreensão de que não há significados essenciais, fixos, estáveis e acabados. Hall (1997), ao discutir tal questão, mostrou que a representação produz efeitos porque está intimamente ligada à ação do poder. Por isso, a referida noção de representação não busca apenas examinar a forma como a linguagem funciona produzindo significados, busca os modos como os saberes/poderes regulam condutas, assim como constróem identidades e subjetividades.

Poder, na perspectiva aqui adotada, não se trata de uma forma de ação que simplesmente diz não, que interdita e paralisa ações, mas do elemento que coloca em jogo relações entre indivíduos ou entre grupos, sendo, dessa forma, produtivo (FOUCAULT, 1995). São relações que estão presentes em toda a sociedade, sustentando os efeitos de verdade daquele tempo e espaço, atuando na produção das individualidades. Poder, portanto, não significa um conjunto de instituições e aparelhos que garantem a sujeição de algo ou de alguém a algum mecanismo opressor ou a um tipo de direito atribuído a um indivíduo ou instituição. Não se trata de algo concentrado nas mãos de um governante ou localizado no Estado.

Poder, na acepção aqui requerida, compreende uma rede de relacionamentos ligados à sociedade, articulada com diferentes saberes e inserida em práticas sociais. Uma rede da qual ninguém pode ficar desconectado. Para Foucault (2007), trata-se de uma compreensão de poder que se afasta da noção jurídica. Um modelo de poder pode ser considerado essencialmente jurídico quando está “[…] centrado exclusivamente no enunciado da lei e no funcionamento da interdição. Todos os modos de dominação, submissão, sujeição se reduziriam, finalmente, ao efeito de obediência” (FOUCAULT, 2007, p. 96).

Como esclareceu Paraíso (2012), tudo o que se pode ler, ver, escutar deve e pode ser interrogado e problematizado a partir dos modos como se articulam saberes e poderes. Dessa forma, o que é posto em questão nas análises é o modo como os poderes e saberes se articulam em um manual distribuído juntamente com o kit de uniformes escolares da rede municipal de ensino da cidade de Pelotas.

A “boa pinta” de estudantes investidos em mecanismos de regulação

Compreende-se a utilização do uniforme escolar como uma prática ligada a um regime de aparências que indica o que é desejável e o que não é desejável. As ilustrações contidas na Figura 1 do Manual do Uniforme, reproduzida a seguir, apresenta uma menina e um menino em uma praça onde pessoas que desfrutam do espaço os identificam como estudantes de escola municipal e admiram o uniforme utilizado.

Fonte: Manual do Uniforme Escolar 2015/Smed-Pelotas.

Figura 1 Vantagens e benefícios do uniforme escolar da rede municipal de ensino de Pelotas 

As imagens apresentam uma forma de vestir que tem sido facilmente considerada boa para crianças irem à escola em função, especialmente, de ser um traje que favorece os movimentos e pode ser mantido limpo com facilidade. Um ponto que favorece essa leitura é a colocação de tênis perfeitamente brancos como complemento da vestimenta do aluno e da aluna desenhados/as.

Os dois balões nos quais é expresso o pensamento das pessoas que observam o aluno e a aluna indicam que o uniforme não apenas está identificando que aqueles/as são estudantes de uma escola municipal, mas também que estão bem vestidos para ir à escola. Não é por acaso que o projeto cujo manual se está examinando tem no seu nome a expressão “boa pinta”, que é uma gíria usada para referir pessoas que teriam boa aparência. Nesse caso, a boa aparência seria um efeito pretendido em relação a crianças que vestem o uniforme escolar.

A associação entre a vestimenta e a boa aparência parece ter sido a tônica de vários tipos de uniformes escolares já utilizados, e a pretensão era criar e manter uma relação entre a roupa usada, o tipo de escola e o tipo de indivíduo que se quer produzir com a ação dessa escola. Isso é possível porque, como mostrou Dussel (2007), a vestimenta é uma poderosa forma de produzir regulação social sobre o corpo, que é transformado em um signo a ser lido pelos padrões de docilidade que reproduz e pelas transgressões que pode produzir. Trata-se de uma forma de regulação dos corpos atrelada à “[…] necessidade de regular as aparências, de intervir sobre a apresentação das pessoas e das práticas coletivas” (RIBEIRO; SILVA, 2012, p. 579).

Considerando que tem sido frequente o entendimento de que a roupa está associada a quem a usa, é possível indicar que o uniforme escolar expressa o tipo de educação que um sistema de ensino ou uma escola pretendem realizar e quem são os estudantes que lá se inserem. Como pontuou Beck (2012, p. 204), “[…] os uniformes, cada qual ao seu tempo, conferiram status, poder, pertencimento, distinção e diferenciação social àqueles que o trajavam”. Enfim, o uso de uniformes escolares pode, de várias formas, produzir classificações e exclusões.

Nesse caso, a “boa pinta” escolar implica uma forma de uniformidade entre os sujeitos que permite identificá-los como pertencentes à rede municipal de ensino da cidade de Pelotas e, também, inseri-los em aparatos de disciplinamento e gestão da população que são bastante sutis e que envolvem, em especial, a busca de igualdade, de segurança e de higiene. Por esse motivo, o uso de uniformes escolares pode ser pensado como uma estratégia biopolítica que administra a vida das pessoas, visando à segurança e ao controle social, uma vez que o objeto do poder não é um indivíduo isolado, mas toda uma população.

Nas sociedades modernas, surgiu, aproximadamente no fim do século XVIII, um tipo de poder denominado por Foucault como biopoder e que corresponde a uma nova tecnologia política, distinta da tecnologia disciplinar, mas “[…] que com ela irá se compor e a ela se sobrepor, cuja singularidade está no fato de centrar-se na vida, no “vivo”, ou seja, no fato de tomar por objeto, agora, o corpo-espécie da população” (GADELHA, 2009, p. 109).

As estratégias disciplinares, por sua vez, voltaram seu interesse, em um primeiro momento, como mostrou Foucault (2014), para os corpos físicos das pessoas inseridas nas instituições, tais como as escolas, os hospitais, os quartéis e as prisões, para individualizar, docilizar e maximizar cada um. Trata-se de uma forma de exercício do poder que funciona “[…] não pelo direito, mas pela técnica, não pela lei, mas pela normalização, não pelo castigo, mas pelo controle, e que se exercem em níveis e formas que extravazam do Estado e de seus aparelhos” (FOUCAULT, 2007, p. 100). Isso aconteceu porque os mecanismos disciplinares permitiram o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade. “É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado” (FOUCAULT, 2014, p. 134). Para que essa forma de exercício do poder funcione, são necessárias algumas estratégias, tais como a distribuição dos indivíduos no espaço fechado e o controle das atividades a serem realizadas para que o tempo seja sempre útil. Além da necessidade dos recursos de vigilância hierárquica, os quais buscam garantir o funcionamento automático do mecanismo, a sanção normalizadora que visa a ajustar o indivíduo a alguma norma e o exame que possibilita classificar cada um/a à medida que vigia e produz saber sobre os indivíduos vigiados.

É por esse motivo que a escola moderna pode ser pensada como uma instituição investida dos procedimentos da disciplina. A disciplina operada nesse âmbito, com um controle minucioso das operações do corpo através da vigilância, fabrica, então, corpos dóceis e úteis, ou seja, corpos que podem ser submetidos, utilizados, treinados e aperfeiçoados, como mostrou Foucault (2014). Todas essas considerações revelam que a educação escolar moderna está implicada na fabricação de um tipo específico de indivíduo:

[…] o sujeito pensado, idealizado e projetado pelos idealizadores da Modernidade, principalmente a partir do século XVIII europeu- iluministas, enciclopedistas, democratas, revolucionários, idealistas, antiaristocratas, antimonárquicos, antiabsolutistas, seculares etc (VEIGA-NETO, 2003, p. 105).

Esse mecanismo, entretanto, não ficou restrito às instituições e se espalhou por todo o tecido social, articulando-se a outro mecanismo de poder nas sociedades estatais modernas, o biopoder. Essas condições tornaram possível reconhecer o homem como possuidor de um corpo e pertencente a uma espécie e, com isso, surgiram questões e preocupações com a vida como algo a ser preservado e administrado. O foco do biopoder, portanto, é o corpo da população. Trata-se de uma tecnologia de poder que

[…] se dirige à multiplicidade dos homens, não na medida em que se resume a corpos, mas na medida em que ela forma, ao contrário, uma massa global, afetada por processos de conjunto que são próprios da vida, que são processos como o nascimento, a morte, a produção, a doença, etc. (FOUCAULT, 2005, p. 289).

Trata-se de administrar, por intermédio dos dados que se podem obter com estatísticas, as situações que são aleatórias e imprevisíveis se tomadas individualmente, mas que podem ser reguladas se olhadas em conjunto. Trata-se de intervir, por exemplo, na taxa de morbidade relacionada a determinadas doenças, criar estratégias para buscar a longevidade, estimar a natalidade, criar sistemas de providência e poupança, entre outros que possam fazer com que mais pessoas vivam mais. Trata-se de regular a população através da norma.

A norma estabelece um

[…] princípio de comparação, de comparabilidade, uma medida comum, que se institui na pura referência de um grupo a si próprio a partir do momento em que só se relaciona consigo mesmo, sem exterioridade, sem verticalidade (EWALD, 1993, p. 86).

Segundo Foucault (2005), a norma pode ser estabelecida de duas formas diferentes que se articulam: no primeiro caso, a norma se estabelece antes, fazendo com que cada situação seja classificada como normal ou como anormal, segundo o mecanismo disciplinar; no segundo caso, a norma se estabelece depois, como resultado da obtenção de informações acerca de uma população, acionando saberes estatísticos e produzindo um critério que permite estabelecer graus de afastamento em relação ao que é normal. Por isso, é possível dizer que o biopoder opera normalizando, mantendo uma média e produzindo um equilíbrio relativamente aos mecanismos de conjunto que visa a administrar. Não há como escapar da norma, nada que seja exterior à norma, normal e anormal estão nela compreendidos. A norma opera sem exclusão porque não são as qualidades que diferenciam os indivíduos, e sim as diferenças existentes no interior dessas qualidades que são posicionadas umas em relação às outras.

Essa teria sido uma importante condição para que, ao final do século XIX, como esclareceram Dussel e Caruso (2003), os Estados modernos passassem a controlar e dirigir a educação escolarizada, promovendo uma homogeneização e centralização das formas de educar como uma estratégia integrante do biopoder e constituindo ações políticas que pudessem, inclusive, ir além dos muros das escolas.

O Manual do Uniforme faz aparecer elementos de regulação quando aciona a compreensão de que o uso de uniformes escolares evitaria a diferenciação dos/as estudantes relativamente à roupa que usam, estimularia hábitos de higiene e promoveria a segurança. Esses pontos, de alguma forma, conectam-se a um regime de aparências que regula a conduta dos sujeitos. Como mostrou Dussel (2007), até mesmo os regimes de aparência menos restritivos produzem regulações de condutas a partir das opções a serem consideradas relativamente a um conjunto de ditos sobre democracia, saúde e segurança.

Portanto, o Manual do Uniforme Escolar do município de Pelotas instiga a refletir a respeito da democratização que o uso do kit poderia produzir à medida que incluiria socialmente os/as estudantes. Situação que fica caracterizada com a afirmação, presente no manual, de que o uso do uniforme escolar pode diminuir a incidência de bullying entre os/as estudantes e favorecer um ambiente harmônico.

Como mostrou Dussel (2007, 2005), em vários países latino-americanos, o uso de uniformes escolares esteve, desde o início do século XX, relacionado às promessas de igualdade e inclusão social, uma forma de igualitarismo associado com homogeneidade e com a simplicidade das vestimentas. Argumentava-se a favor de um vestuário escolar que fosse econômico e democrático.

Na Argentina, como exemplificou Dussel (2007), o igualitarismo talvez tenha sido um dos argumentos mais evocados para a persistência do avental branco como vestimenta escolar. Para muitas famílias pobres, a possibilidade de que as crianças não fossem diferenciadas pela condição econômica era sedutora. No Brasil, como registraram Ribeiro e Silva (2012, p. 582), com o advento da República e expansão do ensino, passou-se a defender a existência do uniforme escolar para evitar o contraste entre ricos e pobres como forma de efetivar uma educação igual para todos.

A igualdade pretendida com o uso dos uniformes não evitou, no entanto, que as desigualdades sociais aparecessem. Distinguiam-se, por exemplo, crianças que frequentavam a escola daquelas que não frequentavam; crianças matriculadas em escolas públicas das matriculadas em escolas particulares; crianças inseridas no meio urbano das que residiam na zona rural. Além disso, não evitava que outras vestes, calçados e acessórios usados junto com o uniforme criassem formas de diferenciação similares às que ocorriam sem a adoção de trajes padronizados.

Essa situação instigou Dussel (2004) a problematizar os modos como a escola moderna associou igualdade e homogeneização à medida que buscou incluir, nas instituições de ensino, grandes contingentes populacionais. Um argumento que tem base na compreensão de que educar a todos por igual seria a forma correta de garantir que ninguém tivesse privilégio. Criava-se a compreensão de que a democratização necessita de um congelamento das diferenças relativas à raça, etnia, gênero, classe social, religião etc. Pensava-se que o uso do uniforme cobriria e borraria as diferenças, instaurando uma aparência igualitária para todos/as os/as estudantes. A igualdade da aparência, portanto, era considerada uma forma de evitar distinções e discriminações, levando a escola a abranger todos de forma “neutra” e “universal”.

Essa forma de democratização foi produzida em torno de uma normalização que possibilitava comparar cada indivíduo a uma norma e propiciar condições para que o afastamento dela fosse corrigido e não voltasse a ocorrer. Um dos pontos que auxiliam a compreender o motivo pelo qual isso acontece é que toda a parafernália escolar tem sido estrategicamente montada na implementação de táticas para controlar e normalizar os sujeitos. Os uniformes fazem parte dos mecanismos criados para tornar a escola “[…] um aparelho de aprender onde cada aluno, cada nível e cada momento, se estão combinados como deve ser, são permanentemente utilizados no processo geral de ensino” (FOUCAULT, 2014, p. 162-163).

Nessa perspectiva, os sujeitos que estão em constante vigilância podem incorporar o que é considerado como forma correta de agir, passando a controlar a si mesmos. O uniforme, por sua vez, ajuda a identificar os sujeitos escolares e a exigir destes, dentro e fora das escolas, determinadas formas de agir à medida que a roupa favorece que tais ações sejam avaliadas e classificadas. É necessário ter claro que a uniformidade pode ser traduzida

[…] na produção de hierarquias ao fracionar o saber em disciplinas, ao esquadrinhar a arquitetura desse espaço escolar, ao racionalizar o tempo, promovendo a individualização dos sujeitos na execução de suas tarefas e a maximização da sua produtividade (BECK, 2012, p. 192).

Os processos de normalização produzem classificações e hierarquias atreladas com a necessidade de fazer exigências para que os indivíduos sejam adequados à norma. Porém, essas exigências nunca serão iguais para todos por mais que essa adequação tenha propósitos de democratização e de inclusão com bases científicas. Por esse motivo, não há neutralidade nessa forma de produzir homogeneidade. A identificação dos desvios relativos à norma torna ainda mais fácil criar desigualdades em nome da democratização.

É importante destacar que isso não acontece apenas quando se tem um uniforme rigidamente padronizado, efetiva-se também quando o uso de uniformes admite práticas mais abertas e flexíveis, tais como usar somente uma peça do kit associada a outras vestimentas. A vigilância e a correção dos desvios em relação a alguma norma são possíveis mesmo em situações que admitem a combinação do uniforme escolar com roupas e acessórios diversos para que não se efetive uma padronização rígida. Modo mais sutil de padronizar que, aliás, é previsto pelo Manual do Uniforme que se está examinando. Cria-se, por exemplo, um/a aluno/a “boa pinta” que usa uniforme e sapatos limpos, afastando-se ao máximo dos riscos que a sujeira pode oferecer à saúde. Criam-se situações nas quais se torna possível a correção dos desvios relativos a algum padrão de higiene.

Gera-se, também, uma padronização que se coloca como aliada com a possibilidade de que cada um/a crie seu próprio visual, associando as peças do kit do uniforme com outras roupas e com diferentes acessórios. Isso acontece porque até mesmo

[…] em um momento em que se valoriza a liberdade e a criatividade dos pequenos entre os muros escolares, não se abre mão do governo dos corpos e das mentes para dar a justa liberdade desse homem a ser formado e formatado. Nesse jogo de liberdades medidas se produz algo diverso da liberdade, que é do âmbito das desmedidas, se expande no mais ordinário dos atos o seu contrário, a busca paranoica por segurança (AUGUSTO, 2015, p. 11).

Como consta na Figura 2 do Manual do Uniforme, apresentada a seguir, os/as alunos/as que não usarem o uniforme não serão impedidos/as de frequentar a escola. Isso implica que o/a estudante poderá usar o uniforme completo, usar apenas algumas peças do mesmo ou não usar. Com relação a isso, o manual não se apresenta como instrumento que impõe um padrão único de vestimenta, mas apela para a responsabilidade das famílias dos/as estudantes para com os recursos públicos empregados no Projeto Boa Pinta. Tal alusão à responsabilidade posiciona o uso do uniforme como bom aproveitamento dos recursos públicos e o descaso com o uniforme como uma forma de desperdício.

Fonte: Manual do Uniforme Escolar 2015/Smed-Pelotas.

Figura 2 Perguntas e respostas sobre a implantação do uso dos uniformes nas escolas municipais de Pelotas 

A ênfase no investimento público que o Projeto Boa Pinta buscou realizar é a tônica dos dados apresentados na Figura 2 do Manual do Uniforme, reproduzida a seguir, na qual há informações de custos, do total de peças de roupas e do número de estudantes e escolas a serem contemplados. Essa ênfase fica caracterizada, também, na Figura 3 do Manual do Uniforme, quando é afirmado que a adoção de trajes escolares distribuídos gratuitamente funciona como incentivo para que famílias carentes mantenham seus/suas filhos/as estudando.

Fonte: Manual do Uniforme Escolar 2015/Smed-Pelotas.

Figura 3 Projeto Boa Pinta 

Trata-se de um argumento implicado com a prevenção da evasão escolar e com a redução dos riscos relativos à vulnerabilidade social das crianças mais pobres. Essa é uma forma de olhar para a população, administrando-a para que viva mais e melhor.

Desenvolve-se toda uma série de novos instrumentos para administrar a vida das pessoas: o governo interessa-se pelas vidas de seus súditos e as administra; quer que vivam mais, que se alimentem de determinada maneira e que adotem hábitos higiênicos (DUSSEL; CARUSSO, 2003, p. 158).

Todos esses investimentos supõem uma vida preservada e segura. O disciplinamento e as práticas de regulação e de controle têm estado implicados com a constituição da escola como uma etapa necessária para a integração dos indivíduos na sociedade.

O uniforme, entendido como um instrumento de pertencimento do indivíduo a um determinado coletivo1, que separa quem está inserido no grupo de quem não está, funciona como uma forma de produzir segurança. Observa-se que o quesito segurança parece exigir a classificação ao invés de evitá-la, o que também mostra a dificuldade da eliminação das diferenciações que o argumento relacionado ao igualitarismo pode sugerir.

Esse é o argumento presente no Manual do Uniforme para indicar a preocupação com a segurança dos/as educandos, especialmente nos ambientes externos à escola. Segundo esse argumento, a criança uniformizada não apenas é identificada pela boa aparência, mas, também, mais facilmente protegida por policiais e outros agentes de segurança.

Outra via pela qual o Projeto “Boa Pinta” se inscreve em mecanismos de controle e regulação diz respeito à associação entre a boa aparência e o cultivo dos hábitos de higiene. A regulação que a vestimenta pode gerar diz respeito a códigos de elegância, de decoro, de austeridade, de gênero, de pertencimento e, também, de higiene. A Figura 4 do Manual do Uniforme, aliás, busca orientar pais, mães e responsáveis pelas crianças sobre a necessidade de dedicar atenção à higiene e à conservação das peças que compõem o kit escolar.

Fonte: Manual do Uniforme Escolar 2015/Smed-Pelotas.

Figura 4 Dicas para cuidar bem do seu uniforme 

As instruções oferecidas pelo manual dizem respeito ao modo de lavar, secar e guardar as peças do kit de uniforme, visando a que ele tenha o máximo de durabilidade e a melhor aparência possível. O manual fornece orientação a respeito do que danifica ou desbota o tecido. Por esse motivo, é indicado que os pais ou responsáveis conversem com os seus filhos para que tenham cuidado com a conservação do uniforme escolar.

É interessante apontar que as indicações do Manual do Uniforme relacionadas com a manutenção das peças do kit são apresentadas como informações úteis para todos/as que desejarem tirar o maior e o melhor proveito da disponibilidade dessas peças de roupa. Tudo é apresentado sem tom impositivo, apelando para a responsabilidade com o investimento público em Educação e para os mecanismos complexos que inserem as pessoas na necessidade de atentar para os padrões de higiene.

Como mostraram Dussel (2005) e Ribeiro e Silva (2012), uma série de saberes científicos que emergiram no século XIX, relacionados à medicina e à microbiologia, passaram a fornecer elementos para a regulação dos corpos por intermédio de indicações sobre a higiene. Nesse contexto, os investimentos em higiene dos uniformes escolares se constituíram em uma forma de promover uma luta contra a contaminação e o contágio de doenças; os argumentos advindos dos discursos higienistas produziram, todavia, formas de regulação moral:

Amparada em preceitos higienistas, ao situar a roupa como preservação da saúde e do pudor e como critério para adoção de uma estética, a escola construiu estratégias de intervenção sobre os corpos dos alunos, disciplinando-os de modo a torná-los adequados para circular na emergente e idealizada sociedade: limpa, ordenada, sã e, enfim, civilizada, já que a roupa/uniforme esculpe uma conduta e reflete uma dada organização social (RIBEIRO; SILVA, 2012, p. 582).

Indicações sobre conservação das peças do kit, apresentadas acima, podem funcionar como uma forma de regulação à medida que danos que as peças de roupas venham a sofrer, bem como a sujeira que possam apresentar, sejam visualizados nas escolas e em outros espaços. Não é difícil, por exemplo, que uma peça do kit de uniforme que tenha desbotado seja identificada por comparação ao estado de outras peças que mantenham um tom mais próximo do original, situação em que seria quase imediata a censura relativa à falta dos cuidados de manutenção apresentados no manual. Da mesma forma, uma peça do uniforme que esteja suja pode ser facilmente identificada por comparação com peças limpas. Nesses exemplos, poderes e saberes estariam se articulando para regular condutas que, nesse caso, dizem respeito à observância de normas relativas aos modos de atentar para a higiene. Ou, ainda, a aparência importa, a aparência é mais do que nunca algo vigiado, regulado, administrado e punido.

Os arremates de uma investigação

Ao abordar a implantação do Projeto “Boa Pinta”, procurou-se trazer informações e justificativas apresentadas no Manual do Uniforme produzido para a implementação de uniformes escolares a serem usados por estudantes da rede municipal de ensino de Pelotas. Examinar esse manual possibilitou compreender como o Projeto “Boa Pinta – Uniforme Escolar” representa as vestimentas escolares.

É importante referir que o manual representa uma boa aparência relacionada à escola, conectando a vestimenta com a necessidade de segurança, de igualitarismo e de higiene. Ao examinar esse artefato cultural, busca-se apontar como as representações de uniforme escolar participam da produção de regulações sobre os modos de vestir-se para ir à escola. Essas regulações produziriam o que se constitui nesse artefato como uma “Boa Pinta” para um/a estudante, afastando o entendimento de que as aparências tendem simplesmente a enganar ou a se relacionarem apenas ao que é considerado frívolo.

As aparências, portanto, regulam os corpos à medida que associam certos modos de vestir e de manter as peças de roupa como “adequadas” para ir à escola por estarem em consonância com os hábitos de higiene e com o pudor. Aspectos cuja inobservância gera, com facilidade, avaliações negativas em relação à moral dos/as estudantes e de seus responsáveis.

É interessante apontar que o argumento de que vestir-se de forma simples e austera significaria pouca atenção às aparências não parece desaparecer, mas se reconfigura, colocando as roupas esportivas e práticas como aquelas que assumem a função de afastamento do que é frívolo e desnecessário. Além disso, o Projeto “Boa Pinta – Uniforme Escolar” se vale de trajes inspirados em roupas esportivas para favorecer a identificação dos/as estudantes da rede municipal de ensino de Pelotas sob o argumento de que a uniformização favoreceria a segurança das crianças e dos jovens no percurso entre sua casa e a escola.

Além disso, a uniformidade dos trajes, como prevê o manual analisado, poderia favorecer o igualitarismo entre os/as estudantes, eliminando, por exemplo, diferenciações relativas à sua condição social. No entanto, nada garante que peças de roupa, acessórios e calçados usados com o uniforme escolar, assim como a qualidade dos cuidados para manter as peças do uniforme, eliminem toda e qualquer diferenciação. Ou, ainda, nada impede que surjam novas formas de hierarquia entre os indivíduos, hierarquias cuja observância funciona como estratégia para corrigir desvios em relação a algum padrão sobre higiene e decência.

1Um ponto que não pode deixar de ser mencionado diz respeito ao cuidado na produção das ilustrações que compõem o Manual do Uniforme: apresentar estudantes meninos e meninas com diferentes cores de pele e cabelo, tornando presentes os argumentos “politicamente corretos” de tolerância e respeito às diferenças.

Referências

AUGUSTO, Ácacio. Governando crianças e jovens: escola, drogas e violência. In: RESENDE, Haroldo (Org.). Michel Foucault: o governo da infância. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015. p. 11-24. [ Links ]

BECK, Dinah Quesada. Com que roupa eu vou? Embelezamento e consumo na composição dos uniformes escolares infantis. 2012. 279 f. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2012. [ Links ]

BRANDÃO, Maria de Fátima Morais. Representações da velhice nos discrusos juvenis em comunidade do Orkut. 2009. 115 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Luterana do Brasil, Canoas, 2009. [ Links ]

DUSSEL, Inês. Cuando las apariencias no engañan: uma historia comparada de los uniformes escolares en Argentina y Estados Unidos (siglos XIX-XX). Pro-Posições, Campinas, v. 16, n. 1 (46), p. 65-86, jan./abr, 2005. [ Links ]

DUSSEL, Inês. Los uniformes como políticas del cuerpo. Um acercamiento foucaultiano a historia e el presente de los códigos de vestimenta em la escuela. In: GÓMEZ, Zandra (Compiladora). Políticas y estéticas del cuerpo en América Latina. Bogotá: Ediciones Uniandes, 2007, p. 131-160. [ Links ]

DUSSEL, Inês. Inclusión y exclusión em la escuela moderna argentina: uma perspectiva postestructuralista. Cadernos de Pesquisa, v. 34, n. 122, p. 305-335, maio/ago. 2004. [ Links ]

DUSSEL, Inês; CARUSO, Marcelo. A invenção da sala de aula: uma genealogia das formas de ensinar. São Paulo: Moderna, 2003. [ Links ]

EWALD, François. Foucault, a norma e o direito. Lisboa: Veja, 1993. [ Links ]

FOUCAULT, Michel. O sujeito e o poder. In: DREYFUS, Hubert L.; Rabinow, Paul. Michel Foucault – uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, p. 231-249. [ Links ]

FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 2005. [ Links ]

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: a vontade de saber. 18 ed. São Paulo: Edições Graal, 2007. [ Links ]

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 42. ed. Petropólis, RJ: Vozes, 2014. [ Links ]

GADELHA, Sylvio. Biopolítica, governamentalidade e educação: introdução e conexões a partir de Michel Foucault/Sylvio Gadelha. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. [ Links ]

HALL, Stuart. The work of representation. In: HALL, Stuart (Org.). Representation: cultural representations and signying produces. London/Thousand/New Delhi: Sage/Open University, 1997, p. 1-74. [ Links ]

KINDEL, Eunice Aita Isaia. A natureza no desenho animado ensinando sobre homem, mulher, raça, etnia e outras coisas mais… 2003. 195f. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2003. [ Links ]

MEYER, Dagmar; PARAÍSO, Marlucy. Metodologias de pesquisas pós-críticas ou sobre como fazemos nossas investigações. In: MEYER, Dagmar; PARAÍSO, MARLUCY (Orgs.). Metodologias de pesquisas pós-criticas em educação. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2012. p. 15-22. [ Links ]

PARAÍSO. Marlucy. Metodologias de pesquisa pós-crítica em educação e currículo: trajetórias, pressupostos, procedimentos e estratégias analíticas. In: MEYER, Dagmar; PARAÍSO, Marlucy (Orgs.). Metodologias de pesquisas pós-críticas em Educação. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2012. p. 23-46. [ Links ]

PELOTAS. Decreto 5.726, de 30 de janeiro de 2014. Diário Popular, Pelotas, 4 de fev. 2014. [ Links ]

PELOTAS. Manual do uniforme escolar. Prefeitura Municipal de Pelotas, 2015. [ Links ]

RIBEIRO, Ivanir; SILVA, Vera Lucia Gaspar da. Das materialidades da escola: o uniforme escolar. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 38, n. 3, p. 575-588, jul./set. 2012. [ Links ]

VEIGA-NETO, Alfredo. “Pensar a escola como uma instituição que pelo menos garanta a manutenção das conquistas fundamentais da modernidade. In: COSTA, Marisa Vorraber (Org.). A escola tem futuro? Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p.103-126. [ Links ]

VEIGA-NETO, Alfredo. Foucault & Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. [ Links ]

WORTMANN, Maria Lúcia C. O uso do termo representação na educação em ciências e nos estudos culturais. Pro-Posições, Campinas, v. 12, n. 1, p. 151-161, mar. 2001. [ Links ]

Recebido: 29 de Junho de 2017; Aceito: 18 de Julho de 2018

Endereço para correspondência: Suelén Teixeira da Silva, Praça Vinte de Setembro, 455, Pelotas – Rio Grande do Sul

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons